Translatio 5 (2013)

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ISSN 2176-8765 Translatio Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga Vol. 5 (2013) - 01 - KÖNIG-PRALONG, C., IMBACH, R. Le défi laïque (A. R. Schmidt) - 08 - ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist. Thomas Aquinas, Giles of Rome, Duns Scotus, and William of Ockham (R. Guerizoli) - 20 - HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta (G. B. Vilhena de Paiva) - 34 - MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy (P. F. Pricladnitzky) - 45 - NOVÁK, L./NOVOTNÝ, D. D./SOUSEDÍK, P./SVOBODA, D. (eds.). Metaphysics: Aristotelian, Scholastic, Analytic (M. Simionato) Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ) Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) • Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo (UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu Mazzola Verza (UFMG) Revisão: Gustavo Paiva

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Reviews in Portuguese about recent publications in the field of medieval philosophy.

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ISSN 2176-8765

Translatio

Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval

e a Recepção da Filosofia Antiga

Vol. 5 (2013)

- 01 -

KÖNIG-PRALONG, C., IMBACH, R. Le défi laïque (A. R. Schmidt)

- 08 -

ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist. Thomas Aquinas, Giles of

Rome, Duns Scotus, and William of Ockham (R. Guerizoli)

- 20 -

HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo

adscripta (G. B. Vilhena de Paiva)

- 34 -

MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy

(P. F. Pricladnitzky)

- 45 -

NOVÁK, L./NOVOTNÝ, D. D./SOUSEDÍK, P./SVOBODA, D. (eds.). Metaphysics:

Aristotelian, Scholastic, Analytic (M. Simionato)

Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma

publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação

Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).

Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ)

Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) •

Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo

(UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu

Mazzola Verza (UFMG)

Revisão: Gustavo Paiva

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KÖNIG-PRALONG, C., IMBACH, R. Le défi laïque, Paris: Vrin, 2013,

226 p.

Ana Rieger Schmidt* ___________________________________________

O desafio laico consiste em uma série de publicações anteriores de Ruedi Imbach

e de Catherine König-Pralong traduzidas para o francês. Os artigos exploram a

pertinência dos meios laicos da sociedade medieval para a plena compreensão da

atividade filosófica desta época. Um programa de estudos é assim esboçado na

tentativa de transformar a maneira como os historiadores da filosofia medieval

abordam seu objeto de estudo.

A obra constata que os historiadores de filosofia medieval negligenciam a

condição social na qual atuaram os autores de obras de valor legitimamente

filosófico, em particular no que toca a uma distinção sociocultural fundamental

neste contexto: a distinção entre clérigo e laico. A partir daí, Imbach e König-

Pralong sustentam a tese segundo a qual é importante explorar as relações entre

o estatuto social dos autores e dos destinatários das produções filosóficas para

melhor entender o próprio conteúdo e escopo da atividade filosófica naquele

período.

Se a historiografia do pensamento medieval já se encontra sensibilizada

para os conflitos entre classe eclesiástica e classe laica, o mesmo não se aplica às

pesquisas atuais em história da filosofia medieval. Assim, o primeiro capítulo da

obra consiste numa breve introdução sobre a questão laica na historiografia

medieval dos últimos 30 anos. Em um primeiro momento, König-Pralong nota

que a tematização do papel dos laicos na sociedade medieval era feita à partir do

ponto de vista dos clérigos: os laicos eram considerados como uma classe

espiritual e culturalmente inferior, em conformidade com o adjetivo pejorativo

illiterati, frequentemente aplicado aos laicos pelos clérigos. O ponto de partida da

                                                                                                                         * Bolsista CAPES e doutoranda em filosofia medieval pela Université de Paris IV-Sorbonne.

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historiografia medieval seria, assim, marcado por uma abordagem “contaminada”,

clerical. Ligado a isso, a prática filosófica se viu concentrada nos monastérios e

universidades. Os textos escritos por membros do clero e em língua latina foram

em consequência privilegiados pela historiografia em questão e seu objeto de

estudo foi quase exclusivamente determinado pelos problemas filosóficos que

possuíam uma certa relação com a teologia (como a questão da criação, dos

nomes divinos, das ideias divinas, etc.). Um sintoma dessa predileção é o

esquecimento, por parte dos historiadores, da filosofia política e da filosofia das

ciências (por exemplo, da ótica e da astronomia), todavia bem presentes na Idade

Média.

Étienne Gilson, reconhecido medievista, chega a definir a essência da

filosofia medieval como “filosofia cristã”1. Imbach defende que uma

caracterização como essa é “cega à multiplicidade de problemas e de métodos

empregados nas contribuições medievais” (p. 34). Assim, a posição social do

autor e do destinatário deve ser tematizada, tendo-se em conta uma sociedade

onde a Igreja e a hierarquia eclesiástica exerceram uma hegemonia em diversos

níveis.

A questão de saber se os laicos filosofaram na Idade Média constitui para

os autores não apenas uma preocupação histórica, mas “adquire também uma

significação altamente filosófica, pois ela se encontra ligada à autoconcepção

histórica da filosofia, às missões que ela se propôs e à função que ela efetivamente

cumpriu” (p. 35). Uma visão que parte apenas de uma história das ideias ou dos

problemas filosóficos não se coloca estas questões. Esta leitura, no entanto,

começou a ser revista nos anos 80 pelas publicações de Klaus Schreiner2, no

plano da história social, e de Ruedi Imbach3 no plano da história da filosofia. De

fato, Imbach procura localizar os laicos na paisagem intelectual medieval

empregando os caminhos abertos pela história cultural e social da Europa

medieval.                                                                                                                          1 GILSON, E. L’esprit de la philosophie médiévale, Paris: Vrin, 1969. 2 SCHREINER, K. “Laienbildung als Herausforderung für Kirche und Gesellschaft. Religiöse Vorbehalte und soziale Widerstände gegen die Verbreitung von Wissen im späten Mittelalter und in der Reformation”, Zeitschrift für historische Forschung 11 (1984), pp. 257-354. 3 IMBACH, R. Laien in der Philosophie des Mittelalters, Amsterdam: Grüner, 1989.

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3  KÖNIG-­‐PRALONG,  C.,  IMBACH,  R.  Le  défi  laïque    

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O capitulo II examina o conceito de “laico” e seus diferentes sentidos no

contexto medieval. O primeiro sentido, usado ainda em nosso tempo, entende o

laico como o não-clérigo. Mas o mesmo conceito também se refere ao grau de

instrução de um determinado indivíduo. Neste caso, “laïcus” designa o illiteratus.

Essa expressão sofreu uma grande transformação no curso dos séculos: em um

primeiro momento ela se refere àquele que não conhece o latim; ela designa o

inculto e é pejorativa. Depois, ela se aplica àqueles que não receberam uma

formação superior de qualquer natureza. Mais tarde, “illiteratus” remete a um

tipo particular de formação, alternativo ao ensino tradicional das universidades

do século XIII, ou seja, comum àqueles que não estudaram na Faculdade de artes

ou de teologia. Ao fim do século XV, por sua vez, a identificação entre laïcus e

illiteratus já não faz mais sentido.

As interações entre laicos e clérigos são extremamente complexas. De um

lado, conhecemos o seu caráter conflitoso, presente por exemplo nas discussões

em teoria política – basta citar o caso dos escritos de Guilherme de Ockham,

marcados por uma forte crítica ao poder papal – e na célebre condenação de

1277. Pode-se neste contexto falar de uma tentativa de emancipação do saber

com relação ao clero por parte dos mestres da Faculdade de artes de Paris,

mesmo se esses pertenciam à classe religiosa. Por outro lado, vemos que i) laicos

eram frequentemente os destinatários de textos filosóficos (veja-se por exemplo

os escritos de Tomás de Aquino ao professor de medicina Philippus de Castro

Celi e o tratado inacabado De regno, dedicado ao rei Henrique III de Lusignan); ii)

havia uma prática de tradução de textos filosóficos em língua vulgar (veja-se o

caso da Consolação da Filosofia de Boécio, traduzida 13 vezes para o francês), o

que testemunha um interesse pela filosofia fora dos círculos universitários

eruditos; iii) laicos são autores de textos filosóficos. Neste sentido, Imbach

chama a atenção no capítulo III para o fato de que as cortes reais eram um lugar

fecundo de grande troca intelectual e de estímulo à produção filosófica, citando

os casos representativos da corte do rei Roberto de Nápoles, do imperador

Frederico II e do rei Carlos V.

Vemos, assim, o aparecimento de novos objetos de estudos e de novos

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personagens: Raimundo Lúlio, Dante, Petrarca e Cristina de Pisano. Os capítulos

IV a VII buscam determinar a dimensão filosófica em seus textos singulares,

estrangeiros às estruturas escolásticas e escritos também em língua vulgar – em

catalão, italiano e francês.

Lúlio encarna a figura de um “outsider” autodidata que buscava integração

ao meio clerical. Sua obra é endereçada tanto aos homens instruídos como aos

illiterati. Destacam-se os escritos em catalão, como o Libre de maravelles, um

tratado de ética destinado aos soberanos e dedicado a Filipe, o Belo. Ao mesmo

rei é também dedicada uma série de escritos em latim, como o Liber natalis.

Nesta obra em particular, Lúlio se considera explicitamente um laico e é sob

esse estatuto que ele critica o averroísmo. Imbach chama a atenção para a

interpretação das artes mecânicas ou do trabalho manual por parte do filósofo

catalão. Em seus tratados Doctrina Pueril, Arbor humanalis et Arbor scientiae vemos

uma interpretação antropológica independente da visão escolástica tradicional,

insistindo sobre a sua importância econômica e social (com a interessante

valorização do artesanato), o que oferece uma ideia da concepção lulliana do

homem como ser de ação.

Dante é um laico nos dois sentidos da palavra: nem clérigo, nem

universitário. Ele se considera explicitamente dentre os illiterati em sua obra

inacabada Convivio, dedicada àqueles que não puderam comer do “pão dos anjos”,

a saber, a todo aquele que não pôde completar os estudos universitários. Esta

obra de dimensão autobiográfica é particularmente entusiasta da função da

filosofia de saciar a fome por conhecimento de todos os homens: príncipes,

barões, cavaleiros e também mulheres. Outros quatro textos constituem a via

filosófica de Dante: De vulgari eloquentia, Epístolas à Cangrande della Scala,

Monarchia e a Questio. Imbach identifica neles uma transformação do “discurso

escolástico”, entendido como o discurso baseado no modelo aristotélico, que

visa à contemplação das mais nobres causas. Tal discurso possui um lugar

próprio (as Faculdades de artes e de teologia), um suporte próprio (os textos

em forma de comentário ou em forma de questões), uma língua própria (o latim)

e um sujeito-autor bem determinado, o qual reflete a aspiração à necessidade e à

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universalidade (os textos filosóficos são redigidos na terceira pessoa do singular

ou na terceira pessoa do plural). Na medida em que transforma a filosofia e seu

projeto, Dante transforma cada uma destas características definidoras da prática

filosófica escolástica. Dante escreve na primeira pessoa do singular, em íntimo

contato com uma narrativa autobiográfica – mesmo que esta seja muitas vezes

meramente artística e não propriamente verídica. Tal característica conecta a

existência do autor e do interlocutor com o filosofar. Porém, a filosofia não é

para Dante uma reflexão solitária que exige o exílio daquele que pensa, mas

representa um ensino que deve ser transmitido. A dimensão política da obra de

Dante é valorizada por Imbach: o homem é visto como um animal racional e

político ao mesmo tempo em que a filosofia moral ocupa o lugar da metafísica

como ciência primeira.

Dante faz da linguagem um objeto filosófico: seu interessantíssimo tratado

latino De vulgari eloquentia é exclusivamente dedicado à questão da formação e da

multiplicação dos diferentes idiomas de um ponto de vista racional (e não como

punição pós-Babel). A questão da prática da filosofia em língua vulgar é

tematizada de maneira inédita no Convivio, quando o autor justifica o uso de sua

língua maternal visando seus destinatários: todos os “iletrados” que não puderam

concluir uma formação universitária. Mesmo reconhecendo a superioridade

científica do latim, Dante vê nessa língua uma barreira para a instrução dos

homens. Dante defende explicitamente que a filosofia não deve ser restrita à uma

pequena elite aristocrata (p.161).

Petrarca, em seu tratado tardio De sui ispius et multorum ignorantia, em

direção contrária àquela de Dante, entra em confronto com Aristóteles e seus

seguidores contemporâneos. O humanista italiano critica em particular o fato de

alguns filósofos de seu tempo venerarem o Estagirita como um deus. Para

Petrarca, Aristóteles se enganou terrivelmente com relação a questões de suma

importância, como a eternidade do mundo e, sobretudo, a concepção da

felicidade humana. Os equívocos do Filósofo se explicam pelo fato dele ter sido

um pagão e, assim, por não possuir os conhecimentos essenciais recebidos pela

fé cristã. O humanista italiano considera que a mais alta filosofia consiste no

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conhecimento de Deus, e por isso, toda filosofia pagã é necessariamente lacunar

e pobre neste sentido. No tratado citado, Petrarca se concentra sobre as noções

de virtus illiterata e de literata ignorantia. A meditação sobre a própria ignorância e

suas implicações éticas constituem uma tentativa para conceber adequadamente

a prática filosófica. Com efeito, através da reflexão do sujeito sobre si mesmo e

do conhecimento de si – ao alcance de todos os homens –, que possibilita o

reconhecimento da própria ignorância, se mostra um momento constitutivo do

verdadeiro filósofo que, como Sócrates, confessa saber que não sabe. O sábio é

aquele que reconhece os limites de seu conhecimento, e não aquele que crê

tudo saber. Esta concepção da filosofia afirma a primazia do homem bom (vir

bonus) sobre o homem erudito (literatus).

Catherine König-Pralong encerra a publicação com considerações sobre o

escopo filosófico da obra da poetisa Cristina de Pisano, frequentadora da corte

de Carlos V e de Carlos VI. A partir dos anos 1400, Cristina escreve uma série

de obras em prosa sobre a hierarquia dos saberes, bem como sobre o governo

político dos soberanos temporais. Seus escritos possuem uma forma híbrida,

aparentando-se ao mesmo tempo aos espelhos dos príncipes (miroir des princes,

specula principum),4 às autobiografias intelectuais, às narrações históricas das

Grandes crônicas da França e ao gênero escolástico das Divisões das Ciências.

Cristina demonstra vasto conhecimento de textos filosóficos. Sabe-se que ela

teve acesso, por exemplo, à Consolação de Boécio (em uma tradução anônima

antes atribuída a João de Meun), à Cidade de Deus de Agostinho (na tradução de

Raul de Presles) e ao Comentário à Metafísica de Aristóteles de Tomás de Aquino –

Cristina redigia somente em francês, mas quase certamente lia em latim.

Com relação à tradição dos espelhos dos príncipes, Cristina estabelece

uma enciclopédia de saberes ao alcance dos laicos, na qual as ciências teóricas

(incluindo a metafísica) entram na esfera dos saberes destinados aos soberanos.

No interessantíssimo Livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V, de 1404,

Cristina defende a sabedoria do rei ideal como incluindo o conhecimento das

                                                                                                                         4 Gênero literário medieval, espécie de manual constituído de conselhos e princípios morais destinados a guiar o soberano em seu governo.

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primeiras causas. Isso representa uma transformação importante considerando

que o espelho dos príncipes mais reputado de seu tempo era o Livre du

gouvernement des princes de Egídio de Roma, no qual a atitude com relação aos

laicos é manifestadamente condescendente, reduzindo seu saber a

conhecimentos práticos visando a utilidade social. Nesse contexto, Cristina

denuncia explicitamente o monopólio clerical do saber teórico. Cabe notar que

no Livre de l’Advision Cristine, de 1405, a poetisa combate explicitamente a

misoginia dos clérigos e dos homens em geral que recusam o ensino às mulheres,

em uma atitude que König-Pralong considera como feminista. Neste espelho dos

príncipes, o personagem principal não é o rei: Cristina elege à si mesma como

modelo da busca pelo saber.

Deve-se levar em conta, contudo, que mesmo que esses exemplos não

exaustivos de produção filosófica sejam suficientes para provar que havia, na

Idade Média, laicos que filosofavam, não é possível encontrar nestas práticas uma

unidade, nem falar de um espírito laico comum.

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ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist. Thomas

Aquinas, Giles of Rome, Duns Scotus, and William of Ockham, Oxford:

Oxford University Press, 2010, 318 p.

Rodrigo Guerizoli* ___________________________________________

Marylin McCord Adams, conhecida no meio filosófico sobretudo por seu

volumoso estudo sobre Guilherme de Ockham, oferece em Algumas Teorias da

Eucaristia da Idade Média Tardia. Tomás de Aquino, Egídio de Roma, Duns Scotus e

Guilherme de Ockham um estudo associado ao mesmo tempo ao campo da

teologia histórica e ao da história da filosofia. E, de fato, ciente dessa dupla face

de seu intento, Adams organiza seu texto de modo a “permitir aos leitores

selecionar o que lhes seja mais útil e prazeroso” (p. 1). Trata-se de analisar e

clarificar as teorias de alguns pensadores medievais sobre a eucaristia, um dos

sete sacramentos cristãos, aquele no qual “o corpo e o sangue de Cristo se

tornam realmente presentes no altar, dando aos fiéis que dela participam uma

oportunidade de comunhão com Ele no aqui e agora” (ibid.). Até que ponto uma

tal doutrina se deixa coadunar com as convicções de ordem metafísicas e de

filosofia natural compartilhadas por intelectuais dos séculos XIII e XIV? Essa é a

principal pergunta que guia a investigação de Adams e cuja resposta é

apresentada principalmente nos capítulos 4-10, dedicados a cada um dos autores

mencionados no título da obra, bem como a um mapeamento geral em que se

avalia o quão correntes ou, ao contrário, gratuitas, seriam as diferenças

conceituais introduzidas por tais autores em seus ensinamentos sobre a

eucaristia frente aos modelos aristotélicos de metafisica e de filosofia da

natureza.

Uma vez que se trata, em última instância, de um confronto com

Aristóteles, Adams dedica o primeiro capítulo de sua obra à apresentação do

                                                                                                                         * Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da UFRJ.

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9  ADAMS,  M.  M.    Some  Later  Medieval  Theories  of  the  Eucharist  ADAMS,  M.  M.    Some  Later  Medieval  Theories  of  the  Eucharist  

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instrumental teórico aristotélico em jogo. Os capítulos 2 e 3, por sua vez, se

dedicam às linhas gerais da compreensão medieval de sacramento, um signo

sensível que aponta para algo imaterial ou, de modo mais preciso e problemático,

um rito material que possui poder causal eficiente suficiente para produzir certos

benefícios espirituais (cf. p. 51ss.). A mesma noção de sacramento está ainda no

centro dos capítulos finais da obra, 11 e 12: no penúltimo capítulo são

considerados o comer e o beber eucarísticos e no último se elucida o destino

dos sacramentos na vida post mortem. Evidentemente, os capítulos 2, 3, 11 e 12

são de limitado valor para leitores que – como nós – têm interesses puramente

filosóficos e, por isso, praticamente não serão tratados na presente resenha.

Inicialmente se trata, repetimos, de exibir certos aspectos-chave do

maquinário conceitual aristotélico que serão de importância para os autores

sobre o quais Adams se debruça no tratamento de questões ligadas a causalidade

sacramental e presença real eucarística. Dois tópicos são tratados: a estrutura

metafisica dos entes corpóreos e as concepções aristotélicas de espaço. Com

relação ao primeiro, Adams explora as principais estratégias de explicação da

constituição de tais itens corpóreos: atomismo e hilemorfismo. A questão aqui

parece girar em torno à noção de “unidade paradigmática” (p. 5). Quem a

possui? Os objetos materiais macroscópicos ou os itens pelos quais eles se

constituem? Ora, aponta o aristotélico, aquela noção cabe, sem restrições, a

objetos macroscópicos, o que é demonstrado ao se perceber os esquemas de

regularidade – “sempre ou na maior parte das vezes” – que os organizam. Sendo

assim, a unidade de tais coisas não pode consistir na mera aproximação de itens

primariamente unitários; antes, ela deve resultar da presença, naquela matéria, de

um princípio, a forma, que lhe atribui unidade e dinâmica funcionais.

Tal determinação pela forma tem de ocorrer em pelo menos dois níveis: o

de uma determinação sem a qual algo deixa de ser o que é e o de uma

determinação sem a qual apenas se modifica o modo como algo é o que é. Até

aqui hilemorfistas estão de acordo. Mas as coisas se tornam mais difíceis quando

se percebe vários níveis de determinações essenciais à unidade das coisas: num

animal, por exemplo, a posse de um corpo e de funções vegetativas parece tão

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10  ADAMS,  M.  M.    Some  Later  Medieval  Theories  of  the  Eucharist  

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essencial quanto a posse daquilo que o distinguiria enquanto tal, a saber, a

cognição sensorial e o apetite. Mas, quantas formas desempenham essas funções?

Aqui hilemorfistas se dividem entre unitaristas e pluralistas. Adams percorre em

poucas páginas os argumentos de que cada uma das partes lança mão, focando,

por exemplo, na concepção tomasiana de matéria como “nem atualmente

substância nem um puro nada” (p. 9), na crítica de Duns Scotus e Guilherme de

Ockham a esse ponto como “metafisicamente incoerente” (p. 10), e na réplica

unitarista que busca indicar a perda de qualquer explicação por parte dos

pluralistas do porquê de plantas, animais e seres humanos exibirem uma unidade

verdadeiramente per se.

Outro tópico tratado diz respeito ao número de categorias que deve ser

reificado. Dentre os autores em jogo as alternativa parecem ser: substância,

qualidade e quantidade (Tomás de Aquino, Egídio de Roma e, usualmente, Duns

Scotus) ou apenas as duas primeiras (Guilherme de Ockham). Em seguida são

ainda esboçados os problemas dos universais e do princípio de individuação,

sempre de maneira extremamente clara e sintética, expondo com precisão as

questões sistemáticas em jogo em cada uma das discussões.

Acerca das questões que giram em torno à concepção aristotélica de

espaço, ou mais precisamente, em torno à sua teoria da localização dos corpos,

Adams discute as duas principais teorias quanto ao tema, que rementem

respectivamente às Categorias e à Física: de um lado, a visão do espaço como uma

“extensão incorpórea contínua tridimensional que é capaz de receber corpos”

(p. 20) e, de outro, a defesa da ideia de que espaço é “o limite do corpo que

contém e cujo limite toca e é coincidente com aquele do corpo que é contido”

(ibid.). O que se mostra, como já se poderia prever, é que parece haver bons

argumentos contra e a favor de cada uma das posições.

O primeiro capítulo do livro pode ser lido separadamente, como uma

extremamente competente série de colocação de problemas que giram em

torno à recepção das teorias aristotélicas sobre a constituição dos objetos

materiais e sobre a natureza do espaço.

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11  ADAMS,  M.  M.    Some  Later  Medieval  Theories  of  the  Eucharist  

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Passando então ao quarto capítulo da obra, dedicado a Tomás de Aquino e

Egídio de Roma, encontramos de início um delineamento das questões em jogo.

Há, de acordo com Adams, dois tipos de desafios filosóficos gerados pela

teologia eucarística. Inicialmente, um que diz respeito a problemas de “múltipla

localização” (p. 87). Com efeito, o que quer que ocorra com o pão durante a

consagração, seus acidentes extensionais permanecem enquanto tais. Ora, não

ocupariam eles então o lugar que pudesse ser ocupado pelas dimensões de

qualquer outro corpo e, portanto, também do corpo de Cristo? No mesmo

sentido, como poderia o mesmo corpo, o de Cristo, estar ao mesmo tempo no

céu, como quer a Cristologia, e em um ou nos muito altares em que se celebra a

missa? Além disso, há um “problema de tamanho” (ibid.), pois só se pode dizer

que um certo corpo ocupa um certo espaço se suas dimensões são compatíveis

com as daquele espaço. Ora, como seria possível, como quer o sacramento, que

o verdadeiro corpo de Cristo se encontre num espaço que tem as dimensões de

um mero pão?

Transubstanciação é o termo-chave da solução oferecida por Tomás de

Aquino aos problemas esboçados. Não podendo lançar mão de qualquer tipo de

locomoção para explicar como vem a ser verdadeiro que o corpo de Cristo esteja

no altar, Tomás pensa que um esquema de substituição pode lhe ser útil: “algo x

pode vir a estar onde x não estava antes, se algo de outro, y, que aí estava, é

convertido em x” (p. 88). Deve se tratar aqui, porém, de uma espécie de mudança

sobre a qual Aristóteles não suspeitava, uma mudança, a saber, “na qual nada

daquilo que foi convertido (...) persiste naquilo no qual foi convertido” (ibid.). Tal

tipo de mudança não parece inimaginável para Tomás, para quem nada tinham de

estranho as noções de criação ou aniquilação. Com efeito, no mesmo âmbito de

ações tipicamente associadas ao exercício da onipotência divina poderia se

encontrar ainda outra: transubstanciação, a conversão do todo de uma coisa,

matéria e forma, no todo de outra (p. 89s.). Mas como é possível à solução

através da ideia de transubstanciação oferecer respostas plausíveis aos problemas

de múltipla localização e de tamanho acima apontados? Pela ideia de

transubstanciação, toda a matéria e toda a forma do pão são convertidas na

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matéria e forma do corpo de Cristo. O cerne da solução de Tomás consiste em

negar, porém, que as dimensões quantitativas do corpo de Cristo se façam

presentes pelo sacramento. E isso se justifica porque os acidentes do pão ali

permanecem, o que indica que a transubstanciação não os atinge. E

permanecendo os acidentes do pão, não é possível a presença, ao mesmo tempo

e no mesmo espaço, dos acidentes do corpo. Este, numa palavra, considera

Tomás, está relacionado ao espaço do altar apenas através de dimensões

quantitativas que lhe são alheias, que são próprias, de fato, ao pão. E como um

corpo está onde estão suas dimensões quantitativas, o corpo de Cristo

permanece, de fato, onde estava já antes do sacramento, o que oferece solução

às questões esboçadas acima. Apenas a substância do corpo de Cristo, e não sua

quantidade dimensional, se fazem presentes “pela força do sacramento” (p. 96).

Mas um problema surge: Tomás, com efeito, insiste que aquilo que está

realmente unido ao corpo – a Divindade de Cristo, Sua alma, Seus acidentes etc.

– se faz presente “por concomitância real e natural” (ibid.). Ora, não

reaparecerão aqui, cedo ou tarde, os “problemas de tamanho” aos quais já se fez

referência? Para Tomás isso não só não é o caso, mas, antes, tal concomitância é

benéfica. Ela significaria, de fato, uma espécie de poder ordenador e estruturador

das dimensões quantitativas reais frente às do pão: “a concomitância natural dos

acidentes corporais de Cristo preserva a ordem de Suas partes corporais entre

si e, assim, evita que o corpo de Cristo sob o sacramento seja um amontoado

desestruturado” (p. 97).

Que problemas restariam para as gerações posteriores após a

aparentemente tão convincente e bem estruturada doutrina de Tomás de

Aquino? O mais interessantes dos problemas a que se dedica Egídio de Roma é

chamado por Adams de “problema da ausência de constituinte comum” (p. 99).

Ele surge ao se perceber que na teoria da transubstanciação proposta por Tomás

parece faltar justamente o que tornava em geral inteligível a teoria aristotélica da

geração, qual seja, um constituinte comum entre o termo-a-partir-do-qual e o

termo-para-o-qual do processo. Egídio se empenha por suprir tal falta, tentando,

obviamente, não fazer da transubstanciação uma mera geração, nem um ato de

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criação ex nihilo. Sua tentativa, numa palavra, consiste em tornar plausível que,

em certo sentido, a matéria cumpra o papel daquele constituinte comum

requerido. Evidentemente não pode aqui se tratar da matéria no mesmo sentido

em que esta é tradicionalmente considerada o elemento comum que une os

extremos de um processo de geração. Entra pois em cena a ideia de que Deus

pode agir diretamente sobre a matéria na medida em que esta é uma pura

quididade, aquém, portanto, de sua quantificação e individualização. Assim, na

transubstanciação, Deus converte, de modo completo, uma substância em outra

agindo sobre a matéria como quididade, um constituinte metafísico de toda

substância material (p. 100s.). Talvez o desejo de Egídio de salvar a noção

tomasiana de transubstanciação tenha, porém, feito desta e da geração não mais

que duas espécies distintas de um mesmo processo pelo qual a se dá a

transformação do que determina a matéria como simples quididade: num por

assim dizer primeiro nível teríamos a possibilidade de transubstanciação, quando

apenas aquela matéria é mantida; num segundo nível, por sua vez, teríamos os

processos naturais de geração, nos quais o que se mantém é já o complexo

formado por matéria como quididade, quantificação e individualização. Parece

porém que, como preço, Egídio já proporciona aqui à matéria bem mais do que

apenas aquela “pura potencialidade” (p.101), aquele “meio entre ser e nada”

(ibid.), que Tomás de Aquino gostaria de aceitar como característica de tal

constituinte do mundo sensível.

O próximo autor abordado por Adams é João Duns Scotus. Distanciando-

se do enfoque tomasiano, a preocupação do Doutor Sutil com respeito ao tema

se concentra na possibilidade de se explicar a presença real do corpo de Cristo.

Assim, a questão se joga em torno sobretudo às categorias aristotélicas de

quantidade e de lugar, bem como a problemas de localização espacial. Nesse

contexto, Scotus, através de um raciocínio baseado na distinção entre posição

quantitativa e posição categorial, defende que apenas a primeira é essencial a

corpos quantificados e que, no caso do corpo de Cristo, apenas esta aí se

encontraria. Assim, desprovido de posição categorial, tal corpo coexistiria de forma

absoluta com o seu lugar, estaria aí realmente presente, mas não teria relações

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externas que o tornassem coextensivo com tal lugar (p. 118s.). Mas tal posição não

está isenta de problemas, pois dela decorrem dificuldades relativas a algumas de

suas consequências, principalmente às que dizem respeito à rejeição de duas

teses, aparentemente sensatas, da física aristotélica: a) “dois corpos não podem

ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo” e b) “um único corpo não poder

ocupar ou mover-se em direção a dois lugares diferentes ao mesmo tempo” (p.

120). A condução em meio à complexa teia de argumentos adiantados pro e

contra a posição escotista é aqui, como em geral, levada a cabo com extrema

clareza por Adams: trata-se de um esforço por mostrar a não-contraditoriedade

do que decorre de proposições teologicamente aceitas sobre a eucaristia, afinal,

“como todas as teorias filosóficas e teológicas, formulações teológicas devem

visar à inteligibilidade” (p. 146). O que se sobressai, porém, e o que Adams não

explora, é o caráter artificial de tais manobras, pelas quais os campos do

naturalmente esperável e do filosoficamente aceitável – o primeiro baseado nas

leis da natureza e o segundo no princípio de não-contradição – se cindem cada

vez mais radicalmente, de modo que o que se tem, por fim das contas, são

concepções para as quais não-contradição e intuitividade parecem estar numa

relação inversa uma para com a outra. Embora Adams seja extremamente

precisa em reconstruir o passo-a-passo desse processo, parece-nos que lhe falta

uma maior clareza do significado de tais mudanças desde o ponto de vista de

uma história filosófica de média ou mesmo de longa duração e que inserisse tal

cisão entre lógica e natureza num quadro mais amplo de desdobramentos

históricos do pensar.

No sétimo capítulo Adams chega a Ockham, que, mais radicalmente que

Scotus, concentra a discussão em pauta em torno à categoria aristotélica da

quantidade, buscando justificar que não é requerido que uma substância material

possua uma quantidade que lhe seja inerente e que funcione como fundamento

de sua presença atual com relação a um certo lugar (p. 156). De fato, o alvo de

Ockham se encontra sobretudo na intepretação que Tomás de Aquino provê da

categoria da quantidade, que busca ver aí uma espécie de camada – Adams fala

nesse contexto de uma “película” – entre as substâncias materiais e suas

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qualidades. Postular um tal intermediário, considera Ockham, é simplesmente

desnecessário; e mais: “a hipótese da quantidade como uma coisa realmente

distinta da substância e da qualidade é fisicamente problemática e

metafisicamente incoerente” (p. 158). Em lugar da reificação entra em cena a

sensibilidade linguística, que exige que se tome quantidade como um termo

conotativo, cujos únicos correlatos reais seriam substâncias e qualidades (ibid.).

O interessante nesse contexto é notar como a desreificação da categoria da

quantidade operada por Ockham abre-lhe as portas para a construção de teorias

coerentes – ainda que, de novo, naturalmente surpreendentes – em prol de

situações exigidas por teses teológicas, quais sejam, que um corpo possa estar

em vários lugares ao mesmo tempo (Cristo ao mesmo tempo nos céus e nos

altares) e que dois corpos possam ocupar simultaneamente o mesmo espaço

(Cristo atravessando portas). Filosoficamente, o capítulo se encerra com uma

apresentação, que infelizmente não chega a adquirir grande profundidade, da

recepção crítica por parte de Ockham do princípio “tudo o que está em

movimento é movido por outro” (p. 167) e da necessidade de contato, isto é, de

toque de quantidades, entre os polos envolvidos na produção de uma ação

corporal.

Tendo tratado nos capítulo 4-7 de questões decorrentes de teses sobre a

existência e a presença do corpo de Cristo nos altares, Adams se dedica, nos

capítulos 8-9, a problemas relativos ao que se passa com o pão ou, mais

precisamente, com seus acidentes, ao longo do processo de consagração. Ora, se

tais acidentes permanecem à vista após o milagre, mas é distinta a substância na

qual eles inerem, então parece que eles continuam a existir, malgrado a

aniquilação da substância que os sustenta. Tal conclusão, porém, é tida por

muitos como inaceitável tendo-se em vista elementos-chave da teoria aristotélica

da relação entre substâncias e acidentes como, por exemplo, teses sobre

definição e individuação de acidentes. Tendo por base esse problema, Adams

passa em revista no capítulo 8 as estratégias de Tomás de Aquino e de Egídio de

Roma para superá-lo, ou seja, para justificar a aceitabilidade da tese de que, de

fato, permanecem na eucaristia acidentes sem que permaneçam as suas

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substâncias. Tais estratégias têm basicamente a ver com o desenvolvimento de

um sofisticada teoria sobre as relações dos acidentes entre si. Tal teoria busca,

em primeiro lugar, sublinhar a prioridade da quantidade sobre a qualidade, donde

decorre uma dependência desta com relação àquela, e, em seguida, a não-

contraditoriedade de dimensões quantitativas existirem atualmente per se. De

fato, se tal é possível, é fácil ver como, em tornando a quantidade algo per se,

Deus é capaz de manter as qualidades (e demais acidentes) que naquela

quantidade se ancoram. Evidentemente, o nó górdio se encontra aqui na tese da

auto-individuação do acidente da quantidade (p. 181s., em Tomás, e p. 188s., em

Egídio) e, parece-nos, Adams não chega nesse ponto a oferecer uma

apresentação suficientemente detalhada do problema, ainda que o leitor

interessado venha a encontrar, sem dúvida, uma discussão preliminar de bom

nível do tema, bem como as indicações básica de fontes a levar em consideração.

No capítulo seguinte, o nono da obra, Adams trata de questões que, desde

o prisma de uma teoria da eucaristia, se veem relacionadas à noção de acidente. E

nesse contexto a questão mais urgente é a seguinte: é verdade que, se algo é um

acidente, necessariamente se segue acerca deste algo que ele sempre existe em

um sujeito de inerência? Evidentemente, a vulgata do aristotelismo, baseada em

argumentos que giram em torno às noções de prioridade natural e definicional,

responderia positivamente à questão. Cabe a Adams explorar o modo como

Scotus e Ockham buscam escapar aos limites que se auto-impõe o aristotelismo.

Em Scotus, tal estratégia tem fundamentalmente a ver com a introdução da

distinção, com relação a um certo ente, entre ser atualmente assim ou assado e

ter a aptidão ou tendência ou disposição de ser assim ou assado. Substâncias e

acidente apenas têm a aptidão de, por exemplo, ser respectivamente em si e em

outro; mas essa aptidão natural pode perfeitamente ser obstruída, talvez, em

certas circunstâncias específicas, pela própria natureza, e certamente, em todos

os casos, por Deus. Nada impede que num dado instante itens de tais tipos não

exibam atualmente características que eles teriam a aptidão de exibir (p. 197-206).

Na sequência do capítulo, ainda tratando da posição de Scotus, sempre em

contraste com a de Tomás de Aquino, mas também lançando mão de

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comparações com Egídio de Roma e Godofredo de Fontaines, Adams discute a

preservação e o alcance do poder causal dos acidentes, que na eucaristia se

separam de sua substância natural de inerência, bem como questões relativas a

diferentes tipos de mudança, como, por exemplo, rarefação e condensação, que

podem ocorrem com o pão e o vinho. A posição de Ockham com relação a tais

problemas é apresentada em poucas páginas, ao fim do capítulo. Tal opção

poderia parecer pouco recomendável, não fosse a por Adams bem indicada

concordância, aqui, das posições de Ockham com as de seu confrade escocês.

Os três últimos capítulos da obra se põem sobre a explícita égide de uma

“moral da estória” (p. 227). O décimo capítulo marca um ponto alto da obra, no

qual Adams lida, de maneira ao mesmo tempo panorâmica e extremamente

competente, com várias situações teóricas caras às reflexões levadas a cabo nos

séculos XIII e XIV nas quais o aristotelismo se via desafiado a dar conta de

certos fenômenos naquele contexto aceitos como verdadeiros e, nesse sentido,

merecedores de explanação. Visualizamos, nesse passo da obra, o quão incisivos,

pois justificados de forma argumentativamente sólida, são problemas colocados

em torno, por exemplo, à compreensão aristotélica da relação entre o primeiro

princípio e o mundo, em torno à noção de causa eficiente, em torno aos limites

da noção de necessidade metafísica, acerca da determinação do grau de

regularidade associado às noções de disposições e aptidões e acerca de

problemas diretamente relacionados à ideia de consagração eucarística e aos

poderes causais sui generis a esse fenômeno associados. É sobre esses problemas

mais específicos que Adams se dedica no capítulo, começando por questões

ligadas à extensão de corpos, sua relação com o acidente da quantidade e sua

localização no espaço, o que diz também respeito à relação entre matéria e

individuação, tema que separa, de um lado, Tomás de Aquino e Egídio de Roma

e, de outro, João Duns Scotus e Guilherme de Ockham. Mantendo a linha de

uma espécie de balanço retrospectivo de questões anteriormente abordadas, o

capítulo continua, rediscutindo as diferentes descrições que, de Tomás de

Aquino a Guilherme de Ockham, se fizeram do fenômeno da presença real do

corpo (e sangue) de Cristo no altar e, por fim, recapitulando o tratamento, que

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em geral pode-se qualificar como “reificante”, dado aos acidentes por parte dos

autores em questão.

Como anteriormente adiantado, os dois capítulos finais da obra têm um

acento pronunciadamente teológico. Trata-se, inicialmente, de esclarecer

diversas dúvidas que pairam sobre o ato de ingestão que tem lugar após a

consagração eucarística. Em seguida, no centro das discussões é colocada a

relação entre os sacramento e seus limites temporais: a morte do indivíduo e o

fim do mundo, limites que revelam o quão forte são as ideias de adequação e de

eficácia dos sacramentos não simplesmente à natureza humana como tal mas,

sobretudo, ao estado atual dessa natureza – uma posição da qual,

interessantemente, Adams se permite distanciar, propondo uma reescritura, que

se quer socialmente rica, das ações post mortem e na qual o sentido dos

sacramentos seria mantido. (p. 290ss.).

Sem dúvida a obra de Adams é atraente tanto ao filósofo quanto ao

teólogo. Trata-se de um texto preciso, no qual uma série de aspectos

relacionados à recepção acadêmica do tema da eucaristia são abordados.

Destacam-se nesse contexto os capítulos tematicamente mais ambiciosos da

obra: o capítulo de abertura, que dá ao leitor novato uma excelente visão do

pano de fundo geral das discussões, servindo também, fique claro, ao leitor

experiente como um excelente aide-memoire, e o décimo capítulo, no qual se

traça um balanço geral do núcleo duro do trabalho, os capítulos 4-9. Quanto a

esses capítulos, por sua vez, a leitura é gratificante, mas, por vezes, árdua, devido

sobretudo à concatenação de inúmeros argumentos.

Sem desmerecer o trabalho de Adams, que certamente merece lugar de

referência para os interessados tanto nos debates filosóficos em torno à

eucaristia quanto, em geral, nos desafios propostos ao aristotelismo nos séculos

XIII e XIV, vale salientar certas faltas em termos de bibliografia: não é

mencionada a obra de A. Funkenstein Theology and the Scientific Imagination from

the Middle Ages to the Seventeenth Century, de 1986, que certamente seria de

interesse discutir em paralelo a certas reconstruções e análises propostas (p. ex.

p. 230 n. 1). E mais grave: não são levados em conta trabalhos especificamente

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ligados ao objeto da investigação de Adams e largamente reconhecidos pela

comunidade científica. E aqui tenho especificamente em mente os numerosos

trabalhos de I. Rosier-Catach sobre a consagração eucarística, que têm seu

ponto alto na obra La parole efficace: signe, rituel, sacré, de 2004, bem como a

volumosa monografia de P. Bakker sobre o tema, intitulada La raison et le miracle.

Les doctrines eucharistiques (c. 1250 – c. 1400). Contribution à l’étude des rapports

entre philosophie et théologie, de 1999. No que diz respeito a interlocução, pois,

Adams não parece pretender sair do mundo anglo-saxão. E, infelizmente, ela não

tem sido a única a assumir tal postura.

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HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de

Gandavo adscripta. Ediderunt H. A. G. Braakhuis, G. Etzkorn, G. A.

Wilson, cum introductione H. A. G. Braakhuis. Leuven: Leuven

University Press, 2010, lxv + 85 p. (Henrici de Gandavo Opera omnia, vol. 37).

 Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________

1.

Desde as dissertações surgidas no século XIX sobre a vida e o pensamento de

Henrique de Gand (a. 1240-1293)1, as quais culminaram enfim no fundamental

artigo de Franz Ehrle2, o maior avanço nos estudos sobre o Doutor Solene foi,

sem dúvida, o início dos trabalhos de edição crítica de suas obras. Tendo

possuído por grande promotor inicial o já falecido medievalista Raymond Macken

– responsável pelo estabelecimento da Bibliotheca Manuscripta Henrici de

Gandavo3, um projeto que ele começou a desenvolver já em sua tese de

doutorado pela Katholieke Universiteit Leuven4 –, os Opera omnia de Henrique

de Gand continuam hoje a ser publicados sob a tutela de Gordon A. Wilson,

como parte de um projeto partilhado pelo De Wulf-Mansion Centre e pela

University of North Carolina.

Uma das características mais interessantes desse projeto de edição é a

decisão dos editores de publicarem mesmo aqueles textos cuja atribuição a

                                                                                                                         * Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES. 1 Dentre estas, a mais importante é HUET, F. Recherches historiques et critiques sur la vie, les ouvrages et la doctrine de Henri de Gand surnommé le Docteur Solennel. Gand/Paris: Librairie Générale de Leroux/Paulin, 1838. 2 EHRLE, F. “Beiträge zu den Biographien berühmter Scholastiker – 1. Zur Biographie Heinrichs von Gent”. Archiv für Litteratur- und Kirchengeschichte des Mittelalters 1 (1885), pp. 365-401. 3 Bibliotheca Manuscripta Henrici de Gandavo. Vol. I. Introduction. Catalogue A-P. Vol: II. Catalogue Q-Z. Répertoire. Ed. R. Macken. Leuven: Leuven University Press, 1979 (Henrici de Gandavo Opera omnia, vols. 1-2). 4 MACKEN, R. Hendrik van Gent’s “Quodlibet I”. Tekstkritische uitgave. Weerlegging van een mogelijke eeuwigheid der wereld. 2 delen. Proefschrift tot het behalen van de graad van Doctor in de Wijsbegeerte. Leuven: Katholieke Universiteit Leuven, 1968.

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21  HENRICUS  DE  GANDAVO  (adscripta).  Syncategoremata  Henrico  de  Gandavo  adscripta  

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Henrique de Gand não seja considerada, pelos próprios editores, como

definitiva. Além de essa decisão possibilitar o acesso a uma grande gama de

textos de interesse que, por vezes, estão disponíveis em um único manuscrito

(donde, em parte, a dificuldade de atribuição), dela também se derivaram

interessantes discussões. Um exemplo recente disso encontra-se no volume

denominado Quaestiones variae Henrico de Gandavo adscriptae, editadas por Girard

J. Etzkorn e publicadas em 20095. Foram reunidas nesse volume dez questões

disputadas presentes no ms. Roma, Bibl. Angelica 750, no qual são claramente

atribuídas a Henrique de Gand6. O interessante com respeito a esse volume é o

fato de que algumas dessas mesmas questões aparecem na edição das Quaestiones

disputatae de Ricardo de Mediavilla (c. 1250 – 1300) produzida por Alain Boureau

e cuja publicação foi iniciada em 2012. Com efeito, aqui surgem seis daquelas

quaestiones variae que compunham o volume atribuído a Henrique de Gand e

editado por Etzkorn – tal fato, certamente, não escapa a Boureau que chama a

atenção para a dificuldade7. Ou seja, seis das dez questões atribuídas de maneira

não definitiva a Henrique de Gand por Etzkorn terminaram por ser atribuídas,

por Boureau, de modo mais apropriado a Ricardo de Mediavilla. A meu ver, isso

aponta para a importância dessa relevante decisão de publicar mesmo aqueles

textos sem autoria definitiva, mas somente Henrico de Gandavo adscripti.

Ora, esse é precisamente o caso do texto que resenharemos, a saber, a

edição dos Syncategoremata atribuídos a Henrique de Gand e produzida por H.

A. G. Braakhuis, G. Etzkorn e G. A. Wilson como parte dos Opera omnia do

Doutor Solene. O volume é composto de duas partes igualmente relevantes para

a sua consideração. Em primeiro lugar, ele possui uma longa introdução de

caráter tanto editorial como histórico-filosófico produzida por H. A. G.

Braakhuis; em segundo, há nele o próprio texto criticamente editado e atribuído

– não sem problemas – ao gandavense. A seguir, no item 2, trataremos

principalmente da tentativa de atribuição do tratado a Henrique de Gand,                                                                                                                          5 HENRICUS DE GANDAVO (adscriptae). Quaestiones variae Henrico de Gandavo adscriptae. Ed. G. J. Etzkorn. Leuven: Leuven University Press, 2008. (Henrici de Gandavo Opera omnia, vol. 38). 6 Op. cit., p. xii. 7 RICHARD DE MEDIAVILLA. Questions disputées. Tome 1. Ed. A. Boureau. Paris: Les Belles Lettres, 2012, pp. xxvi-xxvii.

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22  HENRICUS  DE  GANDAVO  (adscripta).  Syncategoremata  Henrico  de  Gandavo  adscripta  

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enquanto que no item 3 abordaremos o próprio texto dos Syncategoremata. Esta

última etapa será seguida por algumas considerações sobre a relevância do texto

editado.

2.

A introdução de Braakhuis é bem completa e, diferentemente de muitas

introduções a edições críticas, aborda não somente fatores editoriais do volume,

mas também elementos doutrinários contidos no texto editado. Estes últimos

são abordados, em grande parte, devido à tentativa de estabelecimento – ou,

pelo menos, de maior determinação – da autoria dos Syncategoremata, a qual tem

mais por base a filosofia desenvolvida pelo autor do texto editado do que

propriamente a atribuição do texto a Henrique no ms. Bruges, Staatbibl. 510, haja

vista ser esta a sua única lição sobrevivente. Sendo assim, a introdução do

volume é dividida nas seguintes etapas: nas partes I e II há o estudo da tradição

manuscrita (pp. ix-xii)8; na parte III a busca não-definitiva de certificação da

atribuição do texto a Henrique de Gand e a tentativa de datação da obra (pp. xii-

xxxiv); na parte IV um estudo do contexto de produção e da própria forma do

tratado (pp. xxxiv-xlvii); na parte V observações sobre as decisões editoriais (pp.

xlvii-xlix). Essas cinco partes são seguidas por uma bibliografia dos manuscritos e

estudos utilizados na introdução (pp. li-lviii), uma tentativa de divisão temática – a

descrição do argumentum – dos Syncategoremata em forma de índice (p. lxi) e,

por fim, a exposição dos símbolos e abreviações necessários para a compreensão

das inserções editoriais no próprio texto e do aparato crítico (pp. lxii-lxiv).

Diversos aspectos dessas etapas da introdução nos interessarão neste item da

resenha; às considerações que disserem respeito à composição e à economia

interna do texto, porém, voltaremos no item 3.

Na introdução, Braakhuis não se estende quanto à descrição do manuscrito

utilizado para a edição – o já citado Bruges, Staatbibl. 510 –, uma vez que ele já

                                                                                                                         8 Sempre que me referir a uma passagem do livro resenhado, as páginas correspondentes serão citadas entre parênteses no corpo do texto. No entanto, quando forem citadas passagens do volume traduzidas no corpo do texto, a página em que surge a passagem será dada em nota, junto ao original. Nesses últimos casos, as traduções são de minha autoria.

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foi objeto de descrições reiteradas (p. ix, nota 1). Com efeito, ele não faz mais

do que retomar alguns dos mais interessantes dados relativos à história do

manuscrito já narrados por estudiosos anteriores. Dentre esses dados, será

importante o fato de que o conjunto de textos contidos no manuscrito (datados

do período entre os séculos XIII e XIV) tenha sido encadernado em um único

volume na própria região de Bruges e nela tenha desde então se mantido (p. ix).

Sendo assim, o resultado mais interessante que surge do estudo da

tradição manuscrita é não tanto a consideração do manuscrito utilizado para a

edição, mas a exclusão da possibilidade de que se pudesse encontrar em Erfurt,

Wissenschaftliche Allgemeinbibliothek der Stadt, ms. Amploniana F 135 um

segundo testemunho dos Syncategoremata atribuídos a Henrique de Gand. Como

Braakhuis habilmente propõe, a sugestão de que houvesse tal segundo

testemunho para o texto se origina de uma confusão de longa data, sendo o

texto contido neste último manuscrito, de fato, uma redação ainda não editada

da Summa de sophismatibus et distinctionibus de Rogério Bacon (pp. x-xii). Ou seja,

ao fim desse curto estudo da tradição manuscrita, o resultado mais relevante é,

claramente, a delimitação da edição crítica dos Syncategoremata a um único

testemunho, a saber, aquele contido em Bruges, Staatbibl. 510.

Isso coloca imediatamente em questão a autoria do texto editado, pois,

embora (como já mencionado) esse único testemunho do texto o atribua a

Henrique de Gand (cf. p. ix), não há nenhuma outra base manuscrita para tal

atribuição. Dessa forma, não resta senão buscar demais indícios que apoiem a

sugestão manuscrita de autoria. O primeiro deles – e, provavelmente, o menos

convincente – é o fato de que a única lição sobrevivente do texto está em Bruges

e, como vimos, parece ter sido aí inserida no volume completo do manuscrito.

Ora, tendo sido Henrique arquidiácono de Bruges é esperado que houvesse

nessa região um bom conhecimento de sua obra, o que torna improvável que se

lhe erroneamente atribuísse aí um texto (p. xii). Além disso, já houve quem

imputasse a autoria de uma Logica a Henrique e, com efeito, “o começo dos

Syncategoremata indica que uma discussão sobre as propriedades dos termos

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categoremáticos já precedeu o texto disponível”9. Assim, é bem possível que o

tratado sobrevivente dos Syncategoremata formasse, junto à discussão sobre

termos categoremáticos, uma Logica. Melhor ainda, seria possível no século XIII,

segundo Braakhuis, denominar ‘Logica’ um tratado que versasse unicamente

sobre os syncategoremata (p. xiii). Enfim, tanto a região de produção do

manuscrito completo como a tradicional enumeração das obras de Henrique de

Gand parecem apontar para a atribuição dos Syncategoremata ao Doutor Solene.

Ainda assim, é principalmente na discussão do conteúdo do tratado que se

buscará estribar tal imputação de autoria – mesmo que, ao cabo, esta não seja

dada por definitiva.

Pois bem, há diversas temáticas filosóficas tratadas nos Syncategoremata que

parecem apontar para a autoria do gandavense. Duas delas são relacionadas à

conhecida distinção entre esse essentiae e esse existentiae, tão associada à filosofia

de Henrique de Gand10. Embora esse par não surja claramente nos

Syncategoremata (onde aparece somente a expressão esse essentiae), é possível

encontrar no tratado referências a doutrinas que apontam para as discussões

filosóficas que resultarão, mais tarde, no claro estabelecimento daquele par de

termos (pp. xiii-xxv). Uma primeira temática (pp. xiv-xvii) é a distinção, proposta

no tratado, entre a disposição – ou determinação (determination), como

Braakhuis prefere traduzir o latim dispositio – de um termo ‘pela razão do

suposto’ (ratione suppositi ou suppositorum) e a disposição dos termos ‘pela razão

do significado’ (ratione significati). Do par ratione suppositi e ratione significati,

Braakhuis busca extrair a consideração de uma mesma coisa (res) a partir do par

“concrete individual – essence / essential nature” (p. xvi) que, nos trabalhos

teológicos de Henrique, se resolve na consideração do ente sob ‘ser de

                                                                                                                         9 “First of all, tradition ascribes a Logica to Henry. The beginning of the Syncategoremata indicates that a discussion of the properties of categorematic terms had once preceded the available text” (pp. xii-xiii). 10 A melhor introdução às noções de esse essentiae e esse existentiae fornecida pelo próprio Henrique de Gand encontra-se em Quodlibet I, q. 9 (ed. Macken, pp. 47-62). Como exemplo de um texto que aborda esse tema com a abrangência e profundidade devidas, podemos apontar: PORRO, P. “Possibilità ed esse essentiae in Enrico di Gand”. In: VANHAMEL, W. (ed.). Henry of Ghent. Proceedings of the international colloquium on the occasion of the 700th anniversary of his death (1293). Leuven: Leuven University Press, 1996, pp. 211-53.

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existência’ e sob ‘ser de essência’, respectivamente. Uma segunda temática (pp.

xvii-xxiv) é a distinção de uma dupla ‘necessidade absoluta’ (necessitas absoluta):

aquela que diz respeito a todas as partes do tempo e outra concernente

somente a um tempo preciso – esta última é dita ‘necessidade segundo o tempo’

(necessitas secundum tempus). Ora, também desta distinção Braakhuis deriva o par

‘esse essentiae’ e ‘esse actuale’ que, no fim das contas, não é mais do que aquele

outro par – ‘esse essentiae’ e ‘esse existentiae’ – que surgirá nas obras teológicas

do Doutor Solene. Por fim, se busca mostrar que há elementos relevantes

ligados à doutrina da significação de Henrique (pp. xxiv-xxv)11 e às discussões

sobre a predicação dos atributos divinos desenvolvidas em Suma de questões

ordinárias, arts. 74-5 (pp. xxv-xxxiii) – principalmente àquela concernente às

dictiones exclusivae e dictiones exceptivae – que relacionam a obra teológica do

Doutor Solene aos Syncategoremata.

Dito isso, assim são sumarizados os resultados dessa tentativa de

estabelecimento da autoria com base no conteúdo do tratado: “parece que,

vistas em conjunto, essas semelhanças podem, pelo menos, ser interpretadas

como evidências circunstanciais em apoio à atribuição a Henrique de Gand dos

Syncategoremata que são encontrados no manuscrito de Bruges”12. Ainda assim,

Braakhuis reluta em tomar essa atribuição da autoria a Henrique como uma base

para a datação do manuscrito, dando-lhe por esteio antes a comparação com

outros tratados de lógica do século XIII, como o Tractatus ou os

Syncategoreumata de Pedro de Espanha, as Questiones super libros prime philosophie

Aristotelis de Rogério Bacon ou a Logica de Lamberto de Lagny. Toda essa

complexa rede de relações aponta o começo da década de 1260 como a                                                                                                                          11 Vale notar que Braakhuis, quanto a este tema, remete acertadamente a ROSIER-CATACH, I. "Henri de Gand, le De Dialectica d’Augustin, et l’imposition des noms divins". Documenti e studi sulla tradizione filosofica medievale 6 (1995), pp. 145-253 como fonte para o estudo da doutrina da significação de Henrique de Gand. De fato, a autora tem sido a principal intérprete da noção de significação no Doutor Solene, tendo dedicado também os seguintes trabalhos ao assunto: “Henri de Gand, le ‘De dialectica’ d’Augustin et la sémantique des noms divins”. Annuaire de l’École pratique des hautes études (Section des sciences religieuses) 104 (1995), pp. 409-15; e “Henri de Gand, le ‘De dialectica’ d’Augustin et la sémantique des noms divins (2)”. Annuaire de l’École pratique des hautes études (Section des sciences religieuses) 105 (1996), pp. 381-8. 12 “Taking everything together, it appears that, viewed in combination, these agreements can be at least interpreted as circumstantial evidence supporting the attribution to Henry of Ghent of the Syncategoremata that is found in the Bruges manuscript” (p. xxxiii).

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provável data para a produção dos Syncategoremata como ele nos foi legado em

Bruges, Staatbibl. 510. Somente após essa datação por comparação a outras

obras, Braakhuis se sente na posição de localizar os Syncategoremata no todo da

obra de Henrique de Gand. Como fica claro, sendo-lhe atribuída sua autoria, eles

terão sido escritos em Paris, no seu período de permanência aí por volta de

1265, sendo ele certamente mestre de artes em 1267. Ou seja, como já era

patente nas primeiras comparações propostas por Braakhuis entre os

Syncategoremata e as obras teológicas do Doutor Solene, estas últimas serão

certamente mais tardias do que aqueles. Dessa maneira, caso aceitemos a

atribuição do tratado a Henrique, estaremos em posição de nele buscar os

germens de muitas das doutrinas desenvolvidas de maneira mais madura na Suma

ou nos Quodlibeta. E, dentre estas, se deverá contar, sem dúvida, a fundamental

distinção entre esse essentiae e esse existentiae.

Feitas essas observações, Braakhuis se volta, em seguida, para o próprio

conteúdo dos Syncategoretama. Trataremos dessas considerações, porém, um

pouco mais adiante, quando formos falar do próprio texto editado (no item 3).

Sendo assim, concentremo-nos antes em alguns fatores editoriais de importância

apontados ainda na introdução (pp. xlvii-xlix).

Um primeiro elemento de interesse – e de especial repercussão para o

trabalho editorial – é o fato de que, ao que parece, o copista responsável por

essa única lição sobrevivente dos Syncategoremata era um profissional e,

portanto, não era especializado no assunto sobre o qual versa o tratado. Sendo

assim, “[h]á palavras espalhadas por todo o texto que não se encaixam nos seus

contextos. Consequentemente, elas são incorretas e podem, na maior parte, ser

prontamente explicadas pela assunção de que o copista interpretou algumas

abreviações que ocorrem no exemplar de maneiras que não cabem às passagens

concernentes”13. Tão fáceis quanto sejam as correções desses aparentes desvios

                                                                                                                         13 “There are words spread throughout the text that do not fit into their contexts. They are consequently incorrect and can, for the most part, be readily explained by assuming that the scribe interpreted some abbreviations occurring in the exemplar in manners that do not suit the passages concerned” (p. xlvii).

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(e outros não mais complexos) indicados por Braakhuis, ainda assim é fácil notar

o quão complicado se torna o trabalho de edição na presença de uma única lição

do texto editado. De fato, não há quaisquer bases manuscritas para as correções

e elas dependem, tão somente, de conjecturas propostas pelo editor. É bem

verdade que há maneiras de sanar tais dificuldades. Os editores do texto em

questão, por exemplo, buscaram comparar certas passagens mais complexas com

trechos equivalentes do Tractatus ou dos Syncategoreumata de Pedro de Espanha

(p. xlviii). Ainda assim, isso não se aproxima da vantagem de se possuir à mão

diversos testemunhos de um mesmo texto que se possam cotejar. Enfim, o fato

de haver uma única lição dos Syncategoremata resulta em dificuldades não

somente para a determinação da autoria do texto, mas também para o

estabelecimento editorial do texto a ser lido.

Feitas essas observações, passemos à consideração da composição e do

conteúdo do tratado. Agora teremos a oportunidade de voltar àquilo que

Braakhuis tinha a dizer sobre esses temas.

3.

Havendo notado que os Syncategoremata editados são um dos seis únicos

tratados que nos restaram de toda a Idade Média exclusivamente voltados para o

estudo dos termos sincategoremáticos, o principal objetivo de Braakhuis ao

estudar a composição e o conteúdo do tratado é destacar as relações entretidas

entre esse texto atribuído, não sem dificuldades, a Henrique de Gand e aquelas

cinco demais obras de mesmo gênero a que ainda temos acesso (pp. xxxiv-xlvii).

Certamente, não será meu objetivo acompanhar de perto esse estudo, o que

fugiria ao escopo da presente resenha. Mas será interessante ressaltar alguns dos

elementos desse estudo introdutório.

Um primeiro fato a ser sublinhado é o recurso de Braakhuis à fundamental

obra de L. M. de Rijk para o estabelecimento de uma descrição geral da lógica

medieval que nos permita nela localizar o estudo dos termos sincategoremáticos:

“como L. M. de Rijk demonstrou no seu monumental estudo pioneiro sobre a

logica modernorum, o ponto crucial dessa ‘lógica contemporânea’ é ‘a abordagem

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proposicional ou contextual’ que ela adota”14. Ora, raciocina Braakhuis, nesse

ambiente adquire suma relevância o estudo das ‘propriedades dos termos’

(proprietates terminorum) – antes de tudo os categoremáticos, mas também os

sincategoremáticos. Donde a possibilidade – quiçá, a necessidade – da produção

de tratados voltados exclusivamente para estes últimos. Outro resultado

importante do recurso ao estudo de De Rijk sobre a lógica medieval é a

lembrança de que ela se desenvolveu, em grande medida, a partir da

consideração de casos paradigmáticos de falácias (p. xxxv)15. E, como veremos,

estas últimas são de grande relevância para o desenrolar do próprio tratado

editado no volume. Assim, acredito que a utilização da Logica modernorum de De

Rijk seja um grande acerto no que diz respeito à descrição da ambiência do

tratado no período de sua composição.

Por outro lado, não me parece tão bem sucedida a tentativa, por parte de

Braakhuis, de se utilizar da distinção entre uma ‘tradição continental’ e uma

‘tradição inglesa’ para a interpretação de certos aspectos da doutrina

apresentada no tratado. A dificuldade gerada pela aplicação dessa contemporânea

(e, mesmo hoje, conflituosa) distinção à lógica medieval fica particularmente clara

nas pp. xxxix-xl. Com efeito, segundo Braakhuis, os tratados sobre

sincategoremas ditos de ‘tradição inglesa’ incluem a consideração dos signa

quantitatis, que ele traduz como ‘distributive signs’ (p. xxxix). Já nos tratados ditos

de ‘tradição continental’ não se inclui a consideração desses signa quantitatis no

estudo dos sincategoremas. Pois bem, o problema é que o tratado atribuído a

Henrique de Gand deve ser considerado de ‘tradição continental’ (mesmo

porque Braakhuis parece identificar ‘tradição continental’ e ‘origem continental’)

e, ainda assim, ele inclui a consideração dos signa quantitatis como termos

                                                                                                                         14 “As L. M. de Rijk has demonstrated in his monumental pioneer study of the logica modernorum, the crucial point of this ‘contemporary logic’ is ‘the propositional or contextual approach’ that it adopts” (p. xxxiv). Braakhuis, em nota a essa passagem, remete a DE RIJK, L. M. Logica modernorum. A contribution to the History of Early Terminist Logic. Vol. II, p. 1: The Origin and Early Development of the Theory of Supposition. Assen: Van Gorcum, 1967, pp. 113-7 e 597. 15 Como o próprio Braakhuis aponta, De Rijk defende a tese de que a consideração das falácias é fundamental para o desenvolvimento da logica modernorum em Logica modernorum. A contribution to the History of Early Terminist Logic. Vol. I: On the Twelfth Century Theories of Fallacy. Assen: Van Gorcum, 1962.

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sincategoremáticos. Agora, se levarmos em consideração que só há seis tratados

sobre sincategoremas, sendo quatro de origem continental e dois de origem

inglesa (pp. xxxvi-xxxvii), temos um quadro no qual um quarto dos tratados de

origem continental possui elementos da chamada ‘tradição inglesa’. Braakhuis

parece ter tantas dificuldades para explicar essa situação por meio da distinção

entre essas duas ‘tradições’ que, ao tentar expor a problemática posição dos

Syncategoremata atribuídos a Henrique em meio a ambas, ele começa dizendo

que o fato desse tratado considerar os signa quantitatis como sincategoremas

“não significa necessariamente [does not have to mean] que ele foi claramente

influenciado pela tradição inglesa ou que a discussão dos signa como parte dos

syncategoremata não deva ser vista [should not be regarded] como um

característica distintiva da abordagem inglesa”16. Em contraposição, logo ao fim

da mesma página ele afirma que o autor do texto estava “provavelmente sob

influência de textos de origem inglesa”17. Ora, em face de tamanha complexidade,

talvez fosse mais proveitoso simplesmente abandonar a tentativa de impor à

lógica do século XIII a distinção entre as chamadas ‘tradição inglesa’ e ‘tradição

continental’, em favor da consideração de cada texto por si mesmo,

comparando-o aos outros não a partir de sua possível inserção em uma dessas

pretensas ‘tradições’, mas em virtude de seu conteúdo.

Feitas essas observações sobre alguns dos elementos propostos por

Braakhuis para a compreensão do contexto de produção do tratado, podemos

nos voltar para o texto propriamente dito.

O texto dos Syncategoremata editado se estende por 70 páginas do volume

(pp. 3-73), possuindo nas laterais a marcação da mudança de coluna do

manuscrito de Bruges (representado pelo símbolo B), bem como uma

numeração contínua das linhas do texto de acordo com a edição. De maneira

condizente ao que foi exposto acima, o aparato crítico aponta, em geral,

                                                                                                                         16 “This does not have to mean that it was clearly influenced by the English tradition or that the discussion of the signa as part of the syncategoremata should not be regarded as a distinctive feature of the English approach” (p. xxxix). 17 “[It would appear that the author of this treatise noted the inconsistency of dealing with the signa separately from the syncategoremata,] possibly under the influence of texts of English origin” (p. xxxix).

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características da lição contida naquele único manuscrito ou mostra em que

medida houve interferências mais significativas dos editores no estabelecimento

do texto. Além disso, os editores apresentam ainda um aparato de citações que

remete não somente para as fontes antigas e do início da Idade Média, mas

também propõe possíveis remissões a textos cronologicamente mais próximos e

com os quais nossos Syncategoremata poderiam estar dialogando. Esses recursos

são complementados pelo índice dos “Works cited by Henry (?)” (pp. 77-8), que

nos permite melhor acesso às informações contidas no aparato de citações.

Como já foi destacado acima, o tratado se inicia pela remissão a uma

provável parte anterior, na qual se discutiam os termos categoremáticos: “postas

as propriedades das palavras [dictionum] categoremáticas, cumpre ver a seguir as

propriedades das palavras [dictionum] sincategoremáticas”18 – ela, no entanto,

está perdida para nós. Esse início, porém, ao mesmo tempo em que remete a

uma obra anterior, também limita claramente o escopo do presente tratado: nele

se falará somente dos termos sincategoremáticos, enquanto os categoremáticos

surgirão aqui somente na medida em que a apresentações daqueles primeiros o

exigir. Essa exigência, entretanto, será um tanto recorrente, dado o fato de que

os sincategoremas não atuam na proposição por si próprios, mas sempre o

fazem ao dispor (disponere) de determinada maneira um termo categoremático a

que ele esteja associado nessa mesma proposição. E aqui está uma primeira

característica importante dos sincategoremas: eles não significam algo na

proposição, mas ‘dispõem’ categoremas (e.g. p. 3) ao ‘fazerem’ (facere) ou

‘exercerem’ (exercere) algo neles (e.g., respectivamente, pp. 4 e 35). Por

exemplo, a conjunção latina si “é dita consecutiva não porque signifique a

consecução, mas porque a consecução é exercida por ela”19. Ou seja, não há

como compreender os sincategoremas sem remissão aos termos

categoremáticos.

Ora, é justamente em vista desse fato que esses Syncategoremata são

                                                                                                                         18 “Habito de proprietatibus dictionum categorematicarum consequenter videndum est de proprietatibus dictionum syncategorematicarum” (p. 3). 19 “dicitur consecutiva, non quia consecutionem significat, sed quia consecutio per ipsam exercetur” (p. 35).

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divididos em dois grandes blocos, de acordo com a maneira pela qual cada

sincategorema dispõe o categorema a que se associa. Assim, em primeiro lugar, é

feito o estudo dos sincategoremas que ‘dispõem os termos na razão do suposto’

(pp. 3-13) – ou seja, esses sincategoremas atuam sobre um termo não enquanto

este último é um signo, mas enquanto ele possui sob si vários supostos reais;

esse é o caso de sincategoremas como omnis, nullus ou aliquis etc. Esse estudo se

inicia pela consideração do que é um ‘signo’ (pp. 3-4) – uma vez que esses

sincategoremas podem ser ditos signa – e inclui a exposição dos vários ‘signos

distributivos’ (pp. 4-11), com especial atenção para a palavra infinitum (pp. 11-13).

Finda esta primeira parte, o autor se volta para os sincategoremas que ‘dispõem

os termos na razão do significado’, o que toma a maior parte da obra (pp. 13-

73). Esses sincategoremas são aqueles que exercem algo nos termos não

enquanto estes possuem supostos reais sob si, mas enquanto eles são tomados

por signos – exemplos desses sincategoremas são: non, necessario, an e muitos

mais. Essa segunda etapa da obra se inicia por um estudo ‘sobre a afirmação e a

negação em si’ (pp. 14-24), que contém uma interessante discussão acerca da

composição de proposições (pp. 14-7). A essa etapa se segue a consideração

sobre ‘as dictiones que possuem a virtude da negação’ (pp. 25-73), que inclui a

descrição das dictiones exclusivae (pp. 25-31)20, das dictiones exceptivae (pp. 31-35),

das dictiones consecutivae (pp. 35-40), da dictio ‘nisi’ (pp. 40-3), das dictiones

‘necessario’, ‘contingenter’ (pp. 43-52)21, das dictiones ‘incipit’, ‘desinit’ (pp. 52-8)22,

das coniunctiones disiunctivae (pp. 58-65), da conjunção copulativa et (pp. 65-7), da

dictio ‘nec’ (p. 67), da dictio ‘quanto’ (pp. 67-8), da reduplicatio, isto é, da

“expressão, na oração, da causa da inerência do predicado no sujeito”23 com

expressões do tipo in eo quod (pp. 68-70) e da dictio ‘quin’ (pp. 70-3). Todo esse

                                                                                                                         20 Nessa passagem há uma rápida – porém, instigante – consideração paralela sobre as noções de ‘verum’, ‘falsum’ e ‘unum’ (pp. 28-9). 21 Há aqui também a ocasião para uma digressão sobre esse essentiae, esse diminutum, esse secundum animam, esse actuale e suppositum actualiter existente in esse (pp. 45-8). Vimos acima o quão importante se mostra essa digressão na tentativa de estabelecimento da autoria do texto. 22 Vale apontar aqui uma curta discussão sobre a distinção entre res permanentes e res succesivae (p. 53). 23 “Est autem reduplicatio expressio causae inhaerentiae praedicati cum subiecto in oratione” (p. 68).

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conteúdo é esquematicamente exposto por Braakhuis no, já citado, argumentum

(pp. lxi).

É interessante notar que, na maioria desses estudos (principalmente, na

segunda parte, sobre os sincategoremas que ‘dispõem os termos na razão do

significado’), o autor dos Syncategoremata segue um mesmo caminho para a

exposição de cada dictio em consideração. Esse caminho é, nesta ordem,

basicamente: [a] a afirmação de que ela não significa, mas exerce algo no

categorema a que surge associada, [b] a diferenciação das várias maneiras pelas

quais ela pode ser posta na oração, bem como o que ela faz naquele categorema

em cada caso e, por fim, [c] a discussão de uma falácia que coloque em jogo

esses vários usos do sincategorema, justamente por só poder ser resolvida a

partir da diferenciação desses vários casos. Um exemplo bem claro desse trajeto

pode ser visto na curta e exemplar discussão da dictio ‘quanto’ (nas pp. 67-8,

indicadas há pouco). Isso aponta para a capital importância da discussão sobre

sofismas no desenvolvimento da lógica medieval – com efeito, como vimos, isso

já era ressaltado por De Rijk24 e pelo próprio Braakhuis, em sua introdução aos

Syncategoremata.

Dito isso, vemos que o conteúdo do tratado, sendo voltado para a

consideração de sincategoremas, é ainda determinado pela consideração dos

categoremas, aos quais unicamente associados aqueles primeiros podem exercer

sua função na proposição. Daí podemos mais claramente compreender a

importância daquela remissão inicial a um escrito sobre categoremas por parte

do nosso incerto autor.

4.

Resta a questão: seria este último Henrique de Gand? Ainda que os editores do

volume não considerem seus próprios argumentos definitivos, ao fim da leitura

ficamos tentados a enumerar os Syncategoremata entre as obras do Doutor

Solene. Não somente porque isso aumentaria a sua lista de obras filosóficas

(nenhuma das quais, aliás, é de atribuição certa), mas também porque eles seriam

                                                                                                                         24 Ver nota 15, acima.  

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um testemunho do início das suas considerações filosóficas, datados em por

volta de dez anos antes dos seus primeiros escritos teológicos. Em outras

palavras, os Syncategoremata permitiriam uma visão da gênese do pensamento de

Henrique – e, o que é mais, por um viés lógico, algo raro, mesmo que de modo

algum ausente, em sua obra. Por outro lado, ainda que não aceitemos tal

atribuição e incluamos o autor dos Syncategoremata na vasta relação de

escritores anônimos que nos foi legada pelo século XIII, a obra não perderá em

importância. Como vimos, ela é uma das seis únicas dedicadas exclusivamente

aos termos sincategoremáticos e dialoga claramente com os principais

interlocutores de sua época, com base nas mais relevantes autoridades no

assunto. Já por isso esses Syncategoremata, cuidadosamente editados nos Opera

omnia de Henrique de Gand e a este último atribuídos tentativamente, devem ser

tidos por uma significativa etapa da discussão – e, mesmo, da formação – da

logica modernorum.

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MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and

Philosophy, Leiden-Boston: Brill, 2012, 247 p.

Pedro Falcão Pricladnitzky* ___________________________________________

Não é incomum encontrarmos manuais de história da filosofia que propõem uma

cisão absoluta entre a filosofia desenvolvida na Idade Média e aquela realizada

tanto no Renascimento como no período moderno. A crença em tal dicotomia

traz consigo a concepção de que tanto os temas tratados como os métodos de

investigação desses períodos históricos são marcadamente diferentes. E essa

versão da história da filosofia moderna, especificamente de suas origens, é

costumeiramente descrita assim: Descartes rompeu com a tradição escolástica

ao introduzir uma teoria mecanicista bastante austera do mundo físico; de

acordo com essa teoria, corpos possuem intrinsecamente apenas propriedades

geométricas. Ele retira com isso do mundo diversas propriedades que antes

eram classificadas de maneira inequívoca como físicas. Algumas das propriedades

que não se enquadravam nessa nova visão de mundo poderiam se tornar

dispensáveis: as potências, naturezas e faculdades tão caras aos escolásticos são

óbvios exemplos.

É uma versão alternativa a essa imagem um tanto ingênua da gênese da

filosofia moderna que encontramos no livro Matter and Form in Early Modern

Science and Philosophy editado e organizado por Gideon Manning. Através da

leitura de seus nove artigos, observamos que o desenvolvimento intelectual

tanto em filosofia como em ciência natural de meados do século XIII até o

pensamento dos filósofos do século XVII é mais adequadamente compreendido

como uma continuidade do que como uma série de saltos sem vínculos uns com

os outros. Afirmar que existe uma continuidade não é, entretanto, afirmar que

não há diferenças no método e nos temas abordados pelos diferentes

                                                                                                                         * Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e bolsista CAPES.

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pensadores nesse período. Há, sem dúvida, diferença entre a compreensão da

natureza da matéria em Tomás de Aquino, Daniel Sennert e Descartes. Contudo,

através do livro editado por Manning, notamos que ela é bem mais sutil do que a

imagem sugerida por alguns manuais e que as rupturas entre os pensadores do

período são graduais.

Ao mesmo tempo em que se aponta para uma continuidade do

pensamento medieval tardio frente ao início da filosofia moderna, encontramos

uma dificuldade em compreender exatamente em que medida se dá a evolução

em direção à modernidade e como classificá-la. Se aceitarmos a ideia de uma

continuidade, nomear os desenvolvimentos de tal período de ‘aristotelismo

escolástico’ parece, à primeira vista, atraente. Contudo, como demonstram

claramente os tópicos investigados ao longo do livro, classificar os pensadores do

Renascimento e consequentemente as suas obras como ‘aristotélicos’ ou

‘escolásticos’ seria novamente incorrer em uma espécie de caricatura e

simplificação do período. Vemos que as vertentes de pensamento que tomam

Aristóteles ou os grandes pensadores medievais como paradigma não são

homogêneas. Filósofos autointitulados aristotélicos, ou ainda escolásticos,

defendem posições antagônicas. Isso é verificado em textos sobre lógica, filosofia

natural, metafísica, ética e teologia. Em muitos casos, conceitos que

aparentemente reúnem filósofos sob uma designação comum são na realidade

motivo de grande debate e controvérsia filosófica. Somente pelo fato de um

pensador particular do século XVI ou XVII em Oxford se definir como

aristotélico ou escolástico, e de outro pensador no mesmo período em Paris

também se descrever da mesma forma, não se segue que eles compartilhem do

mesmo conjunto de pressuposições metodológicas, muito menos que cheguem a

conclusões similares. Apenas o estudo minucioso das obras do período pode

estabelecer alguma semelhança entre determinados autores e, no caso em

questão, se a eles cabe o título de aristotélico escolástico.

Nos artigos do livro encontramos exemplos dessa empreitada. O seu foco

se dá em questões de filosofia natural, especificamente nas diferentes concepções

da natureza da matéria e de suas propriedades, encontradas no período em

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diferentes autores. O primeiro artigo é de Gideon Manning e trata em detalhes

das diversas interpretações das relações dos conceitos de matéria e forma como

coprincípios da natureza das substâncias no século XVII. O termo clássico na

literatura filosófica para se referir a essa composição é hilemorfismo. Contudo,

aponta Manning, ainda que seja uma expressão clássica para se referir à natureza

da substância em um contexto aristotélico, tal termo não foi empregado por

Aristóteles, tendo a sua origem nas discussões científicas e metafísicas no

começo do século XIX. Portanto, tampouco autores do século XVII

empregariam ‘hilemorfismo’. Disto, entretanto, não se segue que as noções de

matéria e forma não foram pauta de discussão filosófica no período. Como

observamos no texto de Manning, um intenso debate foi desenvolvido na

primeira metade do século. Tal debate tinha, em linhas gerais, como ponto

central a discussão da maneira adequada de se compreender a mudança e

abarcava, assim, muitos princípios de ciência natural, como a distinção entre

geração, alteração e corrupção, o caráter teleológico da mudança, o estatuto da

privação, o essencialismo e a possibilidade da matéria existir sem forma ou da

forma existir sem matéria. Ainda que os debates sobre esses tópicos mantenham

uma significação comum entre os conceitos de matéria e forma, e que o seu

emprego possa ser retraçado ao sentido dado a eles por Aristóteles, diferentes

posições a respeito dessas questões culminam em diferentes conclusões acerca

do composto gerado pela integração entre a matéria e a forma, acarretando,

com isso, diferentes concepções acerca da natureza do hilemorfismo nos

filósofos do período. Entre os autores destacados por Manning pelo tratamento

instigante da ideia de ‘hilemorfismo’ encontram-se William Gilbert (1540-1603);

Francis Bacon (1561-1626); Nicolas Hill (1570-1610); Johannes Kepler (1571-

1630); Daniel Sennert (1572-1637); Sébastian Basson (1573-?); William Harvey

(1578-1657); Isaac Beeckman (1588-1637); David van Goorle (1591-1612) e

Pierre Gassendi (1592-1655).

O artigo de Michael Edwards apresenta um aspecto importante para que

compreendamos a alteração de sentido nos conceitos de corpo e alma (ou

matéria e forma) na psicologia do final do século XVI e do início do século XVII.

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Como o Renascimento propiciou um aumento significativo dos estudos de

anatomia em corpos humanos, muitos autores com tendências aristotélicas

foram levados a revisitar algumas concepções fortemente arraigadas. Contudo, o

declínio das explicações que se baseiam nos conceitos de matéria e forma para

fenômenos psicológicos não é tão significativo como já foi suposto. Este é o

ponto de Edwards. Ou seja, ainda que o avanço em anatomia acarretasse

mudanças na maneira em que se compreendia a alma humana, não existiu um

salto de uma concepção estritamente hilemórfica para uma concepção

estritamente mecanicista. Edwards pretende mostrar que o crescente material

sobre a natureza do corpo e do cérebro não tornou, por assim dizer, as

explicações sobre a psicologia mais fisiológicas. Em autores como Jean

Lalemandet e Francisco Suárez, o florescimento de um rico material sobre

anatomia era concomitante com o ceticismo e o questionamento do valor

epistêmico daquela como método de investigação. Antes da quase unânime

aceitação das descobertas anatômicas, se colocou a questão do valor filosófico

da anatomia e de como deveriam ser traçadas as fronteiras entre o que é de

domínio exclusivo da medicina e o que é de domínio exclusivo da filosofia.

Encontramos uma atitude hesitante nos autores do período. Uma oscilação entre

continuidade e reforma, respeito às tradições e reconhecimento da necessidade

de evolução. Edwards indica que, desde a perspectiva metodológica, os autores

reagiram a esse período de crescentes possibilidades, fornecido pelo significativo

ganho de informações, com todo o aparato intelectual e argumentativo

tradicional da escolástica.

Os dois artigos subsequentes giram em torno da figura de Daniel Sennert

(1572-1637). Hiro Hirai pretende destacar a influência de Sennert sobre diversos

aspectos da filosofia moderna e, dessa maneira, mostrar que o pensamento de

Sennert possui uma importância muito maior do que aquela costumeiramente

atribuída a ele. Segundo Hirai, Sennert não só foi um dos pioneiros na defesa do

atomismo na modernidade, como também a sua obra exerce influência marcante

na de Robert Boyle, através de suas pesquisas sobre química corpuscular. Suas

análises acerca de embriologia, por sua vez, são uma influência na monadologia

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de Leibniz. Além disso, sua teoria da alma apresenta uma intersecção entre o

hilemorfismo aristotélico e o atomismo de Demócrito. O que essa diversidade

de desenvolvimentos da obra de Sennert possui como origem comum é uma

preocupação com a relação da matéria com a origem da atividade, da vida. O

texto de Hirai é especificamente dedicado à análise do conceito de ‘geração’ dos

seres vivos em Sennert. É na obra Hypomnemata Physica que encontramos o

tratamento de Sennert para o tópico da geração. A discussão percorre diversos

argumentos onde o filósofo analisa minuciosamente aspectos concernentes à

natureza da alma e suas relações com a matéria. O ponto central da discussão,

entretanto, é a defesa irrestrita da teoria de que as formas (almas) são

multiplicadas e não produzidas. Essa teoria se opõe aos defensores da eductio das

formas, tese segundo a qual todas as formas, inclusive as almas, são extraídas da

potencialidade da matéria. Sennert afirma que nada é gerado de uma maneira

espontânea, mas que tudo é gerado pela própria alma de cada ser. Seres vivos

que parecem ser gerados por um agente externo (como em uma relação de pai

para filho) são na verdade gerados por um princípio interno e unívoco, que é por

Sennert denominado ‘semente’, ‘princípio seminal’ ou ainda ‘alma’. O ato de

produção de almas, este sim, é de responsabilidade única de Deus no momento

da criação do mundo. Após isso, a multiplicação de formas ocorre através desse

princípio seminal presente nas almas e não na matéria.

O segundo texto sobre Sennert, escrito por William Newman, apresenta

os aspectos em que a análise da estrutura dos átomos proposta por Sennert

precede o conceito de afinidade química explicitado por Étienne-François

Geoffroy na influente obra Table de differents rapports de 1718. Essa tabela é

considerada um dos grandes momentos da história da química. Ela é a primeira

apresentação gráfica de elementos químicos ordenados pela sua capacidade de

serem dissolvidos ou dissolverem outros elementos em uma determinada

solução. Isso permitia que fosse possível predizer e formar certas leis sobre a

reação química que determinados elementos teriam quando expostos a

determinados ambientes. Contudo, não podemos afirmar, segundo Newman, que

a obra de Geoffroy tenha introduzido o conceito de ligação química. Seu mérito

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é ter codificado diversos conceitos já estabelecidos em uma forma inovadora que

permitiu o estabelecimento de novas relações. Mas, como pretende mostrar

Newman, já encontramos em Sennert o conceito de ligação que viria ser

empregado por Geoffroy. O conceito de afinidade química surge em Sennert do

seu atomismo. Na sua obra De Consitutione Chymiae, Sennert apresenta uma

justificação de como a introdução do atomismo tem um grande poder explicativo

sobre diversos temas da química e como os elementos químicos podem ser

compreendidos e manipulados de uma maneira estável e previsível. Ao se afirmar

que certos átomos, devido a sua estrutura, tenderiam a uma melhor combinação

com outros determinados tipos de átomos, se pode desenvolver uma teoria

quimicamente relevante acerca das relações e combinações químicas. Sennert

aprofunda a sua teoria acerca dos compostos nas obras De Chymicorum e

Paralipomena, e Newman nos oferece uma apresentação detalhada desse

desenvolvimento de seu pensamento.

Tad Schmaltz apresenta uma versão da doutrina das formas substanciais na

filosofia cartesiana. É bastante peculiar atribuir tal tese a Descartes, pois

geralmente os intérpretes concordam que não há espaço para formas

substanciais no projeto cartesiano. Schmaltz, dessa forma, contribui com uma

alternativa à interpretação tradicional que costuma ser dada para a relação entre

Descartes e as controversas formas substanciais. Poderíamos dizer que a noção

de forma substancial é uma daquelas que sofre uma das maiores críticas dos

pensadores do século XVII. Do ponto de vista propriamente científico temos as

afirmações de Boyle, que considera forma substancial um conceito

incompreensível, fundamentado mais numa preocupação com o sentido das

palavras do que na realidade das coisas. Do ponto de vista metafísico, ou

propriamente filosófico, temos, por exemplo, a carta do próprio Descartes a

Regius, de janeiro de 1642 (AT III, 506):1 “dizer que alguma ação provém de uma

forma substancial, é o mesmo que dizer que algo provém de alguma coisa que

não se compreende, o que nada explica”.

Para defender a tese de que Descartes sustentava, ainda que numa versão

                                                                                                                         1 A carta é citada pelo próprio Schmaltz.

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bastante transformada, uma causalidade proveniente de formas substanciais,

Schmaltz pretende argumentar da seguinte maneira: em um primeiro momento,

apresenta o tratamento dado por Suárez a essa noção e, então, estabelece os

pontos em que Descartes é influenciado pela abordagem suareziana das formas

substanciais. O centro da argumentação de Schmaltz é chamar a atenção para as

relações entre corpo e alma (mente) em Descartes. A difícil compreensão da

tese da interação entre as duas substâncias realmente distintas pode ganhar uma

nova luz se tomarmos a capacidade da alma de gerar movimentos corpóreos

como uma derivação do papel de forma substancial que a alma tem sobre o

corpo. Contudo, um problema que permanece é que assumir que a alma para

Descartes se comporta como uma forma substancial do corpo pode

comprometer o dualismo (a ideia de que o universo das coisas deve ser

compreendido através de dois domínios independentes de explicação: o imaterial

e o material). Afirmar que Descartes vincula a natureza da alma à de uma forma,

parece introduzir um resquício de hilemorfismo que é incompatível com uma

interpretação forte do dualismo. Mas, sem dúvida, tal hipótese esclarece alguns

pontos obscuros da união substancial.

Roger Ariew é mais um intérprete de Descartes que encontra uma posição

menos radical do filósofo francês no que diz respeito às noções de matéria e

forma. Assim como Schmaltz, afirma que Descartes defendeu em alguma medida

uma estrutura hilemórfica da natureza humana. Contudo, reconhece uma

transição no pensamento cartesiano. Nas obras de juventude que culminariam na

publicação das Meditações, temos a construção e defesa do projeto dualista, onde

Descartes defende uma distinção entre extensão e pensamento onde as duas

noções tendem a se excluir. Tudo que é pensante é não extenso, tudo que é

extenso é não pensante. Em contrapartida, argumenta Ariew, nas obras mais

maduras, que começam a partir das Objeções e Respostas, notamos um dualismo

mitigado. Descartes não recua ao ponto de negar que pensamento e extensão

são duas substâncias distintas. Entretanto, quando analisa a natureza humana, o

composto formado pela união da substância pensante com a substância extensa,

Descartes, por vezes, parece se referir a uma relação intrínseca da alma com o

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corpo, especialmente na medida em que essa relação é responsável pela

individuação do ser humano.2 Uma vez apresentadas as posições do dualismo

mitigado que aceita uma relação análoga à da matéria e forma como o corpo e o

pensamento, Ariew se dedica a analisar as críticas que foram levantadas pelos

contemporâneos de Descartes quanto a sua concepção de individuação. O

problema apontado é o seguinte: como compreender que uma substância deve

se relacionar com outra substância para individuar uma terceira entidade que é

substancial, mas não é substância? As críticas mais pungentes seriam encontradas

em Cordemoy e Leibniz, que retomam ideias vinculadas ao atomismo e

procuram abandonar a abordagem cartesiana.

Com o artigo de Gary Hatfield temos a oportunidade de analisar um

importante aspecto do projeto mecanicista de Descartes: o seu tratamento das

operações dos sentidos. O projeto de Descartes não consistia apenas em

explicar de forma mecanicista fenômenos tomados costumeiramente como

físicos. Ele pretendia que o mecanicismo explicasse também quase todos os

fenômenos pertinentes aos seres vivos. Entres estes estão incluídos digestão,

circulação, nutrição, crescimento, adormecer, despertar, a operação dos

sentidos externos, a imaginação, os apetites e a produção do comportamento

animal. Os únicos fenômenos não abarcados pelo projeto mecanicista de

Descartes seriam as operações do intelecto humano. Concebido deste modo,

notamos que o projeto mecanicista pretende explicar as operações que

anteriormente deveriam ser compreendidas pelas noções de alma vegetativa ou

sensitiva. Consequentemente, excluindo as noções de faculdade e forma

substancial, para Descartes, segundo Hatfield, as explicações das operações vitais

não podem ter sua origem em alguma relação intrínseca entre forma e matéria.

Sustentando sua interpretação em passagens do Tratado do Homem3, vemos que

ele se afasta da interpretação proposta por Schmaltz e Ariew. O objetivo de

Hatfield é justamente mostrar a maneira pela qual o projeto mecanicista de

                                                                                                                         2 Ariew indica as seguintes passagens para sustentar a sua posição: AT III, 493-503; AT IV, 346; AT VII, 434. 3 Cf. AT XI, 200.

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Descartes procura se afastar das noções de alma vegetativa e sensitiva como

princípios da vida e do movimento nos seres vivos. Para tanto, em um primeiro

momento, ele analisa de forma detida as noções de alma vegetativa e sensitiva na

tradição aristotélica para então, em um segundo momento, retornar para a

posição de Descartes e tentar situá-lo no contexto das mudanças conceituais do

século XVII. A posição de Hatfield é que Descartes rompe irrestritamente com a

tradição no que diz respeito à alma ou forma como princípio da vida e do

movimento. Se na tradição aristotélica e escolástica um corpo só se torna um

corpo humano por possuir uma alma ou forma humana, que opera através do

corpo manifestando faculdades nutritivas, sensitivas e racionais, então Descartes

não pode ser considerado um filósofo hilemorfista. Ao distinguir alma e corpo

como substâncias independentes, onde a alma vegetativa e alguns aspectos da

sensitiva foram designados ao domínio do corpo e os outros fenômenos ao

domínio do intelecto, Descartes possui uma nova concepção da natureza.

Os dois últimos artigos do livro são dedicados à teoria da substância em

Leibniz. O artigo de Justin Smith apresenta alguns importantes aspectos da

substância corpórea e o de Daniel Garber apresenta uma interpretação

hilemorfista da doutrina leibniziana da substância. No texto de Smith,

encontramos como Leibniz reagiu a uma tendência religiosa que buscava algo de

permanente e perene nos corpos que possibilitasse identificar um traço do

criador em todas as criaturas. Em uma nota de 1676, Leibniz afirma: “todo

corpo, seja humano ou de uma besta, plantas e minerais tem alguma nota de

substância (...) tal nota está em um ponto físico (que é o instrumento pelo qual a

alma move o corpo e está localizado em um ponto matemático) e dura para

sempre”4. Notamos que Leibniz acredita que deve haver uma parte especial do

corpo que é imortal.5 Como aponta Smith, essa posição não foi defendida por

Leibniz durante muito tempo. Contudo, o que é abandonado é apenas a ideia de

que existe uma parte sutil do corpo que é indestrutível; a ideia de que deve

                                                                                                                         4 Cf. A II i 175. 5 Pierre Gassendi também defendeu uma teoria semelhante; segundo ele tal característica era denominada flos substantiae.

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haver algo indestrutível nos corpos permanece. Em outra nota vemos que

Leibniz passa a conceber que o aspecto indestrutível do corpo deve ser

compreendido como o corpo tomado como uma totalidade: “Esta flor (...)

subsiste perpetuamente em todas as mudanças (...). Esta flor da substância está

difusa por todo o corpo” 6. Existe uma característica que dá unidade aos corpos,

aquilo pelo qual nós compreendemos a natureza dos corpos, mesmo através da

mudança, e que deve permanecer eternamente. Esta flor não pode ser

identificada com nenhuma parte específica do corpo, pois essas estão em

perpétua mudança. Segundo Smith, Leibniz aponta o processo fisiológico da

nutrição e digestão dos alimentos como uma marca característica dessa perpétua

mudança nos corpos. Tal processo, por outro lado, também é identificado com a

capacidade de sustentar o corpo; através da alimentação e consequente

incorporação dos alimentos no corpo, os seres vivos são capazes de se manter.

Leibniz, pretende concluir Smith, defende que o processo de nutrição é capaz de

dar conta da substancialidade dos corpos. Como reconhece no estômago o

principal órgão digestivo, tende a tomá-lo como o princípio de manutenção dos

corpos. Leibniz defenderia a curiosa tese, portanto, de que o espírito, o princípio

da vida, por assim dizer, é o estômago.

Por último, temos o texto de Daniel Garber. Leibniz possui uma

preocupação constante em sua carreira com a natureza das coisas corpóreas.

Mesmo antes do desenvolvimento da sua metafísica madura e da teoria das

mônadas, Leibniz já se dedicava ao estudo da natureza da matéria. Garber

acredita que nesse estudo Leibniz sempre defendeu alguma forma de

hilemorfismo. E o objetivo de seu texto é demonstrar tal traço do pensamento

leibniziano. Contudo, ainda que haja um constante hilemorfismo, Leibniz não é

constante no que diz respeito aos aspectos do hilemorfismo por ele assumidos.

A sua teoria a respeito da natureza dos corpos, bem como sobre outros tópicos,

muda bastante durante a sua longa carreira. O ponto de Garber, assim, não é

que haja um único hilemorfismo em Leibniz, mas que nas diversas vezes em que

descreve a natureza da matéria sempre encontramos, em cada uma, um traço

                                                                                                                         6 A VI iii 478.

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44  MANNING,  G.  (ed.).  Matter  and  Form  in  Early  Modern  Science  and  Philosophy  

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hilemorfista. Alguns exemplos analisados por Garber como representantes do

hilemorfismo leibniziano: 1) um ensaio acerca da transubstanciação em 1668,

onde Leibniz afirma que o corpo é uma substância somente porque possui uma

mente que lhe é concomitante7; 2) na sua correspondência com Arnauld, Leibniz

defende um argumento que ficou conhecido como argumento do agregado.8 O

ponto de Leibniz é simples: a realidade de um agregado de indivíduos é derivada

da realidade das suas partes. Um exemplo tradicional de Leibniz é que uma pilha

de pedras só pode ser real se as pedras que a constituem também o forem.

Agora, se assumimos que os corpos são coisas extensas que podem ser

indefinidamente divididos em partes extensas que, por sua vez, também podem

ser indefinidamente divisíveis, ad infinitum, se segue que corpos não possuem

realidade. Para o corpo ser algo real, ele deve possuir alguma unidade e essa

unidade para Leibniz, defende Garber, é a forma substancial.

Podemos dividir o livro Matter and Form in Early Modern Science and

Philosophy em duas grandes partes. Os primeiros quatro artigos são dedicados

quase que exclusivamente a tópicos de filosofia natural e às complexas relações

de autores do Renascimento com a tradição na qual obtiveram a sua formação e

também com a sua influência na Modernidade. Os cinco últimos, por sua vez,

abordam a perspectiva das noções de matéria e forma e procuram examinar em

detalhe como autores tomados tradicionalmente como reformadores, Descartes

e Leibniz, na verdade possuem vínculos muito fortes com os pensadores do

período medieval tardio. A leitura cuidadosa dos textos apresentados nesse

volume editado por Gideon Manning é, sem dúvida, de grande valor para os

historiadores da filosofia.

                                                                                                                         7 A VI i 509. 8 A II ii 184-5.

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NOVÁK, L./NOVOTNÝ, D. D./SOUSEDÍK, P./SVOBODA, D. (eds.).

Metaphysics: Aristotelian, Scholastic, Analytic, Heusenstamm: Ontos

Verlag, 2012, 284 p.

Marco Simionato* ___________________________________________

The book presents the proceedings of the international conference Metaphysics:

Aristotelian, Scholastic, Analytic (Prague, June 30 – July 3, 2010), and it deals with

several important metaphysical questions that occur – as the title suggests – at

fundamental moments of the history of philosophy, from Plato and Aristotle’s

metaphysics to contemporary analytic metaphysics, by way of the First and

Second Scholasticism. The chapters are divided into six sections: “Categories and

beyond”; “Metaphysical structure”; Substance and accident”; “Existence”;

“Modalities”; “Predication”.

I will briefly discuss the contents of the essays and then I will propose

some comments.

The first essay is “What is an ontological category?” by Peter van Inwagen,

one of the most important contemporary metaphysicians. In this article, the

author analyzes the notion of ‘ontological category’ by means of the notion of

‘natural class’. The latter is strictly linked to the thesis according to which it is

possible to recognize a real division among things, so that “for any class, if its

boundary marks a real division among things, then either that class or its

complement is a natural class – but not necessarily both” (p. 15). After defining a

class as ‘large’ whose membership comprises a significant proportion of the

things that there are and a class as ‘high’ if it is a proper subclass of no natural

class, Van Inwagen states that “a natural class x is a primary ontological category

only in the case that: [i] there are large natural classes; [ii] x is a high natural

                                                                                                                         * PhD student at Ca’Foscari University of Venice.

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class” (p. 18). Finally he claims that in general “an ontological category (simpliciter)

is a class that, for some n, is an n-ary ontological category” (p. 19).

In “Scholastic debates about beings of reason and contemporary analytical

metaphysics” Daniel Novotny compares the contemporary debate on

nonexistent objects to the scholastic debate on entia rationis by showing that the

latter cannot be simply reduced to the former, since there are different

backgrounds. I note in particular the following difference, pointed out by the

author, regarding the notion of nonexistent object (p. 34):

- Intentional View: a nonexistent object is a mind-made, intentional being;

- Quasi-Being View: a nonexistent object is explained by means of some

peculiar sort of being that pertains to every object, whether existing or not;

- Ausser-Being View: an object as such stands beyond being and non-being,

even if each object is not exempt from being or non being.

Novotny notes that the scholastics usually accepted the first account,

because “no alternative was seriously entertained by them” (p. 35).

In “What is constituent ontology” Michael Loux considers the distinction

between constituent and relational ontology, a distinction that one can find in the

whole history of philosophy, from Plato and Aristotle on. Briefly, given the

character of familiar particulars, i.e., “the fact that individual material objects,

plants, animals and human beings possess properties, fall under kinds, and enter

into relations” (p. 43), relational ontology states that underived sources of

character exist beyond the world of sense (beyond space-time) and that sensible

particulars have a non-mereological connexion to them (they participate in an

essence); instead constituent ontology affirms that the familiar particulars have

their own forms because they are constituted by the appropriate underived

bearers of characters, i.e. these latter are (immanent) parts of them.

According to Loux, any type of constituent ontology should affirm a sort of

framework principle that he calls constituent essentialism: “if a plurality of

objects, a …n, constitutes a particular x, then […] the resulting whole, x, has

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necessarily the property of having all and only a …n as constituents” (p. 52).

Then Loux also formulated the linked principle for a constituent ontology, the

so-called principle of constituent identity: “necessarily, for any objects, x and y, if

x and y have all and only the same constituents in precisely the same order, x and

y are identical” (p. 53).

On the bases of these two principles, Loux argues that contemporary

versions of constituent ontology cannot explain some general facts without falling

into serious difficulties, for example, the persistence of familiar particulars

through time or that familiar particulars are concrete individuals.

The essay “Elemental transformation in Aristotle: three dilemmas for the

traditional account”, by Anne Peterson, shows that the traditional account of the

notion of prime matter, that is associated to Aristotle, is not compatible with

“three metaphysical doctrines also often associated to Aristotle: a certain variety

of essentialism, actualism” and a sort of “constituent ontological strategy” (p. 60).

In fact, assuming the traditional account of prime matter as essenceless pure

potentiality that provides a persistent substratum for elemental transformation,

essentialism (i.e. the thesis according to which everything that exists has an

essence), actualism (i.e. the thesis that something must be actual to be at all) and

the above-mentioned variety of constituent ontology (i.e. the thesis that “one

constituent of a whole serves as subject and the other as predicate”, p. 71) imply

some contradictions.

Starting from the general thesis – shared by Aristotle, scholastics and (the

greater part of) analytical philosophers - according to which truth depends on

reality, Ross Inman in “Essential dependence, truthmaking, and mereology: then

and now” presents a general truthmaker principle and a truthmaking relation

such that x is a truthmaker for <p> if and only if x exists and it is necessary that if

x exists, then <p> is true (p. 75). After presenting some arguments by E.J. Lowe,

the author shows that the truthmaking relation should not be considered by

means of a “rigid-existential dependence” (i.e. x rigidly depends on y just in case

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it is necessary that y exists if x exists), but rather by means of what Lowe names

“essential dependence” (x essentially depends on y just in case there is a function

f such that it is a part of the essence of x that x is f(y) ).

On this basis, Inman explores “the scholastic roots of the notion of

essential dependence as developed in the work of Duns Scotus” (p. 78), and he

claims that “both Scotus and Aquinas, with Aristotle, adopt the fundamental

intuition behind the notion of truthmaking: the dependence of truth on being” (p.

84). Finally the author presents an essentialist account of truthmaking based on

Aquinas’ hylomorphic ontology.

In “Essence and ontology” E.J. Lowe points out some controversial points

of Aristotle’s hylomorphic ontology, and he proposes to reconsider them by

means of another Aristotelian kind of ontology that one can recognize in his

presumed early work, the Categories. Starting from it, Lowe builds up his own

neo-Aristotelian four-category ontology of individual substances, modes, substantial

universal and property universals. Then he argues that such an ontology with a neo-

Aristotelian account of essence (i.e. the essence of an entity is “just what that

entity is, as revealed by its real definition” (p. 108)) provides a metaphysical

foundation for modal truth without appealing to the notion of ‘possible worlds’.

In fact, according to Lowe, the notion of possibility and necessity have to be

explained by means of the notion of ‘essence’ rather than viceversa. In particular,

“a metaphysically necessary truth is a truth which is either an essential truth or

else a truth that obtains in virtue of the essences of two or more distinct things”

(p. 107).

In “An Aristotelian argument against bare particulars”, Lukas Novak starts

from the distinction between de dicto and de re necessity, and by means of the

notion of de re necessity distinguishes essentialism from anti-essentialism. The

former believes in de re necessity, whereas “denial of de re necessity entails anti-

essentialism” (p. 113). But the notion of “bare particulars” would undermine

Aristotelian essentialism, because such a notion is linked to the thesis according

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to which “all properties (except trivial ones like self-identity, and some others)

belong contingently to their subjects, or in other words, that individuals have no

(non-trivial) essences” (p. 114). Novak provides an argument for showing that

anti-essentialism is untenable. The general premise of his argument is the fact

that there is what Aristotle would call accidental change. The strategy of the

argument is as follows: “once we concede that accidental differences are based

on really distinct particular entities that ‘inform’ the given subjects, we must also

concede that ultimately, some entities must differ by themselves, that is,

essentially” (p. 119).

“The ontology of number: is number an accident?” by Prokop Sousedik and

David Svoboda deals with the question of what a number is. According to the

authors, such a question should be faced by the Aristotelian distinction between

substance and accident, i.e. between ens in se and ens in alio. After analyzing some

fundamental ontological approaches to number, the authors show that the

notion of number as accident of quantity implies unacceptable or contradictory

consequences. However, they also argue that the notion of number as object is

just as unacceptable as the other one. Therefore, they propose a “middle way”,

according to which “from a logical point of view number is an object but from

the ontological point of view it is an entity that depends on linguistic structure

(ens in alio)” (p. 123).

After introducing the distinction between the Doctrine of Divine

Conservation (DDC) and the Doctrine of Existential Inertia (DEI), Edward Feser,

in “Existential inertia”, argues for the traditional Thomistic doctrine of divine

conservations. DDC claims that the created things are constantly preserved into

being by the activity of God, whereas DEI affirms that “the world of contingent

things, once it exists, will tend to continue in existence on its own at least until

something positively acts to destroy it” (pp. 143-144). According to Feser, by

means of Aquinas’ Five ways for God’s existence one can provide arguments for

the truth of DDC.

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In “Aquinas vs Buridan on essence and existence, and the commensurability

of paradigms” Gyula Klima considers Aquinas’ intellectus essentiae “argument for

the real distinction of essence and existence in creatures” (p. 169). According to

Klima, the objections of Anthony Kenny to that argument beg the question,

because Kenny appeals to two notions of existence (existence as Fregean

existential quantifier or – say – existence as Fregean Wirklichkeit) that do not

occur in Aquinas (the first notion) or that are not conceived from the same

premise of Kenny (i.e. Kenny’s assumption that “the distinctness of essence and

existence would have to mean that it is possible to have one without the other”

(p. 172)). Then, the author presents Aquinas’ argument as follows, clearly

showing that it is immune to Kenny’s criticism:

(1) The nature of c is known

(2) The existence of c is not known

(3) Therefore, the nature of c is not the existence of c

Since Buridan objects to Aquinas’ argument exactly in the above-mentioned

form, Klima’s aim is to show that such a debate is based on a different

conception of “how our concepts latch onto things in the world” (p. 169), but

the author opens the possibility of an argument “across paradigmatically different

conceptual frameworks” (p. 169).

In “Potentiality in Scholasticim (potentiae) and the contemporary debate on

‘powers’” Edmund Runggaldier deals with two notions of potentiality that

correspond to two different accounts of modality: the first can be considered as

what is called possible-worlds approach in contemporary analytic metaphysics;

the second “has its basis in everyday life, i.e., in our experience of having certain

capacities and acting accordingly” (p. 185). In fact – linked to such a distinction –

the author points out the scholastic distinction between potentiae objectivae and

potentiae subjectivae. The objective potencies are potentialities as mere

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possibilities, i.e. entities that do not exist in our actual world; instead subjective

potencies are “integral parts of the world we inhabit” (p. 187), since they are

dispositions and powers inherent to a real subject or bearer (see p. 187).

David Peroutka considers the notion of ontological possibility in his essay

“Dispositional necessity and ontological possibility”. He states that the notion of

possibility as logical non-contradiction is insufficient, since there are maximally

consistent ways things could be that do not respect, for example, the laws of

nature. Therefore the author offers an ontological account of possibility:

“something is possible if and only if there are active and passive causal capabilities

enabling its production” (p. 204). Since a disposition – i.e. a property leading

necessarily to an effect – “belongs to the essence of that quality in which it is

based” (p. 206) and since “essential appurtenance is defined as an across-all-

worlds connexion”, Peroutka offers an account of possibility/necessity by means

of possible-worlds approach (p. 205):

- Possibility: x is possible in the world w if and only if there is some

possible world causally accessible from w in which x exists.

- Necessity: x is necessary in the world w if and only if x exists in each

possible world that is causally accessible from w.

“The optimal and the necessary in Leibniz’ mathematical framing of the

compossible” by Mark Faller is an essay on Leibniz’ metaphysics of possibility and

necessity. The fundamental principles in Leibniz’ metaphysics are – as Faller point

out – the Law of non contradiction (“Principle of contradiction”) and the

Principle of sufficient reason: the first “can never be violated under any

circumstances” (p. 224); the second principle “is the determinant cause of all of

nature and all of reason” (p. 224). The author also considers Leibniz’s optimism,

i.e. the thesis according to which “God has chosen the most perfect world, ‘the

simplest in its hypotheses an the richest in phenomena’” (p. 220), and he analyzes

the mathematical grounding of this thesis.

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In “The interpretation(s) of predication”, Uwe Meixner presents several

approaches to the question of the ontological basis of predication (accounts by

Sophists and relativists, Plato, Aristotle, Aquinas, Leibniz, Frege, set-theoretic

theory, minimally Aristotelian view, redundancy theory, identity theory, fact-

referring functional predication theory) by considering primarily the general form

of simple predicative statements: Φ(α1, …, αn), where “the sequence represents

the occurrences of the singular terms in a simple predicative statements […] and

the letter Φ represents the rest of the statement” (p. 230). Plato’s account, for

example, works as follows:

Φ(α) is true – this amounts, ontologically, to this: α is sufficiently similar to

the Φ itself (p. 232)

and Frege’s account is the following:

“Φ(α1, …, αn)” is true – this amounts, ontologically, to the following: the

functional value of the Φ-concept for <α1, …, αn> is the true. (p. 242).

The author shows the problems that undermine each account, but he

endorses the fact-referring functional predication theory, i.e.:

“Φ(α1, …, αn)” is true – this amounts, ontologically, to the following: the

completion of the Φ-universal by <α1, …, αn> is a fact, that is: an obtaining state of

affairs (p.245).

The last essay is “Towards a Thomistic theory of predication”, where

Stanislav Sousedik explains the Thomistic theory of predication that he considers

to be an identity theory of predication, since “it seems that Thomas intended to

say that what we mean by the subject and the predicate of such a sentence refers

to one and the same thing” (p. 247).

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The book is quite fluent (with the exception of some points), and it can be

easily understood by readers that are not very familiar with the most technical

aspects of analytical metaphysics. In some ways it can also be seen as an

introduction to many important metaphysical questions. Moreover, the book

efficaciously contributes to developing profitable connections between different

philosophical traditions, by showing that the fundamental metaphysical questions

continue to persist throughout the history of philosophy and, – above all – that

mutual comparison can be beneficial for scholars belonging to different areas of

research.

Among the many essays of the book, I am going to highlight some of them

– Van Inwagen, Novotny, Inman and Loux’s essays – as pointing out some

suggestions for possible lines of research that could extend the debates. Van

Inwagen’s essay ends by stating that the traditional philosophical question about

the nature of being can be considered as the following one: what does it mean

for a category to be non-empty? But it seems that for the author such a question

belongs to meta-ontology rather than ontology, since “‘ontology proper’ is the

attempt to set out a satisfactory list of ontological categories; everything else in

ontology belongs to meta-ontology” (p. 24). I think that such a question should

be linked to the metaphysical question of emptiness and empty world – a way by

means of which analytic metaphysics considers the traditional question of

nothingness – and therefore I am not sure that in this way it would remain just a

meta-ontological or meta-metaphysical question.

In his essay Novotny presents – among others – the Ausser-Being account

for nonexistent objects, as we have seen. It is interesting that the Italian

philosopher Emanuele Severino strongly argues that such a view about object has

been endorsed – implicitly or explicitly – by all Western philosophers, whereas

he claims that an object is necessarily linked to its being so that it eternally exists

(his conclusions are similar to some eternalist views)1.

                                                                                                                         1 See for example SEVERINO, E. Destino della necessità, Milan: Adelphi, 1980.

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Considering the notion of truth, Inman states that the dependence of truth

on being is the Aristotle’s fundamental intuition which is inherited by scholastics,

until contemporary analytic philosophers. However, I think there is another

notion of truth that one can find in Aristotle, i.e., the notion of truth linked to

the so-called elenctic refutation as it occurs in the fourth book of Aristotle’s

Metaphysics. Of course, this notion does not exclude the other one; rather the

elenctic refutation works for showing how really things are, but I think it is an

aspect that one should investigate when one considers the notion of truth in

general and above all in Aristotle.

Finally, the suggestion that occurs in Loux’s essay, according to which one

cannot distinguish the relational ontology from the constituent one by means of

the Principle of instantiation, is quite remarkable.