The Infinite Sea Autor: Rick Yancey Copyright © 2014 by ... · nada a abundante colheita....

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FICHA TÉCNICA Título original: The Infinite Sea Autor: Rick Yancey Copyright © 2014 by Rick Yancey Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015 Tradução: Miguel Romeira Design da capa: © Allied Integrated Marketing Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, julho, 2015 Depósito legal n. o 394 999/15 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt

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FICHA TÉCNICA

Título original: The Infinite SeaAutor: Rick YanceyCopyright © 2014 by Rick YanceyTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015Tradução: Miguel RomeiraDesign da capa: © Allied Integrated MarketingComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, julho, 2015Depósito legal n.o 394 999/15

Reservados todos os direitospara a língua portuguesa à

EDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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ÍNDIce

O Trigo .................................................................................... 13

LIVRO PRIMeIRO

I — O Problema dos Ratos ...................................................... 19

II — O Dilacerar ..................................................................... 47

III — A Última estrela............................................................ 77

IV — Milhões .......................................................................... 109

V — O Preço ........................................................................... 117

VI — O gatilho ...................................................................... 167

LIVRO SegUNDO

VII — A Soma de Todas as coisas ........................................... 177

VIII — Dubuque ..................................................................... 265

Agradecimentos ........................................................................ 269

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O TRIgO

Não haveria colheita.As chuvas de primavera acordaram os rebentos adormecidos e gre‑

los de um verde intenso despontaram da terra húmida e ergueram ‑se como alguém que acorda e se espreguiça depois de uma longa sesta. Quando a primavera deu lugar ao verão, os caules verde ‑vivos escure‑ceram, tornando ‑se acastanhados e, depois, castanho ‑doura dos. Os dias tornaram ‑se longos e quentes. grossas colunas de nuvens negras em remoinho trouxeram chuva e os caules castanhos ficaram reluzen‑tes no crepúsculo perpétuo que se instalara sob a abóbada do céu. O trigo crescia e as suas espigas curvavam ‑se ao vento da pradaria, uma cortina murmurante, um mar infinito e ondulante que se perdia de vista no horizonte.

chegado o tempo das colheitas, não havia camponês para arrancar a espiga do caule, esfregando ‑a depois nas suas mãos calejadas para separar o grão. Não havia ceifeiro para mastigar alguns grãos, sentindo o delicado invólucro a rachar entre os seus dentes. O camponês fora morto pela epidemia e o que restava da sua família fugira para a povoa‑ção mais próxima, onde acabara por sucumbir também, juntando ‑se à contagem dos milhares de milhões vitimados na Terceira Vaga. A velha casa construída pelo avô do camponês era agora uma ilha deserta cercada por um infinito mar castanho. Os dias tornavam ‑se mais curtos e as noites mais frias e o trigo estalava sob o vento seco.

As colheitas sobreviveram ao granizo e às trovoadas de verão, mas a sorte não chegou para as salvar do frio. Quando os refugiados se insta‑laram na velha casa, o trigo estava todo estragado, morto pela impie dosa geada.

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cinco homens e duas mulheres, estranhos uns aos outros antes daquela última época de sementeira, mas agora ligados pela promessa silenciosa de que o mais insignificante de entre eles era mais impor‑tante do que a soma de todos.

Os homens revezavam ‑se em turnos de vigia no alpendre. Durante o dia, o céu mantinha ‑se limpo e de um azul lustroso e brilhante, com o sol sempre baixo no horizonte a tingir o trigo castanho e baço de um dourado cintilante. As noites não chegavam suavemente, antes parecendo abater ‑se com fúria sobre a Terra; nessa altura, sob a luz das estrelas, o trigo passava do castanho ‑dourado à cor da prata polida.

O mundo mecanizado morrera. Os terramotos e os maremotos tinham obliterado as costas. A epidemia vitimara milhares de milhões.

e os homens no alpendre ficavam a observar o trigo e perguntavam‑‑se o que viria a seguir.

No início de certa tarde, aquele que estava de vigia viu o mar de colheitas mortas apartar ‑se e soube que alguém se aproximava, rom‑pendo a direito pelo meio do trigo rumo à velha casa da herdade. chamou os que estavam lá dentro e uma das mulheres saiu para o exterior e ficou ao lado dele no alpendre, os dois juntos a verem os longos pés de trigo a afundarem ‑se no mar castanho, como se a própria Terra estivesse a sugá ‑los. Fosse quem — ou o quê — fosse, não se via acima da linha dos pés de trigo. O homem desceu do alpendre. Apon‑tou a sua espingarda ao trigo. Aguardou ali, na frente da casa, com a mulher a observar do alpendre e com os restantes lá dentro, todos de rosto colado à janela, sem que nenhum deles dissesse uma palavra. Aguardaram todos que a cortina de trigo se abrisse.

Quando isso aconteceu, surgiu ali uma criança, pondo fim à imo‑bilidade da espera. A mulher desceu do alpendre a correr e baixou o cano da espingarda. Ele ainda é um bebé. Eras capaz de matar uma criança? e o rosto do homem franziu ‑se de indecisão e de raiva por ver atraiçoado tudo quanto alguma vez fora tido por certo. Como é que sabemos?, perguntou bruscamente à mulher. Será que ainda podemos ter a certeza seja do que for? O menino avançou aos tropeções do meio do trigo e caiu. A mulher correu para ele e pegou ‑lhe ao colo, pressio‑nando contra o peito o seu rosto encardido; então, o homem com a espingarda pôs ‑se diante dela. Ele está gelado. Temos que o levar para dentro. e o homem sentiu um tremendo aperto no peito. Sentia ‑se encurralado entre o que o mundo fora antes e aquilo em que depois se tornara, entre quem ele próprio já fora e quem agora era; o preço de todas as promessas silenciosas esmagava ‑lhe o coração. Ele ainda é

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um bebé. Eras capaz de matar uma criança? Passando por ele, a mulher subiu os degraus até ao alpendre e entrou em casa; o homem inclinou a cabeça como se em oração e depois ergueu ‑a como se numa súplica. esperou ali alguns minutos, para ver se mais alguém saía do meio do trigo, porque lhe parecia incrível que um menino que mal sabia andar tivesse sobrevivido por tanto tempo, sozinho e indefeso, sem ninguém que o protegesse. como podia semelhante coisa ser possível?

Ao entrar na sala de estar da velha casa da herdade, viu a mulher com o menino sentado ao colo. embrulhara ‑o numa manta e trou‑xera ‑lhe água; uns dedinhos avermelhados do frio apertavam a caneca. Os outros tinham ‑se juntado ali na sala em silêncio, todos a observa‑rem a criança, mudos de espanto. Como podia semelhante coisa ser possí‑vel? O menino começou a choramingar. Os seus olhos iam saltando de rosto em rosto, em busca de algum que lhe fosse familiar, mas todas aquelas pessoas lhe eram estranhas, tal como, antes de o mundo acabar, eram estranhas umas às outras. com um queixume, o menino disse que tinha frio e que lhe doía a garganta. Tinha um dói ‑dói na garganta.

A mulher que o segurava nos braços pediu ‑lhe que abrisse a boca. Viu ‑lhe o fundo da garganta inflamado, mas não viu o arame fino como um fio de cabelo à entrada desta. Não conseguiu ver o arame nem a minúscula cápsula presa à sua extremidade. Não podia saber, ao debruçar ‑se sobre o menino, que aquele dispositivo fora calibrado para detetar o dióxido de carbono na respiração dela.

A nossa respiração, o gatilho.A nossa criança, a arma.A explosão pulverizou a velha casa da herdade num abrir e fechar

de olhos.O trigo não desapareceu tão depressa. Já nada restava da casa, dos

anexos ou do depósito de cereais onde, ano sim, ano não, era armaze‑nada a abundante colheita. consumidos pelo fogo, os pés de trigo esguios e secos ficaram reduzidos a cinzas e, ao pôr do sol, um forte vento de norte varreu a pradaria e levou a cinza pelos ares, arrastando ‑a por centenas de quilómetros antes de a deixar cair — flocos de neve negros e cinzentos que pousaram ao acaso pela terra estéril.

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LIVRO PRIMeIRO

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I

O PROBLeMA DOS RATOS

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1

O mundo é um relógio em contagem decrescente.Ouço o seu tiquetaque nos dedos gelados do vento que arranham

a janela. cheiro ‑o na alcatifa bolorenta e no papel de parede apodre‑cido do velho hotel. e sinto ‑o no peito da Teacup enquanto ela dorme. O martelar do seu coração, o ritmo da sua respiração morna no ar gelado, o relógio em contagem decrescente.

Do outro lado da sala, a cassie Sullivan está de vigia à janela. O luar entra pela fresta nas cortinas atrás dela, iluminando os jatos de ar gelado que lhe saem pela boca como minúsculas explosões. O seu irmão pequeno dorme na cama que está mais próxima dela, um montinho disforme debaixo de uma pilha de cobertores. Janela, cama e repete do início — a cabeça dela parece um pêndulo. O voltar da sua cabeça, o ritmo da sua respiração, igual ao do Nugget, igual ao da Teacup, igual ao meu, marcando o tiquetaque do relógio em contagem decrescente.

Levanto ‑me da cama. A Teacup geme em sonhos e esconde ‑se mais para debaixo dos cobertores. O frio agarra ‑se a mim e esmaga ‑me o peito, mesmo estando eu completamente vestida — tudo menos as botas e o anoraque, que deixei aos pés da cama e em que então agarro. Sob o olhar da Sullivan, calço as botas e depois vou ao roupeiro bus‑car a mochila e a espingarda. Vou ter com ela junto à janela. Tenho a sensação de que devia dizer ‑lhe qualquer coisa antes de sair. Talvez nunca mais tornemos a ver ‑nos.

— cá estamos — diz ela. A sua pele muito branca brilha sob a luz leitosa. As sardas parecem flutuar ‑lhe por cima do nariz e das faces.

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Ajeito a espingarda ao ombro.— É verdade.— Sabes, «Dumbo» eu percebo. É por causa das orelhas grandes.

«Nugget», também; é por o Sam ser tão pequeno. «Teacup», idem. «Zombie», ainda não atingi; o Ben não me quer dizer. Quanto a «Poundcake», calculo que tenha alguma coisa a ver com as banhas dele. Mas «Ringer» é porquê?

começo a ver aonde ela quer chegar com isto. Tirando o Zombie e o irmão dela, a miúda não se sente segura em relação a ninguém. chamarem ‑me «Ringer» só lhe aumenta a paranoia.

— eu sou humana.— claro. — Pela nesga nas cortinas, ela espreita para o parque de

esta cionamento dois andares mais abaixo, o piso reluzente da geada. — Houve outra pessoa que me disse o mesmo. e eu, feita parva, acre‑ditei.

— De parva deves ter pouco, olhando às circunstâncias.— Não finjas, Ringer — replica ela com brusquidão. — eu sei

que não acreditas no que eu disse sobre o evan.— em ti eu acredito. A versão dele é que não faz lá muito sentido.encaminho ‑me para a porta antes que ela comece a mandar vir

comigo. Quando o tema é o evan Walker, o melhor é não pressionar a cassie Sullivan. Não lhe levo isso a mal. O evan é aquele galhozi‑nho a espreitar da parede do precipício, ao qual ela se agarrou com unhas e dentes, e o facto de ele não estar connosco ainda a faz agarrar‑‑se com mais força.

A Teacup não dá nem pio, mas sinto os olhos dela cravados em mim; sei que está acordada. Aproximo ‑me da cama.

— Leva ‑me contigo — sussurra ela.Abano a cabeça. Já tivemos esta conversa algumas cem vezes.— Não demoro muito. Vão ser só uns dois dias.— Prometes?Nem pensar, Teacup. As promessas são a única coisa valiosa que

nos resta. Devemos usá ‑las com prudência. ela faz beicinho; os seus olhos ficam húmidos.

— ei... — digo ‑lhe num tom suave. — O que é que eu já te disse a respeito disso, soldado? — Resisto ao impulso de lhe tocar. — Qual é a prioridade número um?

— Nada de maus pensamentos — responde ela muito compene‑trada.

— Porque os maus pensamentos fazem o quê?

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— Amolecem ‑nos.— e o que é que acontece quando amolecemos?— Morremos.— e queremos morrer?ela abana a cabeça.— Para já, não.Toco ‑lhe na cara. Face fria, lágrimas quentes. Para já, não. com o

tempo da humanidade a esgotar ‑se, é provável que esta miudinha já esteja na meia ‑idade. eu e a Sullivan somos duas velhas. e o Zombie? É uma múmia.

ele está à minha espera no átrio de entrada, com um anoraque vestido por cima de uma camisola com capuz amarela, um e outra desencantados já ali no hotel; o Zombie escapou de camp Haven vestido apenas com um uniforme de tecido fininho. Por baixo da barba desmazelada, a sua cara exibe o inconfundível tom escarlate da febre. A ferida do tiro que eu lhe dei — que se abriu durante a fuga de camp Haven, sendo então suturada pelo nosso médico de doze anos — deve ter infetado. ele encosta ‑se ao balcão, pressiona a mão sobre o flanco e tenta dar ar de que está tudo na maior.

— Já começava a pensar que tinhas mudado de ideias — diz ‑me, os seus olhos escuros a brilharem como se ele estivesse a meter ‑se comigo, embora também possa ser por causa da febre.

Abano a cabeça.— Foi a Teacup.— ela vai ficar bem. — Para me tranquilizar, o Zombie lança ‑me

um daqueles seus sorrisos arrasadores. ele ainda não percebeu bem o valor inestimável das promessas, caso contrário não as largaria por aí de uma maneira tão casual.

— Não é com a Teacup que eu estou preocupada. estás com um ar horrível, Zombie.

— É este clima. Deixa ‑me a pele numa desgraça. — A piada é rematada por um segundo sorriso. ele inclina ‑se para mim, desa‑fiando ‑me a ripostar também com alguma piada. — Um destes dias, soldado Ringer, hás de sorrir de alguma coisa que eu disser e então o mundo há de rachar ‑se em dois.

— Não estou preparada para assumir tamanha responsabilidade.ele ri e é possível que eu lhe ouça um arranhar no fundo do peito.— Toma. — estende ‑me mais um folheto a falar das grutas. — Já tenho um — digo ‑lhe.— Leva também este, para o caso de perderes o teu.

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— Não o vou perder, Zombie.— Vou mandar o Poundcake contigo — avisa ele.— Não vais, não.— Quem manda sou eu. Portanto, vou.— O Poundcake faz ‑te mais falta aqui do que me faz a mim lá.ele assente. Sabia que eu ia recusar, mas não resistiu a fazer uma

última tentativa. — Talvez devêssemos abortar a missão — diz ‑me. — Quero dizer,

isto aqui não é assim tão mau. Temos aí umas mil carraças, umas quan‑tas centenas de ratos e umas duas dúzias de cadáveres, mas a vista é espetacular... — continua no gozo, continua a tentar fazer ‑me rir. Olha para o folheto que tem nas mãos. 23 oC o ano todo!

— Até a neve nos encurralar aqui ou a temperatura tornar a des‑cer. A situação é insustentável, Zombie. Já passámos aqui tempo a mais.

Não entendo. Já discutimos isto até mais não poder e agora ele quer continuar a bater no ceguinho. Às vezes, este Zombie deixa ‑me parva.

— Temos de arriscar e sabes muito bem que não podemos ir às cegas — continuo. — O mais provável é que haja outros sobreviven‑tes escondidos naquelas grutas e talvez não se sintam muito inclinados a estender ‑nos o tapete de boas ‑vindas, sobretudo se já se tiverem cruzado com algum dos Silenciadores da Sullivan.

— Ou recrutas como nós — acrescenta ele.— Por isso, vou dar uma vista de olhos e volto daqui por um par

de dias.— Vou cobrar ‑te essa promessa.— Não era uma promessa.Não há mais nada a dizer. Fica um milhão de coisas por dizer. esta

poderá ser a última vez que nos vemos e ele também está a pensar isso, porque me diz:

— Obrigado por me teres salvado a vida.— Meti ‑te um balázio no tronco e talvez acabes por morrer disso.ele abana a cabeça. Os olhos brilham ‑lhe da febre. Tem os lábios

cinzentos. Por que raio lhe foram chamar «Zombie»? Soa a um pres‑ságio. Da primeira vez que o vi, estava no pátio de exercícios, a fazer flexões usando os nós dos dedos, o seu rosto contorcido de raiva e de dor, o sangue a formar uma poça no asfalto por baixo dos punhos dele. Quem é aquele tipo?, perguntei eu. Chama ‑se Zombie. contaram‑‑me que ele tinha sobrevivido à peste e eu não acreditei neles. Nin‑guém vence a peste. A peste é uma sentença de morte. e o Reznik, o sargento ‑instrutor, estava debruçado para ele, a berrar ‑lhe a plenos

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pulmões, e o Zombie, vestido com aquele macacão azul muito largo, tentava ultrapassar aquele ponto em que parece impossível fazer mais uma flexão que seja. Nem sei por que é que me surpreendi quando ele me mandou dar ‑lhe um tiro — para assim poder cumprir a pro‑messa impossível de se cumprir que fizera ao Nugget. Quando olha‑mos a morte nos olhos e a morte é a primeira a pestanejar, já nada parece impossível.

Incluindo ler os pensamentos.— eu sei o que estás a pensar — diz ele.— Não sabes, não.— estás a perguntar ‑te se devias dar ‑me um beijo de despedida.— Porque é que fazes isso? — pergunto ‑lhe. — Porque é que te

pões a namoriscar comigo?ele encolhe os ombros. Tem um sorriso enviesado, assim como a

linha do seu corpo encostado ao balcão.— É normal. Não tens saudades das coisas normais? — pergunta‑

‑me. Os seus olhos fixam ‑se bem no fundo dos meus, sempre à pro‑cura de qualquer coisa, nunca sei bem o quê. — Tipo, os drive ‑through, ir ao cinema no sábado à noite, as sandes de gelado e ires ao Twitter...?

Abano a cabeça.— Nunca usei o Twitter.— e o Facebook?começo a ficar um bocado irritada. Às vezes custa ‑me a imaginar

como foi que o Zombie sobreviveu até aqui. Lamentar o que perdemos é o mesmo que desejar o que nunca poderá acontecer. Ambas as coisas são becos sem saída rumo ao desespero.

— Não é importante — replico. — Nada disso interessa.O riso do Zombie sai ‑lhe bem lá do fundo. Vem a borbulhar até

à superfície tal como o ar superaquecido de uma nascente de água quente e então a minha irritação passa. Sei que ele está a usar o seu charme, mas, de alguma maneira, perceber a intenção não anula o efeito. Mais uma das razões por que o Zombie me enerva um bocado.

— É engraçado — diz ele. — O quanto pensámos que tudo isso importava. Sabes o que é que importa mesmo? — Fica à espera da minha resposta. Sinto que ele está a tentar apanhar ‑me desprevenida para atacar com uma piada, por isso não digo nada. — O segundo toque.

Agora encurralou ‑me. Sei que está a dar ‑se aqui uma manipulação qualquer, mas não tenho maneira de a travar.

— O segundo toque...?

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— É o som mais banal do mundo. e, quando tudo isto tiver passado, tornará a haver segundos toques. — Resolve explicar ‑se melhor; deve estar com medo de que eu não perceba. — Pensa só! Quando se torna‑rem a ouvir os segundos toques, é porque o normal está de volta. Os miúdos a correrem para as aulas; depois lá sentados, fartos daquilo, à espera do toque de saída e a pensarem no que vão fazer nessa noite, nesse fim de semana ou nos próximos cinquenta anos. Vão estar a aprender a respeito de catástrofes naturais, de doenças e de guerras mundiais, tal como nós. Tipo: «Quando os extraterrestres chegaram, morreram sete mil milhões de pessoas», e depois ouve ‑se o toque de saída e o pessoal vai todo almoçar e queixar ‑se por as batatas fritas estarem moles. Do género: «Uau, sete mil milhões de pessoas é bué. Muita chato. Vais comer essas batatas todas?» Isto é o normal. Isto é o que importa.

Portanto, não era uma piada.— Batatas fritas moles...?— Ok, pronto. Nada disto faz sentido. Sou um imbecil.Sorri. com aquela barba desmazelada à volta, os dentes dele pare‑

cem muito brancos, e agora, por ele o ter sugerido, penso em beijá ‑lo e pergunto ‑me se os pelos por cima do lábio superior picariam.

Afasto esse pensamento. As promessas têm um valor inestimável e, de certa maneira, um beijo também é uma promessa.

2

A luz das estrelas não perdeu força; atravessando a escuridão, tinge a autoestrada de um branco ‑pérola. As ervas secas brilham; as árvo‑res despidas reluzem. Tirando o vento que corta a direito pelo territó‑rio sem vida, o mundo está mergulhado numa quietude invernosa.

Agacho ‑me junto a um monovolume gripado para olhar uma última vez para o hotel. Trata ‑se de um retângulo branco de dois andares e sem nada que o diferencie, no meio de um aglomerado de outros retângulos brancos sem nada que os diferencie. Fica a apenas seis quilómetros da cratera gigante que antes era camp Haven e pusemos ‑lhe o nome de Walker Hotel, em honra do arquiteto responsável por essa cratera gigante. A Sullivan contou ‑nos que o hotel era o ponto de encontro pré ‑combinado por ela e pelo evan. Pareceu ‑me demasiado próximo do local do crime e demasiado difícil de se defender e, seja como for, o evan Walker está morto; para haver um encontro, são precisas duas

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pessoas, tal como lembrei ao Zombie. Mas o meu argumento foi rejei‑tado. Se o Walker era mesmo um deles, poderá ter arranjado maneira de sobreviver.

— como? — perguntei eu.— Havia cápsulas de evacuação — respondeu a Sullivan.— e então?ela franziu as sobrancelhas e respirou fundo.— Então... ele pode ter escapado numa.Olhei ‑a fixamente. ela olhou ‑me de volta. Nenhuma das duas deu

um pio. e então o Zombie disse:— Bom, temos de nos abrigar nalgum sítio, Ringer. — Ainda não

tinha encontrado o folheto a falar das grutas. — e devíamos dar ‑lhe o benefício da dúvida.

— O benefício de qual dúvida? — ripostei.— De que ele é quem diz ser. — O Zombie olhou para a Sullivan,

que continuava a fulminar ‑me com o olhar. — De que ele vai cumprir a promessa que fez.

— ele prometeu que me encontrava — explicou ela.— eu vi o avião de carga — disse eu. — Não vi nenhuma cápsula

de evacuação.Por baixo das sardas, a Sullivan estava a corar.— Lá porque tu não viste nenhuma...Voltei ‑me para o Zombie.— Isto não faz sentido nenhum. Um ser milhares de anos mais

avançado do que nós volta ‑se contra a própria espécie... Porquê?— Ninguém me pôs a par dos «porquês» — replicou o Zombie

com um meio sorriso.— Toda a história que ele contou é esquisita — insisti. — Uma

consciência pura a ocupar um corpo humano... Se eles não precisam de corpos, também não precisam de um planeta.

— Talvez precisem do planeta para alguma outra coisa. — O Zom‑bie estava a esforçar ‑se à brava.

— Para quê?! Para fazerem criação de gado?! Para terem onde passar férias?! — Alguma outra coisa estava a incomodar ‑me, uma vozinha insistente que dizia: Há qualquer coisa que não bate certo. Mas não conseguia precisar que coisa era essa; de cada vez que tentava deitar ‑lhe a mão, ela escapulia ‑se.

— Não houve tempo para discutir todos os detalhes! — disse a Sullivan, irritada. — estava, tipo, focada em salvar o meu irmão mais novo de um campo de extermínio.

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Abandonei o assunto. ela parecia estar com a cabeça prestes a explodir.

Agora, ao olhar uma última vez para o hotel, consigo distinguir essa mesma cabeça em silhueta numa janela no segundo andar, e a situação está mesmo com má cara: qualquer atirador furtivo conse‑guiria acertar ‑lhe. O próximo Silenciador que lhe aparecer pela frente poderá não cair de amores por ela, como aconteceu com o primeiro.

entro pela estreita faixa de arvoredo à beira da estrada. endurecidas pela geada, as ruínas do outono estalam sob as minhas botas. Folhas enroladas com punhos fechados, lixo e ossos humanos dispersados por gente que andava à procura de comida. O vento frio traz con sigo um ligeiro odor a fumo. O mundo vai arder por cem anos. O fogo vai con‑sumir as coisas que fizemos com madeira, com plástico, com borracha e com tecido e, depois, a água, o vento e o tempo mastigarão a pedra e o aço até os fazerem em pó. É desconcertante termos imaginado cidades incineradas por bombas alienígenas e por raios laser quando eles não precisavam senão da Mãe Natureza e de tempo.

e também de corpos humanos, segundo a Sullivan, não obstante o facto de, também segundo a Sullivan, eles não precisarem de corpo.

Uma existência virtual não requer um planeta físico.Quando eu disse isto pela primeira vez, ela recusou ‑se a ouvir ‑me

e o Zombie comportou ‑se como se não fizesse diferença. Seja lá pelo que for, disse ‑me, o fundamental é que eles querem matar ‑nos a todos. Tudo o resto é apenas ruído de fundo.

Talvez. Mas eu não acho isso.Por causa dos ratos.esqueci ‑me de contar ao Zombie a respeito dos ratos.

3

Ao nascer do sol, chego à orla sul de Urbana. Já fiz metade do trajeto — e no tempo previsto.

O céu encheu ‑se de nuvens vindas de norte; o sol ergue ‑se por cima do dossel que elas formam, tingindo ‑lhes o ventre de um cintilante castanho ‑avermelhado. Vou esconder ‑me entre as árvores até ao anoi‑tecer e depois faço ‑me ao território a céu aberto para oeste da cidade, rezando para que as nuvens continuem onde estão durante algum tempo, pelo menos até eu tornar a entrar na autoestrada, já do lado

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de lá. contornar Urbana obriga ‑me a fazer mais quilómetros, mas, mais arriscado do que atravessar uma cidade durante o dia, só mesmo tentar atravessá ‑la durante a noite.

e isto é tudo uma questão de calcular os riscos.Uma névoa vai subindo do chão gelado. está um frio tremendo.

esmaga ‑me as bochechas e faz o meu peito doer de cada vez que ins‑piro. Sinto, bem no fundo dos meus genes, o impulso primitivo de fazer fogo. A conquista do fogo foi o nosso primeiro grande passo em frente; o fogo protegeu ‑nos, manteve ‑nos aquecidos e transformou‑‑nos o cérebro ao alterar ‑nos a dieta, que passou de bagas e frutos de casca rija a carne rica em proteínas. Agora o fogo é mais uma arma no arsenal do nosso inimigo. À medida que o inverno ganha força, vemo ‑nos encurralados entre dois riscos inaceitáveis: morrermos gela‑dos ou denunciarmos ao inimigo a nossa localização.

Sentada contra uma árvore, tiro para fora o folheto. As grutas mais coloridas do Ohio! O Zombie tem razão. Se não arranjarmos abrigo, não sobreviveremos até à primavera e as grutas são a nossa melhor — tal‑vez a única — opção. Talvez tenham sido ocupadas ou destruídas pelo inimigo. Talvez haja lá sobreviventes, que abrirão fogo sobre qualquer desconhecido que avistem. Mas, a cada dia que passamos naquele hotel, o risco torna ‑se dez vezes maior.

Se não pudermos ficar nas grutas, não haverá alternativa. Não teremos para onde fugir nem onde nos esconder, e pensar em lutar é absurdo. A contagem decrescente vai chegando ao fim.

Quando lhe expus o problema, o Zombie disse ‑me que eu penso demais. estava a sorrir. Mas depois parou de sorrir e acrescentou: «Não os deixes entrarem ‑te na cabeça.» como se estivéssemos num jogo de futebol e eu fosse um jogador a precisar de um discurso moti‑vador ao intervalo. Estão a levar cinquenta e seis a zero, mas não pensem nisso. Joguem pelo orgulho! É em momentos desses que me dá vontade de lhe dar uma chapada; não que isso fosse fazer alguma diferença, mas, pelo menos, eu ficava a sentir ‑me melhor.

A brisa amaina. Paira um silêncio expectante, a calmaria que pre‑cede a tempestade. Se nevar, ficaremos encurralados. eu aqui no arvo‑redo. O Zombie lá no hotel. Ainda estou a cerca de trinta quilómetros das grutas; devo arriscar atravessar o território a céu aberto durante o dia ou confiar que não vai nevar pelo menos até ao anoitecer?

e lá regresso eu à palavra começada por «r». É tudo uma questão de calcular os riscos. Não apenas para nós, mas também para eles; enfiarem ‑se em corpos humanos, organizarem campos de extermínio,

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treinarem crianças para concluírem o genocídio — tudo isso foi um risco de doidos, um risco muito estúpido. Assim como o evan Walker, que é discordante, ilógico e esquisito à brava. Os ataques iniciais foram brutais na sua eficácia, limpando 98 por cento da humanidade, e até mesmo a Quarta Vaga fez algum sentido: é difícil organizar uma resistência digna desse nome se não pudermos confiar uns nos outros. Mas, depois disso, a estratégia brilhante dos extraterrestres começa a meter água. Dez mil anos a planear a erradicação da humanidade e isto foi o melhor de que se lembraram? É essa a pergunta que não me sai da cabeça e tenho ‑lhe dado voltas e mais voltas desde a Teacup e a noite dos ratos.

Bem do interior do arvoredo, nas minhas costas e pela esquerda, um gemido suave corta o silêncio. Reconheço imediatamente o som — já o ouvi algumas mil vezes desde que eles chegaram. Nos primei‑ros dias era quase omnipresente, um ruído de fundo constante, assim como o murmurar do trânsito numa autoestrada muito movimentada — o som de um ser humano em sofrimento.

Tiro o monóculo da mochila e ajusto cuidadosamente a lente sobre o olho esquerdo. com gestos precisos. Sem entrar em pânico. O pânico mata neurónios. Ponho ‑me de pé, armo o gatilho da espingarda e, sem ruído, avanço pelo meio das árvores em direção ao som, de olhos postos no terreno, à procura daquele brilho esverdeado que denuncia os «infes‑tados». O arvoredo está envolto em névoa; o mundo cobriu ‑se de branco. Os meus passos ribombam no chão gelado. As minhas expira‑ções são como estrondos.

A delicada cortina branca abre ‑se e então vejo, vinte metros adiante, uma figura apoiada contra uma árvore, a cabeça para trás, as mãos a pressionarem o colo. Vista através do monóculo, a cabeça não brilha, o que significa que não se trata de um civil; faz parte da Quinta Vaga.

Aponto ‑lhe a espingarda à cabeça.— Mãos! essas mãos à vista!ele está de boca entreaberta. Os seus olhos inexpressivos obser‑

vam o céu cinzento por entre os ramos despidos e reluzentes do gelo. Aproximo ‑me mais um passo. ele tem uma espingarda igual à minha caída aos pés mas não tenta agarrá ‑la.

— Onde está o resto do teu pelotão? — pergunto. ele não me responde.

Baixo a arma. Sou uma idiota. Nesta temperatura, devia ver ‑lhe o bafo, mas não lhe sai nada. O gemido que escutei deve ter sido o seu

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último. Dou lentamente uma volta completa sobre os calcanhares, de respiração em suspenso, mas não vejo nada para além das árvores e da névoa e não ouço nada senão o meu próprio sangue a pulsar ‑me nos ouvidos. então aproximo ‑me do corpo, forçando ‑me a agir sem pressas e a reparar em tudo. Nada de pânicos. O pânico mata.

A arma é igual à minha. O uniforme também. e o monóculo dele está caído no chão, mesmo junto aos pés. É um soldado da Quinta Vaga, sem dúvida.

estudo ‑lhe o rosto. Parece ‑me vagamente familiar. calculo que terá doze ou treze anos, mais ou menos a idade do Dumbo. Ajoelho‑‑me ao lado dele e pressiono as pontas dos dedos contra o seu pescoço. Não lhe sinto a pulsação. Desaperto ‑lhe o blusão e puxo a camisola encharcada em sangue para ver onde é a ferida. Foi atingido em cheio nas tripas por um único disparo de uma arma de alto calibre.

Um disparo que eu não ouvi. Ou ele já está aqui há algum tempo, ou então o atirador usou um silenciador.

Um Silenciador.

Segundo a Sullivan, o evan Walker despachou sozinho um pelotão inteiro — de noite, estando ele ferido e em desvantagem numérica; isso foi uma espécie de aquecimento para depois, quando, sozinho, destruiu um complexo militar. Na altura, tive dificuldade em acredi‑tar no que a cassie me estava a contar. Mas agora tenho um soldado morto aos meus pés. Do seu pelotão, nem sinal. e eu a sós com o silêncio da floresta e com a cortina de nevoeiro de um branco leitoso.

Neste momento, a história da cassie já não me parece assim tão inacreditável.

Pensa rápido. Não entres em pânico. Isto é como o xadrez. Pesa as opções. Calcula os riscos.

Tenho duas alternativas. Posso ficar aqui quieta até acontecer alguma coisa ou até cair a noite. Ou posso sair da floresta na bisga. Quem quer que o tenha matado tanto pode estar a quilómetros daqui como agachado atrás de uma árvore, à espera da oportunidade para um tiro certeiro.

As possibilidades multiplicam ‑se. Onde estará o pelotão dele? Morto? Andará à caça da pessoa que o matou? e se a pessoa que o matou tiver sido um companheiro de recruta a quem «deu a Doro‑thy»? Aliás, esqueçamos o pelotão dele; o que acontecerá quando chegarem reforços?

Puxo da minha faca. Já passaram cinco minutos desde que o encon‑trei. Se alguém tivesse detetado a minha presença, eu já estaria morta.

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Vou esperar até ser de noite, mas tenho de me preparar para a probabili‑dade de vir aí mais um rolo triturador da Quinta Vaga, direito a mim.

Vou ‑lhe tateando a nuca até encontrar o altinho por baixo da cica‑triz. Fica calma. Isto é como o xadrez. Atacar e contra ‑atacar, mais nada.

Abro a cicatriz com a faca e extraio a cápsula, que fica colada à lâmina por uma gota de sangue.

Para sabermos sempre onde estás. Para podermos proteger ‑te.Riscos. O risco de acender ao ser vista através da lente especial.

Ou, então, o risco oposto: o inimigo poder fritar ‑me o cérebro com um toque num botão.

A cápsula no seu leito de sangue. A horrível quietude do arvoredo, o frio que nos esmaga e o nevoeiro que se enrola por entre os ramos como dedos que se entrelaçam. e a voz do Zombie na minha cabeça: Pensas demais.

enfio a cápsula entre a gengiva e o interior da bochecha. estúpida. Devia tê ‑la limpado primeiro. Sinto o sabor do sangue do miúdo.

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Não estou sozinha. Não consigo vê ‑lo nem ouvi ‑lo, mas sinto ‑o. cada palmo do meu corpo estremece com a sensação de estar a ser observada. Por esta altura, tal sensação já se tornou desconforta‑velmente familiar; está presente desde o começo. Bastou a nave mãe a pairar silenciosamente em órbita durante os primeiros dez dias para se abrirem fendas no edifício da humanidade. Foi uma outra espé cie de epidemia viral: a incerteza, o medo, o pânico. Autoestra‑das entupidas, aeroportos desertos, serviços de emergência a deitar por fora, governos colocados sob proteção, falta de comida e de com‑bustível, lei marcial imposta nalguns sítios e outros entregues à anar quia. O leão agacha ‑se por entre a vegetação alta. A gazela cheira o ar. A horrível quietude antes do ataque. Pela primeira vez em dez milénios, tornámos a saber qual é a sensação de se ser a presa.

As árvores estão cheias de corvos. As suas cabeças são pretas e lus‑trosas, os olhos são pretos e inexpressivos e as suas silhuetas corcundas fazem ‑me lembrar os velhinhos nos bancos dos jardins. São centenas de corvos, empoleirados nas árvores ou aos saltinhos pelo chão. Olho de fugida para o corpo ao meu lado, os seus olhos tão vazios e sem fundo como os dos corvos. Sei o que trouxe ali os pássaros. estão com fome.

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e eu também estou, por isso tiro para fora o meu saquinho de tiras de carne seca e de gomas de fruta apenas ligeiramente passadas do prazo. Também comer é um risco, porque vou ter de tirar o localizador da boca, mas tenho de me manter alerta e, para me manter alerta, preciso de combustível. Os corvos vão ‑me observando, inclinando a cabeça como se estivessem a fazer um esforço para me ouvirem mastigar. Seus badochas. Como é que ainda podem estar com fome? com os ataques, ficaram à dispo‑sição milhões de toneladas de carne. No auge da epidemia, bandos gigantescos obscureceram o céu, os seus vultos a atravessarem veloz‑mente a paisagem enfumarada. Os corvos e demais aves que se alimen‑tam de cadáveres concluíram a Terceira Vaga. Alimentaram ‑se de corpos infetados e assim fizeram o vírus continuar pela cadeia alimentar.

Talvez esteja enganada. Talvez estejamos aqui sozinhos, eu e este miúdo morto. À medida que os segundos passam, vou ‑me sentindo mais segura. Se alguém me estiver a observar, ocorre ‑me uma única razão para ainda não ter disparado: quer ver se vão aparecer por aqui mais miúdos idiotas a brincarem aos soldados.

Termino o pequeno ‑almoço e torno a meter a cápsula na boca. Os minutos arrastam ‑se. Um dos aspetos mais desorientadores da invasão — a seguir a vermos todas as pessoas que conhecíamos e que amáva‑mos morrerem das maneiras mais horríveis — foi a maneira como o tempo abrandou à medida que os acontecimentos iam acelerando. Dez mil anos para erguer uma civilização, dez meses para a deitar por terra e cada dia durava dez vezes mais do que o anterior e as noites duravam dez vezes mais do que os dias. A única tortura maior do que a mono‑tonia dessas horas era o terror de sabermos que a qualquer minuto poderiam esgotar ‑se.

Meio da manhã: a névoa levanta e a neve começa a cair em flocos mais pequenos do que os olhos dos corvos. Não se sente o mais leve sopro de vento. O arvoredo está envolto numa acetinada luz branca que parece saída de um sonho. Se não nevar com mais força do que isto, posso perfeitamente esperar até ao anoitecer.

contanto que não adormeça. Há mais de vinte horas que não durmo e estou a sentir ‑me quente, confortável e a tripar ligeiramente.

Nesta quietude leve como gaze, a minha paranoia entra em ação. A minha cabeça está perfeitamente centrada na mira dele. está empo‑leirado numa árvore; está escondido na vegetação, imóvel como um leão. Para ele, eu sou um enigma. Deveria estar em pânico. É por isso que ele não abre fogo, antes esperando que a situação evolua. Deve haver alguma razão para eu estar aqui a descontrair na companhia de um cadáver.

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Mas não entro em pânico. Não fujo como uma gazela assustada. Sou mais do que a soma dos meus medos.

Não será o medo a derrotá ‑los. Não será o medo, a fé, a esperança ou sequer o amor, mas sim a raiva.

Vá ‑se foder, disse a Sullivan ao Vosch. Foi a única parte da história dela que me deixou impressionada. ela não chorou. Não rezou. Não implorou.

Julgou que era o fim e, chegando o fim, quando o relógio marcar o último segundo, ter ‑se ‑á esgotado o tempo de chorar, de rezar ou de implorar.

— Vai ‑te foder — sussurro. Dizer estas palavras faz ‑me sentir melhor. Repito ‑as, agora mais alto. A minha voz é levada no ar do inverno.

Um bater de asas negras no interior do arvoredo, do meu lado direito, o petulante crocitar dos corvos e, visto através do meu monóculo, um minúsculo pontinho verde a brilhar por entre o castanho e o branco.

Apanhei ‑te.Vai ser um tiro difícil. Difícil, mas não impossível. Nunca tinha

mexido numa arma de fogo na minha vida até o inimigo me encontrar escondida na zona de descanso da interestadual à saída de cincinnati, me levar para o seu campo militar e me pôr uma espingarda nas mãos, altura em que o sargento ‑instrutor se perguntou em voz alta se o comando teria infiltrado uma perita na unidade1. Seis meses mais tarde, meti um balázio no coração desse homem.

Tenho um dom.A flamejante luz verde vai ‑se aproximando. Talvez ele saiba que o

localizei. Não interessa. Acaricio o metal escorregadio do gatilho e, pelo monóculo, vejo a mancha luminosa a expandir. Talvez ele julgue que está fora do meu alcance, ou então está a posicionar ‑se para con‑seguir uma linha de tiro melhor.

Não interessa.Talvez não se trate de um dos assassinos silenciosos da Sullivan.

Poderá ser apenas algum pobre sobrevivente perdido e com esperança de ser salvo.

Não importa. Já só importa uma coisa.O risco.

1 entre outros significados, o termo ringer designa um perito, alguém que se destaca em dada atividade. Quando, no livro anterior, o sargento ‑instru tor anuncia a chegada ao pelotão de uma perita — de uma Ringer —, ela passa a ser conhecida por esse mesmo nome: Ringer. (NT)

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