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  • 8/3/2019 Transcend en CIA Do Ego Sartre

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    A TRANSCENDNCIA DO EGO.SUBJETIVIDADE E NARRABILIDADE EM SARTRE

    Franklin Leopoldo e Silva

    USP-SP

    Resumo: O objetivo desse ensaio examinar as possveis relaes entre sub-

    jetividade e narrabilidade em Sartre utilizando como mediao a noo de

    transcendncia do ego. Trata-se de uma tentativa de pr em paralelo o pro-

    cesso de constituio do ego como instncia psquica objetiva e as possibilida-

    des narrativas de elucidao da subjetividade no curso de uma auto-compre-

    enso existencial, associando para tanto as leituras de "A Transcendncia do

    Ego" e "A Nusea". Procurar-se-, nos cruzamentos do texto terico com o

    romance, obter elementos que permitam uma passagem das anlises de psi-

    cologia fenomenolgica para a elucidao da existncia histrica nos moldes

    de uma fenomenologia narrativa.

    Pai a v ras-chave: Conscincia, Reflexo, Existncia, Liberdade.

    Abstract: This essay aims to analyze the possible relationships between

    subjectivity and narration in Sartre using as the notion of the transcendence

    of the ego as a mediation. It is an attempt to paraIlel the formation process

    of the ego as a psychological and objective instance and the narrative

    possibilities of the elucidation of subjectivity throughout an existential self-

    understanding, associating both the works "The Transcendence of the Ego"and "Nausea". What is intended, in cross referencing the theoretical text with

    the novel, is the acquisition of elements which wilI permit the passage from

    the anaIysis of phenomenological psychology to the elucidation of the historical

    existence of the molds of a phenomenological narrative.

    Key Words: Conscience, Reflection, Existence, Liberty.

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    O

    Objetivo desse ensaio examinar as possveis relaes entre

    subjetividade e narrabilidade em Sartre, utilizando como medi-

    ao a noo de transcendncia do Ego. Trata-se de uma ten-

    tativa de por em paralelo o processo de constituio do Ego como

    instncia psquica objetiva e as possibilidades narrativas de elucidao

    da subjetividade no curso de uma auto-compreenso existencial, asso-

    ciando para tanto as leituras de "A Transcendncia do Ego" e "A

    Nusea". Procurar-se- dessa maneira obter elementos que permitam

    uma passagem das anlises de psicologia fenomenolgica para a

    elucidao da existncia histrica nos moldes de uma fenomenologia

    narrativa.

    Tornou-se lugar-comum na filosofia a idia de que o Ego seria a ins-

    tncia que deveria garantir a unidade de todas as representaes do

    sujeito. Em Descartes isso ocorre na medida em que o Eu pl'llSO estabelecido como ncleo essencial e substncia a partir da qual se

    compreende todas as modalidades de pensamento como variaes dessa

    unidade fundamental. Em Kant, o Eu pl'llSO aparece como elementounificador de todas as funes de unidade do entendimento, o que fica

    patente quando nos damos conta de que as unificaes distributivas

    realizadas pelas categorias dependem formalmente do que Kant deno-

    mina apercepo sinttica a priori, que o sujeito transcendental

    unificador de todas as snteses categoriais. isso que assegura que as

    diferentes snteses categoriais remetam todas a um nico sujeito, que

    assim aparece como plo unificador de todo conhecimento. O enunci-

    ado dessa funo da subjetividade transcendental em Kant tornou-se

    clebre: "O Eu pl'llSO deve poder acompanhar todas as minhas repre-sentaes." Assim como as categorias da lgica transcendental, este Eu

    pellso concebido por Kant como formal. O filsofo critica severamente,nos Pam/{~'{/~"!llOSda Ra::/io, a concepo cartesiana, substancial emeta fsica, do Eu, mostrando que no h intuio emprica correspon-dente realidade do Eu, o que invalida o estatuto que Descartes lheatribui. Mesmo assim, a funo unificante do Eu deve, segundo Kant,ser mantida, e para isso o Eu receber o estatuto transcendental: no possvel conhec-lo objetivamente, porque nenhum contedo de afeco

    emprica nos dado que revele esse sujeito. Ele deve, portanto, na linha

    do pensamento crtico, ser afirmado como cOlld/fiio dl' posSlb;/lrlik detodas as representaes. Assim como as categorias so condies de

    possibilidade de snteses, cada uma na esfera de unificao que lhe

    corresponde, o Eu transcendental condio de possibilidade de todae qualquer sntese. Se o conhecimento consiste em operaes de sntese,

    o Eu transcendental o operador mais geral dessas snteses, o que fazcom que toda a unidade da experincia se remeta a ele.

    Sartre comea por enfatizar a necessidade de se atentar para a

    especificidade da construo kantiana da questo: este operador supre-

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    mo de snteses cognitivas um ser ou uma fimo? Para Kant, mani-festamente uma funo, pois atribuir-lhe ser equivaleria a conceb-lometafisicamente, maneira de Descartes, o que contraria os pressupos-

    tos da filosofia crtica. Nesse sentido, a afirmao kantiana de que o Eu condio de possibilidade das snteses equivale renncia de defini-

    10 como ser. Ele polo unificador enquanto engloba e unifica as pos-sibilidades categoriais de sntese, que sem ele ficariam reduzidas a uma

    unidade disfributiva, com a conseqente disperso do sujeito.

    por essa razo que Sartre considera que o neokantismo francs -Brochard, Lachelier, Renouvier, Boutroux, entre outros - foram o

    sentido do pensamento kantiano j ao colocar a questo: o que aconscincia transcendental?, indicando a possibilidade de resposta

    numa direo que consideraria o Eu mais do que o conjunto de condi-es de possibilidade que em Kant configuram um sujeito lgico e noreal. Esse deslizamento talvez possa ser explicado se admitirmos queo neokantismo francs consideraria que o poder de sntese includo nacondio frrmscendenfal remeteria a uma realtdade por trs dessa pos-sibilidade. Por isso diz Sartre que o neokantismo tentou realizar aquiloque a filosofia crtica instituiu somente como posslbz!ldade. "Mas huma tendncia perigosa da filosofia contempornea - cujos traos

    encontraramos no neokantismo, no emprio-criticismo e num

    intelectualismo como o de Brochard - que consiste em realizar ascondies de possibilidade determinadas pela crtica"l. Ou seja, o

    neokantismo tende a pensar como real aquilo que Kant pensou como

    pOSSIbilidade I(Zrsica.Por isso a conscincia transcendental aparecedefinida como ser. Mas deve-se manter a diferena, estabelecida clara-mente por Kant, entre a conscincia transcendental como sendo dedireito (o Eu penso delJepoder acompanhar. ..) e a conscincia empricacomo sendo de fafo. Caso contrrio faramos da conscinciatranscendental uma pr-conscincia emprica, o que significaria igno-

    rar a distino entre o direito e o fafo e red uzir a conscinciatranscendental a uma espcie de inconsciente colado conscincia

    emprica e constituindo-a em cada caso.

    Isso significa que devemos indagar se, de fafo, em cada collscielcia, oEu aparece constituindo-a segundo a norma que parece ser posta peloenunciado kantiano. Sartre v, quanto a essa questo, a seguinte alter-

    nativa: 1) "O Eu que encontramos em nossa conscincia tornou-sepossvel por via da unidade sinttica das nossas representaes; 2) ou o Eu que unifica de fato as representaes entre elas?"2 Para respon-der a essa questo preciso perguntar pela maneira pela qual o Euestpresente na conscincia, ou seja, "resolver o problema da existncia de

    I J. P. SARTRF" La transcendance de l'ego. Paris: Vrin, 1972, 14.1 Ibidem, 16.

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    fato do Eu na conscincia." Com essa remisso a Kant, Sartre introduza questo da constituio do Ego: devemos considerar o ego como um

    "habitante" da conscincia - seja como princpio de unificao, seja

    como presena real, em ambos os casos como estando naconscincia?'

    Segundo Sartre, a Fenomenologia permite repor essa questo de forma

    a escapar do intelectualismo e do substancialismo caractersticos da

    interpretao dos neokantianos. E a Fenomenologia o consegue na

    medida em que Husserl a concebe como um estudo dos fatos de cons-

    cincia: uma cincia que nos faz retomar s prprias coisas pelo pro-

    cedimento de intuio. Pode parecer estranho que Sartre valorize a

    Fenomenologia como cincia das prprias coisas, quando se sabe que

    Husserl a define como cincia eidtica, isto , que proporciona a intui-o de essncias. Sartre esclarece, numa nota, que o que est chamando

    de cincia dos fatos a mesma coisa, nesse caso, daquilo que Husserl

    denomina cincia de essncias. Compreenda-se: Sartre no quer dizer

    que a Fenomenologia seja a cincia dos fatos empricos, nem est, muitomenos, ignorando a diferena entre fatos empricos e essncias. O que

    ele deseja estabelecer que a Fenomenologia preocupa-se com o que

    dado na intuio, seja real ou ideal, e no, como Kant, com as condiesde possibilidade do conhecimento. nesse sentido que, enquanto acrtica kantiana ocupa-se do direlfo, Husserl ocupa-se dos fatos, isto ,do dado imediato, que permite descrever a conscincia e no inventariarsuas possibilidades lgicas a priori. Para o caso da constituio do Ego,

    que o problema em pauta, isso importante porque a Fenomenologia

    estudar "as relaes do Eu conscincia" como "problemas existell-c ia t:'i " " . Percebe-se tambm porque a questo da constituio do Ego

    comeou a ser tratada por via de uma interpretao da apercepo pura

    a priori, ou Eu transcendental kantiano: a Fenomenologia tambm vai

    postular uma conscincia transcendental, anterior ao emprico e cons-

    tituinte da conscincia emprica. O mtodo da reduo jenomenolgicaconsiste em colocar entre parnteses (epoche) todo o mundo da atitudenatural, aquele em que atua um certo realismo espontneo, pelo qual

    depositamos uma confiana pr-crtica nas percepes como signos da

    existncia efetiva das coisas. A conscincia transcendental, precisa-

    mente por ser constituinte da conscincia emprica, pode isolar-se de-

    pois de operar a reduo de todo o mundo natural. Mas, ao cabo dessa

    operao, o que encontramos no o transcendental como conjunto de

    possibilidades lgicas, como em Kant, mas a conscincia como "fato

    absoluto", quer dizer, aquilo que permanece depois que tudo que temos

    habitualmente por "realidade" foi colocado entre parnteses ou fora de

    circuito. Este o sentido de "fato absoluto": um "campo transcendental"

    anterior conscincia no seu sentido fsico ou psico-fsico, que anu-

    lado na sua realidade emprica pela reduo.

    ' 1 J. P. SARTRE, op. cit., 13.4 Ibidem, 17-18.

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    importante salientar que a expresso" campo transcendental", utili-

    zada por Sartre5, indica a separao entre a conscincia e o Eu, o queimplica que a conscincia constituinte e o Eu const!fufdo - por issoo campo transcendental definido como "sem Eu ". Ora, em Husserlisso constitui um problema: nas "Investigaes Lgicas" Husserl havia

    concebido o Eu como uma "produo sinttica e transcendente daconscincia"; nas "ldeas" ele concebe um Eu tn71lSCCndcllta/comoestrutura necessria anterior a cada conscincia. Seria o Eu puro queresiste reduo", que permanece idntico e que no pode ser conside-

    rado no mesmo plano do vivido, mas deve ser visto como dadofcnomcnolgico. Sartre interpreta a posio de Husserl como uma

    duplicao transcendental do Eu psquico, procedimento que ele con-sidera desnecessrio e um retrocesso em relao concepo anterior

    de conscincia transcendental. Conceber uma instncia transcendental

    pessoal, que unifique toda conscincia, envolve o risco de fazer dessa

    instncia uma espcie de inconsciente - uma conscincia inconscien-te, paradoxo derivado do deslizamento para a esfera do psquico do

    sentido de campo transcendental.

    Com efeito, a intencionalidade no apenas dispensa um ncleo

    unificador como deve ser considerada incompatvel com ele. Quando

    dizemos que "toda conscincia conscincia de" alguma coisa, quere-

    mos significar que a conscincia constantemente se transcende, e se h

    alguma unidade das consonC7S que tenho do mundo, esta se encon-trar muito mais do lado do objeto do que do lado da conscincia. Se

    os objetos fossem contc/idos da conscincia (da representao) entoseria necessrio um princpio unificador para dar conta da diversidade

    das operaes e das conscincias operantes. Mas a Fenomenologia

    justamente mostrou que a conscincia no assimila o objeto, pelo cem-tr rio, ela sai de si para ir ao encontro do objeto, ela se transcende para

    encontrar o objeto transcendente. "Contra a filosofia digestiva do

    emprio-criticismo, do neokantismo, contra todo 'psicologismo', Husserl

    no cessa de afirmar que no se pode dissolver as coisas na conscin-

    cia. Vemos uma rvore. Mas a vemos l mesmo no lugar em que se

    encontra: na margem da estrada, no meio da poeira, solitria e vergada

    pelo calor, a vinte lguas da costa mediterrnea. Ela no poderia entrar

    na nossa conscincia, pois no da mesma natureza. (...) A conscincia

    e o mundo so dados ao mesmo tempo: exterior, por essncia, natu-

    , "[... 1 que o campo transcendental torna-se impessoal, ou, se se preferir. 'pr-

    pessoal'. sem Eu . .. " (J. P. SAHTRE, op. citoo "O Eu parece estar l constantemente, mesmo necessariamente 1...] Ele per-tence, antes, a cada vivido que surge e se escoa; seu 'olhar' se lana para o objeto

    'atravs' de todo cogito atual. O raio desse olhar varia em cada cogito, surge de

    novo com um novo cogito e desaparece com ele. Mas o Eu permanece idntico".( E. HUSSERL, Idias, # 57, citado no apndice de "La transcendance de I'ego".

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    reza, o mundo , por essncia, relativo a ela" 7. Este objeto no uni-

    ficado pela conscincia, isto , no h um ncleo que seria o si da

    conscincia de si, constitudo como um Eu, e que atuaria como "supor-

    te" das diversas conscincias. A intencional idade nos faz entender quea conscincia de si na medida em que conscincia de um objeto quea transcende. A conscincia uma interioridade aberta e translcida

    (como um vento, diz Sartre), inteiramente transparente a si prpria.

    Introduzir nela um ncleo, real ou formal, s pode obscurec-Ia. Em

    resumo, a conscincia Ilado, e por isso absolutamente si mesma,

    transparente a si mesma; e ao mesmo tempo tudo, na medida em que

    sempre conscincia de e conscincia de tudo que pudermos captarcomo existente.

    Relativamente a essa caracterizao da conscincia, dificilmente encon-

    traramos formulao mais clara e precisa do que a de Luiz Damon S.

    Moutinho. "Deve-se lembrar que a conscincia liberada [pela l'J{)c!ld

    tornou-se um Ilada. (...) Entretanto, pode-se dizer que esse nada tlldo,

    na medida em que 'conscincia de todos os objetos'. No seno

    porque 'nada', porque absolutamente translcida a si mesma, que

    a conscincia espontaneidade. De fato, ligada sinteticamente a algo,

    pelo princpio de ao e reao, ela envolveria alguma passividade, no

    seria assim espontnea. A conscincia no se liga, pois, seno a si

    mesma, na realizao das snteses das conscincias escoadas; ela nada

    'produz' que no ela mesma. Diante disso, como afirmar que a cons-

    cincia 'constitui' o Ego?'"

    Isso significa que o fluxo das conscincias se unifica a si prprio na

    medida em que a conscincia nele se transcende para alcanar os

    objetos. Mas, ao que parece, a cada vez que ocorre a conscincia de

    alguma coisa, parece ocorrer tambm o EIIdessa conscincia. Quando

    me recordo de ter visto uma paisagem, recordo a paisagem mas posso

    lembrar tambm que 1'11 vi essa paisagem. Como constatou Descartes,

    cada vez que penso, sou 1'11 que penso - da a inseparabilidade,

    julgava Descartes, entre EII e pensamento ou entre EII e conscincia.

    Mas preciso atentar tambm para o carter njkrii'O do cogito, isto ,

    para o fato de que se trata de uma conscincia "de segundo grau". Quer

    dizer: "Este cogito operado por uma conscincia dl!?~,?ldllparti aCilIlSol'IlC1, que toma a conscincia como objeto.( ...) estamos diante de

    uma sntese de duas conscincias das quais uma conscincia da

    outra''''. Destas, a CilIlSCli;IlCl da conscincia chamada reflexionante,

    J. P. SAllTI1E, Uma idia fundamental da fenomenolagia de Husserl: aintencionalidade. Situaes I, Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1968, 29., L. D. MOCTI:\HO, Sartre - Psicologia e Fenamenologia. So Paulo: Brasiliense,1995, 41.

    " . 1 . P. SAlm:, La transcendance de l'ego, 28. ef. tambm p. 26: "IA conscincia I o existente absoluto jiJra de Inexistir".

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    e a outra refletida. Ora, se o cogito obtido como resultado da reflexo

    ento o Eu do "Eu penso" o eu da conscincia refletida e no daconscincia reflexionante. Isto , o Eu afirmado no cogito o Eu queaparece como objeto para a conscincia reflexionante. H portanto razes

    para distinguir pelo menos dois nveis:

    - Conscincia irrefletida, que apenas conscincia do objeto

    transcendente.

    - Conscincia reflexionante, que reflete sobre a conscincia irre-

    fletida.

    Em ambos os casos h conscincia de si. No primeiro, espontnea e

    no-posicional: a conscincia do objeto no se volta sobre si mesma. Nosegundo, conscincia posicional da conscincia refletida.

    Sartre chama a ateno para o fato de que o Eu surge na passagem da

    conscincia irrefletida para a conscincia reflexionante: ele no ante-rior conscincia do objeto, pelo contrrio, posto pela conscincia

    reflexionante maneira de um objeto. A isso chama Sartre de ato tilial.significa que a conscincia pe a conscincia (a conscincia afirma atese da conscincia). a conscincia posicional - aquela que capta o

    Eu penso. O exemplo de Sartre sugestivo. "Estava absorvido h pouco

    na minha leitura. Procuro lembrar as circunstncias de minha leitura,

    minha atitude, as linhas que lia. Assim ressuscito no apenas os de-

    talhes exteriores, mas tambm uma certa espessura de conscincia ir-

    refletida, pois os objetos s foram percebidos por esta conscincia e

    permaneceram relativos a ela. (...) O resultado no deixa dvidas: en-

    quanto lia, havia conscincia do livro, dos heris do romance, mas oEu no habitava essa conscincia, esta era apenas conscincia do objeto

    de conscincia no-posicional de si mesma"lO. No h, pois, Eu noplano da conscincia irrefletida: h o apelo dos objetos, estou no mun-

    do dos objetos e so eles que constituem a unidade que posso encontrar

    na conscincia que deles tenho. No se trata de uma desateno mo-

    mentnea do Eu para consigo mesmo; trata-se da estrutura da consci-

    ncia. Com isso ficaria demonstrado, segundo Sartre, que o Eu exterior conscincia espontnea e captado apenas sempre pela conscincia

    reflexiva. No originrio. O que pode ser dito tambm em outras

    palavras: o Eu um existente e sua realidade transcende a conscincia,tal como a realidade dos objetos, dos quais ele evidentemente se dife-

    rencia. Tenho portanto intuio do Eu, que tambm diferente daintuio dos demais objetos. uma intuio que ocorre na conscincia

    lU J. P. SARTRE, La transcendance de l'ego, 30. Cr. tambm P. PERIJI(;AO,Sartre -

    Existncia e Liberdade, Porto Alegre: LPM, 1995, 59: "Ao aparecer na reflexo,

    o Eu traz todas as caractersticas de mero objeto do nosso conhecimento, algo

    que est como que 'fora de ns', entre as coisas do mundo exterior".

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    refletida, quando captamos o nosso prprio Eu de maneira fugidia -

    com o "rabo do olho", como diz Sartre. certo tambm que o Eusomente aparece num ato reflexivo: o objeto transcendente de um ato

    reflexivoll. Assim, ao contrrio do que pensa o prprio Husserl, no hrazo para o Eu escapar da reduo fenomenolgica. Afinal, contra aprpria ndole da Fenomenologia, Husserl concebe um Eu transcendental

    que no to diferente do de Kant: unifica e sintetiza, permanecendo

    como ncleo invarivel no interior da conscincia.

    A concepo sartriana de um Ego V t' + 11101) tmllscendCllte conscin-

    cia afirma-se tambm por via da crtica presCIlfil matcrial do Eu. Os

    moralistas interpretaram os sentimentos que nutrimos em relao aos

    outras como emanaes do ntimo do Eu, em que a primazia do sujeitodesejante se afirmaria atravs do objeto desejado, que seria apenas uma

    maneira de o sujeito se satisfazer. "Tenho compaixo de Pedra". Na

    instncia da conscincia irrefletida, h apenas Pedro como aquele de

    quem sinto compaixo, e a conscincia disso. portanto o objeto quepolariza o estado de conscincia. Mas, para afirmar a instncia ntima

    do Eu, os moralistas imaginaram um estado desfZl[mdl1c/ interno,

    motivado pelo sofrimento de Pedra. Minha compaixo, eventualmente

    meu auxlio, um modo de fazer cessar esse estado desagradvel: ele

    seria portanto a causa da minha compaixo, como se aquele que se

    compadece de outrem reagisse a um "estmulo" interno negativo. Sendo

    o estado desagradvel interpretado como causa, eu deveria ter consci-

    ('ncia dele anteriormente ao sentimento de compaixo, tido como efeito.

    Portanto a conscincia reflexiva viria primeiro, antes da conscincia

    irrefletida, o que Sartre considera simplesmente absurdo. A conscincia

    irrefletida primeira e autnoma: no depende da conscincia reflexiva

    para existir. O que significa que primeiro h: Pierre de quem se deve ter

    compaixo, ou aquele que deve ser socorrido (conscincia irrefletida);

    depois o Eucomo referente de um certo incmodo diante do sofrimentode Pedro, e que illtcrprda a conscincia espontnea de "Pedra sofre-

    dor" como e/h/o dessa reflexo. "(...) o Eu no deve ser procurado 1I0Sestados de conscincia irrefletidos nem por trs deles. O Eu s aparece

    com o ato reflexivo e como correlato noemtico de uma inteno refle-

    xiva"'2.

    Com efeito, o que que eXiste efetivamente como vivido da conscincia

    irrefletida? Suponhamos a reao subjetiva a que habitualmente deno-

    minamos dl. Manifesta-se pelos vividos de repulsa, isto , conscin-

    " J. P. SARTRE, La transcendance de l'ego, 37. Nesse sentido que Sartre observa

    que o cogito afirma "demais". A intuio do Eu no deveria ser suficiente parasustentar o seu carter fundante e unificador, quando afirmo, por ex.: eu tenhoconscincia dessa cadeira. Mais correto seria dizer: h conscincia dessa cadeira,o verbo indefinido indicando o campo transcendental e no o ncleo pessoal do

    Eu.

    '" Ibidem., 43.

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    cias espontneas que se unificam transcendentalmente num objeto, a

    pessoa que se odeia. A pessoa odivel , pois, o plo transcendente de

    unificao dos vividos de repulsa. A conscincia reflexiva atribui a esta

    unificao um sentido, que passa a ser o sentimento de dio. Este no

    corresponde ao vivido, mas ao sentido que a reflexoatribui pluralidade

    dos vividos. A repulsa, conscinciairrefletida, vivida, portanto anterior

    ao dio. O erro da psicologia entender que o vivido manifestaodesse

    sentimento de dio, que seria sua causa anterior, como se a reflexo

    pudesse anteceder o vivido.O "estado" (de dio) a unidade dos vividos.

    Assim como o "estado" psquico a unidade dos vividos, o Ego a

    sntese dos estados, e por isso tambm uma sntese psquica transcen-

    dente conscincia. "O Ego est para os objetos psquicos assim como

    o mundo est para as coisas"n. Isto , assim como o mundo o

    horizonte em que so percebidas todas as coisas, o Ego o plano

    sinttico das experincias dos estados psquicos. Mas no assim que

    o vemos. Para ns, habitualmente, o Ego o ncleo fundante e irradiador

    dos estados psquicos, situando-se antes deles e como causa de todos

    eles. assim que o constitumos quando o apreendemos reflexivamente.

    Como se o Ego fosse o sujeito e os estados seus predicados. Trata-se de

    uma inverso na gnese temporal do Ego. Por ser sujeito, visto tam-

    bm como substrato, suporte: o Ego seria o suporte de uma totalidade

    sinttica constituda pelos fenmenos psquicos. Isso faz do Ego algo

    no apenas imanente conscincia, mas ainda situado no seu ncleo

    mais ntimo. Ora, a transcendncia do Ego afirma precisamente o con-

    trrio disso. O Ego unifica porque transcende, no porque esteja cons-

    titudo a priori como substrato. Ele s faz sentido se for pensado como

    a totalidade concreta dos fenmenos psquicos. Totalidade meldica -

    e aqui a referncia de Sartre a Bergson explcita, o que no costumaacontecer. "A unidade deriva nesse caso da indissolubilidade absoluta

    dos elementos. (...) O sujeito do predicado ser aqui a totalidade con-

    creta e o predicado ser uma qualidade abstratamente separada da

    totalidade ..."14 No h necessidade de supor algo que suporte a con-

    tinuidade das notas de uma melodia.

    A inverso de que se falou antes deriva de que todos os estados ps-

    quicos so intudos como relacionados ao Ego e, assim, pertencentes a

    ele; o que em parte se justifica porque o Ego a sntese transcendente

    de todos os estados. Mas a relao nos aparece como se o Ego fosse a

    fonte produtora de cada um desses estados, assegurando assim a

    unidade subjacente multiplicidade. Assim a totalidade do psquico

    aparece como produo espontnea do Ego, falsidade que fica patentequando nos damos conta de que o Ego objeto epassi[lo, e no sujeito

    1:\ J. P. SARTRE, La transcendance de l'ego, 58.14 Ibidem. 57.

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    ativo. A causa dessa inverso que ns no apenas apreendemos o Ego

    como tambm o constitumos, e nessa constituio operamos a inver-

    so. A conscincia, verdadeiramente espontnea, projeta sua esponta-

    neidade no Ego, fazendo com que ele nos aparea como criador. Espon-

    taneidade fantasmtica, que faz com que as qualidades dos estados que

    afetam o Eu sejam interpretadas como suas produes.

    Disso decorre uma consequncia importante, que ser desenvolvida por

    Sartre em textos posteriores. Entre o que o Ego realmente e a maneira

    pela qual o representamos abre-se um espao de irracionalidade e de

    falsidade. Irracionalidade, porque o Ego aparece ao mesmo tempo como

    imanente e transcendente; interior e exterior conscincia. Falsidade,

    porque o Ego, tal como o representamos, Illascam a espontaneidade da

    conscincia. Ora, a expresso da subjetividade estar certamente com-

    prometida com esse mascaramento, sobretudo quando o sujeito compre-

    ender suas aes como determinadas por esse ncleo interior, dissimu-

    lando assim a liberdade, ou, como diz Sartre, a "fatalidade da espon-taneidade", que fator de angstia para a conscincia. "Talvez, com

    efeito, a funo essencial do Ego no seja tanto terica e sim prtica.

    Notamos que, de fato, ele no encerra a unidade dos fenmenos, que

    se limita a refletir uma unidade li/m/ enquanto a unidade concreta ereal j foi operada bem antes. Mas talvez sua funo essencial seja

    mascarar para a conscincia sua prpria espontaneidade"I'. Sendo o

    Eu exterior, no estou mais seguro do meu prprio Eu do que da

    egoidade dos outros, pois o meu Ego um ser no mundo, assim como

    o de todos os outros. Mas, seguramente porque a espontaneidade da

    conscincia aparece como originria, isto , a liberdade aparece como

    se fosse uma fatalidade, algo de que no podemos escapar, a conscin-

    cia constitui o Ego e nele se projeta como para escapar de si mesma, da

    prpria espontaneidade que, por no reportar-se a nenhum solo funda-

    dor, angustiante pelo que apresenta de instvel e movedia. H por-

    tanto uma questo tica envolvida na representao do Ego; h uma

    motivao moral para que representemos o Ego como a condio de ns

    mesmos, aquilo a partir do qual somos o que somos. Isso conferiria

    existncia um fundamento estvel ao qual poderamos remeter a ex-

    presso subjetiva, opes e compromissos. E angustiante pensar que o

    que somos se constitui fora de ns, na contingncia das coisas e da

    histria. Como pode o sujeito narrar-se a si mesmo a sua existncia se

    no h qualquer antecipao de algo concatenado e necessrio? Se

    essas formas - esses moldes - de existir j no esto constitudos e

    prontos para que neles se derramem os acontecimentos, afim de que se

    tornem slidos e definitivos? Mas pode ocorrer tambm que, se a

    narratividade for um modo privilegiado de buscar a verdade da exis-

    tncia, talvez ela deva ser reinventada a partir dessas dificuldades, no

  • 8/3/2019 Transcend en CIA Do Ego Sartre

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    para solucion-Ias, mas para fazer delas uma forma mais autntica de

    narrar, em que a expresso da subjetividade estivesse mais diretamente

    atravessada pelas exigncias ticas da representao do humano.

    "Ncssa rcilll'CIl{tlO da cscrita, 11FCllOlllcll%,'{ia (11'11Itra:::I'I' 111111/01/1-

    {tlO lIIaior. HIISSCr/, 1'011Ic/'ito, csclarccc I' /l~,?itilllll dllas oJIL'rtI{iiCS

    prtlticadas por Sartrc: ti SII:'pCIlStlOdll IIdcstlo r i c,U:,)t'lloil; o clllpn~,?o

    do illlagil/lrio a scr(l/-o da (11'rdadc. Sob ccrtas co//d/-{ics, IIS dcscri-

    {(ll'S, lI/f'lII do ('Iilor cst/lico, cOllstit//CI// i//strt//l/l'//Ios df' l'.lp/ortl{tlo

    (lcrttim do rCIII. A ji'C{110 ai dCSClllpCIl/!II 1111Ipapel detcrlllilltl//tl', 1111I11

    (11':::'1111'11iJ/lJI'I/(tlO dI' '(lartil(fICS cidtiols' illlagilltrts 11/iltiOI

    lIIallCirtl dI' c%cllr 1'11IC(I/dl;//oil 11COllt/lt,'{l;//CI do '1//c IId(l/t// I' a

    cOIlStitlli(tlo dos /i'IlIllCIlOS '1//1' S/IIXCIII"li'.

    A constatao mais ampla contida nesta apreciao extremamente

    sugestiva de Saint-Sernin que a Fenomenologia no apenas provocou

    as profundas alteraes no pensamento filosfico que Sartre assinalano artigo sobre a intencionalidade e na TmllSCl'lldllcltl do E,'{o, como

    tambm influiu em outros campos da cultura e, notadamente, na ela-

    borao da narrativa literria. Justifica-se a expresso utilizada por

    Saint-Sernin: reinveno da escrita. No se trata somente da renovao

    de procedimentos literrios, mas da tentativa de encontrar uma expres-

    so que d conta daquilo que o comentador denomina, em outra parte

    do texto, "explorao totalizadora das possibilidades humanas". As-

    sim como para Aristteles a poesia fala do homem de maneira mais

    universal do que a histria, tambm para Sartre a fico pode articular

    de forma mais completa - "totalizadora" - aquilo que a experincia

    tico-histrica fornece em fragmentos e lacunas, que afetam obrigatori-

    amente os fatos, razo pela qual a facticidade em si mesma no poderia

    ser, no mbito da vivncia imediata e no plano de sua elucidao

    analtica, objeto de "explorao totalizadora".

    A considerao terica dos fatos, a partir do modelo cientfico, envol-

    veria os instrumentos da razo analtica, que em princpio poderiam

    esclarecer os modos de interao humana. assim que procede a eco-nomia, por ex., que busca a explicao matemtica das interaes. A

    recusa da razo analtica por parte de Sartre vincula-se ao entendimen-

    to da especificidade das relaes humanas. No se pode falar t7Jh'lIilS

    de relaes, no sentido lgico ou neutro. As relaes humanas so

    qualificadas na medida mesmo em que so vividas pelos homens,

    sujeitos ativos e no simples posies num sistema complexo. portan-

    to a caracterstica de agente (derivada da espontaneidade da conscin-

    cia), atribuda a cada sujeito, que constitui o requisito para a compre-

    11; B. SAINT-SERNIN, Philosophie et Fiction, Temp8 Modernes n. 5:31-533 loct/dec.1990).

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    Pode-se dizer que a relao natural com as coisas constituda por

    duas crenas. De acordo com a primeira. As coisas so ocasies de

    afirmao da minha subjetividade - elas so para m!l e a existncia

    delas se pauta por aquilo que delas fao, pelo modo como as integro

    minha prpria existncia. Mas acredito tambm - segunda crena-

    que esse carter de fenmeno (ser-para-mim) somente a face que as

    coisas voltam para mim; acredito que por trs dessa fenomenalidade ou

    da cumplicidade que parecem ter comigo, elas so algo mais, e que esse

    ser transfenomenal assegura que elas foram no passado e que sero no

    futuro, independente da cumplicidade que mantm com a minha his-

    tria. Por isso chocante descobrir que no h nada por Irs dosfenmenos. No h o ser que atravessa o tempo e que desdobra sua

    necessidade para alm da minha representao. E tambm no ver-

    dade que esse fenmeno presente seja algo constitudo por mim, pela

    minha conscincia. As coisas so como fenmenos em-si. S existe o

    fenmeno e ele no depende de mim para existir, porque participo da

    mesma contingncia. Por isso, quando tento atravessar a aparncia dascoisas e chegar a um outro modo de existncia que no seja a

    fcnomenalidade presente, contingente, acabo entendendo que a nica

    maneira de ver as coisas por trs delas mesmas seria "imaginar o

    nada". Porque, precisamente, "as coisas so inteiramente o que pare-

    cem - e por trs delas no h nada" - ou h o nada. Por que

    Roquentin sente que a presena das coisas o lJlico modo de existncia

    delas? Porque o objeto em torno do qual a sua vida se vinha compondo

    - a nica referncia a que podia remeter a sua prpria existncia -

    havia deixado de existir: desistira de escrever o livro sobre o Marqus

    de Rollebon, personagem que at ento fora objeto de suas pesquisas

    visando a elaborao de uma biografia. Essa desistncia equivalia ao

    desaparecimento ou morte do Marqus, provocada pelo prprio

    Roquentin, pela sua deciso de abandonar o trabalho. A morte repen-tina do Marqus deixava Roquentin precisamente frente a esse !lada

    que ele tinha dificuldade em pensar. Roquentin tinha decretado a morte

    daquele de quem fizera personagem da sua vida - o elo com o mundo,

    com o passado, com tudo aquilo que no era ele. E no tinha como no

    lament-Io, por si e pelo Marqus. "Um momento antes ele ainda estava

    ali, em mim, tranqilo e quente, e, de vez em quando, sentia-o mexer.

    Estava bem vivo, mais vivo para mim do que o Autodidata ou a patroa

    do Rendez-vous dos Ferrovirios (...) Agora j nada restava. (...) A culpa

    era minha: tinha pronunciado as nicas palavras que era preciso calar:

    tinha dito que o passado no existia. E, num repente, sem rudo, o

    senhor de Rollebon tinha voltado ao seu nada"I".

    o que representa essa perda s pode ser medido em relao

    funoque desempenha na vida de Roquentin essa personagem que ele invo-

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    cou, retirou do passado e tornou algum com quem convivia, um outro

    que era preciso decifrar. Um outro, mas algum que no impunha sua

    presena, como o Autodidata; algum que participava da vida deRoquentin, mas no modo da irrealidade. As cartas, referncias, livros,

    documentos do Marqus, tudo testemunhava uma existncia no passa-

    do, que Roquentin tornava irrealmente presente. Mas, num momento de

    enfado, tinha feito com que tudo isso retomasse ao passado: "tinha

    pronunciado as palavras" e o Marqus tinha retomado ao "seu nada".

    Agora a sua ausncia pesa. O que Roquentin pressente que a expul-

    so do Marqus da vida presente vai provocar uma mudana, algo

    como uma revelao desse prprio presente. Com efeito, o episdio

    ocasio para que Roquentin se questione sobre sua prpria identidade.

    "Hoje acordo em frente de um caderno de papel branco. Desapareceram

    os archotes, as festas glaciais, os uniformes, os belos ombros friorentos.

    Em seu lugar, qualquer coisa resta no quarto morno, qualquer coisa que

    no quero ver. O senhor de Rollebon era meu scio; tinha preciso demim para ser e eu tinha preciso dele para no sentir o meu ser. Eu

    fornecia a matria bruta, essa matria de que tinha para dar e vender

    e da qual ignorava o que havia de fazer: a existncia, a minha existn-

    cia. Quanto a ele, a sua contribuio consistia em representar. Punha-

    se frente a mim e tinha-se apoderado da minha vida para me represen-

    tar a dele" 20. Roquentin descobre a associao das existncias entre ele

    e o Marqus: uma associao singular, pois o Marqus precisava de

    Roquentin para ser e este precisava do Marqus para n!io ser, para no

    sentir o seu ser. Por isso Roquentin fornece a Rollebon a 11latria da

    existncia: ele mesmo, Roquentin. E Rollebon representa a existncia,

    tomada de emprstimo a Roquentin. Aqui se revela o sentido de ser o

    livro de Roquentin sobre Rollebon uma gratuidade: Rollebon foi revivido

    ou reinventado porque Roquentin no sabe o que fazer de si mesmo,isto , da sua existncia. Esta parece ser uma matria inerte que ele no

    teria incorporado. Por isso acha que pode" dispor" dela, que a tem para

    "dar e vender". E efetivamente ele a "d" ao Marqus, que passa a

    representar o papel de existir para Roquentin (talvez por Roquentin),

    como uma personagem que ganha autonomia em relao ao criador.

    Rollebon fica sendo ento o plo alienante de Roquentin: a conscincia

    de Roquentin visa o Marqus no como um outro, ou como uma cria-

    o, mas como U11loutro si mesmo, isto , algum em quem se deposita

    a prpria subjetividade, algum em quem se procura descarregar a

    responsabilidade pela prpria existncia. Esse o sentido de Rollebon

    ser "scio" de Roquentin: a existncia torna-se um empreendimento

    comum, de modo que Rollebon pode existir em Roquentin tanto quantoo prprio Roquentin pode existir em si mesmo. Rollebon apoderou-seda existncia de Roquentin para representar, para este, a sua prpria

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    existncia. No se trata de uma sociedade igualitria. Roquentin alie-

    nou muito de si, tanto que, aos poucos, o Marqus invadiu a sua

    existncia, a tal ponto que, a partir de um certo momento, esta j no

    lhe pertence mais. O emprstimo da existncia o despojou e ele tornou-

    se dependente: a sua prpria existncia passou a ser creditada a

    Rollebon. "E eu j no dava porque existia; j no existia em mim, mas

    nele; era para ele que comia, para ele que respirava; o sentido dos meus

    movimentos era-me exterior, estava ali, precisamente em frente a mim

    - nele (...) Eu era apenas um meio de o fazer viver, a minha razo de

    ser era ele: o Marqus me havia libertado de mim. Que hei de fazer

    agora?"21

    As ltimas frases so extremamente significativas. Ele me havia liber- fado de mim. Para isso Roquentin o trouxera do passado, esse "scio"a quem acabara transferindo no s tudo que possua, mas tambm o

    que era: a sua prpria existncia. A impossibilidade de continuar o

    livro figura a impossibilidade de viver essa associao, entregar-se,estranhamente, aos cuidados de um ser recriado, delegar a existncia

    a um inexistente. Por que o fizera? A resposta algo que Roquentin s

    poder ter quando restituir-se a prpria existncia, j que ele, obvia-

    mente, no tem clareza de seu ato de alienao. No consegue perceber

    que a renncia espontaneidade dos atos ainda um ato: trata-se da

    "fatalidade da espontaneidade" de que fala a Tnmscendncia do Ego.Mas a nusea, j intermitente mesmo antes da "Segunda morte do

    Marqus", indicativa de alguma coisa. Ela deriva de uma sensao

    de instabilidade, um desequilbrio que aumenta medida que Roquentin

    vai, malgrado ele mesmo, percebendo que ter de separar-se de Rollebon,

    ter que envi-lo ao nada de onde viera. O Marqus era portanto uma

    espcie de antdoto contra a vertigem, algo que permitia caminhar na

    areia movedia. Nele Roquentin, ao mesmo tempo em que se anulava,

    sentia-se tambm protegido, porque o Marqus no desfrutava de sano

    presente, havia exi'ifldo outrora. Tudo nele estava portanto completado,consolidado. Suas hesitaes, suas ambiguidades, suas mentiras, seus

    projetos, suas angstias, suas expectativas, suas decepes, seus res-

    sentimentos, tudo isso estava achatado numa superfcie delimitada que

    era o passado; a existncia de Rollebon estava isenta de riscos, porque

    j se completara. Quando Roquentin lhe delegou a sua prpria existn-

    cia, queria talvez partilhar essa segurana dojeito, do realizado, do queno est em curso, do j historicamente encerrado. Quando percebeu

    que isso, na verdade, equivalia ao nada, porque o passado equivalia aonada, exorcizou o Marqus e, assim, exorcizou a necessidade. Voltoua si, a si de quem o Marqus o libertara. Libertou-se da necessidade,daquilo que precisava apenas ser explicado como acontecera porque jtfacontecera. E isso o aterrorizou: "Que hei de fazer agora?"

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    Livre do Marqus e de volta a si, h algo que o espreita: ele mesmo. "A

    coisa, que estava espera, deu o alerta, precipitou-se sobre mim, vaza-

    se em mim, estou cheio dela. - No nada, a Coisa sou eu. A existn-

    cia, liberta, despida, refluiu sobre mim. Eu existo" 22.A descoberta da

    existncia ao mesmo tempo a dor de se sentir abandonado por aquilo

    que nos protegia da contingncia. Mas uma vez assim capturados pela

    verdade, sabemos, a partir de ento, que a existncia tem de ser vivida,

    no pode ser objetivada ou transferida. Nada do que sou pode ser

    alheio a esta existncia. Mesmo quando tento projetar objetivamente

    parte do que sou, fisicamente, como tenta Roquentin ao procurar des-

    crever a sua prpria mo como algo fora de si, percebemos logo que esta

    mesma tentativa apenas refora o fato de que essa mo millha mo;os gestos que fao ao descrev-Ia anulam por si mesmos a objetividade

    que desejaria lhe conferir. No possvel deixar de sentir que ela existe

    como eu existo. Uma vez que a existncia se desvelou, ela investiu

    Roquentin, o que significa que ele tornou-se ele mesmo. J no funcionamais o artifcio de viver em outro, de ver-se em outro, de existir por meio

    de outro. Tudo nele parte dele. No pode livrar-se de si mesmo e no

    h ningum que o possa fazer por ele. J ningum desempenhar a

    tarefa que ele havia atribudo ao Marqus de Rollebon.

    Ou seja, Roquentin se constitua falsamente quando vivia para o Mar-

    qus. Aqui se manifesta a ligao entre a narratividade de "A Nusea"

    e a anlise da "Transcendncia do Ego". Vemos a a mesma inverso

    na gnese da subjetividade. Roquentin projetara um Eu fora de si e o

    tentara tomar como causa e origem de si prprio, para ter ali um abrigo

    contra a espontaneidade e a contingncia, no qual repousava o sujeito

    falsamente constitudo. O Marqus o libertara de si, isto , dispensava-

    o de defrontar-se livremente com a contingncia do existente. A "fata-lidade da espontaneidade" o restituiu a si, mas esse processo no se

    completa apenas com o desvelamento da existncia contingente, pois a

    fatalidade da liberdade no simtrica fatalidade da determinao.

    No samos desta para cair naquela. A fatalidade da espontaneidade

    exige que Roquentin assuma a existncia, que ele se constitua para si.

    No pode fugir da imanncia de si a si, mas h algo nesse entremeio

    que depende da liberdade. "(...) Se ao menos eu pudesse parar de

    pensar, j no seria mau. (...) Existo. Penso que existo (...) Se pudesse

    fazer com que no pensasse! Tento, consigo: tenho a impresso de que

    a cabea se me enche de fumaa mas eis que tudo recomea: fumaa ...

    no pensar... no quero pensar penso que no quero pensar. No

    posso pensar que no quero pensar. Porque isso mesmo um pensa-

    mento. Ento, isso nunca mais acaba?"2:1 Essa pardia do cogito tem afuno de mesclar a angstia constatao da existncia. No se trata

    2' J. P. SARTRE, La nause, 143. Traduo, op. cit., 170.2:1 Ibidem, 172.

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    de uma demonstrao; trata-se de que o sujeito se impe a si mesmo por

    via do fato incontornvel da existncia. No se pode contar com a

    tranqilidade objetiva da reflexo que constata a realidade originria

    do pensamento e o Eu como essa instncia cuja propriedade essencial pensar. A reflexo est totalmente penetrada pelos afetos contradit-

    rios de um sujeito que se constitui dolorosamente. "Existo porque pen-

    so... e no posso deixar de pensar. Nesse momento preciso - odioso

    - se existo porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que meextraio do nada a que aspiro: o dio existncia, a repulsa pela exis-

    tncia, so outras tantas maneiras de a cumprir, de mergulhar nela" 24.A narrativa do encontro do sujeito com a sua prpria existncia

    tambm a descrio da dore do horrorde existir. A existncia faz refluirsobre o sujeito a liberdade que ele havia alienado. Da a perplexidade:

    que hei de jazer? A questo se pe a partir de uma constataoirrecusve1: eu existo. E se posso dizer tambm: eu sou, como na

    sinonmia cartesiana, isso significa que esse ser ter de se qualificar a

    cada momento por suas aes. Ter que concretizar esse sou em todoe qualquer gesto. Ter de escolher o que fazer, isto , o que ser, ter dedefrontar-se como sentido das aes e a pluralidade dos possveis. O

    heri de "A Nusea" procurar desesperadamente evitar esse caminho.

    A narrativa se encerra com Roquentin procurando ainda uma maneira

    de transformar a contingncia em necessidade. Mas certamente ele

    aprendeu que todos os seus gestos e todas as suas aes o transcendem

    e nessa transcendncia que ele poder se constituir. Essa a diferena

    entre o eu existo e o eu sou. Eu existo significa que sou, antes de tudo,nada. essa disponibilidade para ser que indica a caracterstica origi-nal do estar-no-mundo. No h uma histria a ser narrada antes de ser

    vivida. Curiosamente, a transcendncia do sujeito a si mesmo implica

    a imanncia da histria existncia, paradoxo provavelmente inscrito

    na inevitabilidade da liberdade.

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