Translatio 5 (2013)
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ISSN 2176-8765
Translatio
Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval
e a Recepção da Filosofia Antiga
Vol. 5 (2013)
- 01 -
KÖNIG-PRALONG, C., IMBACH, R. Le défi laïque (A. R. Schmidt)
- 08 -
ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist. Thomas Aquinas, Giles of
Rome, Duns Scotus, and William of Ockham (R. Guerizoli)
- 20 -
HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo
adscripta (G. B. Vilhena de Paiva)
- 34 -
MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy
(P. F. Pricladnitzky)
- 45 -
NOVÁK, L./NOVOTNÝ, D. D./SOUSEDÍK, P./SVOBODA, D. (eds.). Metaphysics:
Aristotelian, Scholastic, Analytic (M. Simionato)
Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma
publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação
Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).
Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ)
Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) •
Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo
(UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu
Mazzola Verza (UFMG)
Revisão: Gustavo Paiva
Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-‐8765 Vol. 5 (2013)
KÖNIG-PRALONG, C., IMBACH, R. Le défi laïque, Paris: Vrin, 2013,
226 p.
Ana Rieger Schmidt* ___________________________________________
O desafio laico consiste em uma série de publicações anteriores de Ruedi Imbach
e de Catherine König-Pralong traduzidas para o francês. Os artigos exploram a
pertinência dos meios laicos da sociedade medieval para a plena compreensão da
atividade filosófica desta época. Um programa de estudos é assim esboçado na
tentativa de transformar a maneira como os historiadores da filosofia medieval
abordam seu objeto de estudo.
A obra constata que os historiadores de filosofia medieval negligenciam a
condição social na qual atuaram os autores de obras de valor legitimamente
filosófico, em particular no que toca a uma distinção sociocultural fundamental
neste contexto: a distinção entre clérigo e laico. A partir daí, Imbach e König-
Pralong sustentam a tese segundo a qual é importante explorar as relações entre
o estatuto social dos autores e dos destinatários das produções filosóficas para
melhor entender o próprio conteúdo e escopo da atividade filosófica naquele
período.
Se a historiografia do pensamento medieval já se encontra sensibilizada
para os conflitos entre classe eclesiástica e classe laica, o mesmo não se aplica às
pesquisas atuais em história da filosofia medieval. Assim, o primeiro capítulo da
obra consiste numa breve introdução sobre a questão laica na historiografia
medieval dos últimos 30 anos. Em um primeiro momento, König-Pralong nota
que a tematização do papel dos laicos na sociedade medieval era feita à partir do
ponto de vista dos clérigos: os laicos eram considerados como uma classe
espiritual e culturalmente inferior, em conformidade com o adjetivo pejorativo
illiterati, frequentemente aplicado aos laicos pelos clérigos. O ponto de partida da
* Bolsista CAPES e doutoranda em filosofia medieval pela Université de Paris IV-Sorbonne.
2 KÖNIG-‐PRALONG, C., IMBACH, R. Le défi laïque
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historiografia medieval seria, assim, marcado por uma abordagem “contaminada”,
clerical. Ligado a isso, a prática filosófica se viu concentrada nos monastérios e
universidades. Os textos escritos por membros do clero e em língua latina foram
em consequência privilegiados pela historiografia em questão e seu objeto de
estudo foi quase exclusivamente determinado pelos problemas filosóficos que
possuíam uma certa relação com a teologia (como a questão da criação, dos
nomes divinos, das ideias divinas, etc.). Um sintoma dessa predileção é o
esquecimento, por parte dos historiadores, da filosofia política e da filosofia das
ciências (por exemplo, da ótica e da astronomia), todavia bem presentes na Idade
Média.
Étienne Gilson, reconhecido medievista, chega a definir a essência da
filosofia medieval como “filosofia cristã”1. Imbach defende que uma
caracterização como essa é “cega à multiplicidade de problemas e de métodos
empregados nas contribuições medievais” (p. 34). Assim, a posição social do
autor e do destinatário deve ser tematizada, tendo-se em conta uma sociedade
onde a Igreja e a hierarquia eclesiástica exerceram uma hegemonia em diversos
níveis.
A questão de saber se os laicos filosofaram na Idade Média constitui para
os autores não apenas uma preocupação histórica, mas “adquire também uma
significação altamente filosófica, pois ela se encontra ligada à autoconcepção
histórica da filosofia, às missões que ela se propôs e à função que ela efetivamente
cumpriu” (p. 35). Uma visão que parte apenas de uma história das ideias ou dos
problemas filosóficos não se coloca estas questões. Esta leitura, no entanto,
começou a ser revista nos anos 80 pelas publicações de Klaus Schreiner2, no
plano da história social, e de Ruedi Imbach3 no plano da história da filosofia. De
fato, Imbach procura localizar os laicos na paisagem intelectual medieval
empregando os caminhos abertos pela história cultural e social da Europa
medieval. 1 GILSON, E. L’esprit de la philosophie médiévale, Paris: Vrin, 1969. 2 SCHREINER, K. “Laienbildung als Herausforderung für Kirche und Gesellschaft. Religiöse Vorbehalte und soziale Widerstände gegen die Verbreitung von Wissen im späten Mittelalter und in der Reformation”, Zeitschrift für historische Forschung 11 (1984), pp. 257-354. 3 IMBACH, R. Laien in der Philosophie des Mittelalters, Amsterdam: Grüner, 1989.
3 KÖNIG-‐PRALONG, C., IMBACH, R. Le défi laïque
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O capitulo II examina o conceito de “laico” e seus diferentes sentidos no
contexto medieval. O primeiro sentido, usado ainda em nosso tempo, entende o
laico como o não-clérigo. Mas o mesmo conceito também se refere ao grau de
instrução de um determinado indivíduo. Neste caso, “laïcus” designa o illiteratus.
Essa expressão sofreu uma grande transformação no curso dos séculos: em um
primeiro momento ela se refere àquele que não conhece o latim; ela designa o
inculto e é pejorativa. Depois, ela se aplica àqueles que não receberam uma
formação superior de qualquer natureza. Mais tarde, “illiteratus” remete a um
tipo particular de formação, alternativo ao ensino tradicional das universidades
do século XIII, ou seja, comum àqueles que não estudaram na Faculdade de artes
ou de teologia. Ao fim do século XV, por sua vez, a identificação entre laïcus e
illiteratus já não faz mais sentido.
As interações entre laicos e clérigos são extremamente complexas. De um
lado, conhecemos o seu caráter conflitoso, presente por exemplo nas discussões
em teoria política – basta citar o caso dos escritos de Guilherme de Ockham,
marcados por uma forte crítica ao poder papal – e na célebre condenação de
1277. Pode-se neste contexto falar de uma tentativa de emancipação do saber
com relação ao clero por parte dos mestres da Faculdade de artes de Paris,
mesmo se esses pertenciam à classe religiosa. Por outro lado, vemos que i) laicos
eram frequentemente os destinatários de textos filosóficos (veja-se por exemplo
os escritos de Tomás de Aquino ao professor de medicina Philippus de Castro
Celi e o tratado inacabado De regno, dedicado ao rei Henrique III de Lusignan); ii)
havia uma prática de tradução de textos filosóficos em língua vulgar (veja-se o
caso da Consolação da Filosofia de Boécio, traduzida 13 vezes para o francês), o
que testemunha um interesse pela filosofia fora dos círculos universitários
eruditos; iii) laicos são autores de textos filosóficos. Neste sentido, Imbach
chama a atenção no capítulo III para o fato de que as cortes reais eram um lugar
fecundo de grande troca intelectual e de estímulo à produção filosófica, citando
os casos representativos da corte do rei Roberto de Nápoles, do imperador
Frederico II e do rei Carlos V.
Vemos, assim, o aparecimento de novos objetos de estudos e de novos
4 KÖNIG-‐PRALONG, C., IMBACH, R. Le défi laïque
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personagens: Raimundo Lúlio, Dante, Petrarca e Cristina de Pisano. Os capítulos
IV a VII buscam determinar a dimensão filosófica em seus textos singulares,
estrangeiros às estruturas escolásticas e escritos também em língua vulgar – em
catalão, italiano e francês.
Lúlio encarna a figura de um “outsider” autodidata que buscava integração
ao meio clerical. Sua obra é endereçada tanto aos homens instruídos como aos
illiterati. Destacam-se os escritos em catalão, como o Libre de maravelles, um
tratado de ética destinado aos soberanos e dedicado a Filipe, o Belo. Ao mesmo
rei é também dedicada uma série de escritos em latim, como o Liber natalis.
Nesta obra em particular, Lúlio se considera explicitamente um laico e é sob
esse estatuto que ele critica o averroísmo. Imbach chama a atenção para a
interpretação das artes mecânicas ou do trabalho manual por parte do filósofo
catalão. Em seus tratados Doctrina Pueril, Arbor humanalis et Arbor scientiae vemos
uma interpretação antropológica independente da visão escolástica tradicional,
insistindo sobre a sua importância econômica e social (com a interessante
valorização do artesanato), o que oferece uma ideia da concepção lulliana do
homem como ser de ação.
Dante é um laico nos dois sentidos da palavra: nem clérigo, nem
universitário. Ele se considera explicitamente dentre os illiterati em sua obra
inacabada Convivio, dedicada àqueles que não puderam comer do “pão dos anjos”,
a saber, a todo aquele que não pôde completar os estudos universitários. Esta
obra de dimensão autobiográfica é particularmente entusiasta da função da
filosofia de saciar a fome por conhecimento de todos os homens: príncipes,
barões, cavaleiros e também mulheres. Outros quatro textos constituem a via
filosófica de Dante: De vulgari eloquentia, Epístolas à Cangrande della Scala,
Monarchia e a Questio. Imbach identifica neles uma transformação do “discurso
escolástico”, entendido como o discurso baseado no modelo aristotélico, que
visa à contemplação das mais nobres causas. Tal discurso possui um lugar
próprio (as Faculdades de artes e de teologia), um suporte próprio (os textos
em forma de comentário ou em forma de questões), uma língua própria (o latim)
e um sujeito-autor bem determinado, o qual reflete a aspiração à necessidade e à
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universalidade (os textos filosóficos são redigidos na terceira pessoa do singular
ou na terceira pessoa do plural). Na medida em que transforma a filosofia e seu
projeto, Dante transforma cada uma destas características definidoras da prática
filosófica escolástica. Dante escreve na primeira pessoa do singular, em íntimo
contato com uma narrativa autobiográfica – mesmo que esta seja muitas vezes
meramente artística e não propriamente verídica. Tal característica conecta a
existência do autor e do interlocutor com o filosofar. Porém, a filosofia não é
para Dante uma reflexão solitária que exige o exílio daquele que pensa, mas
representa um ensino que deve ser transmitido. A dimensão política da obra de
Dante é valorizada por Imbach: o homem é visto como um animal racional e
político ao mesmo tempo em que a filosofia moral ocupa o lugar da metafísica
como ciência primeira.
Dante faz da linguagem um objeto filosófico: seu interessantíssimo tratado
latino De vulgari eloquentia é exclusivamente dedicado à questão da formação e da
multiplicação dos diferentes idiomas de um ponto de vista racional (e não como
punição pós-Babel). A questão da prática da filosofia em língua vulgar é
tematizada de maneira inédita no Convivio, quando o autor justifica o uso de sua
língua maternal visando seus destinatários: todos os “iletrados” que não puderam
concluir uma formação universitária. Mesmo reconhecendo a superioridade
científica do latim, Dante vê nessa língua uma barreira para a instrução dos
homens. Dante defende explicitamente que a filosofia não deve ser restrita à uma
pequena elite aristocrata (p.161).
Petrarca, em seu tratado tardio De sui ispius et multorum ignorantia, em
direção contrária àquela de Dante, entra em confronto com Aristóteles e seus
seguidores contemporâneos. O humanista italiano critica em particular o fato de
alguns filósofos de seu tempo venerarem o Estagirita como um deus. Para
Petrarca, Aristóteles se enganou terrivelmente com relação a questões de suma
importância, como a eternidade do mundo e, sobretudo, a concepção da
felicidade humana. Os equívocos do Filósofo se explicam pelo fato dele ter sido
um pagão e, assim, por não possuir os conhecimentos essenciais recebidos pela
fé cristã. O humanista italiano considera que a mais alta filosofia consiste no
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conhecimento de Deus, e por isso, toda filosofia pagã é necessariamente lacunar
e pobre neste sentido. No tratado citado, Petrarca se concentra sobre as noções
de virtus illiterata e de literata ignorantia. A meditação sobre a própria ignorância e
suas implicações éticas constituem uma tentativa para conceber adequadamente
a prática filosófica. Com efeito, através da reflexão do sujeito sobre si mesmo e
do conhecimento de si – ao alcance de todos os homens –, que possibilita o
reconhecimento da própria ignorância, se mostra um momento constitutivo do
verdadeiro filósofo que, como Sócrates, confessa saber que não sabe. O sábio é
aquele que reconhece os limites de seu conhecimento, e não aquele que crê
tudo saber. Esta concepção da filosofia afirma a primazia do homem bom (vir
bonus) sobre o homem erudito (literatus).
Catherine König-Pralong encerra a publicação com considerações sobre o
escopo filosófico da obra da poetisa Cristina de Pisano, frequentadora da corte
de Carlos V e de Carlos VI. A partir dos anos 1400, Cristina escreve uma série
de obras em prosa sobre a hierarquia dos saberes, bem como sobre o governo
político dos soberanos temporais. Seus escritos possuem uma forma híbrida,
aparentando-se ao mesmo tempo aos espelhos dos príncipes (miroir des princes,
specula principum),4 às autobiografias intelectuais, às narrações históricas das
Grandes crônicas da França e ao gênero escolástico das Divisões das Ciências.
Cristina demonstra vasto conhecimento de textos filosóficos. Sabe-se que ela
teve acesso, por exemplo, à Consolação de Boécio (em uma tradução anônima
antes atribuída a João de Meun), à Cidade de Deus de Agostinho (na tradução de
Raul de Presles) e ao Comentário à Metafísica de Aristóteles de Tomás de Aquino –
Cristina redigia somente em francês, mas quase certamente lia em latim.
Com relação à tradição dos espelhos dos príncipes, Cristina estabelece
uma enciclopédia de saberes ao alcance dos laicos, na qual as ciências teóricas
(incluindo a metafísica) entram na esfera dos saberes destinados aos soberanos.
No interessantíssimo Livre des fais et bonnes meurs du sage roy Charles V, de 1404,
Cristina defende a sabedoria do rei ideal como incluindo o conhecimento das
4 Gênero literário medieval, espécie de manual constituído de conselhos e princípios morais destinados a guiar o soberano em seu governo.
7 KÖNIG-‐PRALONG, C., IMBACH, R. Le défi laïque
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primeiras causas. Isso representa uma transformação importante considerando
que o espelho dos príncipes mais reputado de seu tempo era o Livre du
gouvernement des princes de Egídio de Roma, no qual a atitude com relação aos
laicos é manifestadamente condescendente, reduzindo seu saber a
conhecimentos práticos visando a utilidade social. Nesse contexto, Cristina
denuncia explicitamente o monopólio clerical do saber teórico. Cabe notar que
no Livre de l’Advision Cristine, de 1405, a poetisa combate explicitamente a
misoginia dos clérigos e dos homens em geral que recusam o ensino às mulheres,
em uma atitude que König-Pralong considera como feminista. Neste espelho dos
príncipes, o personagem principal não é o rei: Cristina elege à si mesma como
modelo da busca pelo saber.
Deve-se levar em conta, contudo, que mesmo que esses exemplos não
exaustivos de produção filosófica sejam suficientes para provar que havia, na
Idade Média, laicos que filosofavam, não é possível encontrar nestas práticas uma
unidade, nem falar de um espírito laico comum.
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ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist. Thomas
Aquinas, Giles of Rome, Duns Scotus, and William of Ockham, Oxford:
Oxford University Press, 2010, 318 p.
Rodrigo Guerizoli* ___________________________________________
Marylin McCord Adams, conhecida no meio filosófico sobretudo por seu
volumoso estudo sobre Guilherme de Ockham, oferece em Algumas Teorias da
Eucaristia da Idade Média Tardia. Tomás de Aquino, Egídio de Roma, Duns Scotus e
Guilherme de Ockham um estudo associado ao mesmo tempo ao campo da
teologia histórica e ao da história da filosofia. E, de fato, ciente dessa dupla face
de seu intento, Adams organiza seu texto de modo a “permitir aos leitores
selecionar o que lhes seja mais útil e prazeroso” (p. 1). Trata-se de analisar e
clarificar as teorias de alguns pensadores medievais sobre a eucaristia, um dos
sete sacramentos cristãos, aquele no qual “o corpo e o sangue de Cristo se
tornam realmente presentes no altar, dando aos fiéis que dela participam uma
oportunidade de comunhão com Ele no aqui e agora” (ibid.). Até que ponto uma
tal doutrina se deixa coadunar com as convicções de ordem metafísicas e de
filosofia natural compartilhadas por intelectuais dos séculos XIII e XIV? Essa é a
principal pergunta que guia a investigação de Adams e cuja resposta é
apresentada principalmente nos capítulos 4-10, dedicados a cada um dos autores
mencionados no título da obra, bem como a um mapeamento geral em que se
avalia o quão correntes ou, ao contrário, gratuitas, seriam as diferenças
conceituais introduzidas por tais autores em seus ensinamentos sobre a
eucaristia frente aos modelos aristotélicos de metafisica e de filosofia da
natureza.
Uma vez que se trata, em última instância, de um confronto com
Aristóteles, Adams dedica o primeiro capítulo de sua obra à apresentação do
* Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da UFRJ.
9 ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist
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instrumental teórico aristotélico em jogo. Os capítulos 2 e 3, por sua vez, se
dedicam às linhas gerais da compreensão medieval de sacramento, um signo
sensível que aponta para algo imaterial ou, de modo mais preciso e problemático,
um rito material que possui poder causal eficiente suficiente para produzir certos
benefícios espirituais (cf. p. 51ss.). A mesma noção de sacramento está ainda no
centro dos capítulos finais da obra, 11 e 12: no penúltimo capítulo são
considerados o comer e o beber eucarísticos e no último se elucida o destino
dos sacramentos na vida post mortem. Evidentemente, os capítulos 2, 3, 11 e 12
são de limitado valor para leitores que – como nós – têm interesses puramente
filosóficos e, por isso, praticamente não serão tratados na presente resenha.
Inicialmente se trata, repetimos, de exibir certos aspectos-chave do
maquinário conceitual aristotélico que serão de importância para os autores
sobre o quais Adams se debruça no tratamento de questões ligadas a causalidade
sacramental e presença real eucarística. Dois tópicos são tratados: a estrutura
metafisica dos entes corpóreos e as concepções aristotélicas de espaço. Com
relação ao primeiro, Adams explora as principais estratégias de explicação da
constituição de tais itens corpóreos: atomismo e hilemorfismo. A questão aqui
parece girar em torno à noção de “unidade paradigmática” (p. 5). Quem a
possui? Os objetos materiais macroscópicos ou os itens pelos quais eles se
constituem? Ora, aponta o aristotélico, aquela noção cabe, sem restrições, a
objetos macroscópicos, o que é demonstrado ao se perceber os esquemas de
regularidade – “sempre ou na maior parte das vezes” – que os organizam. Sendo
assim, a unidade de tais coisas não pode consistir na mera aproximação de itens
primariamente unitários; antes, ela deve resultar da presença, naquela matéria, de
um princípio, a forma, que lhe atribui unidade e dinâmica funcionais.
Tal determinação pela forma tem de ocorrer em pelo menos dois níveis: o
de uma determinação sem a qual algo deixa de ser o que é e o de uma
determinação sem a qual apenas se modifica o modo como algo é o que é. Até
aqui hilemorfistas estão de acordo. Mas as coisas se tornam mais difíceis quando
se percebe vários níveis de determinações essenciais à unidade das coisas: num
animal, por exemplo, a posse de um corpo e de funções vegetativas parece tão
10 ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist
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essencial quanto a posse daquilo que o distinguiria enquanto tal, a saber, a
cognição sensorial e o apetite. Mas, quantas formas desempenham essas funções?
Aqui hilemorfistas se dividem entre unitaristas e pluralistas. Adams percorre em
poucas páginas os argumentos de que cada uma das partes lança mão, focando,
por exemplo, na concepção tomasiana de matéria como “nem atualmente
substância nem um puro nada” (p. 9), na crítica de Duns Scotus e Guilherme de
Ockham a esse ponto como “metafisicamente incoerente” (p. 10), e na réplica
unitarista que busca indicar a perda de qualquer explicação por parte dos
pluralistas do porquê de plantas, animais e seres humanos exibirem uma unidade
verdadeiramente per se.
Outro tópico tratado diz respeito ao número de categorias que deve ser
reificado. Dentre os autores em jogo as alternativa parecem ser: substância,
qualidade e quantidade (Tomás de Aquino, Egídio de Roma e, usualmente, Duns
Scotus) ou apenas as duas primeiras (Guilherme de Ockham). Em seguida são
ainda esboçados os problemas dos universais e do princípio de individuação,
sempre de maneira extremamente clara e sintética, expondo com precisão as
questões sistemáticas em jogo em cada uma das discussões.
Acerca das questões que giram em torno à concepção aristotélica de
espaço, ou mais precisamente, em torno à sua teoria da localização dos corpos,
Adams discute as duas principais teorias quanto ao tema, que rementem
respectivamente às Categorias e à Física: de um lado, a visão do espaço como uma
“extensão incorpórea contínua tridimensional que é capaz de receber corpos”
(p. 20) e, de outro, a defesa da ideia de que espaço é “o limite do corpo que
contém e cujo limite toca e é coincidente com aquele do corpo que é contido”
(ibid.). O que se mostra, como já se poderia prever, é que parece haver bons
argumentos contra e a favor de cada uma das posições.
O primeiro capítulo do livro pode ser lido separadamente, como uma
extremamente competente série de colocação de problemas que giram em
torno à recepção das teorias aristotélicas sobre a constituição dos objetos
materiais e sobre a natureza do espaço.
11 ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist
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Passando então ao quarto capítulo da obra, dedicado a Tomás de Aquino e
Egídio de Roma, encontramos de início um delineamento das questões em jogo.
Há, de acordo com Adams, dois tipos de desafios filosóficos gerados pela
teologia eucarística. Inicialmente, um que diz respeito a problemas de “múltipla
localização” (p. 87). Com efeito, o que quer que ocorra com o pão durante a
consagração, seus acidentes extensionais permanecem enquanto tais. Ora, não
ocupariam eles então o lugar que pudesse ser ocupado pelas dimensões de
qualquer outro corpo e, portanto, também do corpo de Cristo? No mesmo
sentido, como poderia o mesmo corpo, o de Cristo, estar ao mesmo tempo no
céu, como quer a Cristologia, e em um ou nos muito altares em que se celebra a
missa? Além disso, há um “problema de tamanho” (ibid.), pois só se pode dizer
que um certo corpo ocupa um certo espaço se suas dimensões são compatíveis
com as daquele espaço. Ora, como seria possível, como quer o sacramento, que
o verdadeiro corpo de Cristo se encontre num espaço que tem as dimensões de
um mero pão?
Transubstanciação é o termo-chave da solução oferecida por Tomás de
Aquino aos problemas esboçados. Não podendo lançar mão de qualquer tipo de
locomoção para explicar como vem a ser verdadeiro que o corpo de Cristo esteja
no altar, Tomás pensa que um esquema de substituição pode lhe ser útil: “algo x
pode vir a estar onde x não estava antes, se algo de outro, y, que aí estava, é
convertido em x” (p. 88). Deve se tratar aqui, porém, de uma espécie de mudança
sobre a qual Aristóteles não suspeitava, uma mudança, a saber, “na qual nada
daquilo que foi convertido (...) persiste naquilo no qual foi convertido” (ibid.). Tal
tipo de mudança não parece inimaginável para Tomás, para quem nada tinham de
estranho as noções de criação ou aniquilação. Com efeito, no mesmo âmbito de
ações tipicamente associadas ao exercício da onipotência divina poderia se
encontrar ainda outra: transubstanciação, a conversão do todo de uma coisa,
matéria e forma, no todo de outra (p. 89s.). Mas como é possível à solução
através da ideia de transubstanciação oferecer respostas plausíveis aos problemas
de múltipla localização e de tamanho acima apontados? Pela ideia de
transubstanciação, toda a matéria e toda a forma do pão são convertidas na
12 ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist
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matéria e forma do corpo de Cristo. O cerne da solução de Tomás consiste em
negar, porém, que as dimensões quantitativas do corpo de Cristo se façam
presentes pelo sacramento. E isso se justifica porque os acidentes do pão ali
permanecem, o que indica que a transubstanciação não os atinge. E
permanecendo os acidentes do pão, não é possível a presença, ao mesmo tempo
e no mesmo espaço, dos acidentes do corpo. Este, numa palavra, considera
Tomás, está relacionado ao espaço do altar apenas através de dimensões
quantitativas que lhe são alheias, que são próprias, de fato, ao pão. E como um
corpo está onde estão suas dimensões quantitativas, o corpo de Cristo
permanece, de fato, onde estava já antes do sacramento, o que oferece solução
às questões esboçadas acima. Apenas a substância do corpo de Cristo, e não sua
quantidade dimensional, se fazem presentes “pela força do sacramento” (p. 96).
Mas um problema surge: Tomás, com efeito, insiste que aquilo que está
realmente unido ao corpo – a Divindade de Cristo, Sua alma, Seus acidentes etc.
– se faz presente “por concomitância real e natural” (ibid.). Ora, não
reaparecerão aqui, cedo ou tarde, os “problemas de tamanho” aos quais já se fez
referência? Para Tomás isso não só não é o caso, mas, antes, tal concomitância é
benéfica. Ela significaria, de fato, uma espécie de poder ordenador e estruturador
das dimensões quantitativas reais frente às do pão: “a concomitância natural dos
acidentes corporais de Cristo preserva a ordem de Suas partes corporais entre
si e, assim, evita que o corpo de Cristo sob o sacramento seja um amontoado
desestruturado” (p. 97).
Que problemas restariam para as gerações posteriores após a
aparentemente tão convincente e bem estruturada doutrina de Tomás de
Aquino? O mais interessantes dos problemas a que se dedica Egídio de Roma é
chamado por Adams de “problema da ausência de constituinte comum” (p. 99).
Ele surge ao se perceber que na teoria da transubstanciação proposta por Tomás
parece faltar justamente o que tornava em geral inteligível a teoria aristotélica da
geração, qual seja, um constituinte comum entre o termo-a-partir-do-qual e o
termo-para-o-qual do processo. Egídio se empenha por suprir tal falta, tentando,
obviamente, não fazer da transubstanciação uma mera geração, nem um ato de
13 ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist
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criação ex nihilo. Sua tentativa, numa palavra, consiste em tornar plausível que,
em certo sentido, a matéria cumpra o papel daquele constituinte comum
requerido. Evidentemente não pode aqui se tratar da matéria no mesmo sentido
em que esta é tradicionalmente considerada o elemento comum que une os
extremos de um processo de geração. Entra pois em cena a ideia de que Deus
pode agir diretamente sobre a matéria na medida em que esta é uma pura
quididade, aquém, portanto, de sua quantificação e individualização. Assim, na
transubstanciação, Deus converte, de modo completo, uma substância em outra
agindo sobre a matéria como quididade, um constituinte metafísico de toda
substância material (p. 100s.). Talvez o desejo de Egídio de salvar a noção
tomasiana de transubstanciação tenha, porém, feito desta e da geração não mais
que duas espécies distintas de um mesmo processo pelo qual a se dá a
transformação do que determina a matéria como simples quididade: num por
assim dizer primeiro nível teríamos a possibilidade de transubstanciação, quando
apenas aquela matéria é mantida; num segundo nível, por sua vez, teríamos os
processos naturais de geração, nos quais o que se mantém é já o complexo
formado por matéria como quididade, quantificação e individualização. Parece
porém que, como preço, Egídio já proporciona aqui à matéria bem mais do que
apenas aquela “pura potencialidade” (p.101), aquele “meio entre ser e nada”
(ibid.), que Tomás de Aquino gostaria de aceitar como característica de tal
constituinte do mundo sensível.
O próximo autor abordado por Adams é João Duns Scotus. Distanciando-
se do enfoque tomasiano, a preocupação do Doutor Sutil com respeito ao tema
se concentra na possibilidade de se explicar a presença real do corpo de Cristo.
Assim, a questão se joga em torno sobretudo às categorias aristotélicas de
quantidade e de lugar, bem como a problemas de localização espacial. Nesse
contexto, Scotus, através de um raciocínio baseado na distinção entre posição
quantitativa e posição categorial, defende que apenas a primeira é essencial a
corpos quantificados e que, no caso do corpo de Cristo, apenas esta aí se
encontraria. Assim, desprovido de posição categorial, tal corpo coexistiria de forma
absoluta com o seu lugar, estaria aí realmente presente, mas não teria relações
14 ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist
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externas que o tornassem coextensivo com tal lugar (p. 118s.). Mas tal posição não
está isenta de problemas, pois dela decorrem dificuldades relativas a algumas de
suas consequências, principalmente às que dizem respeito à rejeição de duas
teses, aparentemente sensatas, da física aristotélica: a) “dois corpos não podem
ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo” e b) “um único corpo não poder
ocupar ou mover-se em direção a dois lugares diferentes ao mesmo tempo” (p.
120). A condução em meio à complexa teia de argumentos adiantados pro e
contra a posição escotista é aqui, como em geral, levada a cabo com extrema
clareza por Adams: trata-se de um esforço por mostrar a não-contraditoriedade
do que decorre de proposições teologicamente aceitas sobre a eucaristia, afinal,
“como todas as teorias filosóficas e teológicas, formulações teológicas devem
visar à inteligibilidade” (p. 146). O que se sobressai, porém, e o que Adams não
explora, é o caráter artificial de tais manobras, pelas quais os campos do
naturalmente esperável e do filosoficamente aceitável – o primeiro baseado nas
leis da natureza e o segundo no princípio de não-contradição – se cindem cada
vez mais radicalmente, de modo que o que se tem, por fim das contas, são
concepções para as quais não-contradição e intuitividade parecem estar numa
relação inversa uma para com a outra. Embora Adams seja extremamente
precisa em reconstruir o passo-a-passo desse processo, parece-nos que lhe falta
uma maior clareza do significado de tais mudanças desde o ponto de vista de
uma história filosófica de média ou mesmo de longa duração e que inserisse tal
cisão entre lógica e natureza num quadro mais amplo de desdobramentos
históricos do pensar.
No sétimo capítulo Adams chega a Ockham, que, mais radicalmente que
Scotus, concentra a discussão em pauta em torno à categoria aristotélica da
quantidade, buscando justificar que não é requerido que uma substância material
possua uma quantidade que lhe seja inerente e que funcione como fundamento
de sua presença atual com relação a um certo lugar (p. 156). De fato, o alvo de
Ockham se encontra sobretudo na intepretação que Tomás de Aquino provê da
categoria da quantidade, que busca ver aí uma espécie de camada – Adams fala
nesse contexto de uma “película” – entre as substâncias materiais e suas
15 ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist
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qualidades. Postular um tal intermediário, considera Ockham, é simplesmente
desnecessário; e mais: “a hipótese da quantidade como uma coisa realmente
distinta da substância e da qualidade é fisicamente problemática e
metafisicamente incoerente” (p. 158). Em lugar da reificação entra em cena a
sensibilidade linguística, que exige que se tome quantidade como um termo
conotativo, cujos únicos correlatos reais seriam substâncias e qualidades (ibid.).
O interessante nesse contexto é notar como a desreificação da categoria da
quantidade operada por Ockham abre-lhe as portas para a construção de teorias
coerentes – ainda que, de novo, naturalmente surpreendentes – em prol de
situações exigidas por teses teológicas, quais sejam, que um corpo possa estar
em vários lugares ao mesmo tempo (Cristo ao mesmo tempo nos céus e nos
altares) e que dois corpos possam ocupar simultaneamente o mesmo espaço
(Cristo atravessando portas). Filosoficamente, o capítulo se encerra com uma
apresentação, que infelizmente não chega a adquirir grande profundidade, da
recepção crítica por parte de Ockham do princípio “tudo o que está em
movimento é movido por outro” (p. 167) e da necessidade de contato, isto é, de
toque de quantidades, entre os polos envolvidos na produção de uma ação
corporal.
Tendo tratado nos capítulo 4-7 de questões decorrentes de teses sobre a
existência e a presença do corpo de Cristo nos altares, Adams se dedica, nos
capítulos 8-9, a problemas relativos ao que se passa com o pão ou, mais
precisamente, com seus acidentes, ao longo do processo de consagração. Ora, se
tais acidentes permanecem à vista após o milagre, mas é distinta a substância na
qual eles inerem, então parece que eles continuam a existir, malgrado a
aniquilação da substância que os sustenta. Tal conclusão, porém, é tida por
muitos como inaceitável tendo-se em vista elementos-chave da teoria aristotélica
da relação entre substâncias e acidentes como, por exemplo, teses sobre
definição e individuação de acidentes. Tendo por base esse problema, Adams
passa em revista no capítulo 8 as estratégias de Tomás de Aquino e de Egídio de
Roma para superá-lo, ou seja, para justificar a aceitabilidade da tese de que, de
fato, permanecem na eucaristia acidentes sem que permaneçam as suas
16 ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist
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substâncias. Tais estratégias têm basicamente a ver com o desenvolvimento de
um sofisticada teoria sobre as relações dos acidentes entre si. Tal teoria busca,
em primeiro lugar, sublinhar a prioridade da quantidade sobre a qualidade, donde
decorre uma dependência desta com relação àquela, e, em seguida, a não-
contraditoriedade de dimensões quantitativas existirem atualmente per se. De
fato, se tal é possível, é fácil ver como, em tornando a quantidade algo per se,
Deus é capaz de manter as qualidades (e demais acidentes) que naquela
quantidade se ancoram. Evidentemente, o nó górdio se encontra aqui na tese da
auto-individuação do acidente da quantidade (p. 181s., em Tomás, e p. 188s., em
Egídio) e, parece-nos, Adams não chega nesse ponto a oferecer uma
apresentação suficientemente detalhada do problema, ainda que o leitor
interessado venha a encontrar, sem dúvida, uma discussão preliminar de bom
nível do tema, bem como as indicações básica de fontes a levar em consideração.
No capítulo seguinte, o nono da obra, Adams trata de questões que, desde
o prisma de uma teoria da eucaristia, se veem relacionadas à noção de acidente. E
nesse contexto a questão mais urgente é a seguinte: é verdade que, se algo é um
acidente, necessariamente se segue acerca deste algo que ele sempre existe em
um sujeito de inerência? Evidentemente, a vulgata do aristotelismo, baseada em
argumentos que giram em torno às noções de prioridade natural e definicional,
responderia positivamente à questão. Cabe a Adams explorar o modo como
Scotus e Ockham buscam escapar aos limites que se auto-impõe o aristotelismo.
Em Scotus, tal estratégia tem fundamentalmente a ver com a introdução da
distinção, com relação a um certo ente, entre ser atualmente assim ou assado e
ter a aptidão ou tendência ou disposição de ser assim ou assado. Substâncias e
acidente apenas têm a aptidão de, por exemplo, ser respectivamente em si e em
outro; mas essa aptidão natural pode perfeitamente ser obstruída, talvez, em
certas circunstâncias específicas, pela própria natureza, e certamente, em todos
os casos, por Deus. Nada impede que num dado instante itens de tais tipos não
exibam atualmente características que eles teriam a aptidão de exibir (p. 197-206).
Na sequência do capítulo, ainda tratando da posição de Scotus, sempre em
contraste com a de Tomás de Aquino, mas também lançando mão de
17 ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist
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comparações com Egídio de Roma e Godofredo de Fontaines, Adams discute a
preservação e o alcance do poder causal dos acidentes, que na eucaristia se
separam de sua substância natural de inerência, bem como questões relativas a
diferentes tipos de mudança, como, por exemplo, rarefação e condensação, que
podem ocorrem com o pão e o vinho. A posição de Ockham com relação a tais
problemas é apresentada em poucas páginas, ao fim do capítulo. Tal opção
poderia parecer pouco recomendável, não fosse a por Adams bem indicada
concordância, aqui, das posições de Ockham com as de seu confrade escocês.
Os três últimos capítulos da obra se põem sobre a explícita égide de uma
“moral da estória” (p. 227). O décimo capítulo marca um ponto alto da obra, no
qual Adams lida, de maneira ao mesmo tempo panorâmica e extremamente
competente, com várias situações teóricas caras às reflexões levadas a cabo nos
séculos XIII e XIV nas quais o aristotelismo se via desafiado a dar conta de
certos fenômenos naquele contexto aceitos como verdadeiros e, nesse sentido,
merecedores de explanação. Visualizamos, nesse passo da obra, o quão incisivos,
pois justificados de forma argumentativamente sólida, são problemas colocados
em torno, por exemplo, à compreensão aristotélica da relação entre o primeiro
princípio e o mundo, em torno à noção de causa eficiente, em torno aos limites
da noção de necessidade metafísica, acerca da determinação do grau de
regularidade associado às noções de disposições e aptidões e acerca de
problemas diretamente relacionados à ideia de consagração eucarística e aos
poderes causais sui generis a esse fenômeno associados. É sobre esses problemas
mais específicos que Adams se dedica no capítulo, começando por questões
ligadas à extensão de corpos, sua relação com o acidente da quantidade e sua
localização no espaço, o que diz também respeito à relação entre matéria e
individuação, tema que separa, de um lado, Tomás de Aquino e Egídio de Roma
e, de outro, João Duns Scotus e Guilherme de Ockham. Mantendo a linha de
uma espécie de balanço retrospectivo de questões anteriormente abordadas, o
capítulo continua, rediscutindo as diferentes descrições que, de Tomás de
Aquino a Guilherme de Ockham, se fizeram do fenômeno da presença real do
corpo (e sangue) de Cristo no altar e, por fim, recapitulando o tratamento, que
18 ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist
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em geral pode-se qualificar como “reificante”, dado aos acidentes por parte dos
autores em questão.
Como anteriormente adiantado, os dois capítulos finais da obra têm um
acento pronunciadamente teológico. Trata-se, inicialmente, de esclarecer
diversas dúvidas que pairam sobre o ato de ingestão que tem lugar após a
consagração eucarística. Em seguida, no centro das discussões é colocada a
relação entre os sacramento e seus limites temporais: a morte do indivíduo e o
fim do mundo, limites que revelam o quão forte são as ideias de adequação e de
eficácia dos sacramentos não simplesmente à natureza humana como tal mas,
sobretudo, ao estado atual dessa natureza – uma posição da qual,
interessantemente, Adams se permite distanciar, propondo uma reescritura, que
se quer socialmente rica, das ações post mortem e na qual o sentido dos
sacramentos seria mantido. (p. 290ss.).
Sem dúvida a obra de Adams é atraente tanto ao filósofo quanto ao
teólogo. Trata-se de um texto preciso, no qual uma série de aspectos
relacionados à recepção acadêmica do tema da eucaristia são abordados.
Destacam-se nesse contexto os capítulos tematicamente mais ambiciosos da
obra: o capítulo de abertura, que dá ao leitor novato uma excelente visão do
pano de fundo geral das discussões, servindo também, fique claro, ao leitor
experiente como um excelente aide-memoire, e o décimo capítulo, no qual se
traça um balanço geral do núcleo duro do trabalho, os capítulos 4-9. Quanto a
esses capítulos, por sua vez, a leitura é gratificante, mas, por vezes, árdua, devido
sobretudo à concatenação de inúmeros argumentos.
Sem desmerecer o trabalho de Adams, que certamente merece lugar de
referência para os interessados tanto nos debates filosóficos em torno à
eucaristia quanto, em geral, nos desafios propostos ao aristotelismo nos séculos
XIII e XIV, vale salientar certas faltas em termos de bibliografia: não é
mencionada a obra de A. Funkenstein Theology and the Scientific Imagination from
the Middle Ages to the Seventeenth Century, de 1986, que certamente seria de
interesse discutir em paralelo a certas reconstruções e análises propostas (p. ex.
p. 230 n. 1). E mais grave: não são levados em conta trabalhos especificamente
19 ADAMS, M. M. Some Later Medieval Theories of the Eucharist
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ligados ao objeto da investigação de Adams e largamente reconhecidos pela
comunidade científica. E aqui tenho especificamente em mente os numerosos
trabalhos de I. Rosier-Catach sobre a consagração eucarística, que têm seu
ponto alto na obra La parole efficace: signe, rituel, sacré, de 2004, bem como a
volumosa monografia de P. Bakker sobre o tema, intitulada La raison et le miracle.
Les doctrines eucharistiques (c. 1250 – c. 1400). Contribution à l’étude des rapports
entre philosophie et théologie, de 1999. No que diz respeito a interlocução, pois,
Adams não parece pretender sair do mundo anglo-saxão. E, infelizmente, ela não
tem sido a única a assumir tal postura.
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HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de
Gandavo adscripta. Ediderunt H. A. G. Braakhuis, G. Etzkorn, G. A.
Wilson, cum introductione H. A. G. Braakhuis. Leuven: Leuven
University Press, 2010, lxv + 85 p. (Henrici de Gandavo Opera omnia, vol. 37).
Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________
1.
Desde as dissertações surgidas no século XIX sobre a vida e o pensamento de
Henrique de Gand (a. 1240-1293)1, as quais culminaram enfim no fundamental
artigo de Franz Ehrle2, o maior avanço nos estudos sobre o Doutor Solene foi,
sem dúvida, o início dos trabalhos de edição crítica de suas obras. Tendo
possuído por grande promotor inicial o já falecido medievalista Raymond Macken
– responsável pelo estabelecimento da Bibliotheca Manuscripta Henrici de
Gandavo3, um projeto que ele começou a desenvolver já em sua tese de
doutorado pela Katholieke Universiteit Leuven4 –, os Opera omnia de Henrique
de Gand continuam hoje a ser publicados sob a tutela de Gordon A. Wilson,
como parte de um projeto partilhado pelo De Wulf-Mansion Centre e pela
University of North Carolina.
Uma das características mais interessantes desse projeto de edição é a
decisão dos editores de publicarem mesmo aqueles textos cuja atribuição a
* Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES. 1 Dentre estas, a mais importante é HUET, F. Recherches historiques et critiques sur la vie, les ouvrages et la doctrine de Henri de Gand surnommé le Docteur Solennel. Gand/Paris: Librairie Générale de Leroux/Paulin, 1838. 2 EHRLE, F. “Beiträge zu den Biographien berühmter Scholastiker – 1. Zur Biographie Heinrichs von Gent”. Archiv für Litteratur- und Kirchengeschichte des Mittelalters 1 (1885), pp. 365-401. 3 Bibliotheca Manuscripta Henrici de Gandavo. Vol. I. Introduction. Catalogue A-P. Vol: II. Catalogue Q-Z. Répertoire. Ed. R. Macken. Leuven: Leuven University Press, 1979 (Henrici de Gandavo Opera omnia, vols. 1-2). 4 MACKEN, R. Hendrik van Gent’s “Quodlibet I”. Tekstkritische uitgave. Weerlegging van een mogelijke eeuwigheid der wereld. 2 delen. Proefschrift tot het behalen van de graad van Doctor in de Wijsbegeerte. Leuven: Katholieke Universiteit Leuven, 1968.
21 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-‐8765 Vol. 5 (2013)
Henrique de Gand não seja considerada, pelos próprios editores, como
definitiva. Além de essa decisão possibilitar o acesso a uma grande gama de
textos de interesse que, por vezes, estão disponíveis em um único manuscrito
(donde, em parte, a dificuldade de atribuição), dela também se derivaram
interessantes discussões. Um exemplo recente disso encontra-se no volume
denominado Quaestiones variae Henrico de Gandavo adscriptae, editadas por Girard
J. Etzkorn e publicadas em 20095. Foram reunidas nesse volume dez questões
disputadas presentes no ms. Roma, Bibl. Angelica 750, no qual são claramente
atribuídas a Henrique de Gand6. O interessante com respeito a esse volume é o
fato de que algumas dessas mesmas questões aparecem na edição das Quaestiones
disputatae de Ricardo de Mediavilla (c. 1250 – 1300) produzida por Alain Boureau
e cuja publicação foi iniciada em 2012. Com efeito, aqui surgem seis daquelas
quaestiones variae que compunham o volume atribuído a Henrique de Gand e
editado por Etzkorn – tal fato, certamente, não escapa a Boureau que chama a
atenção para a dificuldade7. Ou seja, seis das dez questões atribuídas de maneira
não definitiva a Henrique de Gand por Etzkorn terminaram por ser atribuídas,
por Boureau, de modo mais apropriado a Ricardo de Mediavilla. A meu ver, isso
aponta para a importância dessa relevante decisão de publicar mesmo aqueles
textos sem autoria definitiva, mas somente Henrico de Gandavo adscripti.
Ora, esse é precisamente o caso do texto que resenharemos, a saber, a
edição dos Syncategoremata atribuídos a Henrique de Gand e produzida por H.
A. G. Braakhuis, G. Etzkorn e G. A. Wilson como parte dos Opera omnia do
Doutor Solene. O volume é composto de duas partes igualmente relevantes para
a sua consideração. Em primeiro lugar, ele possui uma longa introdução de
caráter tanto editorial como histórico-filosófico produzida por H. A. G.
Braakhuis; em segundo, há nele o próprio texto criticamente editado e atribuído
– não sem problemas – ao gandavense. A seguir, no item 2, trataremos
principalmente da tentativa de atribuição do tratado a Henrique de Gand, 5 HENRICUS DE GANDAVO (adscriptae). Quaestiones variae Henrico de Gandavo adscriptae. Ed. G. J. Etzkorn. Leuven: Leuven University Press, 2008. (Henrici de Gandavo Opera omnia, vol. 38). 6 Op. cit., p. xii. 7 RICHARD DE MEDIAVILLA. Questions disputées. Tome 1. Ed. A. Boureau. Paris: Les Belles Lettres, 2012, pp. xxvi-xxvii.
22 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
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enquanto que no item 3 abordaremos o próprio texto dos Syncategoremata. Esta
última etapa será seguida por algumas considerações sobre a relevância do texto
editado.
2.
A introdução de Braakhuis é bem completa e, diferentemente de muitas
introduções a edições críticas, aborda não somente fatores editoriais do volume,
mas também elementos doutrinários contidos no texto editado. Estes últimos
são abordados, em grande parte, devido à tentativa de estabelecimento – ou,
pelo menos, de maior determinação – da autoria dos Syncategoremata, a qual tem
mais por base a filosofia desenvolvida pelo autor do texto editado do que
propriamente a atribuição do texto a Henrique no ms. Bruges, Staatbibl. 510, haja
vista ser esta a sua única lição sobrevivente. Sendo assim, a introdução do
volume é dividida nas seguintes etapas: nas partes I e II há o estudo da tradição
manuscrita (pp. ix-xii)8; na parte III a busca não-definitiva de certificação da
atribuição do texto a Henrique de Gand e a tentativa de datação da obra (pp. xii-
xxxiv); na parte IV um estudo do contexto de produção e da própria forma do
tratado (pp. xxxiv-xlvii); na parte V observações sobre as decisões editoriais (pp.
xlvii-xlix). Essas cinco partes são seguidas por uma bibliografia dos manuscritos e
estudos utilizados na introdução (pp. li-lviii), uma tentativa de divisão temática – a
descrição do argumentum – dos Syncategoremata em forma de índice (p. lxi) e,
por fim, a exposição dos símbolos e abreviações necessários para a compreensão
das inserções editoriais no próprio texto e do aparato crítico (pp. lxii-lxiv).
Diversos aspectos dessas etapas da introdução nos interessarão neste item da
resenha; às considerações que disserem respeito à composição e à economia
interna do texto, porém, voltaremos no item 3.
Na introdução, Braakhuis não se estende quanto à descrição do manuscrito
utilizado para a edição – o já citado Bruges, Staatbibl. 510 –, uma vez que ele já
8 Sempre que me referir a uma passagem do livro resenhado, as páginas correspondentes serão citadas entre parênteses no corpo do texto. No entanto, quando forem citadas passagens do volume traduzidas no corpo do texto, a página em que surge a passagem será dada em nota, junto ao original. Nesses últimos casos, as traduções são de minha autoria.
23 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-‐8765 Vol. 5 (2013)
foi objeto de descrições reiteradas (p. ix, nota 1). Com efeito, ele não faz mais
do que retomar alguns dos mais interessantes dados relativos à história do
manuscrito já narrados por estudiosos anteriores. Dentre esses dados, será
importante o fato de que o conjunto de textos contidos no manuscrito (datados
do período entre os séculos XIII e XIV) tenha sido encadernado em um único
volume na própria região de Bruges e nela tenha desde então se mantido (p. ix).
Sendo assim, o resultado mais interessante que surge do estudo da
tradição manuscrita é não tanto a consideração do manuscrito utilizado para a
edição, mas a exclusão da possibilidade de que se pudesse encontrar em Erfurt,
Wissenschaftliche Allgemeinbibliothek der Stadt, ms. Amploniana F 135 um
segundo testemunho dos Syncategoremata atribuídos a Henrique de Gand. Como
Braakhuis habilmente propõe, a sugestão de que houvesse tal segundo
testemunho para o texto se origina de uma confusão de longa data, sendo o
texto contido neste último manuscrito, de fato, uma redação ainda não editada
da Summa de sophismatibus et distinctionibus de Rogério Bacon (pp. x-xii). Ou seja,
ao fim desse curto estudo da tradição manuscrita, o resultado mais relevante é,
claramente, a delimitação da edição crítica dos Syncategoremata a um único
testemunho, a saber, aquele contido em Bruges, Staatbibl. 510.
Isso coloca imediatamente em questão a autoria do texto editado, pois,
embora (como já mencionado) esse único testemunho do texto o atribua a
Henrique de Gand (cf. p. ix), não há nenhuma outra base manuscrita para tal
atribuição. Dessa forma, não resta senão buscar demais indícios que apoiem a
sugestão manuscrita de autoria. O primeiro deles – e, provavelmente, o menos
convincente – é o fato de que a única lição sobrevivente do texto está em Bruges
e, como vimos, parece ter sido aí inserida no volume completo do manuscrito.
Ora, tendo sido Henrique arquidiácono de Bruges é esperado que houvesse
nessa região um bom conhecimento de sua obra, o que torna improvável que se
lhe erroneamente atribuísse aí um texto (p. xii). Além disso, já houve quem
imputasse a autoria de uma Logica a Henrique e, com efeito, “o começo dos
Syncategoremata indica que uma discussão sobre as propriedades dos termos
24 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
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categoremáticos já precedeu o texto disponível”9. Assim, é bem possível que o
tratado sobrevivente dos Syncategoremata formasse, junto à discussão sobre
termos categoremáticos, uma Logica. Melhor ainda, seria possível no século XIII,
segundo Braakhuis, denominar ‘Logica’ um tratado que versasse unicamente
sobre os syncategoremata (p. xiii). Enfim, tanto a região de produção do
manuscrito completo como a tradicional enumeração das obras de Henrique de
Gand parecem apontar para a atribuição dos Syncategoremata ao Doutor Solene.
Ainda assim, é principalmente na discussão do conteúdo do tratado que se
buscará estribar tal imputação de autoria – mesmo que, ao cabo, esta não seja
dada por definitiva.
Pois bem, há diversas temáticas filosóficas tratadas nos Syncategoremata que
parecem apontar para a autoria do gandavense. Duas delas são relacionadas à
conhecida distinção entre esse essentiae e esse existentiae, tão associada à filosofia
de Henrique de Gand10. Embora esse par não surja claramente nos
Syncategoremata (onde aparece somente a expressão esse essentiae), é possível
encontrar no tratado referências a doutrinas que apontam para as discussões
filosóficas que resultarão, mais tarde, no claro estabelecimento daquele par de
termos (pp. xiii-xxv). Uma primeira temática (pp. xiv-xvii) é a distinção, proposta
no tratado, entre a disposição – ou determinação (determination), como
Braakhuis prefere traduzir o latim dispositio – de um termo ‘pela razão do
suposto’ (ratione suppositi ou suppositorum) e a disposição dos termos ‘pela razão
do significado’ (ratione significati). Do par ratione suppositi e ratione significati,
Braakhuis busca extrair a consideração de uma mesma coisa (res) a partir do par
“concrete individual – essence / essential nature” (p. xvi) que, nos trabalhos
teológicos de Henrique, se resolve na consideração do ente sob ‘ser de
9 “First of all, tradition ascribes a Logica to Henry. The beginning of the Syncategoremata indicates that a discussion of the properties of categorematic terms had once preceded the available text” (pp. xii-xiii). 10 A melhor introdução às noções de esse essentiae e esse existentiae fornecida pelo próprio Henrique de Gand encontra-se em Quodlibet I, q. 9 (ed. Macken, pp. 47-62). Como exemplo de um texto que aborda esse tema com a abrangência e profundidade devidas, podemos apontar: PORRO, P. “Possibilità ed esse essentiae in Enrico di Gand”. In: VANHAMEL, W. (ed.). Henry of Ghent. Proceedings of the international colloquium on the occasion of the 700th anniversary of his death (1293). Leuven: Leuven University Press, 1996, pp. 211-53.
25 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
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existência’ e sob ‘ser de essência’, respectivamente. Uma segunda temática (pp.
xvii-xxiv) é a distinção de uma dupla ‘necessidade absoluta’ (necessitas absoluta):
aquela que diz respeito a todas as partes do tempo e outra concernente
somente a um tempo preciso – esta última é dita ‘necessidade segundo o tempo’
(necessitas secundum tempus). Ora, também desta distinção Braakhuis deriva o par
‘esse essentiae’ e ‘esse actuale’ que, no fim das contas, não é mais do que aquele
outro par – ‘esse essentiae’ e ‘esse existentiae’ – que surgirá nas obras teológicas
do Doutor Solene. Por fim, se busca mostrar que há elementos relevantes
ligados à doutrina da significação de Henrique (pp. xxiv-xxv)11 e às discussões
sobre a predicação dos atributos divinos desenvolvidas em Suma de questões
ordinárias, arts. 74-5 (pp. xxv-xxxiii) – principalmente àquela concernente às
dictiones exclusivae e dictiones exceptivae – que relacionam a obra teológica do
Doutor Solene aos Syncategoremata.
Dito isso, assim são sumarizados os resultados dessa tentativa de
estabelecimento da autoria com base no conteúdo do tratado: “parece que,
vistas em conjunto, essas semelhanças podem, pelo menos, ser interpretadas
como evidências circunstanciais em apoio à atribuição a Henrique de Gand dos
Syncategoremata que são encontrados no manuscrito de Bruges”12. Ainda assim,
Braakhuis reluta em tomar essa atribuição da autoria a Henrique como uma base
para a datação do manuscrito, dando-lhe por esteio antes a comparação com
outros tratados de lógica do século XIII, como o Tractatus ou os
Syncategoreumata de Pedro de Espanha, as Questiones super libros prime philosophie
Aristotelis de Rogério Bacon ou a Logica de Lamberto de Lagny. Toda essa
complexa rede de relações aponta o começo da década de 1260 como a 11 Vale notar que Braakhuis, quanto a este tema, remete acertadamente a ROSIER-CATACH, I. "Henri de Gand, le De Dialectica d’Augustin, et l’imposition des noms divins". Documenti e studi sulla tradizione filosofica medievale 6 (1995), pp. 145-253 como fonte para o estudo da doutrina da significação de Henrique de Gand. De fato, a autora tem sido a principal intérprete da noção de significação no Doutor Solene, tendo dedicado também os seguintes trabalhos ao assunto: “Henri de Gand, le ‘De dialectica’ d’Augustin et la sémantique des noms divins”. Annuaire de l’École pratique des hautes études (Section des sciences religieuses) 104 (1995), pp. 409-15; e “Henri de Gand, le ‘De dialectica’ d’Augustin et la sémantique des noms divins (2)”. Annuaire de l’École pratique des hautes études (Section des sciences religieuses) 105 (1996), pp. 381-8. 12 “Taking everything together, it appears that, viewed in combination, these agreements can be at least interpreted as circumstantial evidence supporting the attribution to Henry of Ghent of the Syncategoremata that is found in the Bruges manuscript” (p. xxxiii).
26 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
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provável data para a produção dos Syncategoremata como ele nos foi legado em
Bruges, Staatbibl. 510. Somente após essa datação por comparação a outras
obras, Braakhuis se sente na posição de localizar os Syncategoremata no todo da
obra de Henrique de Gand. Como fica claro, sendo-lhe atribuída sua autoria, eles
terão sido escritos em Paris, no seu período de permanência aí por volta de
1265, sendo ele certamente mestre de artes em 1267. Ou seja, como já era
patente nas primeiras comparações propostas por Braakhuis entre os
Syncategoremata e as obras teológicas do Doutor Solene, estas últimas serão
certamente mais tardias do que aqueles. Dessa maneira, caso aceitemos a
atribuição do tratado a Henrique, estaremos em posição de nele buscar os
germens de muitas das doutrinas desenvolvidas de maneira mais madura na Suma
ou nos Quodlibeta. E, dentre estas, se deverá contar, sem dúvida, a fundamental
distinção entre esse essentiae e esse existentiae.
Feitas essas observações, Braakhuis se volta, em seguida, para o próprio
conteúdo dos Syncategoretama. Trataremos dessas considerações, porém, um
pouco mais adiante, quando formos falar do próprio texto editado (no item 3).
Sendo assim, concentremo-nos antes em alguns fatores editoriais de importância
apontados ainda na introdução (pp. xlvii-xlix).
Um primeiro elemento de interesse – e de especial repercussão para o
trabalho editorial – é o fato de que, ao que parece, o copista responsável por
essa única lição sobrevivente dos Syncategoremata era um profissional e,
portanto, não era especializado no assunto sobre o qual versa o tratado. Sendo
assim, “[h]á palavras espalhadas por todo o texto que não se encaixam nos seus
contextos. Consequentemente, elas são incorretas e podem, na maior parte, ser
prontamente explicadas pela assunção de que o copista interpretou algumas
abreviações que ocorrem no exemplar de maneiras que não cabem às passagens
concernentes”13. Tão fáceis quanto sejam as correções desses aparentes desvios
13 “There are words spread throughout the text that do not fit into their contexts. They are consequently incorrect and can, for the most part, be readily explained by assuming that the scribe interpreted some abbreviations occurring in the exemplar in manners that do not suit the passages concerned” (p. xlvii).
27 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
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(e outros não mais complexos) indicados por Braakhuis, ainda assim é fácil notar
o quão complicado se torna o trabalho de edição na presença de uma única lição
do texto editado. De fato, não há quaisquer bases manuscritas para as correções
e elas dependem, tão somente, de conjecturas propostas pelo editor. É bem
verdade que há maneiras de sanar tais dificuldades. Os editores do texto em
questão, por exemplo, buscaram comparar certas passagens mais complexas com
trechos equivalentes do Tractatus ou dos Syncategoreumata de Pedro de Espanha
(p. xlviii). Ainda assim, isso não se aproxima da vantagem de se possuir à mão
diversos testemunhos de um mesmo texto que se possam cotejar. Enfim, o fato
de haver uma única lição dos Syncategoremata resulta em dificuldades não
somente para a determinação da autoria do texto, mas também para o
estabelecimento editorial do texto a ser lido.
Feitas essas observações, passemos à consideração da composição e do
conteúdo do tratado. Agora teremos a oportunidade de voltar àquilo que
Braakhuis tinha a dizer sobre esses temas.
3.
Havendo notado que os Syncategoremata editados são um dos seis únicos
tratados que nos restaram de toda a Idade Média exclusivamente voltados para o
estudo dos termos sincategoremáticos, o principal objetivo de Braakhuis ao
estudar a composição e o conteúdo do tratado é destacar as relações entretidas
entre esse texto atribuído, não sem dificuldades, a Henrique de Gand e aquelas
cinco demais obras de mesmo gênero a que ainda temos acesso (pp. xxxiv-xlvii).
Certamente, não será meu objetivo acompanhar de perto esse estudo, o que
fugiria ao escopo da presente resenha. Mas será interessante ressaltar alguns dos
elementos desse estudo introdutório.
Um primeiro fato a ser sublinhado é o recurso de Braakhuis à fundamental
obra de L. M. de Rijk para o estabelecimento de uma descrição geral da lógica
medieval que nos permita nela localizar o estudo dos termos sincategoremáticos:
“como L. M. de Rijk demonstrou no seu monumental estudo pioneiro sobre a
logica modernorum, o ponto crucial dessa ‘lógica contemporânea’ é ‘a abordagem
28 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
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proposicional ou contextual’ que ela adota”14. Ora, raciocina Braakhuis, nesse
ambiente adquire suma relevância o estudo das ‘propriedades dos termos’
(proprietates terminorum) – antes de tudo os categoremáticos, mas também os
sincategoremáticos. Donde a possibilidade – quiçá, a necessidade – da produção
de tratados voltados exclusivamente para estes últimos. Outro resultado
importante do recurso ao estudo de De Rijk sobre a lógica medieval é a
lembrança de que ela se desenvolveu, em grande medida, a partir da
consideração de casos paradigmáticos de falácias (p. xxxv)15. E, como veremos,
estas últimas são de grande relevância para o desenrolar do próprio tratado
editado no volume. Assim, acredito que a utilização da Logica modernorum de De
Rijk seja um grande acerto no que diz respeito à descrição da ambiência do
tratado no período de sua composição.
Por outro lado, não me parece tão bem sucedida a tentativa, por parte de
Braakhuis, de se utilizar da distinção entre uma ‘tradição continental’ e uma
‘tradição inglesa’ para a interpretação de certos aspectos da doutrina
apresentada no tratado. A dificuldade gerada pela aplicação dessa contemporânea
(e, mesmo hoje, conflituosa) distinção à lógica medieval fica particularmente clara
nas pp. xxxix-xl. Com efeito, segundo Braakhuis, os tratados sobre
sincategoremas ditos de ‘tradição inglesa’ incluem a consideração dos signa
quantitatis, que ele traduz como ‘distributive signs’ (p. xxxix). Já nos tratados ditos
de ‘tradição continental’ não se inclui a consideração desses signa quantitatis no
estudo dos sincategoremas. Pois bem, o problema é que o tratado atribuído a
Henrique de Gand deve ser considerado de ‘tradição continental’ (mesmo
porque Braakhuis parece identificar ‘tradição continental’ e ‘origem continental’)
e, ainda assim, ele inclui a consideração dos signa quantitatis como termos
14 “As L. M. de Rijk has demonstrated in his monumental pioneer study of the logica modernorum, the crucial point of this ‘contemporary logic’ is ‘the propositional or contextual approach’ that it adopts” (p. xxxiv). Braakhuis, em nota a essa passagem, remete a DE RIJK, L. M. Logica modernorum. A contribution to the History of Early Terminist Logic. Vol. II, p. 1: The Origin and Early Development of the Theory of Supposition. Assen: Van Gorcum, 1967, pp. 113-7 e 597. 15 Como o próprio Braakhuis aponta, De Rijk defende a tese de que a consideração das falácias é fundamental para o desenvolvimento da logica modernorum em Logica modernorum. A contribution to the History of Early Terminist Logic. Vol. I: On the Twelfth Century Theories of Fallacy. Assen: Van Gorcum, 1962.
29 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
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sincategoremáticos. Agora, se levarmos em consideração que só há seis tratados
sobre sincategoremas, sendo quatro de origem continental e dois de origem
inglesa (pp. xxxvi-xxxvii), temos um quadro no qual um quarto dos tratados de
origem continental possui elementos da chamada ‘tradição inglesa’. Braakhuis
parece ter tantas dificuldades para explicar essa situação por meio da distinção
entre essas duas ‘tradições’ que, ao tentar expor a problemática posição dos
Syncategoremata atribuídos a Henrique em meio a ambas, ele começa dizendo
que o fato desse tratado considerar os signa quantitatis como sincategoremas
“não significa necessariamente [does not have to mean] que ele foi claramente
influenciado pela tradição inglesa ou que a discussão dos signa como parte dos
syncategoremata não deva ser vista [should not be regarded] como um
característica distintiva da abordagem inglesa”16. Em contraposição, logo ao fim
da mesma página ele afirma que o autor do texto estava “provavelmente sob
influência de textos de origem inglesa”17. Ora, em face de tamanha complexidade,
talvez fosse mais proveitoso simplesmente abandonar a tentativa de impor à
lógica do século XIII a distinção entre as chamadas ‘tradição inglesa’ e ‘tradição
continental’, em favor da consideração de cada texto por si mesmo,
comparando-o aos outros não a partir de sua possível inserção em uma dessas
pretensas ‘tradições’, mas em virtude de seu conteúdo.
Feitas essas observações sobre alguns dos elementos propostos por
Braakhuis para a compreensão do contexto de produção do tratado, podemos
nos voltar para o texto propriamente dito.
O texto dos Syncategoremata editado se estende por 70 páginas do volume
(pp. 3-73), possuindo nas laterais a marcação da mudança de coluna do
manuscrito de Bruges (representado pelo símbolo B), bem como uma
numeração contínua das linhas do texto de acordo com a edição. De maneira
condizente ao que foi exposto acima, o aparato crítico aponta, em geral,
16 “This does not have to mean that it was clearly influenced by the English tradition or that the discussion of the signa as part of the syncategoremata should not be regarded as a distinctive feature of the English approach” (p. xxxix). 17 “[It would appear that the author of this treatise noted the inconsistency of dealing with the signa separately from the syncategoremata,] possibly under the influence of texts of English origin” (p. xxxix).
30 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
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características da lição contida naquele único manuscrito ou mostra em que
medida houve interferências mais significativas dos editores no estabelecimento
do texto. Além disso, os editores apresentam ainda um aparato de citações que
remete não somente para as fontes antigas e do início da Idade Média, mas
também propõe possíveis remissões a textos cronologicamente mais próximos e
com os quais nossos Syncategoremata poderiam estar dialogando. Esses recursos
são complementados pelo índice dos “Works cited by Henry (?)” (pp. 77-8), que
nos permite melhor acesso às informações contidas no aparato de citações.
Como já foi destacado acima, o tratado se inicia pela remissão a uma
provável parte anterior, na qual se discutiam os termos categoremáticos: “postas
as propriedades das palavras [dictionum] categoremáticas, cumpre ver a seguir as
propriedades das palavras [dictionum] sincategoremáticas”18 – ela, no entanto,
está perdida para nós. Esse início, porém, ao mesmo tempo em que remete a
uma obra anterior, também limita claramente o escopo do presente tratado: nele
se falará somente dos termos sincategoremáticos, enquanto os categoremáticos
surgirão aqui somente na medida em que a apresentações daqueles primeiros o
exigir. Essa exigência, entretanto, será um tanto recorrente, dado o fato de que
os sincategoremas não atuam na proposição por si próprios, mas sempre o
fazem ao dispor (disponere) de determinada maneira um termo categoremático a
que ele esteja associado nessa mesma proposição. E aqui está uma primeira
característica importante dos sincategoremas: eles não significam algo na
proposição, mas ‘dispõem’ categoremas (e.g. p. 3) ao ‘fazerem’ (facere) ou
‘exercerem’ (exercere) algo neles (e.g., respectivamente, pp. 4 e 35). Por
exemplo, a conjunção latina si “é dita consecutiva não porque signifique a
consecução, mas porque a consecução é exercida por ela”19. Ou seja, não há
como compreender os sincategoremas sem remissão aos termos
categoremáticos.
Ora, é justamente em vista desse fato que esses Syncategoremata são
18 “Habito de proprietatibus dictionum categorematicarum consequenter videndum est de proprietatibus dictionum syncategorematicarum” (p. 3). 19 “dicitur consecutiva, non quia consecutionem significat, sed quia consecutio per ipsam exercetur” (p. 35).
31 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
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divididos em dois grandes blocos, de acordo com a maneira pela qual cada
sincategorema dispõe o categorema a que se associa. Assim, em primeiro lugar, é
feito o estudo dos sincategoremas que ‘dispõem os termos na razão do suposto’
(pp. 3-13) – ou seja, esses sincategoremas atuam sobre um termo não enquanto
este último é um signo, mas enquanto ele possui sob si vários supostos reais;
esse é o caso de sincategoremas como omnis, nullus ou aliquis etc. Esse estudo se
inicia pela consideração do que é um ‘signo’ (pp. 3-4) – uma vez que esses
sincategoremas podem ser ditos signa – e inclui a exposição dos vários ‘signos
distributivos’ (pp. 4-11), com especial atenção para a palavra infinitum (pp. 11-13).
Finda esta primeira parte, o autor se volta para os sincategoremas que ‘dispõem
os termos na razão do significado’, o que toma a maior parte da obra (pp. 13-
73). Esses sincategoremas são aqueles que exercem algo nos termos não
enquanto estes possuem supostos reais sob si, mas enquanto eles são tomados
por signos – exemplos desses sincategoremas são: non, necessario, an e muitos
mais. Essa segunda etapa da obra se inicia por um estudo ‘sobre a afirmação e a
negação em si’ (pp. 14-24), que contém uma interessante discussão acerca da
composição de proposições (pp. 14-7). A essa etapa se segue a consideração
sobre ‘as dictiones que possuem a virtude da negação’ (pp. 25-73), que inclui a
descrição das dictiones exclusivae (pp. 25-31)20, das dictiones exceptivae (pp. 31-35),
das dictiones consecutivae (pp. 35-40), da dictio ‘nisi’ (pp. 40-3), das dictiones
‘necessario’, ‘contingenter’ (pp. 43-52)21, das dictiones ‘incipit’, ‘desinit’ (pp. 52-8)22,
das coniunctiones disiunctivae (pp. 58-65), da conjunção copulativa et (pp. 65-7), da
dictio ‘nec’ (p. 67), da dictio ‘quanto’ (pp. 67-8), da reduplicatio, isto é, da
“expressão, na oração, da causa da inerência do predicado no sujeito”23 com
expressões do tipo in eo quod (pp. 68-70) e da dictio ‘quin’ (pp. 70-3). Todo esse
20 Nessa passagem há uma rápida – porém, instigante – consideração paralela sobre as noções de ‘verum’, ‘falsum’ e ‘unum’ (pp. 28-9). 21 Há aqui também a ocasião para uma digressão sobre esse essentiae, esse diminutum, esse secundum animam, esse actuale e suppositum actualiter existente in esse (pp. 45-8). Vimos acima o quão importante se mostra essa digressão na tentativa de estabelecimento da autoria do texto. 22 Vale apontar aqui uma curta discussão sobre a distinção entre res permanentes e res succesivae (p. 53). 23 “Est autem reduplicatio expressio causae inhaerentiae praedicati cum subiecto in oratione” (p. 68).
32 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
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conteúdo é esquematicamente exposto por Braakhuis no, já citado, argumentum
(pp. lxi).
É interessante notar que, na maioria desses estudos (principalmente, na
segunda parte, sobre os sincategoremas que ‘dispõem os termos na razão do
significado’), o autor dos Syncategoremata segue um mesmo caminho para a
exposição de cada dictio em consideração. Esse caminho é, nesta ordem,
basicamente: [a] a afirmação de que ela não significa, mas exerce algo no
categorema a que surge associada, [b] a diferenciação das várias maneiras pelas
quais ela pode ser posta na oração, bem como o que ela faz naquele categorema
em cada caso e, por fim, [c] a discussão de uma falácia que coloque em jogo
esses vários usos do sincategorema, justamente por só poder ser resolvida a
partir da diferenciação desses vários casos. Um exemplo bem claro desse trajeto
pode ser visto na curta e exemplar discussão da dictio ‘quanto’ (nas pp. 67-8,
indicadas há pouco). Isso aponta para a capital importância da discussão sobre
sofismas no desenvolvimento da lógica medieval – com efeito, como vimos, isso
já era ressaltado por De Rijk24 e pelo próprio Braakhuis, em sua introdução aos
Syncategoremata.
Dito isso, vemos que o conteúdo do tratado, sendo voltado para a
consideração de sincategoremas, é ainda determinado pela consideração dos
categoremas, aos quais unicamente associados aqueles primeiros podem exercer
sua função na proposição. Daí podemos mais claramente compreender a
importância daquela remissão inicial a um escrito sobre categoremas por parte
do nosso incerto autor.
4.
Resta a questão: seria este último Henrique de Gand? Ainda que os editores do
volume não considerem seus próprios argumentos definitivos, ao fim da leitura
ficamos tentados a enumerar os Syncategoremata entre as obras do Doutor
Solene. Não somente porque isso aumentaria a sua lista de obras filosóficas
(nenhuma das quais, aliás, é de atribuição certa), mas também porque eles seriam
24 Ver nota 15, acima.
33 HENRICUS DE GANDAVO (adscripta). Syncategoremata Henrico de Gandavo adscripta
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um testemunho do início das suas considerações filosóficas, datados em por
volta de dez anos antes dos seus primeiros escritos teológicos. Em outras
palavras, os Syncategoremata permitiriam uma visão da gênese do pensamento de
Henrique – e, o que é mais, por um viés lógico, algo raro, mesmo que de modo
algum ausente, em sua obra. Por outro lado, ainda que não aceitemos tal
atribuição e incluamos o autor dos Syncategoremata na vasta relação de
escritores anônimos que nos foi legada pelo século XIII, a obra não perderá em
importância. Como vimos, ela é uma das seis únicas dedicadas exclusivamente
aos termos sincategoremáticos e dialoga claramente com os principais
interlocutores de sua época, com base nas mais relevantes autoridades no
assunto. Já por isso esses Syncategoremata, cuidadosamente editados nos Opera
omnia de Henrique de Gand e a este último atribuídos tentativamente, devem ser
tidos por uma significativa etapa da discussão – e, mesmo, da formação – da
logica modernorum.
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MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and
Philosophy, Leiden-Boston: Brill, 2012, 247 p.
Pedro Falcão Pricladnitzky* ___________________________________________
Não é incomum encontrarmos manuais de história da filosofia que propõem uma
cisão absoluta entre a filosofia desenvolvida na Idade Média e aquela realizada
tanto no Renascimento como no período moderno. A crença em tal dicotomia
traz consigo a concepção de que tanto os temas tratados como os métodos de
investigação desses períodos históricos são marcadamente diferentes. E essa
versão da história da filosofia moderna, especificamente de suas origens, é
costumeiramente descrita assim: Descartes rompeu com a tradição escolástica
ao introduzir uma teoria mecanicista bastante austera do mundo físico; de
acordo com essa teoria, corpos possuem intrinsecamente apenas propriedades
geométricas. Ele retira com isso do mundo diversas propriedades que antes
eram classificadas de maneira inequívoca como físicas. Algumas das propriedades
que não se enquadravam nessa nova visão de mundo poderiam se tornar
dispensáveis: as potências, naturezas e faculdades tão caras aos escolásticos são
óbvios exemplos.
É uma versão alternativa a essa imagem um tanto ingênua da gênese da
filosofia moderna que encontramos no livro Matter and Form in Early Modern
Science and Philosophy editado e organizado por Gideon Manning. Através da
leitura de seus nove artigos, observamos que o desenvolvimento intelectual
tanto em filosofia como em ciência natural de meados do século XIII até o
pensamento dos filósofos do século XVII é mais adequadamente compreendido
como uma continuidade do que como uma série de saltos sem vínculos uns com
os outros. Afirmar que existe uma continuidade não é, entretanto, afirmar que
não há diferenças no método e nos temas abordados pelos diferentes
* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e bolsista CAPES.
35 MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy
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pensadores nesse período. Há, sem dúvida, diferença entre a compreensão da
natureza da matéria em Tomás de Aquino, Daniel Sennert e Descartes. Contudo,
através do livro editado por Manning, notamos que ela é bem mais sutil do que a
imagem sugerida por alguns manuais e que as rupturas entre os pensadores do
período são graduais.
Ao mesmo tempo em que se aponta para uma continuidade do
pensamento medieval tardio frente ao início da filosofia moderna, encontramos
uma dificuldade em compreender exatamente em que medida se dá a evolução
em direção à modernidade e como classificá-la. Se aceitarmos a ideia de uma
continuidade, nomear os desenvolvimentos de tal período de ‘aristotelismo
escolástico’ parece, à primeira vista, atraente. Contudo, como demonstram
claramente os tópicos investigados ao longo do livro, classificar os pensadores do
Renascimento e consequentemente as suas obras como ‘aristotélicos’ ou
‘escolásticos’ seria novamente incorrer em uma espécie de caricatura e
simplificação do período. Vemos que as vertentes de pensamento que tomam
Aristóteles ou os grandes pensadores medievais como paradigma não são
homogêneas. Filósofos autointitulados aristotélicos, ou ainda escolásticos,
defendem posições antagônicas. Isso é verificado em textos sobre lógica, filosofia
natural, metafísica, ética e teologia. Em muitos casos, conceitos que
aparentemente reúnem filósofos sob uma designação comum são na realidade
motivo de grande debate e controvérsia filosófica. Somente pelo fato de um
pensador particular do século XVI ou XVII em Oxford se definir como
aristotélico ou escolástico, e de outro pensador no mesmo período em Paris
também se descrever da mesma forma, não se segue que eles compartilhem do
mesmo conjunto de pressuposições metodológicas, muito menos que cheguem a
conclusões similares. Apenas o estudo minucioso das obras do período pode
estabelecer alguma semelhança entre determinados autores e, no caso em
questão, se a eles cabe o título de aristotélico escolástico.
Nos artigos do livro encontramos exemplos dessa empreitada. O seu foco
se dá em questões de filosofia natural, especificamente nas diferentes concepções
da natureza da matéria e de suas propriedades, encontradas no período em
36 MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy
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diferentes autores. O primeiro artigo é de Gideon Manning e trata em detalhes
das diversas interpretações das relações dos conceitos de matéria e forma como
coprincípios da natureza das substâncias no século XVII. O termo clássico na
literatura filosófica para se referir a essa composição é hilemorfismo. Contudo,
aponta Manning, ainda que seja uma expressão clássica para se referir à natureza
da substância em um contexto aristotélico, tal termo não foi empregado por
Aristóteles, tendo a sua origem nas discussões científicas e metafísicas no
começo do século XIX. Portanto, tampouco autores do século XVII
empregariam ‘hilemorfismo’. Disto, entretanto, não se segue que as noções de
matéria e forma não foram pauta de discussão filosófica no período. Como
observamos no texto de Manning, um intenso debate foi desenvolvido na
primeira metade do século. Tal debate tinha, em linhas gerais, como ponto
central a discussão da maneira adequada de se compreender a mudança e
abarcava, assim, muitos princípios de ciência natural, como a distinção entre
geração, alteração e corrupção, o caráter teleológico da mudança, o estatuto da
privação, o essencialismo e a possibilidade da matéria existir sem forma ou da
forma existir sem matéria. Ainda que os debates sobre esses tópicos mantenham
uma significação comum entre os conceitos de matéria e forma, e que o seu
emprego possa ser retraçado ao sentido dado a eles por Aristóteles, diferentes
posições a respeito dessas questões culminam em diferentes conclusões acerca
do composto gerado pela integração entre a matéria e a forma, acarretando,
com isso, diferentes concepções acerca da natureza do hilemorfismo nos
filósofos do período. Entre os autores destacados por Manning pelo tratamento
instigante da ideia de ‘hilemorfismo’ encontram-se William Gilbert (1540-1603);
Francis Bacon (1561-1626); Nicolas Hill (1570-1610); Johannes Kepler (1571-
1630); Daniel Sennert (1572-1637); Sébastian Basson (1573-?); William Harvey
(1578-1657); Isaac Beeckman (1588-1637); David van Goorle (1591-1612) e
Pierre Gassendi (1592-1655).
O artigo de Michael Edwards apresenta um aspecto importante para que
compreendamos a alteração de sentido nos conceitos de corpo e alma (ou
matéria e forma) na psicologia do final do século XVI e do início do século XVII.
37 MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy
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Como o Renascimento propiciou um aumento significativo dos estudos de
anatomia em corpos humanos, muitos autores com tendências aristotélicas
foram levados a revisitar algumas concepções fortemente arraigadas. Contudo, o
declínio das explicações que se baseiam nos conceitos de matéria e forma para
fenômenos psicológicos não é tão significativo como já foi suposto. Este é o
ponto de Edwards. Ou seja, ainda que o avanço em anatomia acarretasse
mudanças na maneira em que se compreendia a alma humana, não existiu um
salto de uma concepção estritamente hilemórfica para uma concepção
estritamente mecanicista. Edwards pretende mostrar que o crescente material
sobre a natureza do corpo e do cérebro não tornou, por assim dizer, as
explicações sobre a psicologia mais fisiológicas. Em autores como Jean
Lalemandet e Francisco Suárez, o florescimento de um rico material sobre
anatomia era concomitante com o ceticismo e o questionamento do valor
epistêmico daquela como método de investigação. Antes da quase unânime
aceitação das descobertas anatômicas, se colocou a questão do valor filosófico
da anatomia e de como deveriam ser traçadas as fronteiras entre o que é de
domínio exclusivo da medicina e o que é de domínio exclusivo da filosofia.
Encontramos uma atitude hesitante nos autores do período. Uma oscilação entre
continuidade e reforma, respeito às tradições e reconhecimento da necessidade
de evolução. Edwards indica que, desde a perspectiva metodológica, os autores
reagiram a esse período de crescentes possibilidades, fornecido pelo significativo
ganho de informações, com todo o aparato intelectual e argumentativo
tradicional da escolástica.
Os dois artigos subsequentes giram em torno da figura de Daniel Sennert
(1572-1637). Hiro Hirai pretende destacar a influência de Sennert sobre diversos
aspectos da filosofia moderna e, dessa maneira, mostrar que o pensamento de
Sennert possui uma importância muito maior do que aquela costumeiramente
atribuída a ele. Segundo Hirai, Sennert não só foi um dos pioneiros na defesa do
atomismo na modernidade, como também a sua obra exerce influência marcante
na de Robert Boyle, através de suas pesquisas sobre química corpuscular. Suas
análises acerca de embriologia, por sua vez, são uma influência na monadologia
38 MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy
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de Leibniz. Além disso, sua teoria da alma apresenta uma intersecção entre o
hilemorfismo aristotélico e o atomismo de Demócrito. O que essa diversidade
de desenvolvimentos da obra de Sennert possui como origem comum é uma
preocupação com a relação da matéria com a origem da atividade, da vida. O
texto de Hirai é especificamente dedicado à análise do conceito de ‘geração’ dos
seres vivos em Sennert. É na obra Hypomnemata Physica que encontramos o
tratamento de Sennert para o tópico da geração. A discussão percorre diversos
argumentos onde o filósofo analisa minuciosamente aspectos concernentes à
natureza da alma e suas relações com a matéria. O ponto central da discussão,
entretanto, é a defesa irrestrita da teoria de que as formas (almas) são
multiplicadas e não produzidas. Essa teoria se opõe aos defensores da eductio das
formas, tese segundo a qual todas as formas, inclusive as almas, são extraídas da
potencialidade da matéria. Sennert afirma que nada é gerado de uma maneira
espontânea, mas que tudo é gerado pela própria alma de cada ser. Seres vivos
que parecem ser gerados por um agente externo (como em uma relação de pai
para filho) são na verdade gerados por um princípio interno e unívoco, que é por
Sennert denominado ‘semente’, ‘princípio seminal’ ou ainda ‘alma’. O ato de
produção de almas, este sim, é de responsabilidade única de Deus no momento
da criação do mundo. Após isso, a multiplicação de formas ocorre através desse
princípio seminal presente nas almas e não na matéria.
O segundo texto sobre Sennert, escrito por William Newman, apresenta
os aspectos em que a análise da estrutura dos átomos proposta por Sennert
precede o conceito de afinidade química explicitado por Étienne-François
Geoffroy na influente obra Table de differents rapports de 1718. Essa tabela é
considerada um dos grandes momentos da história da química. Ela é a primeira
apresentação gráfica de elementos químicos ordenados pela sua capacidade de
serem dissolvidos ou dissolverem outros elementos em uma determinada
solução. Isso permitia que fosse possível predizer e formar certas leis sobre a
reação química que determinados elementos teriam quando expostos a
determinados ambientes. Contudo, não podemos afirmar, segundo Newman, que
a obra de Geoffroy tenha introduzido o conceito de ligação química. Seu mérito
39 MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy
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é ter codificado diversos conceitos já estabelecidos em uma forma inovadora que
permitiu o estabelecimento de novas relações. Mas, como pretende mostrar
Newman, já encontramos em Sennert o conceito de ligação que viria ser
empregado por Geoffroy. O conceito de afinidade química surge em Sennert do
seu atomismo. Na sua obra De Consitutione Chymiae, Sennert apresenta uma
justificação de como a introdução do atomismo tem um grande poder explicativo
sobre diversos temas da química e como os elementos químicos podem ser
compreendidos e manipulados de uma maneira estável e previsível. Ao se afirmar
que certos átomos, devido a sua estrutura, tenderiam a uma melhor combinação
com outros determinados tipos de átomos, se pode desenvolver uma teoria
quimicamente relevante acerca das relações e combinações químicas. Sennert
aprofunda a sua teoria acerca dos compostos nas obras De Chymicorum e
Paralipomena, e Newman nos oferece uma apresentação detalhada desse
desenvolvimento de seu pensamento.
Tad Schmaltz apresenta uma versão da doutrina das formas substanciais na
filosofia cartesiana. É bastante peculiar atribuir tal tese a Descartes, pois
geralmente os intérpretes concordam que não há espaço para formas
substanciais no projeto cartesiano. Schmaltz, dessa forma, contribui com uma
alternativa à interpretação tradicional que costuma ser dada para a relação entre
Descartes e as controversas formas substanciais. Poderíamos dizer que a noção
de forma substancial é uma daquelas que sofre uma das maiores críticas dos
pensadores do século XVII. Do ponto de vista propriamente científico temos as
afirmações de Boyle, que considera forma substancial um conceito
incompreensível, fundamentado mais numa preocupação com o sentido das
palavras do que na realidade das coisas. Do ponto de vista metafísico, ou
propriamente filosófico, temos, por exemplo, a carta do próprio Descartes a
Regius, de janeiro de 1642 (AT III, 506):1 “dizer que alguma ação provém de uma
forma substancial, é o mesmo que dizer que algo provém de alguma coisa que
não se compreende, o que nada explica”.
Para defender a tese de que Descartes sustentava, ainda que numa versão
1 A carta é citada pelo próprio Schmaltz.
40 MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy
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bastante transformada, uma causalidade proveniente de formas substanciais,
Schmaltz pretende argumentar da seguinte maneira: em um primeiro momento,
apresenta o tratamento dado por Suárez a essa noção e, então, estabelece os
pontos em que Descartes é influenciado pela abordagem suareziana das formas
substanciais. O centro da argumentação de Schmaltz é chamar a atenção para as
relações entre corpo e alma (mente) em Descartes. A difícil compreensão da
tese da interação entre as duas substâncias realmente distintas pode ganhar uma
nova luz se tomarmos a capacidade da alma de gerar movimentos corpóreos
como uma derivação do papel de forma substancial que a alma tem sobre o
corpo. Contudo, um problema que permanece é que assumir que a alma para
Descartes se comporta como uma forma substancial do corpo pode
comprometer o dualismo (a ideia de que o universo das coisas deve ser
compreendido através de dois domínios independentes de explicação: o imaterial
e o material). Afirmar que Descartes vincula a natureza da alma à de uma forma,
parece introduzir um resquício de hilemorfismo que é incompatível com uma
interpretação forte do dualismo. Mas, sem dúvida, tal hipótese esclarece alguns
pontos obscuros da união substancial.
Roger Ariew é mais um intérprete de Descartes que encontra uma posição
menos radical do filósofo francês no que diz respeito às noções de matéria e
forma. Assim como Schmaltz, afirma que Descartes defendeu em alguma medida
uma estrutura hilemórfica da natureza humana. Contudo, reconhece uma
transição no pensamento cartesiano. Nas obras de juventude que culminariam na
publicação das Meditações, temos a construção e defesa do projeto dualista, onde
Descartes defende uma distinção entre extensão e pensamento onde as duas
noções tendem a se excluir. Tudo que é pensante é não extenso, tudo que é
extenso é não pensante. Em contrapartida, argumenta Ariew, nas obras mais
maduras, que começam a partir das Objeções e Respostas, notamos um dualismo
mitigado. Descartes não recua ao ponto de negar que pensamento e extensão
são duas substâncias distintas. Entretanto, quando analisa a natureza humana, o
composto formado pela união da substância pensante com a substância extensa,
Descartes, por vezes, parece se referir a uma relação intrínseca da alma com o
41 MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy
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corpo, especialmente na medida em que essa relação é responsável pela
individuação do ser humano.2 Uma vez apresentadas as posições do dualismo
mitigado que aceita uma relação análoga à da matéria e forma como o corpo e o
pensamento, Ariew se dedica a analisar as críticas que foram levantadas pelos
contemporâneos de Descartes quanto a sua concepção de individuação. O
problema apontado é o seguinte: como compreender que uma substância deve
se relacionar com outra substância para individuar uma terceira entidade que é
substancial, mas não é substância? As críticas mais pungentes seriam encontradas
em Cordemoy e Leibniz, que retomam ideias vinculadas ao atomismo e
procuram abandonar a abordagem cartesiana.
Com o artigo de Gary Hatfield temos a oportunidade de analisar um
importante aspecto do projeto mecanicista de Descartes: o seu tratamento das
operações dos sentidos. O projeto de Descartes não consistia apenas em
explicar de forma mecanicista fenômenos tomados costumeiramente como
físicos. Ele pretendia que o mecanicismo explicasse também quase todos os
fenômenos pertinentes aos seres vivos. Entres estes estão incluídos digestão,
circulação, nutrição, crescimento, adormecer, despertar, a operação dos
sentidos externos, a imaginação, os apetites e a produção do comportamento
animal. Os únicos fenômenos não abarcados pelo projeto mecanicista de
Descartes seriam as operações do intelecto humano. Concebido deste modo,
notamos que o projeto mecanicista pretende explicar as operações que
anteriormente deveriam ser compreendidas pelas noções de alma vegetativa ou
sensitiva. Consequentemente, excluindo as noções de faculdade e forma
substancial, para Descartes, segundo Hatfield, as explicações das operações vitais
não podem ter sua origem em alguma relação intrínseca entre forma e matéria.
Sustentando sua interpretação em passagens do Tratado do Homem3, vemos que
ele se afasta da interpretação proposta por Schmaltz e Ariew. O objetivo de
Hatfield é justamente mostrar a maneira pela qual o projeto mecanicista de
2 Ariew indica as seguintes passagens para sustentar a sua posição: AT III, 493-503; AT IV, 346; AT VII, 434. 3 Cf. AT XI, 200.
42 MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy
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Descartes procura se afastar das noções de alma vegetativa e sensitiva como
princípios da vida e do movimento nos seres vivos. Para tanto, em um primeiro
momento, ele analisa de forma detida as noções de alma vegetativa e sensitiva na
tradição aristotélica para então, em um segundo momento, retornar para a
posição de Descartes e tentar situá-lo no contexto das mudanças conceituais do
século XVII. A posição de Hatfield é que Descartes rompe irrestritamente com a
tradição no que diz respeito à alma ou forma como princípio da vida e do
movimento. Se na tradição aristotélica e escolástica um corpo só se torna um
corpo humano por possuir uma alma ou forma humana, que opera através do
corpo manifestando faculdades nutritivas, sensitivas e racionais, então Descartes
não pode ser considerado um filósofo hilemorfista. Ao distinguir alma e corpo
como substâncias independentes, onde a alma vegetativa e alguns aspectos da
sensitiva foram designados ao domínio do corpo e os outros fenômenos ao
domínio do intelecto, Descartes possui uma nova concepção da natureza.
Os dois últimos artigos do livro são dedicados à teoria da substância em
Leibniz. O artigo de Justin Smith apresenta alguns importantes aspectos da
substância corpórea e o de Daniel Garber apresenta uma interpretação
hilemorfista da doutrina leibniziana da substância. No texto de Smith,
encontramos como Leibniz reagiu a uma tendência religiosa que buscava algo de
permanente e perene nos corpos que possibilitasse identificar um traço do
criador em todas as criaturas. Em uma nota de 1676, Leibniz afirma: “todo
corpo, seja humano ou de uma besta, plantas e minerais tem alguma nota de
substância (...) tal nota está em um ponto físico (que é o instrumento pelo qual a
alma move o corpo e está localizado em um ponto matemático) e dura para
sempre”4. Notamos que Leibniz acredita que deve haver uma parte especial do
corpo que é imortal.5 Como aponta Smith, essa posição não foi defendida por
Leibniz durante muito tempo. Contudo, o que é abandonado é apenas a ideia de
que existe uma parte sutil do corpo que é indestrutível; a ideia de que deve
4 Cf. A II i 175. 5 Pierre Gassendi também defendeu uma teoria semelhante; segundo ele tal característica era denominada flos substantiae.
43 MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy
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haver algo indestrutível nos corpos permanece. Em outra nota vemos que
Leibniz passa a conceber que o aspecto indestrutível do corpo deve ser
compreendido como o corpo tomado como uma totalidade: “Esta flor (...)
subsiste perpetuamente em todas as mudanças (...). Esta flor da substância está
difusa por todo o corpo” 6. Existe uma característica que dá unidade aos corpos,
aquilo pelo qual nós compreendemos a natureza dos corpos, mesmo através da
mudança, e que deve permanecer eternamente. Esta flor não pode ser
identificada com nenhuma parte específica do corpo, pois essas estão em
perpétua mudança. Segundo Smith, Leibniz aponta o processo fisiológico da
nutrição e digestão dos alimentos como uma marca característica dessa perpétua
mudança nos corpos. Tal processo, por outro lado, também é identificado com a
capacidade de sustentar o corpo; através da alimentação e consequente
incorporação dos alimentos no corpo, os seres vivos são capazes de se manter.
Leibniz, pretende concluir Smith, defende que o processo de nutrição é capaz de
dar conta da substancialidade dos corpos. Como reconhece no estômago o
principal órgão digestivo, tende a tomá-lo como o princípio de manutenção dos
corpos. Leibniz defenderia a curiosa tese, portanto, de que o espírito, o princípio
da vida, por assim dizer, é o estômago.
Por último, temos o texto de Daniel Garber. Leibniz possui uma
preocupação constante em sua carreira com a natureza das coisas corpóreas.
Mesmo antes do desenvolvimento da sua metafísica madura e da teoria das
mônadas, Leibniz já se dedicava ao estudo da natureza da matéria. Garber
acredita que nesse estudo Leibniz sempre defendeu alguma forma de
hilemorfismo. E o objetivo de seu texto é demonstrar tal traço do pensamento
leibniziano. Contudo, ainda que haja um constante hilemorfismo, Leibniz não é
constante no que diz respeito aos aspectos do hilemorfismo por ele assumidos.
A sua teoria a respeito da natureza dos corpos, bem como sobre outros tópicos,
muda bastante durante a sua longa carreira. O ponto de Garber, assim, não é
que haja um único hilemorfismo em Leibniz, mas que nas diversas vezes em que
descreve a natureza da matéria sempre encontramos, em cada uma, um traço
6 A VI iii 478.
44 MANNING, G. (ed.). Matter and Form in Early Modern Science and Philosophy
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hilemorfista. Alguns exemplos analisados por Garber como representantes do
hilemorfismo leibniziano: 1) um ensaio acerca da transubstanciação em 1668,
onde Leibniz afirma que o corpo é uma substância somente porque possui uma
mente que lhe é concomitante7; 2) na sua correspondência com Arnauld, Leibniz
defende um argumento que ficou conhecido como argumento do agregado.8 O
ponto de Leibniz é simples: a realidade de um agregado de indivíduos é derivada
da realidade das suas partes. Um exemplo tradicional de Leibniz é que uma pilha
de pedras só pode ser real se as pedras que a constituem também o forem.
Agora, se assumimos que os corpos são coisas extensas que podem ser
indefinidamente divididos em partes extensas que, por sua vez, também podem
ser indefinidamente divisíveis, ad infinitum, se segue que corpos não possuem
realidade. Para o corpo ser algo real, ele deve possuir alguma unidade e essa
unidade para Leibniz, defende Garber, é a forma substancial.
Podemos dividir o livro Matter and Form in Early Modern Science and
Philosophy em duas grandes partes. Os primeiros quatro artigos são dedicados
quase que exclusivamente a tópicos de filosofia natural e às complexas relações
de autores do Renascimento com a tradição na qual obtiveram a sua formação e
também com a sua influência na Modernidade. Os cinco últimos, por sua vez,
abordam a perspectiva das noções de matéria e forma e procuram examinar em
detalhe como autores tomados tradicionalmente como reformadores, Descartes
e Leibniz, na verdade possuem vínculos muito fortes com os pensadores do
período medieval tardio. A leitura cuidadosa dos textos apresentados nesse
volume editado por Gideon Manning é, sem dúvida, de grande valor para os
historiadores da filosofia.
7 A VI i 509. 8 A II ii 184-5.
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NOVÁK, L./NOVOTNÝ, D. D./SOUSEDÍK, P./SVOBODA, D. (eds.).
Metaphysics: Aristotelian, Scholastic, Analytic, Heusenstamm: Ontos
Verlag, 2012, 284 p.
Marco Simionato* ___________________________________________
The book presents the proceedings of the international conference Metaphysics:
Aristotelian, Scholastic, Analytic (Prague, June 30 – July 3, 2010), and it deals with
several important metaphysical questions that occur – as the title suggests – at
fundamental moments of the history of philosophy, from Plato and Aristotle’s
metaphysics to contemporary analytic metaphysics, by way of the First and
Second Scholasticism. The chapters are divided into six sections: “Categories and
beyond”; “Metaphysical structure”; Substance and accident”; “Existence”;
“Modalities”; “Predication”.
I will briefly discuss the contents of the essays and then I will propose
some comments.
The first essay is “What is an ontological category?” by Peter van Inwagen,
one of the most important contemporary metaphysicians. In this article, the
author analyzes the notion of ‘ontological category’ by means of the notion of
‘natural class’. The latter is strictly linked to the thesis according to which it is
possible to recognize a real division among things, so that “for any class, if its
boundary marks a real division among things, then either that class or its
complement is a natural class – but not necessarily both” (p. 15). After defining a
class as ‘large’ whose membership comprises a significant proportion of the
things that there are and a class as ‘high’ if it is a proper subclass of no natural
class, Van Inwagen states that “a natural class x is a primary ontological category
only in the case that: [i] there are large natural classes; [ii] x is a high natural
* PhD student at Ca’Foscari University of Venice.
46 NOVÁK, L et al. (eds.). Metaphysics: Aristotelian, Scholastic, Analytic
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class” (p. 18). Finally he claims that in general “an ontological category (simpliciter)
is a class that, for some n, is an n-ary ontological category” (p. 19).
In “Scholastic debates about beings of reason and contemporary analytical
metaphysics” Daniel Novotny compares the contemporary debate on
nonexistent objects to the scholastic debate on entia rationis by showing that the
latter cannot be simply reduced to the former, since there are different
backgrounds. I note in particular the following difference, pointed out by the
author, regarding the notion of nonexistent object (p. 34):
- Intentional View: a nonexistent object is a mind-made, intentional being;
- Quasi-Being View: a nonexistent object is explained by means of some
peculiar sort of being that pertains to every object, whether existing or not;
- Ausser-Being View: an object as such stands beyond being and non-being,
even if each object is not exempt from being or non being.
Novotny notes that the scholastics usually accepted the first account,
because “no alternative was seriously entertained by them” (p. 35).
In “What is constituent ontology” Michael Loux considers the distinction
between constituent and relational ontology, a distinction that one can find in the
whole history of philosophy, from Plato and Aristotle on. Briefly, given the
character of familiar particulars, i.e., “the fact that individual material objects,
plants, animals and human beings possess properties, fall under kinds, and enter
into relations” (p. 43), relational ontology states that underived sources of
character exist beyond the world of sense (beyond space-time) and that sensible
particulars have a non-mereological connexion to them (they participate in an
essence); instead constituent ontology affirms that the familiar particulars have
their own forms because they are constituted by the appropriate underived
bearers of characters, i.e. these latter are (immanent) parts of them.
According to Loux, any type of constituent ontology should affirm a sort of
framework principle that he calls constituent essentialism: “if a plurality of
objects, a …n, constitutes a particular x, then […] the resulting whole, x, has
47 NOVÁK, L et al. (eds.). Metaphysics: Aristotelian, Scholastic, Analytic
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necessarily the property of having all and only a …n as constituents” (p. 52).
Then Loux also formulated the linked principle for a constituent ontology, the
so-called principle of constituent identity: “necessarily, for any objects, x and y, if
x and y have all and only the same constituents in precisely the same order, x and
y are identical” (p. 53).
On the bases of these two principles, Loux argues that contemporary
versions of constituent ontology cannot explain some general facts without falling
into serious difficulties, for example, the persistence of familiar particulars
through time or that familiar particulars are concrete individuals.
The essay “Elemental transformation in Aristotle: three dilemmas for the
traditional account”, by Anne Peterson, shows that the traditional account of the
notion of prime matter, that is associated to Aristotle, is not compatible with
“three metaphysical doctrines also often associated to Aristotle: a certain variety
of essentialism, actualism” and a sort of “constituent ontological strategy” (p. 60).
In fact, assuming the traditional account of prime matter as essenceless pure
potentiality that provides a persistent substratum for elemental transformation,
essentialism (i.e. the thesis according to which everything that exists has an
essence), actualism (i.e. the thesis that something must be actual to be at all) and
the above-mentioned variety of constituent ontology (i.e. the thesis that “one
constituent of a whole serves as subject and the other as predicate”, p. 71) imply
some contradictions.
Starting from the general thesis – shared by Aristotle, scholastics and (the
greater part of) analytical philosophers - according to which truth depends on
reality, Ross Inman in “Essential dependence, truthmaking, and mereology: then
and now” presents a general truthmaker principle and a truthmaking relation
such that x is a truthmaker for <p> if and only if x exists and it is necessary that if
x exists, then <p> is true (p. 75). After presenting some arguments by E.J. Lowe,
the author shows that the truthmaking relation should not be considered by
means of a “rigid-existential dependence” (i.e. x rigidly depends on y just in case
48 NOVÁK, L et al. (eds.). Metaphysics: Aristotelian, Scholastic, Analytic
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it is necessary that y exists if x exists), but rather by means of what Lowe names
“essential dependence” (x essentially depends on y just in case there is a function
f such that it is a part of the essence of x that x is f(y) ).
On this basis, Inman explores “the scholastic roots of the notion of
essential dependence as developed in the work of Duns Scotus” (p. 78), and he
claims that “both Scotus and Aquinas, with Aristotle, adopt the fundamental
intuition behind the notion of truthmaking: the dependence of truth on being” (p.
84). Finally the author presents an essentialist account of truthmaking based on
Aquinas’ hylomorphic ontology.
In “Essence and ontology” E.J. Lowe points out some controversial points
of Aristotle’s hylomorphic ontology, and he proposes to reconsider them by
means of another Aristotelian kind of ontology that one can recognize in his
presumed early work, the Categories. Starting from it, Lowe builds up his own
neo-Aristotelian four-category ontology of individual substances, modes, substantial
universal and property universals. Then he argues that such an ontology with a neo-
Aristotelian account of essence (i.e. the essence of an entity is “just what that
entity is, as revealed by its real definition” (p. 108)) provides a metaphysical
foundation for modal truth without appealing to the notion of ‘possible worlds’.
In fact, according to Lowe, the notion of possibility and necessity have to be
explained by means of the notion of ‘essence’ rather than viceversa. In particular,
“a metaphysically necessary truth is a truth which is either an essential truth or
else a truth that obtains in virtue of the essences of two or more distinct things”
(p. 107).
In “An Aristotelian argument against bare particulars”, Lukas Novak starts
from the distinction between de dicto and de re necessity, and by means of the
notion of de re necessity distinguishes essentialism from anti-essentialism. The
former believes in de re necessity, whereas “denial of de re necessity entails anti-
essentialism” (p. 113). But the notion of “bare particulars” would undermine
Aristotelian essentialism, because such a notion is linked to the thesis according
49 NOVÁK, L et al. (eds.). Metaphysics: Aristotelian, Scholastic, Analytic
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to which “all properties (except trivial ones like self-identity, and some others)
belong contingently to their subjects, or in other words, that individuals have no
(non-trivial) essences” (p. 114). Novak provides an argument for showing that
anti-essentialism is untenable. The general premise of his argument is the fact
that there is what Aristotle would call accidental change. The strategy of the
argument is as follows: “once we concede that accidental differences are based
on really distinct particular entities that ‘inform’ the given subjects, we must also
concede that ultimately, some entities must differ by themselves, that is,
essentially” (p. 119).
“The ontology of number: is number an accident?” by Prokop Sousedik and
David Svoboda deals with the question of what a number is. According to the
authors, such a question should be faced by the Aristotelian distinction between
substance and accident, i.e. between ens in se and ens in alio. After analyzing some
fundamental ontological approaches to number, the authors show that the
notion of number as accident of quantity implies unacceptable or contradictory
consequences. However, they also argue that the notion of number as object is
just as unacceptable as the other one. Therefore, they propose a “middle way”,
according to which “from a logical point of view number is an object but from
the ontological point of view it is an entity that depends on linguistic structure
(ens in alio)” (p. 123).
After introducing the distinction between the Doctrine of Divine
Conservation (DDC) and the Doctrine of Existential Inertia (DEI), Edward Feser,
in “Existential inertia”, argues for the traditional Thomistic doctrine of divine
conservations. DDC claims that the created things are constantly preserved into
being by the activity of God, whereas DEI affirms that “the world of contingent
things, once it exists, will tend to continue in existence on its own at least until
something positively acts to destroy it” (pp. 143-144). According to Feser, by
means of Aquinas’ Five ways for God’s existence one can provide arguments for
the truth of DDC.
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In “Aquinas vs Buridan on essence and existence, and the commensurability
of paradigms” Gyula Klima considers Aquinas’ intellectus essentiae “argument for
the real distinction of essence and existence in creatures” (p. 169). According to
Klima, the objections of Anthony Kenny to that argument beg the question,
because Kenny appeals to two notions of existence (existence as Fregean
existential quantifier or – say – existence as Fregean Wirklichkeit) that do not
occur in Aquinas (the first notion) or that are not conceived from the same
premise of Kenny (i.e. Kenny’s assumption that “the distinctness of essence and
existence would have to mean that it is possible to have one without the other”
(p. 172)). Then, the author presents Aquinas’ argument as follows, clearly
showing that it is immune to Kenny’s criticism:
(1) The nature of c is known
(2) The existence of c is not known
(3) Therefore, the nature of c is not the existence of c
Since Buridan objects to Aquinas’ argument exactly in the above-mentioned
form, Klima’s aim is to show that such a debate is based on a different
conception of “how our concepts latch onto things in the world” (p. 169), but
the author opens the possibility of an argument “across paradigmatically different
conceptual frameworks” (p. 169).
In “Potentiality in Scholasticim (potentiae) and the contemporary debate on
‘powers’” Edmund Runggaldier deals with two notions of potentiality that
correspond to two different accounts of modality: the first can be considered as
what is called possible-worlds approach in contemporary analytic metaphysics;
the second “has its basis in everyday life, i.e., in our experience of having certain
capacities and acting accordingly” (p. 185). In fact – linked to such a distinction –
the author points out the scholastic distinction between potentiae objectivae and
potentiae subjectivae. The objective potencies are potentialities as mere
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possibilities, i.e. entities that do not exist in our actual world; instead subjective
potencies are “integral parts of the world we inhabit” (p. 187), since they are
dispositions and powers inherent to a real subject or bearer (see p. 187).
David Peroutka considers the notion of ontological possibility in his essay
“Dispositional necessity and ontological possibility”. He states that the notion of
possibility as logical non-contradiction is insufficient, since there are maximally
consistent ways things could be that do not respect, for example, the laws of
nature. Therefore the author offers an ontological account of possibility:
“something is possible if and only if there are active and passive causal capabilities
enabling its production” (p. 204). Since a disposition – i.e. a property leading
necessarily to an effect – “belongs to the essence of that quality in which it is
based” (p. 206) and since “essential appurtenance is defined as an across-all-
worlds connexion”, Peroutka offers an account of possibility/necessity by means
of possible-worlds approach (p. 205):
- Possibility: x is possible in the world w if and only if there is some
possible world causally accessible from w in which x exists.
- Necessity: x is necessary in the world w if and only if x exists in each
possible world that is causally accessible from w.
“The optimal and the necessary in Leibniz’ mathematical framing of the
compossible” by Mark Faller is an essay on Leibniz’ metaphysics of possibility and
necessity. The fundamental principles in Leibniz’ metaphysics are – as Faller point
out – the Law of non contradiction (“Principle of contradiction”) and the
Principle of sufficient reason: the first “can never be violated under any
circumstances” (p. 224); the second principle “is the determinant cause of all of
nature and all of reason” (p. 224). The author also considers Leibniz’s optimism,
i.e. the thesis according to which “God has chosen the most perfect world, ‘the
simplest in its hypotheses an the richest in phenomena’” (p. 220), and he analyzes
the mathematical grounding of this thesis.
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In “The interpretation(s) of predication”, Uwe Meixner presents several
approaches to the question of the ontological basis of predication (accounts by
Sophists and relativists, Plato, Aristotle, Aquinas, Leibniz, Frege, set-theoretic
theory, minimally Aristotelian view, redundancy theory, identity theory, fact-
referring functional predication theory) by considering primarily the general form
of simple predicative statements: Φ(α1, …, αn), where “the sequence represents
the occurrences of the singular terms in a simple predicative statements […] and
the letter Φ represents the rest of the statement” (p. 230). Plato’s account, for
example, works as follows:
Φ(α) is true – this amounts, ontologically, to this: α is sufficiently similar to
the Φ itself (p. 232)
and Frege’s account is the following:
“Φ(α1, …, αn)” is true – this amounts, ontologically, to the following: the
functional value of the Φ-concept for <α1, …, αn> is the true. (p. 242).
The author shows the problems that undermine each account, but he
endorses the fact-referring functional predication theory, i.e.:
“Φ(α1, …, αn)” is true – this amounts, ontologically, to the following: the
completion of the Φ-universal by <α1, …, αn> is a fact, that is: an obtaining state of
affairs (p.245).
The last essay is “Towards a Thomistic theory of predication”, where
Stanislav Sousedik explains the Thomistic theory of predication that he considers
to be an identity theory of predication, since “it seems that Thomas intended to
say that what we mean by the subject and the predicate of such a sentence refers
to one and the same thing” (p. 247).
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The book is quite fluent (with the exception of some points), and it can be
easily understood by readers that are not very familiar with the most technical
aspects of analytical metaphysics. In some ways it can also be seen as an
introduction to many important metaphysical questions. Moreover, the book
efficaciously contributes to developing profitable connections between different
philosophical traditions, by showing that the fundamental metaphysical questions
continue to persist throughout the history of philosophy and, – above all – that
mutual comparison can be beneficial for scholars belonging to different areas of
research.
Among the many essays of the book, I am going to highlight some of them
– Van Inwagen, Novotny, Inman and Loux’s essays – as pointing out some
suggestions for possible lines of research that could extend the debates. Van
Inwagen’s essay ends by stating that the traditional philosophical question about
the nature of being can be considered as the following one: what does it mean
for a category to be non-empty? But it seems that for the author such a question
belongs to meta-ontology rather than ontology, since “‘ontology proper’ is the
attempt to set out a satisfactory list of ontological categories; everything else in
ontology belongs to meta-ontology” (p. 24). I think that such a question should
be linked to the metaphysical question of emptiness and empty world – a way by
means of which analytic metaphysics considers the traditional question of
nothingness – and therefore I am not sure that in this way it would remain just a
meta-ontological or meta-metaphysical question.
In his essay Novotny presents – among others – the Ausser-Being account
for nonexistent objects, as we have seen. It is interesting that the Italian
philosopher Emanuele Severino strongly argues that such a view about object has
been endorsed – implicitly or explicitly – by all Western philosophers, whereas
he claims that an object is necessarily linked to its being so that it eternally exists
(his conclusions are similar to some eternalist views)1.
1 See for example SEVERINO, E. Destino della necessità, Milan: Adelphi, 1980.
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Considering the notion of truth, Inman states that the dependence of truth
on being is the Aristotle’s fundamental intuition which is inherited by scholastics,
until contemporary analytic philosophers. However, I think there is another
notion of truth that one can find in Aristotle, i.e., the notion of truth linked to
the so-called elenctic refutation as it occurs in the fourth book of Aristotle’s
Metaphysics. Of course, this notion does not exclude the other one; rather the
elenctic refutation works for showing how really things are, but I think it is an
aspect that one should investigate when one considers the notion of truth in
general and above all in Aristotle.
Finally, the suggestion that occurs in Loux’s essay, according to which one
cannot distinguish the relational ontology from the constituent one by means of
the Principle of instantiation, is quite remarkable.