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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros LEE, HS. Traduzir as faces de Deus. In: REGUERA, NMA., and BUSATO, S., orgs. Em torno de Hilda Hilst [online]. São Paulo: Editora UNESP, 2015, pp. 205-228. ISBN 978-85-68334-69-0. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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Traduzir as faces de Deus
Hsiao-Shih Lee
TRADUZIR AS FACES DE DEUS
Hsiao-Shih Lee
Ao abrir o poemário Sobre a tua grande face, de Hilda Hilst,
o leitor encontra-se com um formato peculiar. Passada a página
de dedicatória, Hilst utiliza um kanji – um caractere japonês com
origem na lingua chinesa, 天 (Fig. 1), que significa o céu. Contudo,
para o leitor típico do português, não se supõe que o significado seja
acessível. Nesse caso, o que confronta o leitor é o impacto visual do
caractere: a tinta preta no papel branco, a maneira pela qual as duas
pinceladas horizontais grossas acima contrastam com as duas pin-
celadas mais finas que estendem para baixo. Esse caractere, como
os outros no livro, é escrito na caligrafia pelo artista nipo-brasileiro
Kazuo Wakabayashi, nascido em 1931, que imigrou para o Brasil
em 1961. Ao virar a página, o leitor vê o primeiro poema do livro
na página reversa desse caractere e, na página oposta, o segundo ca-
ractere, 人, com o segundo poema no lado reverso (Fig. 2). O livro
continua assim até o final, depois de dez poemas.
Em termos de composição, o segundo caractere aparece no pri-
meiro caractere. Ainda que essa progressão visual de ver o caractere
seguinte no caractere anterior não seja um padrão consistente na
série do kanji spresentada no livro, o seu uso sugere uma sequên-
cia que é cíclica, como o retorno a 天 antes do poema final. Desse
modo, apesar de não saber o significado dos caracteres, o leitor
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pode discernir alguma informação por meio dos atributos visuais e
sequenciais.
Esse ensaio começa com uma descrição física do livro porque
este é um ponto chave no presente estudo, que enfoca os elementos
formais da colaboração entre Hilst e Wakabayashi. A questão prin-
cipal gira em torno da presença desses kanjis caligráficos, já que os
poemas não contêm nenhuma referência japonesa. Além disso, o
fato de que os significados dos kanjis não são explicitados é ainda
mais curioso devido a seu formato. O formato de se colocar uma pa-
lavra de uma língua no anverso (neste caso, o kanji) e um texto mais
longo em outra língua, no verso (os poemas de Hilst em português)
parece o dos cartões-relâmpago. Embora esse formato possa ter
Figura 1
Figura 2
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sido mais um fruto da coincidência do que um ato intencional, não
obstante merece ser analisado. No caso de se ler as páginas como
se fossem cartões-relâmpagos, o contraste entre os caracteres e os
poemas torna-se ainda mais óbvio, porque Hilst e Wakabayashi
não oferecem traduções dos caracteres. Essa organização também
enfatiza a linguagem que Hilst utiliza nesses poemas, que pode ser
descrita como castiça: entrincheirada nas tradições linguísticas do
português com o seu uso de palavras clássicas – até arcaicas – tanto
como neologismos destros, mostrando uma relação íntima com o
idioma e sua história. Embora, em certo nível, uma análise visual
da série de kanji ajude a iluminar a estrutura dos poemas de Hilst
como uma sequência, o propósito da justaposição dos dois elemen-
tos ainda não fica claro.
Este ensaio busca examinar a relação entre os poemas e a cali-
grafia, estabelecidos firmemente em tradições culturais distintas
e que parecem desvinculados um do outro. Para esse propósito,
é necessário que se faça um resumo da caligrafia japonesa, além
da própria análise dos poemas. O ensaio foca-se nas ressonâncias
inesperadas entre as duas técnicas e explora as questões que surgem
quando se traduzem os kanjis. Seria necessária a tradução nessa
forma de contato cultural, tal como apresenta o livro? De que modo
a leitura é afetada quando se sabe o significado do kanji? Assim,
primeiramente faremos um estudo sobre os poemas sem recor-
rermos aos caracteres e sobre a narrativa que se forma quando são
considerados como uma sequência. Em um segundo momento,
exploraremos o componente caligráfico em profundidade, contex-
tualizando histórica e culturalmente a caligrafia como uma arte, e,
por fim, examinaremos os dois elementos em conjunto.
O “tu” anônimo”/polissêmico
O título Sobre a tua grande face convenientemente fornece um
ponto de partida para a análise do livro, já que propõe a pergunta
sobre a identidade do “tu”. Outra pergunta que emerge a partir do
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título é se o “sobre” deve ser entendido como “acerca de”, ou num
sentido mais físico, “acima de”. Além disso, por que usar “face” em
vez da palavra mais comum, como “cara”? Uma resposta possível à
última pergunta pode ilustrar um dos objetivos principais do livro
de Hilst. É muito provável que Hilst tenha selecionado a palavra
“face” por seu significado simultâneo de “superfície,” enfatizando
a multiplicidade (de ser multifacetado) em vez da singularidade,
que tende a se associar com o rosto humano. Por um lado, a cara é o
meio pelo qual é possível reconhecer alguém, possibilitando ainda a
interpretação do que uma pessoa sente, em vista das indicações não
verbais. Por outro lado, também pode-se observar que a “face” é só
a primeira camada das coisas, já que não se pode saber tudo o que há
para saber ao se ver apenas a face de algo, já que pode ser somente
um aspecto entre muitos outros. Reconhece-se essa instabilidade
em expressões como “a verdade tem muitas faces”. Dada essa va-
riabilidade, não se pode fazer uma conclusão definitiva sobre o “tu”
baseando-se somente no título. A sua unicidade e multiplicidade
simultâneas – as suas muitas faces – é um atributo distintivo. É
razoável, então, sugerir que o texto também acomoda os dois signi-
ficados da palavra “sobre”, tanto no sentido literal (que comunica a
posição física de alguma coisa) como no sentido abstrato (a respeito
de algo). A relação com o “tu” varia em conjunto com as duas in-
terpretações: com a primeira, comunica-se uma proximidade física,
enquanto a segunda pode ser empregada independentemente da
ausência física do sujeito, apresentando, dessa maneira, uma ques-
tão de negociação da distância envolvida.
Quem é, então, esse “tu” que é interpelado? Pela sequência, ele
aparece sob muitos nomes, principalmente como “Sem Nome”,
mas, também, como “DESEJADO”, “Cara Escura”, “Obscuro”,
“Soturno”, e o titular “Grande Face”. O nome “DESEJADO”,
no contexto dos poemas, é identificado como o objeto de desejo
do sujeito lírico. As características contraditórias do destinatário,
em segunda pessoa, manifestam-se no próprio fato de ser referi-
do como “Sem Nome”, embora seja nomeado de várias maneiras.
Essas contradições afirmam-se no primeiro poema do livro:
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Honra-me com teus nadas.
Traduz meu passo
De maneira que eu nunca me perceba.
Confunde estas linhas que te escrevo
Como se um brejeiro escoliasta
Resolvesse
Brincar a morte de seu próprio texto. (Hilst, 1986, s.p.)
Apesar de se sentir honrada com o que ganha, a locutora ganha
apenas “nadas” e, a despeito de obscurecer os seus passos, o “tu”
é “um brejeiro” que, ao mesmo tempo, é um “escoliasta” que
toma suas criações textuais tão levemente a ponto de brincar com a
morte. A relação entre a autora e o texto apresentada por este símile
é central ao poema e será examinada mais adiante neste ensaio. As
contradições encontram-se não só na caracterização do “tu”, mas
também na relação romântica, carregada de paixões sadomasoquis-
tas e pela dinâmica entre presença e ausência, ilusão e realidade,
satisfação e solidão. A segunda metade do poema ilustra a relação
entre a oradora e o destinatário:
E desterro de todas as respostas
Que dariam luz
A meu eterno entendimento cego.
Dá-me tristes joelhos.
Para que eu possa fincá-los num mínimo de terra
E ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro.
Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão.
Tu sabes que amo os animais
Por isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem Nome
Não desejo alívio [...]
Talvez assim me ames... (Hilst, 1986)
A oradora conscientemente renuncia a qualquer resposta ao que
ela reconhece como seu “entendimento cego” e voluntariamente
ajoelha-se como o “mais esquecido prisioneiro”. Como poeta, ela
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ainda deseja mudez na esperança de obter o amor do “tu”. Sua
insistência em permanecer nesse estado é tão forte que ela rejeita a
possibilidade de estar com algum cão, cuja companhia forneceria
alívio desse anelo. A hierarquia de poder entre a locutora e o tu
estabelece-se dessa maneira.
Porém, seria um erro tomar a locutora simplesmente como uma
amante anônima num romance em grande parte não correspondi-
do. Os leitores familiarizados com as outras obras de Hilst reconhe-
cerão alguns dos atributos que sugerem os nomes desse “tu”, como
as qualidades da escuridão, da imensidão, e o enfoque no rosto. Os
que visitaram a Casa do Sol – a propriedade que Hilst construiu em
Campinas, na qual ela morou desde 1966 e que atualmente é sede
do Instituto Hilda Hilst – lembram-se de uma longa placa na pare-
de que documenta os muitos nomes que Hilst usou em suas obras
para referir-se a Deus.
Figura 3. Fotografia por Adam Morris.
Embora “Sem Nome” seja o único que aparece verbatim na
placa, os outros nomes giram intimamente em torno dos atributos
previamente mencionados, levando-nos a concluir que, em Sobre
a tua grande face, tais nomes também se referem ao mesmo Deus.
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Como Hilst declara numa entrevista nos Cadernos de Literatura,
sua educação em um colégio religioso impactou profundamente
sua escritura:
Caderno: E o que ficou dessa formação religiosa?
Hilda Hilst: Ah, ficou toda a minha literatura. A minha literatura
fala basicamente desse inefável, o tempo todo. Mesmo na porno-
grafia, eu insisto nisso. Posso blasfemar muito, mas o meu negócio
é com Deus. (Cadernos, 1999, p.37)
Na mesma entrevista, Hilst afirma, inequivocamente, sua pro-
cura por Deus:
Caderno: Sua obra, no fundo, procura…
Hilda Hilst: Deus.
Caderno: Ele não significava o Outro, o outro ser humano?
Hilda Hilst: Deus é Deus. O tempo inteiro você vai ver isso no meu
trabalho... (Cadernos, 1999, p.37)
O fato de que Deus seja referido por meio de muitos nomes
nas Escrituras também permite um paralelo para se compreender
“Sem Nome” como uma referência ao mesmo Deus, como Stathis
Gourgouris observa em um trecho sobre o mito da Torre de Babel:
[W]hat sustains the regime of the proper name, what justifies the
act of naming in the last instance (at least in what is termed the Wes-
tern tradition), is the most absolute of universal signs, the monadic
order itself, the last instance of the Name (which is, of course, unna-
meable): God (Gourgoris, 2005, p.295).
Sobre a tua grande face compartilha essa busca pelo divino com
as outras obras de Hilst. Busca que ocorre através de uma paixão tu-
multuosa, como já foi mencionado. A freira Janet Ruffing refere-se
à união amorosa com Deus em geral como “love mysticism,” sendo
caracterizado “by feelings of desire, arousal, compassion, and union”
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(Ruffing, 1995, p.21). Enquanto esse tipo de união com Deus não
é incomum, o amor descrito no livro de Hilst distingue-se dele,
por ser agonizante e também agridoce, pontuado pelos caprichos
do “tu” – que é, frequentemente, impiedoso. A vacilação temática
entre a união e a desolação, assim como entre outros elementos bi-
nários, é estabelecida formalmente pela alternância entre os poemas
em português e os kanjis em caligrafia. Ainda mais enigmático é o
fato de a caligrafia japonesa ser historicamente associada ao budis-
mo, e, como Ruffing aponta, “every religious tradition of the world,
with perhaps only Buddhism as an exception, fosters some form of love
mysticism” (1995, p.20). Então, por que Hilst decidiu apresentar
seus poemas ao lado dessa forma particular, especialmente quando
isso não parece alinhar-se inteiramente com seu projeto e, além
do mais, quando seus poemas não contêm nenhuma referência
explicitamente japonesa? Para explorar essa questão, deve se anali-
sar primeiramente a história da caligrafia e seu significado cultural.
Caligrafia chinesa e japonesa: um resumo da historia e da filosofia
Essa história começa por volta do século XIII a.C., quando o
sistema da escrita chinesa surgiu e antes do desenvolvimento da
mesma caligrafia japonesa. Como notam Fu, Lowry e Yonemura
(1986, p.11), “the written language in China is the source of the wri-
ting systems of East Asia”. Ainda que o sistema caligráfico centrado
no pincel não tenha amadurecido até aproximadamente o século
II, com o desenvolvimento do estilo conhecido como “estilo das
escribas”, os estilos precedentes influenciaram os que se seguiram,
especialmente no que diz respeito à estrutura e à estética.
A caligrafia entrelaça-se profundamente com a evolução do sis-
tema da escrita e chegou a se associar com várias outras artes e mani-
festações culturais conexas. Dado que os chineses usaram os estilos
mais antigos da escrita – por exemplo, “escrita de oráculos sobre
osso”, “escrita sobre bronze” e “estilo do selo”, predominantemente
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em adivinhação, cerimoniais e gravação, respectivamente –, a cali-
grafia está vinculada historicamente a esses domínios da vida cul-
tural. Outros exemplos elogiados da caligrafia têm sido preservados
em formas como placas, gravações na pedra ou correspondências
entre famílias ou amigos, ou entre o imperador e seus assessores.
A caligrafia é uma habilidade requerida para todos os pintores
chineses. Essa ligação íntima entre a caligrafia e a pintura deve-se,
por um lado, ao menos parcialmente, à natureza pictográfica de
alguns caracteres primordiais, e, por outro, aos compartilhamentos
entre as duas artes. Como declara a escritora e artista modernista
Ling Su Hua (1954, p.270), “Chinese artists use the same tool for
painting and writing”, ou seja, o pincel e a tinta no papel. Posterior-
mente voltaremos a tratar, neste ensaio, do tema do pincel, mas,
agora, buscaremos enfatizar os aspectos técnicos empregados tanto
para a escrita quanto para a pintura. Ling (1954, p. 272) afirma que,
historicamente, “eminent Chinese painters are also calligraphists.
This is not a mere coincidence, but a conscious effort brought about this
parallel development”. Além de se tornarem especialistas no uso do
pincel, é também comum que os pintores escrevam poemas, frases
ou a data de término da obra. Como se pode ver, a caligrafia não só
compartilha certos aspectos técnicos com a pintura, mas também
frequentemente aparece ao lado dela.
Não somente os pintores eram caligrafistas, mas muitos lite-
ratos também eram praticantes dessa arte. Subjacente à poesia e à
caligrafia está a ressonância entre os conceitos abstratos e a forma
material. A poesia chinesa é frequentemente governada por con-
venções estruturais rígidas como dísticos simétricos ou rimas. O
que distingue os poetas bem-sucedidos são as surpresas que eles
podem criar dentro das restrições, usualmente por uma combinação
de inovações linguísticas e perspectivas inspiradoras. De modo se-
melhante, enquanto as interpretações caligráficas do mesmo texto
são – num nível básico – performances dos mesmos caracteres, cada
iteração é estilizada individualmente, inclusive os estilos da escrita
não cursiva. Além do mais, a caligrafia aclamada reconhece-se pelo
神韻, um termo que pode ser traduzido, aproximadamente, por
“harmonia espiritual”, e que se refere ao “ar” da obra – isto é, ao
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ritmo visual das palavras, que se manifesta em elementos como as
pinceladas e o espaçamento que avivam a obra.
A caligrafia não somente é entremeada por outras tradições artís-
ticas, mas também representa uma expressão pela qual pode-se jul-
gar o código moral de uma pessoa. Essa ideia deve-se principalmente
a dois aspectos: a estética do caractere escrito e a natureza dos instru-
mentos utilizados na caligrafia. O historiador da arte Stephen Gol-
dberg descreve o papel do pincel do seguinte modo: “when wet with
ink, the tip of the brush forms a perfect point. It is an exceedingly fle-
xible tip completely responsive to the subtlest pressures and movements
applied to the brush. For the experienced calligrapher the Chinese brush
is an extension of his hand” (Goldberg, 1975, p.1). Ao combinar essa
propriedade do pincel com a natureza sensível do papel ou tela extre-
mamente absorventes nos quais se pratica a caligrafia, a maioria dos
movimentos internos do escritor – inclusive o menor movimento,
seja de qualquer músculo ou oriundo da hesitação e da incerteza –
reflete-se na escrita. Por isso, o escritor tem de estar certo e total-
mente focado durante o esforço de colocar o pincel no papel. Diz-se
que se o indivíduo for puro e justo em suas intenções e motivações na
vida, isso se refletirá nas pinceladas dos caracteres. Inversamente, as
virtudes – como a paciência, a constância e uma mente aberta – que
a prática da caligrafia cultiva também formam o caráter pessoal do
autor. É provavelmente por essa crença na relação entre a caligrafia e
a ética de uma pessoa que, na dinastia Zhou (~1046-256 a.C.), a ca-
ligrafia (juntamente com a arte de classificar os caracteres chineses)
formava parte do currículo central na educação geral.
No século V, o Japão adotou o sistema chinês de escrita aliado ao
influxo de material cultural, como os clássicos confucianos e obras
literárias. Segundo Sadako Ohki, curadora de arte japonesa,
[…] at this time, Japan had but recently achieved national unity and
was beginning to develop its cultural traditions. It was the Japanese
people’s immediate need to master [the three major Chinese scripts
that were recently standardized] which were absolutely essential for
their diplomatic purposes and for their educational, official, and
practical usages within the country.” (Ohki, 1975, p.17)
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Além das questões pragmáticas, a difusão do budismo e o conse-
quente aumento da necessidade de shakyo – copiar as sutras – pro-
moveram o estabelecimento da escrita chinesa no Japão. De fato, o
ato de copiar as sutras foi integral à evolução da caligrafia japonesa.
Em torno do século VIII, enquanto alguns caracteres chine-
ses permaneciam na língua japonesa pelo som ou significado, os
japoneses já haviam desenvolvido seu próprio sistema de escrita
ao abreviar a escrita chinesa em símbolos fonéticos conhecidos
como kana (仮名). A estrutura mais simples e fluida da kana cur-
siva era “particularly suited to writing the short Japanese waka (or
tanka) poem of thirty-one syllables composed in lines of five or seven
syllables”, permitindo ao caligrafista “considerable compositional
freedom” (Fu; Lowry; Yonemura, 1986, p.62-3). A escrita de kana
logo se desenvolveu em um ramo caligráfico singularmente japo-
nês. Desse modo, a caligrafia no Japão é – como na China – uma
arte relacionada a outras tradições estéticas e inspira produções em
várias esferas culturais.
Ainda que a caligrafia japonesa tenha criado um legado único e
tenha desenvolvido filosofias e estilos distintos, as obras chinesas
continuam sendo estudadas e permanecem relevantes nas discus-
sões de caligrafia como gênero. Como Ohki (1975, p.17) enfatiza,
“[t]hroughout the history of calligraphy in Japan [...] a cycle of learning
and absorbing Chinese prototypes, then achieving Japan’s own indivi-
dualistic aspect, was repeated”. Essa vicissitude mostra que, en-
quanto as duas tradições devem ser avaliadas perante suas próprias
histórias, é importante considerar a trajetória geral que possibilite
um visão mais ampla acerca da caligrafia japonesa, especialmente
com o propósito de se entender o uso dos kanjis no livro de Hilst.
Traduzir ou não traduzir
Antes de avançarmos com a análise do livro, é útil retomar al-
gumas questões sobre as quais este ensaio se propõe refletir. As
duas questões principais são: 1) ponderar sobre a decisão de Hilst
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de apresentar seus poemas juntamente com os kanjis caligráficos de
Wakabayashi, e 2) compreender a ausência de sua tradução, que atua
como uma barreira para o típico leitor de português. Ademais, ainda
que Hilst seja a autora principal do livro, a sequência poética é pre-
faciada e concluída com um caractere, que sublinha a integralidade
dos caracteres escritos nos poemas, refutando a hipótese de que eles
serviriam tão somente a um propósito decorativo. Contrariando essa
hipótese, propomos a indagação sobre se os caracteres, em certos
níveis, acabariam por conduzir os próprios poemas. Essas questões
guiarão nossas análises ao longo do restante do ensaio.
Buscaremos recorrer agora à analogia visual dos cartões-relâmpa-
gos, já que essa comparação permite focalizar a justaposição de dois
meios muito distintos, bem como a questão da ausência de tradução.
Se as páginas de Sobre a tua grande face fossem cartões-relâmpagos,
o típico leitor brasileiro, que não fala japonês, provavelmente espe-
raria que houvesse uma tradução em português ao lado inverso do
kanji, talvez com uma frase exemplar ilustrando seu uso. A tradu-
ção, nesse caso, seria uma ponte entre as duas línguas e facilitaria
a transição entre elas. A decisão por não traduzir, então, equivale a
rejeitar essa ponte. Se a tradução torna o texto mais acessível, o que
poderia ser logrado com sua ausência? Ainda que se considere a de-
cisão pela não tradução, valeria a pena também explorar uma linha
de pensamento que poderia representar um passo na direção oposta
ou, um passo mais adiante, poderíamos considerar os poemas e os
caracteres como uma tradução interna mútua?
Primeiramente, pode-se considerar o texto como não oferecen-
do a tradução dos kanjis. Ao se falar sobre a tradução, identificam-
-se maneiras diferentes de ler, dependendo da proficiência do leitor
nas duas línguas. Pode-se entender a tradução como “rendering a
text written in one language understandable in another language”, no
qual “a meaning generally [could be] held to transcend individual lan-
guages the way universality transcends particularity” (Weber, 2005,
p.65). Tendo em vista os aspectos visuais, os significados dos kanjis
serão os seguintes, de acordo com a ordem na qual aparecem:
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天 céu
人 pessoa(s) /humano
無 nenhum/vazio/nada/falta
心 coração/mente/centro
生 nascer/dar à luz/vivo/vida
地 terra/chão
死 morrer/morte
有 ter/possuir/haver
月 lua/mês
(天)
Nesses kanji são representados alguns dos conceitos mais fun-
damentais sobre o entendimento acerca do mundo. Podem-se iden-
tificar dicotomias convencionais, como vida/morte, faltar/haver.
Contudo, alguns dos conceitos são mais difíceis de serem situados
um em relação ao outro. Por exemplo, seria o céu (num sentido
ampliado, de divino) o oposto da terra ou do humano? O que seria
o oposto da lua? Como se evidencia, o fato de alguns conceitos re-
sistirem à classificação binária perturba os outros binários mais
“óbvios” ou “aceitos” da lista. Dessa maneira, o leitor é instigado
a relacionar os conceitos de uma forma que escapa às dicotomias
convencionais.
A relação de opostos que os kanji traduzidos ilustram também
se manifesta nos poemas. Anteriormente, identificou-se o poder
desigual entre o sujeito lírico e seu objeto de desejo, estabelecendo-
-se o dominante e o dócil. Essa relação manifesta-se ainda mais
claramente no poema associado com o caractere 生, quando o eu lí-
rico se compara a (ou renasce, no verso, como) uma égua, a procura
frenética de “Sem nome”:
Ando em grandes vaguezas, açoitando os ares
Relinchando sombras, carreando o nada.
Os que me veem me gritam: como tem passado
a aldeã de sua alteza? E há chacotas e risos. (Hilst, 1986)
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A futilidade da busca empreendida pela locutora, sua subordi-
nação tão publicamente reconhecida e a chacota consequente que
experimenta não bastam para contrapor a atração pela “Grande
Face,” a qual só pode se articular por meio de substantivos vagos
(“sons”, “cicios”, “um labiar de sabores, um sem nome de pas-
sos”) e de analogias (“Como se águas pequenas desaguassem/Num
pomar de abios. Como se eu mesma/Flutuasse, cativa, ofélica, sobre
a tua Grande Face”). O ato de contornar uma descrição concreta da
sedução do destinatário do poema com nomes vagos e comparações
sugestivas, mas enigmáticas, aponta a dificuldade de articular esse
amor devido a sua índole espinhosa. O que torna tão difícil falar
sobre a relação nos termos mais simples e explicativos – e, por outro
lado, tão apto para a flexibilidade exploratória da poesia – é precisa-
mente essa desmontagem das dicotomias, mais proeminentemente
entre “a realidade e as suas outras”. Esse verso se refere a sonhos,
alucinações, devaneios, e assim por diante, sendo esses geralmente
fundados no real, mas, na obra de Hilst, eles nem sempre se opõem
à suposta realidade, e funcionam muito mais como as suas alternân-
cias. Por exemplo, no segundo poema do livro, Hilst escreve:
Então direi
O que se coleia a mim na intimidade, e atravessa os vaus
Da fantasia. Deito-me pensada de bromélias vivas
E me recrio corpórea e incandescente (Hilst, 1986)
Mais adiante, no contexto dessa visão, a locutora constrói um
corpo incandescente no qual ela documenta, pela primeira vez, a
consumação da relação: “Arquiteta de mim, me construo à imagem
das tuas Casas/E te adentras em carne e moradia”. “Casas” aqui
são catedrais mencionadas no mesmo poema. O sujeito lírico então
se transforma em um espaço sagrado no prazer carnal, rompendo
ainda mais a divisão entre as noções tradicionalmente opostas de
santidade e perversidade. Além disso, a fusão dos conceitos dis-
cretos também ocorre no nível do espaço imaginado do texto e do
espaço que ocupa o leitor, identificado como o real. Observa-se essa
ruptura com a realidade no primeiro poema do livro (citado previa-
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mente), no qual a locutora pede por “nenhum cão”, já que os cães
ofereceriam alguma consolação para seu anelo. O leitor que havia
se familiarizado com a vida de Hilst reconheceria seu amor pelo
animal: a autora mantinha um grupo grande deles na Casa do Sol.1
Outra questão que vale a pena explorar nesse primeiro poema
é o poder de criação. Como a relação amorosa é uma procura por
Deus, seria apropriado traçar um paralelo com o Gênesis, um dos
momentos originais de criação na literatura ocidental. Como obser-
va Samuel Weber, “creation, in the biblical account, operates above
all through a series of dichotomies, beginning with the distinction
between unbound space (‘heaven’) and limited place (‘earth’) [...][H]
eaven and earth [were] defined through a series of oppositions that
progressively differentiated the place called earth” (Weber, 2005,
p.67-8). Contudo, o poema acima sublinha não a criação de Deus,
mas a que está associada ao caractere 人, que denota um humano
com o poder de se reconstruir, exatamente o que a locutora faz. Essa
asserção de vontade e poder criativo estão conectados com o motivo
do autor e o texto no livro, mencionado, no início, com a figura de
“tu” como um brejeiro escoliasta. A leveza com a qual o “tu” trata
suas criações textuais sugere a confiança que ele tem em seu poder
criativo, refletindo a atitude temerária que o “tu” estabelece em
sua relação com o sujeito lírico. Entretanto, essa dinâmica de poder
complica-se ao final do penúltimo poema do livro:
1 Adam Morris, um dos tradutores de Hilst, oferece o seguinte relato sobre a cone-
xão extraordinária que Hilst tinha com os cachorros: “Her dogs accompanied her
at the dinner table, watched over her while she wrote, and crowded around her as
she moved through the Casa do Sol. In nearly every photo of Hilst, there are dogs
and more dogs. Though they were extravagantly numerous, she always knew all of
their names. Hilst disdained those who disliked dogs, and the first question she asked
visitors and new acquaintances brought to her house by friends – before proceeding
to ask them about their zodiac sign and the details of their sex life – was whether
or not they liked dogs. Anecdotes about Hilst’s strange ability to communicate with
dogs abound. One resident of the Casa do Sol recalled the way her dogs rushed to
break Hilst’s fall when she fainted upon hearing the telephone ring one day, having
correctly intuited that someone was calling to tell her a friend had succumbed to
AIDS. Though she kept hundreds of dogs throughout her life, her diary entries
record the deep pain she felt when any of them died. When euthanasia was required,
Hilst sometimes administered the injection herself” (Morris, 2014, p.xxi-xxii).
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Em minhas muitas vidas hei de te perseguir.
Em sucessivas mortes hei de chamar este teu ser sem nome
Ainda que por fadiga ou plenitude, destruas o poeta
Destruindo o Homem. (Hilst, 1986)
E também no último poema:
E destes versos, e da minha própria exuberância
E excesso, há de ficar em ti o mais sombroso.
Dirás: que instante de dor e intelecto
Quando sonhei os poetas na Terra. Carne e poeira
O perecível, exsudando centelha. (Hilst, 1986)
Nas duas estrofes, o sujeito lírico menciona a facilidade com
que Deus destrói o humano, presumidamente uma criação suja. No
entanto, a especificidade da figura do poeta evoca a locutora, unida,
ao menos em parte, com a mesma Hilst, como autora do texto que
contém o Deus que ela procura. Há, assim, o efeito de uma dinâmi-
ca encaixada na qual o Deus e o humano criam-se mutuamente nos
espaços intra e extratextuais que o leitor deve desvelar em camadas.
Portanto, poder acessar os significados dos kanjis permite que o
leitor engaje-se com o texto como uma exploração do ato de criação,
por parte do humano, e das forças divinas por meio da lente de um
Gênesis revisado.2 Essa revisão não perpetua as dicotomias como
o Gênesis original; ao contrário, as confunde. Esse conceito tam-
bém esté presente quando consideram-se as mudanças na percep-
ção e interpretação do leitor, motivadas pela tradução dos kanjis: o
que antes eram duas línguas polarizadas agora trabalha sinergica-
mente para produzir leituras mútuas altamente matizadas. Mas a
pergunta que se suscita é essa: se os significados dos kanjis facilitam
essa interpretação, por que não revelá-los?
2 Se estudarmos o Gênesis, veremos uma fonte possível que pode ter inspirado
algumas das ideias de Hilst sobre Deus, manifestadas em seus nomes para ele:
“No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia: e havia
trevas sobre a face do abismo...” (A Bíblia Sagrada, Gênesis 1, grifos meus).
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Uma resposta possível seria: se os significados fossem explici-
tados como parte do texto, não haveria a necessidade de incluir os
kanjis como tais. Hilst poderia ter escolhido prefaciar cada poema
com palavras em português, como “Lua” e “Morte.” Certamente, a
camada visual que os kanjis agregam estaria perdida, e, além disso,
como a tradução transmitiria as dicotomias presentes nos significa-
dos dos kanjis, o leitor seria preparado para interpretar o livro como
uma reescrita do mito de criação tal qual apresenta o livro de Gênesis.
Para encontrar uma resposta à questão do formato do livro, este
ensaio propõe pensar uma perspectiva alternativa de tradução, a
qual se preocupa não com o suposto significado universal por trás
das palavras, mas com o próprio material dessas palavras. A ideia de
que existe um significado que transcende a distinção dos idiomas
diferentes reflete o que Derrida chama de “teologia do texto”: a
crença em que “the text is an ideal, spiritual substance, a Plato-
nic form of which the material thing [eg. books] is merely a ‘copy’.
The physical object is simply a medium” (Aichele, 1993). Aceitar o
modelo que acabamos de apresentar, que concebe o poema e o ca-
ractere como uma tradução mútua, significa ler o projeto de Hilst e
Wakabayashi como uma refutação da teologia do texto, focalizando
a iteração singular e material de cada palavra. Em uma análise desse
tipo, vale a pena considerar a ideia de Weber na seguinte citação:
[...] translation always involves not merely the movement from one
language to another, but from one instance – a text already existing
in one language – to another, that does not previously exist, but that
is brought into being in the other language. The tension between the
generality of the language systems and the singularity of the individual
texts is reflected, but also concealed, by the ambiguity of the very word
“translation” itself, which designates both a general process, invol-
ving a change of place, and a singular result of that process: transla-
ting in general, and (a) translation in particular. The tension between
the general process and the individual product tends to be obscured by
an attitude that regards translation as an instrument in the service
of the “communication” of the meaning or a message. This attitude
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privileges the generality of the process at the expense of its singularity.
(Weber, 2005, p.66)
O que Weber aponta é a particularidade de cada manifestação
da língua. Enquanto é verdade que normalmente considera-se a
mesma palavra como correspondente a várias traduções “aceitáveis”
na língua de chegada, esse ponto de vista arrisca aplainar o idioma
em unidades comensuráveis e intercambiáveis e, como resultado,
limitaria seu potencial expressivo. Portanto, a língua deve ser pen-
sada em instâncias, para as quais se deve levar em conta tanto o
contexto quanto as circunstâncias de enunciação de cada enunciado.
No caso dos caracteres em Sobre a tua grande face, a ideia de
Weber é particularmente significante porque a singularidade de
suas instâncias precisa ser analisada em ao menos três níveis. Em
primeiro lugar, semanticamente, tal como foi mostrado, cada carac-
tere pode ser usado em distintas classes gramaticais ou ter várias de-
finições. Em segundo lugar, um aspecto desses caracteres que não
é imediatamente visível, mas igualmente importante, é a dimensão
aural. Como a maioria dos kanjis, cada um desses caracteres tem ao
menos duas pronúncias: a onyomi (音読み) e a kunyomi (訓読み). A
onyomi é a pronúncia que mais se parece com o som do caractere em
chinês, utilizada nos contextos mais literários, enquanto a kunyomi
baseia-se na pronúncia japonesa nativa que mais se aproxima do
significado do caractere chinês importado. Dependendo da história
e do uso do kanji, pode haver mais de dois tipos de pronúncia. Se
considerarmos a materialidade do caractere em sua totalidade, será
necessário incluir também suas propriedades sonoras. Em terceiro
lugar, no que diz respeito ao aspecto visual, como previamente
mencionado, cada execução do caractere caligráfico (mesmo que
seja feita pelo mesmo autor) é considerada única, já que singu-
larmente reflete a combinação entre técnica e affect no momento
da criação. Em concordância com o crítico cultural Eric Shouse,
que segue as ideias de Brian Massumi, affect define-se como “a
non-conscious experience of intensity; it is a moment of unformed
and unstructured potential”; e “is always prior to and/or outside of
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consciousness” that “cannot be fully captured in language” (n.p.).3
Devido à natureza dos instrumentos e métodos usados, a caligrafia
comunica affect em certos níveis, como se evidencia na seguinte
descrição de Goldberg:
The execution of the character is itself a communication in which
the movements and pressures applied to the brush make reference to
the disposition or inner state of the calligrapher and his relationship to
what is written. For this reason Chinese calligraphy may be defined as
the art of gestural expression. The significance of this kind of expres-
sion lies in the primacy of gesture as that mode of intentional behavior
which originates on the pre-verbal level of the body experience and thus
is most truly expressive of one’s state of being. (Goldberg, 2014, p.1)
Portanto, o fato de que os caracteres são kanjis e escritos em cali-
grafia eleva significativamente os desafios impostos a sua tradução.
As variáveis e propriedades semânticas, aurais, visuais e afetivas
constituem um meio sofisticado que demanda uma legibilidade
nova e complexa.
Para contemplar a complexidade desses vários aspectos é im-
portante pensar como a poesia pode ser considerada uma tradução
adequada das instâncias caligráficas do idioma apresentadas como
arte visual. Nesse sentido, a crítica literária Elissa Marder ressalta
o seguinte acerca do ensaio “Freud and the Scene of Writing”, de
Derrida: “The materiality of a word cannot be translated or carried
over into another language. Materiality is precisely that which transla-
tion relinquishes. To relinquish materiality: such is the driving force of
translation. And when that materiality is reinstated, translation beco-
mes poetry” (Derrida, 1972, apud Marder, 2013, p.1). Sob o risco de
tomar a palavra “poetry” em um sentido literal demais, o comentário
de Derrida exibe, em primeiro plano, o “corpo verbal” da palavra – le
3 Shouse justapõe “affect” com “feeling” e “emotion”, as quais define respecti-
vamente como “a sensation that has been checked against previous experiences
and labelled” e “the projection/display of a feeling”. Esclarece ainda mais ao
declarar que as emoções podem ser ou genuínas ou dissimuladas, podendo não
corresponder necessariamente aos “feelings” do sujeito.
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corps verbal, o que o tradutor Alan Bass interpreta como “materia-
lity” (Marder, 2013) – ante uma inclinação prevalente que tende
demasiadamente ao significado às custas do meio. Ver os poemas de
Hilst como traduções dos caracteres de Wakabayashi é restabelecer
ao menos uma possibilidade do corpo verbal em português.
Pode-se observar um exemplo do livro com o objetivo de se exa-
minar a atenção dada à visceralidade, que se manifesta na caligrafia
tanto como no poema, e intensifica – como mencionado anterior-
mente – contato entre as dicotomias. Vejamos a primeira metade do
penúltimo poema, associado ao caractere “lua”:
De montanhas e barcas nada sei.
Mas sei a trajetória de uma altura
E certa fundura de águas
E há de me levar a ti uma das duas.
De ares e asas não percebo nada.
Mas atravesso abismos e um vazio de avessos
Para tocar a luz do teu começo.
Das pedras só conheço as ágatas.
Mas arranco do xisto as esmeraldas
Se me disseres que é o verde a dádiva
Que responde as perguntas da Ilusão.
E posso me ferir no gelo das espadas
Se me quiseres banhada de vermelho. (Hilst, 1986)
Vê-se que o poema toma lugar nos interstícios das dicotomias,
como o conhecido e o desconhecido, a regressão e o começo, o con-
creto e a ilusão. Certas condições e limitações dadas – como o ins-
tinto de autopreservação que evita a dor e o dano – refutam-se e são
compensadas pela vontade de tornar o corpo maleável pelo amor.
Além do mais, como em outros poemas na sequência, o lírico aqui
é carregado de imagens – mas é conduzido pela instabilidade de
cada imagem, e não por sua durabilidade, como se poderia esperar.
O que acompanha esse imaginário tremeluzente e sucessivo é o
impulso sônico: o poema é guiado por uma musicalidade aguda,
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incorporada nas transformações de, por exemplo, “atravesso” a
“abismos” a “avessos”, “esmeralda” a “espadas”, “disseres” a
“gelo”. Uma fluidez similar e a ambiguidade do corpo também se
apresentam no kanji associado ao poema, 月:
Figura 4
Ao observarmos a versão impressa do caractere, podemos notar
que as duas pinceladas horizontais originais são apresentadas como
uma só na versão caligráfica. Essa decisão estética importa espe-
cialmente porque essa execução particular de “lua” lembra sua en-
carnação nas escritas mais antigas, a qual, por sua vez, se aproxima
das versões mais modernas do caractere para “sol”, como ilustrado
na Figura 5:
Figura 5
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Justapondo-se a evolução dos caracteres para “sol” e “lua” nos
vários estilos de escrita, pode-se apreciar a “lua” de Wakabayashi
como um grafismo ambíguo que contém os dois conceitos, um
caractere cujo corpo verbal desafia uma leitura – e, portanto, uma
tradução – clara e definitiva, ecoando a dinâmica fluida do corpo
poético de Hilst.
A interpretação da poesia e da caligrafia como traduções mútuas,
ainda que pouco convencional, é coerente com o que o linguista
Clive Scott chama de tradução “sinestética”. Para Scott (2011, p.40),
o “intermedial” é um termo insatisfatório, porque deixa os meios
artísticos intactos. O estudioso favorece o termo “synaesthetic”, que
reflete “a phenomenological assumption that we perceive the universe
with the totality of our bodies with the concerted operation of all our
senses” (Scott, 2011, p.39). Ao referir-se a uma tradução sinestéti-
ca, exige um entendimento da tradução como mudar “one medium
out of itself into multi-sensory, or cross-sensory, consciousness; put
another way, it is the translation of one medium back into whole-body
experience” (Scott, 2011, p.40). Aqui reside, de novo, o problema da
singularidade versus diversidade. Scott postula a tradução de uma
maneira que reflete uma concepção paralela à intervenção de Weber,
ressaltando que o ato de traduzir é mudar de instância a instância e
não só de um idioma a outro, como muitos creem. De modo similar,
em Sobre a tua grande face, Hilst e Wakabayashi reúnem o português
e o japonês de uma maneira que instiga o leitor a ir além da unidade
aparente de cada idioma, que, à primeira vista, parece se opor a suas
diferenças.4 A princípio, a aparência limpa e minimalista do kanji
4 Uma questão que permanece é por que razão Hilst teria decidido trabalhar
com o japonês em vez de outros idiomas e tradições artísticas. Ainda que não
se possa aceitar completamente os motivos da autora, é possível considerar
alguns fatores. Primeiramente, pode ser que Hilst tenha querido marcar sua
literatura com um afastamento em relação aos poderes eurocêntricos domi-
nantes valorizados no mundo intelectual brasileiro. Numa entrevista, a autora
questiona o favorecimento, desprovido de senso crítico, que pratica em relação
a outros idiomas europeus em detrimento do português: “Você não pode pen-
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em cada página é contrabalanceada pela história intensa e complexa
de amor, a qual é simultaneamente uma narrativa de poder e criação
relatada em um português vívido, polissêmico e neologístico. Con-
tudo, uma análise detalhada dessa colaboração revela corolários
inesperados, tanto na forma quanto no conteúdo dos dois idiomas e
meios de expressão, fazendo que se estabeleçam traduções mútuas
e plausíveis. Por outro lado, a incomensurabilidade entre os dois –
porquanto há que se reconhecer que a “tradução sinestética” é uma
perspectiva bastante liberal, que não se submete ao que usualmente
se concebe com o termo “tradução” – serve à preocupação temáti-
ca de Hilst de uma maneira estranhamente apropriada, ao ecoar e
dobrar a energia de seus poemas: todo o espaço e toda a ausência
entre ela e o desejado. O livro então perpetua as forças oscilantes
entre as dicotomias, colocando-as em contato, mas sem obliterá-las,
possibilitando ressonâncias crescentemente matizadas envolvendo
aquilo que, à primeira vista, parecia contraditório ou sem vínculos.
Talvez esse poder de criação contínua de uma estética surpreenden-
temente maximalista seja parte do divino que Hilst tem, na verdade,
logrado alcançar.
sar em português. É bom pensar em inglês, em alemão, as pessoas aceitam. Em
português, você… pensar é algo horrível, então os editores te odeiam” (“Hilda
Hilst TV Cultura”). Ao simultaneamente trabalhar seu português com ocor-
rências textuais caleidoscópicos e vibrantes, Hilst claramente expressa sua
aversão a essa tendência no mundo editorial. Outra possibilidade vem do fato
de que seu editor principal, Massao Ohno, era japonês, o que pode tê-la posto
em contato com a cultura japonesa de modo mais significativo do que com
outras culturas. A terceira possibilidade não é diretamente relacionada com a
própria Hilst, mas continua sendo um fator provável. Como assinala Cristina
Rocha, especialista em estudos japoneses, o fato de que, por muito tempo, a
percepção brasileira acerca do Japão foi filtrada pelas perspectivas francesas é
reflexo da desvalorização do capital cultural que possuem os imigrantes japo-
neses, o que é um resultado direto da falta de capital financeiro (204-5). Ao
colaborar com um artista nipo-brasileiro e trabalhar com uma tradição artís-
tica proeminente e japonesa, Hilst abertamente refuta a atitude depreciativa
arraigada no racismo histórico.
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