THE IMAGE THAT MOBILIZES: Menchari's showcases as memory · 2019. 5. 29. · de Le Goff (1990),...

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 1 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php A IMAGEM QUE MOBILIZA: as vitrinas de Menchari como ativadoras de memórias THE IMAGE THAT MOBILIZES: Menchari's showcases as memory Renata Pitombo Cidreira 1 Resumo: Na contemporaneidade há uma busca da memória, sobretudo nas imagens, a partir de uma conversão do nosso olhar histórico. Por isso mesmo, não podemos desconsiderá-la nas suas manifestações mais atuais, como nos dispositivos visuais e midiáticos que são as vitrinas de moda, em que não só os materiais da moda são desejados, mas a própria memória também ali se conforma e se almeja... Desse modo, vamos procurar compreender como as vitrinas de Leila Menchari, da grife Hermès nos afetam e ativam nossas memórias. Para tanto, utilizaremos um aporte conceitual da estética da recepção, através dos trabalhos de três autores: Hans- Robert Jauss (1994, 2002), Wolfgang Iser (1996, 1999) e Paul Ricoeur (1997). Além de sermos guiados pele teoria da formatividade de Luigi Pareyson (1993), pelas reflexões estéticas de John Dewey (2010) e pelas contribuições relativas à memória de Le Goff (1990), entre outros autores. Palavras-Chave: Vitrina de moda. Memória. Afeto. Abstract: In contemporary times there is a search for memory, especially in the images, from a conversion of our historical gaze. For this reason, we can not disregard it in its most current manifestations, as in the visual and media devices that are the fashion showcases, in which not only the fashionable materials are desired, but the memory itself also conforms and is sought there ... In this way, we will try to understand how the showcases of Leila Menchari, of the label Hermès affect us and activate our memories. For this, we will use a conceptual contribution of the reception aesthetics through the works of three authors: Hans-Robert Jauss (1994, 2002), Wolfgang Iser (1996, 1999) and Paul Ricoeur (1997). In addition to being guided by Luigi Pareyson's theory of formativity (1993), by the aesthetic reflections of John Dewey (2010) and contributions related to the memory of Le Goff (1990), among others. Keywords: Display case for fashion. Memory. Affection. 1 Professora Associada do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA, 2003) com Pós- doutorado em Sociologia (Paris V-Sorbonne, 2011). E-mail: [email protected].

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    A IMAGEM QUE MOBILIZA: as vitrinas de Menchari como ativadoras de memórias

    THE IMAGE THAT MOBILIZES: Menchari's showcases as memory

    Renata Pitombo Cidreira 1

    Resumo: Na contemporaneidade há uma busca da memória, sobretudo nas imagens, a partir de uma conversão do nosso olhar histórico. Por isso mesmo, não podemos desconsiderá-la nas suas manifestações mais atuais, como nos dispositivos visuais e midiáticos que são as vitrinas de moda, em que não só os materiais da moda são desejados, mas a própria memória também ali se conforma e se almeja... Desse modo, vamos procurar compreender como as vitrinas de Leila Menchari, da grife Hermès nos afetam e ativam nossas memórias. Para tanto, utilizaremos um aporte conceitual da estética da recepção, através dos trabalhos de três autores: Hans-Robert Jauss (1994, 2002), Wolfgang Iser (1996, 1999) e Paul Ricoeur (1997). Além de sermos guiados pele teoria da formatividade de Luigi Pareyson (1993), pelas reflexões estéticas de John Dewey (2010) e pelas contribuições relativas à memória de Le Goff (1990), entre outros autores.

    Palavras-Chave: Vitrina de moda. Memória. Afeto. Abstract: In contemporary times there is a search for memory, especially in the images, from

    a conversion of our historical gaze. For this reason, we can not disregard it in its most current manifestations, as in the visual and media devices that are the fashion showcases, in which not only the fashionable materials are desired, but the memory itself also conforms and is sought there ... In this way, we will try to understand how the showcases of Leila Menchari, of the label Hermès affect us and activate our memories. For this, we will use a conceptual contribution of the reception aesthetics through the works of three authors: Hans-Robert Jauss (1994, 2002), Wolfgang Iser (1996, 1999) and Paul Ricoeur (1997). In addition to being guided by Luigi Pareyson's theory of formativity (1993), by the aesthetic reflections of John Dewey (2010) and contributions related to the memory of Le Goff (1990), among others.

    Keywords: Display case for fashion. Memory. Affection.

    1Professora Associada do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA, 2003) com Pós-doutorado em Sociologia (Paris V-Sorbonne, 2011). E-mail: [email protected].

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    1. Introdução As cenas da moda carregam histórias, valores e memórias. É desse universo visual

    repleto de referências temporais que habitam nossos corpos que desejamos falar e, para tanto,

    selecionamos as vitrinas de moda como emblemas desses dispositivos imagéticos que nos

    transportam para outros espaços e temporalidades, aguçando nosso desejo, nosso afeto, nossa

    memória, construindo novas narrativas de nós mesmos e do mundo que nos cerca.

    As vitrinas de Leila Menchari são o objeto do nosso empenho reflexivo. Vitrinista da

    Hermès entre 1978 e 2013, criou cerca de 150 espaços fabulosos de exposição dos produtos da

    marca francesa, que fascinaram consumidores e transeuntes que circulavam na rua Faubourg

    Saint-Honoré, em Paris. Em 35 anos de parceria, a artista plástica tunisiana ajudou a consolidar

    a mítica da grife Hermès no mundo do luxo, com criações de instalações artísticas repletas de

    referências históricas e oníricas. É impressionante observar “a forma como ela combinou

    bolsas, malas, lenços de seda e até selas de cavalo com objetos cuidadosamente escolhidos para

    criar verdadeiros dioramas hipnóticos” (Revista Istoé, 2017).

    Diante das vitrinas de Leila Menchari impossível não refletir sobre elas. O impacto das

    vitrinas é tamanho e essa afetação nos instigou a investir sobre as mesmas um olhar crítico.

    Das imagens doces da sua infância na Tunísia aos bombardeamentos alemães que a levou,

    juntamente com a família, a se refugiar na província, muitas são as memórias e sentimentos

    que se mesclam em formas e cores nas suas vitrinas. “As imagens vão assombrar a memória

    de Leila por um longo tempo, a partir das quais ela vai desenhar histórias cheias de doçura e

    humor” (DUMAS; BARROT; BALSAN, 2017, p. 53). Sabemos que o investimento aqui

    proposto não é fácil, pois que nos cabe tentar compreender os mecanismos através dos quais

    elas fazem sentido, promovem prazer nos seus espectadores, ativam nossa memória e afetos, e

    assumem valor no mercado da moda.

    Lembrando as ponderações de Pareyson, estaremos atentos ao fato de que nossa

    reflexão não pode ser algo que venha de acréscimo, em si estranha ao que o autor denomina de

    reevocação da obra; precisamos deixar que a nossa consciência metodológica emerja da própria

    interação com as vitrinas e opere dentro da interação mesma, e se torne “meio para o mais fácil

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    entendimento da obra de arte, guiando os leitores ou contempladores (…)” (PAREYSON,

    1993, p. 260).

    Nesse sentido, nos parece pertinente mencionar de que maneira estabelecemos contato

    com algumas das vitrinas de Leila Menchari, pois o modo como nos aproximamos das mesmas

    certamente formou um determinado enquadramento para a nossa recepção, a partir do qual

    estabelecemos a nossa reflexão, procurando sempre levar em conta a necessidade da adoção de

    alguma metodologia. Para tanto, utilizaremos um aporte conceitual da estética da recepção,

    através dos trabalhos de três autores: Hans-Robert Jauss (1994, 2002), Wolfgang Iser (1996,

    1999) e Paul Ricoeur (1997). Além de sermos guiados pele teoria da formatividade de Luigi

    Pareyson (1993), pelas reflexões estéticas de John Dewey (2010) e pelas contribuições relativas

    à memória de Le Goff (1990), entre outros autores.

    Ainda nos guiando pelas sugestões de Pareyson (1993), intentamos observar e

    compreender as vitrinas, distinguindo nas mesmas partes bem acabadas e partes falhas;

    repercorrendo o processo de interpretação, interrogando a obra sobre seu significado,

    “descrevendo a compreensão que atingiu e as revelações recebidas”, com o intuito de guiar

    outros espectadores, produzindo “um ambiente sugestivo propício à reevocação”

    (PAREYSON, 1993, p. 262). Assim, vamos procurar mostrar como se efetua nas vitrinas

    avaliadas a harmonia entre a matéria e a forma, como insiste Dewey (2010), culminando numa

    unidade estética e como esta ativa nossa memória e afeto.

    2. A primeira visão: Vivência do passado ou abertura de horizontes?

    A primeira vez que vimos uma vitrina de Leila Menchari foi em 02 de dezembro de

    2017, por ocasião da exposição intitulada Hermès à tire-d’aile – Les mondes de Leïla Menchari

    (Hermès em um relance – Os mundos de Leïla Menchari), no espaço do Grand Palais – Galerie

    Sud-Est, em Paris. Era uma tarde de inverno rigoroso e levamos cerca de 1h30 minutos numa

    fila antes de nos depararmos com o primeiro ambiente caloroso, intenso e surpreendente de

    Menchari, de um total de oito espaços do universo poético e extraordinário da vitrinista, com

    cenografia de Natalie Grinièrre.

    Essa contextualização é importante, na medida em que, por um lado, já apresenta as

    vitrinas deslocadas do seu local de origem e acolhidas por um espaço que as legitima como

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    obras de arte; por outro, exibe a condição corporal antes e depois de entrar na exposição,

    sugerindo um estado de aquecimento e conforto, que já nos predispõe fisicamente de forma

    positiva ao contato com a obra. Esse enquadramento prévio dimensiona e modula o modo como

    nos deixamos afetar pelas vitrinas e como nossos processos memoriais são acionados.

    Tal condição corporal se intensifica com o que vemos; mas do que isso: se potencializa

    pelo ambiente no qual somos envolvidos, pois o contato com as vitrinas de Menchari nos

    transporta para além de fantásticas cenas; elas nos fazem penetrar em instigantes ambientes,

    acionando os nossos sentidos numa intensa sinestesia. Como diria Cézanne em relação à

    pintura, é como se fosse possível pintar o cheiro das árvores, ao que acrescentaríamos: como

    se fosse possível ouvir o barulho das ondas do mar e sentir a aridez e o calor do deserto. Os

    ambientes ativam nossa memória e nos fazem buscar lá no fundo referências de momentos

    similares aos propostos pelas imagens ali expostas.

    A autonomia dos espaços criados por Menchari é impressionante. Eles deixam de ser

    uma espécie de representação do mundo, e se constituem em um mundo em si mesmos. Exigem

    do espectador uma percepção a partir das indicações silenciosas de todas as partes que nos são

    fornecidas pela disposição dos objetos naquele espaço, “(...) até que todos, sem discurso ou

    raciocínio, componham-se em uma organização rigorosa em que se sente que nada é arbitrário,

    mesmo se não tivermos condições de dizer a razão disso” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 60).

    Além disso, a força visual de cada vitrina é capaz de estimular nossa memória, a ponto de nos

    deslocar para espaços nunca visitados, mas imaginados, bem como nos fazer recordar

    espacialidades e temporalidades já instituídas em nosso repertório imagético e corporal.

    Funcionam, muitas vezes, como uma imagem-recordação, como nos sugere Ricoeur (2003).

    Segundo as observações do historiador Jacques Le Goff (1990), psicanalistas e

    psicólogos insistem em afirmar que tanto no âmbito da recordação, quanto do esquecimento, é

    determinante o mecanismo das manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a

    afetividade, o desejo, a inibição, ou mesmo a censura exercem sobre a memória individual (p.

    368). Ao recordar, sobretudo, reorientamos sentidos, ressignificamos sentimentos e novas

    narrativas são, então, constituídas.

    Uma recordação surge ao espírito sob a forma de uma imagem que,

    espontaneamente, se dá como signo de qualquer coisa diferente, realmente

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    ausente, mas que consideramos como tendo existido no passado. Encontram-

    se reunidos três traços de forma paradoxal: a presença, a ausência, a

    anterioridade. Para o dizer de outra forma, a imagem-recordação está presente

    no espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve. (RICOEUR,

    2003, p.2).

    Essa capacidade que temos de retomar acontecimentos ou impressões registradas no

    passado, faz com que nesse movimento, revivamos de modo efetivo estados anteriores; é uma

    vivência atual do próprio passado, posto que se realiza através do meu corpo, em movimento.

    Esse estado é batizado por Henri Bergson (1990) como memória involuntária, tendo a

    possibilidade de, ao reconstituir algo passado, ultrapassá-lo, reconfigurá-lo, pois “é do presente

    que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação

    presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida” (p. 125). É nesse sentido que

    Monclar Valverde observa que é inaceitável tratar sedimentos da memória como depósitos,

    “posto que, em sua dinâmica global (...) o próprio processo de sedimentação é perspectivo e

    relacional, (...) possibilitando uma espécie de arqueologia do vivido, capaz de revelar (...)

    distinções de origem, idade e formação de cada imagem” (2007, p. 232). Ainda nas palavras

    do autor, as reminiscências individuais

    [...] nos abrem, a cada instante atual, novas possibilidades de percepção, de

    imaginação, de fantasia e de expressão estética da existência; e se nos

    remetem a origens, não é por deterem a guarda dos verdadeiros princípios,

    mas por exibirem, em sua própria linguagem, o movimento originante de

    nossas representações (MONCLAR, 2007, p. 233).

    Nesta perspectiva, cabe ressaltar que desde que o homem criou significações, passou a

    constituir um horizonte imaginário, esse horizonte da memória, em que eventos se conectam e

    o passado sempre atua como motivação para as ações do tempo presente. O nosso passado, a

    nossa história, nos situa no presente a partir de uma perspectiva, que acaba por excluir outras

    possíveis, nos direcionando sob a luz dos horizontes que nos foram abertos.

    Nesse sentido, vislumbramos uma forte vinculação entre os ingredientes da nossa

    memória e os conceitos trabalhados na Estética da Recepção, a partir dos trabalhos de Jauss,

    Iser e também Ricoeur. A ideia de horizonte de expectativas em Jauss compreende, em última

    instância, um aglomerado de referências complexamente estruturadas por tradições anteriores.

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    Geralmente, fala-se do choque de uma obra quando esta frustra as expectativas do seu público.

    Ao transpormos essa ideia para o âmbito da recepção das vitrinas de moda, podemos pensar

    nesse choque diante de uma composição visual que rompe com nossas expectativas,

    promovendo um desvio estético.

    Instigado em compreender como um texto nos afeta, Ricoeur argumenta que é necessário

    que haja uma hábil combinação entre uma certa estratégia da desfamiliarização e um

    repertório do familiar. Só nessa dinâmica se consegue algum tipo de adesão e, ao mesmo

    tempo, de excitação do espectador. Assim, compreendemos que é preciso familiaridade para

    que algo possa ser compartilhado, mas também inovação, algo diferenciado que nos chame

    atenção e nos faça experimentar algo novo.

    Iser, por seu turno, nos apresenta a noção de efeito estético, que se refere a todo ato

    receptivo em que o espectador se dá conta de que algo está acontecendo com ele naquele

    instante; de tal sorte que percebe que seu horizonte está se ampliando, se modificando, uma

    vez que uma nova experiência está se configurando. E, no caso particular das vitrinas de moda,

    o espectador, não apenas se envolve com a vitrina que o absorve, mas se vê̂ sendo envolvido,

    atingido na suas sensações, emoções, percepções e memórias.

    Em pleno século XXI, certamente continuamos em busca dessa memória, agora “menos

    nos textos do que nas palavras, nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; é uma conversão

    do olhar histórico”, como acertadamente observa Le Goff (1990, p.407). Essa conversão é

    mesmo partilhada pelos homens e encontra-se imersa numa sociedade de consumo, como alerta

    também Le Goff, e, por isso mesmo, não podemos desconsiderá-la nas suas manifestações mais

    contemporâneas, como nos dispositivos visuais e midiáticos que são as vitrinas de moda, em

    que não só os materiais da moda são desejados, mas a própria memória também ali se conforma

    e se almeja...

    3. Vitrinas como mídias ativando memórias

    De acordo com as observações de Georg Simmel (1999), podemos inferir que as vitrinas

    são dispositivos singulares que revelam as condições de vida da cidade grande, nas quais há

    um excesso de imagens, criando necessidades específicas de sensibilidade e comportamento.

    Nessa conjunção fluida e incessante de imagens, temos as vitrinas como dispositivos visuais

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    que emanam sentidos, configurando uma teia imagética de uma cultura. Funcionam como

    paisagens urbanas em que nos reconhecemos, nos estranhamos, nos perdemos, nos projetamos.

    Desse modo, intentamos compreender os efeitos que as vitrinas nos provocam, como as

    mesmas aguçam nossos sentidos, nossos afetos, nossa memória e como nos ajudam a nos

    reconhecermos no espaço urbano de uma comunidade.

    A vitrina é uma dimensão expressiva visual, na qual se gesta um acontecimento que

    supõe, portanto, uma certa duração, evocando, assim, o passar do tempo. Espaço de mediação,

    ela é capaz de suscitar mundos do parecer, “realidades” imaginadas em que os desejos dos

    indivíduos inseridos numa sociedade extremamente consumista são atendidos. Além disso, não

    podemos menosprezar o fato de que os artefatos ali expostos serão um dia de alguém e,

    portanto, estarão poderosamente associados à memória; são materiais “ricamente absorventes

    de significado simbólico e no qual as memórias e as relações sociais são literalmente

    corporificadas, nos lembra Peter Stallybrass (2004, p. 21).

    Duas vitrinas, em especial, chamaram mais a nossa atenção. Capacidade de síntese e

    combinatória perfeita de elementos são os aspectos que gostaríamos de observar nesses dois

    espaços criados por Menchari. A primeira que selecionamos apresenta uma única peça em todo

    o ambiente: uma bolsa estilo Kelly, como o personagem principal de uma narrativa. A bolsa

    Kelly aparece na década de 1920 e ganha estrondosa visibilidade e esse batismo, em 1950, a

    partir do momento em que a princesa Grace Kelly porta uma delas, encobrindo sua gravidez.

    O acessório é produzido manualmente e pode levar entre 18 e 24 horas para ser finalizado.

    Na versão analisada, a bolsa tem um formato clássico, trapézio, é bem estruturada, se

    apresenta na cor branca e tem recortes no couro bastante delicados que sugerem relevos e

    reentrâncias, que convidam o consumidor/espectador a penetrá-la. Os orifícios criados deixam

    entrever o que está dentro da bolsa, num jogo fascinante de revelação e ocultamento. Os

    recortes exigem uma perícia técnica, sobretudo no acabamento; tal engenhosidade também se

    revela na sugestão significativa que evoca, uma vez que trabalha com a dimensão do imaginário

    que recobre o artefato bolsa na relação com aquele que a porta. A bolsa acolhe e guarda nossos

    pertences pessoais, revelando e resguardando, assim, a um só tempo, muito das nossas

    escolhas, gostos, valores.

    A peça está disposta numa base recoberta de areia e pedras brancas e tem como fundo

    duas grandes ondas, também na cor branca, que formam verdadeiras rochas. As ondas de

    mármore têm um formato meio ondular, sugerindo movimento e acabam por promover um

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    efeito estético na medida em que frustam nossas expectativas, pois geralmente as ondas são

    suaves e diáfanas, mas estas, por sua vez, são densas e resistentes. De todo modo, ainda que

    estranhas, aludem a um repertório de familiaridade uma vez que o material utilizado, o

    mármore, conserva a mesma cor branca das ondas. O ambiente que poderia ser árido ou mesmo

    monótono, aposta na “monocromia” e acerta em provocar, através da homogeneidade

    cromática, uma harmonia acalentadora. A gradação de valor e intensidade dos tons de branco,

    bem como as texturas e formatos dos objetos dispostos, acabam por promover variação e

    dinâmica ao ambiente, que ganha força e vitalidade com a parede azulada como fundo, criando

    um jogo de sombras bastante sugestivo. O fundo azulado faz um convite ao espectador:

    continuar o percurso... seguir em frente, apesar das ondas como supostos obstáculos, nos

    fazendo reviver momentos em que fomos capazes de transpor alguma dificuldade.

    A escolha da bolsa Kelly nos parece bastante acertada pois traduz, a um só tempo,

    tradição e inovação, quando é apresentada de forma renovada, com novos detalhes. Exibe-se,

    assim, que também a marca é capaz de manter-se coerente aos seus formatos e surpreender.

    Vale mencionar que um único elemento em exposição frustra as expectativas do público, uma

    vez que modula uma composição visual que rompe com nossas expectativas, promovendo um

    desvio estético. Ainda assim, essa quebra do horizonte de expectativa se ancora num repertório

    de familiaridade e se adequa a uma proposta comunicacional possível da vitrina que sugere,

    em última instância, uma caminhada ou mergulho solitário numa praia imaginada porque

    habita em nossas memórias; um desafio introspectivo, enfim, um contato consigo mesmo.

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    FIGURAS 1 e 2: La Vague de marbre, été 1981, Vitrina de Leila Menchari

    FONTE: Foto da autora, Exposição Hermès à tire-d’aile – Les mondes de Leïla Menchari, Paris,

    dezembro de 2017

    A outra vitrina que nos chamou atenção vai associar dois campos aparentemente

    contraditórios: o universo da natureza, representado por um animal: o cavalo; e o universo da

    tecnologia, com o metal em suas variações. Logo de início, percebemos que Menchari soube

    combinar muito bem uma certa estratégia da desfamiliarização e um repertório do familiar

    para conseguir algum tipo de adesão e, ao mesmo tempo, de inquietação do espectador.

    O espaço é todo concebido a partir de grandes placas de metal, que compõe as paredes

    e o piso, o cavalo está centralizado, disposto num pequeno tablado e também apresenta uma

    característica compositiva, em que várias partes de madeira e metal configuram o todo. No seu

    dorso, uma sela prateada, ricamente trabalhada aparece como o grande destaque da cena, que

    é enriquecida com um único sapato prateado, uma bolsa estilo Kelly e uma mala, também

    prateadas.

    Nas extremidades direita e esquerda temos outros acessórios que compõem o espaço de

    forma sóbria e clean: são malas de variados tamanhos, pastas e bolsas, uma corrente que

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    sobressai por cima de uma das malas, alcançando o chão e uma vara negra que se integra entre

    grandes malas, que funcionam como caixotes. Num deles, temos mais uma bolsa estilo Boldie

    (um clássico criado por Emile Hermès nos anos 1920, primeiro modelo de bolsa com zíper),

    que chama a atenção pelo fato de não ser prateada como as demais, mas sim em um tom de

    ouro velho e detalhes de acabamento em couro natural. Também nesse instante, percebemos

    que nosso horizonte de expectativa (nosso sistema de referências complexamente estruturado

    por tradições anteriores) é frustrado, promovendo um efeito estético.

    Constamos, neste ambiente de Menchari, um diálogo entre passado e modernidade, uma

    vez que há a alusão ao momento inicial da marca que começou como uma selaria. A Hermès

    aparece no mercado em 1837, primeiro com equipamentos para o cavalo - como selas e arreios

    -, depois para o cavaleiro. Sempre atenta às mudanças e à realidade do mercado, a grife soube

    se reinventar e se modernizar. Com o aparecimento do automóvel, por exemplo, a selaria

    ampliou sua gama de artigos para viagem, produzindo malas, bolsas, carteiras e bagagens. Nos

    anos de 1920, introduz relojoaria e objetos para decoração, além de coleções de roupas

    feminina e masculina e, em 1937, são criados os primeiros lenços de seda, um dos produtos

    mais bem-sucedidos da marca.

    A interação entre os produtos para o cavalo e cavaleiro está plenamente presente nesse

    espaço criado por Menchari, que nos convida a pensar, sim, sobre essa capacidade da marca

    em acompanhar as mudanças da sociedade, sem negar a tradição, mas curiosa e flexível ao

    presente. De certo modo, embarcamos no universo histórico da marca em que, como assinala

    Paul Ricoeur, através de uma hermenêutica da recepção, “as questões em jogo dizem respeito

    à memória, já não como simples matriz da história, mas como reapropriação do passado

    histórico por uma memória que a história instruiu e muitas vezes feriu” (RICOEUR, 2003, p.1).

    A sofisticação e a elegância continuam presentes nos artigos da marca, confirmando

    sua vocação para a produção e comercialização do luxo. A unidade plástica do ambiente se

    traduz em mais um diálogo interessante: a afirmação de formas bem estruturadas como as

    placas de metal e os próprios acessórios da Hermès que são concebidos de maneira bem

    geométrica. Em consonância com o estilo da marca, Menchari constrói um universo com um

    design clássico e um sóbrio glamour...

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    FIGURAS 3 e 4: Printemps 2011, Vitrina de Leila Menchari

    FONTE: Fotos da autora, Exposição Hermès à tire-d’aile – Les mondes de Leïla Menchari, Paris,

    dezembro de 2017

    Em ambos os casos, apresentamos uma interpretação possível das vitrinas de Menchari,

    procurando ressaltar a unidade entre a matéria e a forma na constituição dos espaços criados e

    evidenciando como certos dispositivos visuais são capazes de acionar nossa memória e nossos

    afetos. Em tal empreendimento, nos deixamos envolver pelo sentimento de prazer ao fruir as

    vitrinas, contemplando a beleza e/ou o êxito presente em cada uma delas. Mas também foi

    necessário ultrapassar esse mesmo prazer e recorrer a alguns critérios para analisá-las,

    restituindo aspectos históricos da própria marca, evidenciando a coerência entre o estilo da

    Hermès e o estilo de Menchari, além de identificar certos procedimentos poéticos dos produtos

    expostos e a adequação da forma de exibição dos mesmos.

    E para nós, espectadores desses dispositivos comunicacionais que são as vitrinas de

    moda é justamente no elo entre registro, vigor de uma presença e plasticidade, força

    configuradora, que nos transportamos para mundos vividos e outros imaginados, numa

    dinâmica que conjuga espaço e tempo como tessituras subjetivas, ainda que respaldadas por

    valores coletivos.

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    4. Considerações Finais

    Como sabemos, construímos aqui uma micronarrativa das vitrinas de Menchari a partir

    do testemunho de visibilidade de algumas de suas vitrinas, com a escolha analítica de duas

    delas: Não por acaso, aquelas que mais nos impactaram por sua força plástica, poética, bem

    como pela capacidade de nos fazer reviver situações e lembranças pessoais e coletivas, de nos

    fazer mergulhar em espaços e tempos outros e de nos instigar a rememorar a própria história

    de Menchari e da marca Hermès.

    Ao que parece, portanto, esses dispositivos visuais funcionam como ativadores da

    memória. Incitam, a seu modo, uma certa “busca para reencontrar as memórias perdidas, que,

    embora tornadas indisponíveis, não estão realmente desaparecidas. De uma certa forma, essa

    indisponibilidade encontra a sua explicação ao nível de conflitos inconscientes” (RICOEUR,

    2003, p. 6). Assim nos reportamos ao passado da vitrinista, na medida em que a mesma atualiza

    suas memórias plasmando visualidades nas vitrinas: é o mar mediterrâneo com suas

    intensidades cromáticas, as vastas praias tunisianas - ainda virgens do turismo excessivo -, em

    cujas ondas tantas vezes Menchari se deixou embriagar. Do mesmo modo, as vitrinas enquanto

    mídias, atualizam os sentidos e valores da marca Hermès, reavivando nosso arquivo de

    lembranças sobre a marca e seu trajeto histórico: do início especializada em artigos para selaria

    ao seu desenvolvimento e ampliação, fornecendo artigos também para o cavaleiro e sua dama.

    Mas, os espaços fantásticos de Menchari não apenas reconstroem memórias,

    individuais e coletivas, mas também criam novos e imaginários espaços e temporalidades

    através de misturas e referências culturais diversas que vão, estes agora também, fazer parte

    das nossas memórias visuais.

    Entre as milhares de imagens conservadas nos arquivos da Hermès, temos que

    reconhecer o minucioso e fantástico trabalho de criação de figuras e ambientes imaginários –

    mulheres panteras, unicórnios, deuses egípcios... “os lápis e os pincéis de Leila Menchari

    multiplicam as possibilidades. (...) Nas vitrinas, estas invenções oferecem ao olhar dos

    passantes encantadas e sublimes criações Hermès” (DUMAS; BARROT; BALSAN, 2017, p.

    137).

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