THE IMAGE THAT MOBILIZES: Menchari's showcases as memory · 2019. 5. 29. · de Le Goff (1990),...
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XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019
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A IMAGEM QUE MOBILIZA: as vitrinas de Menchari como ativadoras de memórias
THE IMAGE THAT MOBILIZES: Menchari's showcases as memory
Renata Pitombo Cidreira 1
Resumo: Na contemporaneidade há uma busca da memória, sobretudo nas imagens, a partir de uma conversão do nosso olhar histórico. Por isso mesmo, não podemos desconsiderá-la nas suas manifestações mais atuais, como nos dispositivos visuais e midiáticos que são as vitrinas de moda, em que não só os materiais da moda são desejados, mas a própria memória também ali se conforma e se almeja... Desse modo, vamos procurar compreender como as vitrinas de Leila Menchari, da grife Hermès nos afetam e ativam nossas memórias. Para tanto, utilizaremos um aporte conceitual da estética da recepção, através dos trabalhos de três autores: Hans-Robert Jauss (1994, 2002), Wolfgang Iser (1996, 1999) e Paul Ricoeur (1997). Além de sermos guiados pele teoria da formatividade de Luigi Pareyson (1993), pelas reflexões estéticas de John Dewey (2010) e pelas contribuições relativas à memória de Le Goff (1990), entre outros autores.
Palavras-Chave: Vitrina de moda. Memória. Afeto. Abstract: In contemporary times there is a search for memory, especially in the images, from
a conversion of our historical gaze. For this reason, we can not disregard it in its most current manifestations, as in the visual and media devices that are the fashion showcases, in which not only the fashionable materials are desired, but the memory itself also conforms and is sought there ... In this way, we will try to understand how the showcases of Leila Menchari, of the label Hermès affect us and activate our memories. For this, we will use a conceptual contribution of the reception aesthetics through the works of three authors: Hans-Robert Jauss (1994, 2002), Wolfgang Iser (1996, 1999) and Paul Ricoeur (1997). In addition to being guided by Luigi Pareyson's theory of formativity (1993), by the aesthetic reflections of John Dewey (2010) and contributions related to the memory of Le Goff (1990), among others.
Keywords: Display case for fashion. Memory. Affection.
1Professora Associada do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA, 2003) com Pós-doutorado em Sociologia (Paris V-Sorbonne, 2011). E-mail: [email protected].
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1. Introdução As cenas da moda carregam histórias, valores e memórias. É desse universo visual
repleto de referências temporais que habitam nossos corpos que desejamos falar e, para tanto,
selecionamos as vitrinas de moda como emblemas desses dispositivos imagéticos que nos
transportam para outros espaços e temporalidades, aguçando nosso desejo, nosso afeto, nossa
memória, construindo novas narrativas de nós mesmos e do mundo que nos cerca.
As vitrinas de Leila Menchari são o objeto do nosso empenho reflexivo. Vitrinista da
Hermès entre 1978 e 2013, criou cerca de 150 espaços fabulosos de exposição dos produtos da
marca francesa, que fascinaram consumidores e transeuntes que circulavam na rua Faubourg
Saint-Honoré, em Paris. Em 35 anos de parceria, a artista plástica tunisiana ajudou a consolidar
a mítica da grife Hermès no mundo do luxo, com criações de instalações artísticas repletas de
referências históricas e oníricas. É impressionante observar “a forma como ela combinou
bolsas, malas, lenços de seda e até selas de cavalo com objetos cuidadosamente escolhidos para
criar verdadeiros dioramas hipnóticos” (Revista Istoé, 2017).
Diante das vitrinas de Leila Menchari impossível não refletir sobre elas. O impacto das
vitrinas é tamanho e essa afetação nos instigou a investir sobre as mesmas um olhar crítico.
Das imagens doces da sua infância na Tunísia aos bombardeamentos alemães que a levou,
juntamente com a família, a se refugiar na província, muitas são as memórias e sentimentos
que se mesclam em formas e cores nas suas vitrinas. “As imagens vão assombrar a memória
de Leila por um longo tempo, a partir das quais ela vai desenhar histórias cheias de doçura e
humor” (DUMAS; BARROT; BALSAN, 2017, p. 53). Sabemos que o investimento aqui
proposto não é fácil, pois que nos cabe tentar compreender os mecanismos através dos quais
elas fazem sentido, promovem prazer nos seus espectadores, ativam nossa memória e afetos, e
assumem valor no mercado da moda.
Lembrando as ponderações de Pareyson, estaremos atentos ao fato de que nossa
reflexão não pode ser algo que venha de acréscimo, em si estranha ao que o autor denomina de
reevocação da obra; precisamos deixar que a nossa consciência metodológica emerja da própria
interação com as vitrinas e opere dentro da interação mesma, e se torne “meio para o mais fácil
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entendimento da obra de arte, guiando os leitores ou contempladores (…)” (PAREYSON,
1993, p. 260).
Nesse sentido, nos parece pertinente mencionar de que maneira estabelecemos contato
com algumas das vitrinas de Leila Menchari, pois o modo como nos aproximamos das mesmas
certamente formou um determinado enquadramento para a nossa recepção, a partir do qual
estabelecemos a nossa reflexão, procurando sempre levar em conta a necessidade da adoção de
alguma metodologia. Para tanto, utilizaremos um aporte conceitual da estética da recepção,
através dos trabalhos de três autores: Hans-Robert Jauss (1994, 2002), Wolfgang Iser (1996,
1999) e Paul Ricoeur (1997). Além de sermos guiados pele teoria da formatividade de Luigi
Pareyson (1993), pelas reflexões estéticas de John Dewey (2010) e pelas contribuições relativas
à memória de Le Goff (1990), entre outros autores.
Ainda nos guiando pelas sugestões de Pareyson (1993), intentamos observar e
compreender as vitrinas, distinguindo nas mesmas partes bem acabadas e partes falhas;
repercorrendo o processo de interpretação, interrogando a obra sobre seu significado,
“descrevendo a compreensão que atingiu e as revelações recebidas”, com o intuito de guiar
outros espectadores, produzindo “um ambiente sugestivo propício à reevocação”
(PAREYSON, 1993, p. 262). Assim, vamos procurar mostrar como se efetua nas vitrinas
avaliadas a harmonia entre a matéria e a forma, como insiste Dewey (2010), culminando numa
unidade estética e como esta ativa nossa memória e afeto.
2. A primeira visão: Vivência do passado ou abertura de horizontes?
A primeira vez que vimos uma vitrina de Leila Menchari foi em 02 de dezembro de
2017, por ocasião da exposição intitulada Hermès à tire-d’aile – Les mondes de Leïla Menchari
(Hermès em um relance – Os mundos de Leïla Menchari), no espaço do Grand Palais – Galerie
Sud-Est, em Paris. Era uma tarde de inverno rigoroso e levamos cerca de 1h30 minutos numa
fila antes de nos depararmos com o primeiro ambiente caloroso, intenso e surpreendente de
Menchari, de um total de oito espaços do universo poético e extraordinário da vitrinista, com
cenografia de Natalie Grinièrre.
Essa contextualização é importante, na medida em que, por um lado, já apresenta as
vitrinas deslocadas do seu local de origem e acolhidas por um espaço que as legitima como
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obras de arte; por outro, exibe a condição corporal antes e depois de entrar na exposição,
sugerindo um estado de aquecimento e conforto, que já nos predispõe fisicamente de forma
positiva ao contato com a obra. Esse enquadramento prévio dimensiona e modula o modo como
nos deixamos afetar pelas vitrinas e como nossos processos memoriais são acionados.
Tal condição corporal se intensifica com o que vemos; mas do que isso: se potencializa
pelo ambiente no qual somos envolvidos, pois o contato com as vitrinas de Menchari nos
transporta para além de fantásticas cenas; elas nos fazem penetrar em instigantes ambientes,
acionando os nossos sentidos numa intensa sinestesia. Como diria Cézanne em relação à
pintura, é como se fosse possível pintar o cheiro das árvores, ao que acrescentaríamos: como
se fosse possível ouvir o barulho das ondas do mar e sentir a aridez e o calor do deserto. Os
ambientes ativam nossa memória e nos fazem buscar lá no fundo referências de momentos
similares aos propostos pelas imagens ali expostas.
A autonomia dos espaços criados por Menchari é impressionante. Eles deixam de ser
uma espécie de representação do mundo, e se constituem em um mundo em si mesmos. Exigem
do espectador uma percepção a partir das indicações silenciosas de todas as partes que nos são
fornecidas pela disposição dos objetos naquele espaço, “(...) até que todos, sem discurso ou
raciocínio, componham-se em uma organização rigorosa em que se sente que nada é arbitrário,
mesmo se não tivermos condições de dizer a razão disso” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 60).
Além disso, a força visual de cada vitrina é capaz de estimular nossa memória, a ponto de nos
deslocar para espaços nunca visitados, mas imaginados, bem como nos fazer recordar
espacialidades e temporalidades já instituídas em nosso repertório imagético e corporal.
Funcionam, muitas vezes, como uma imagem-recordação, como nos sugere Ricoeur (2003).
Segundo as observações do historiador Jacques Le Goff (1990), psicanalistas e
psicólogos insistem em afirmar que tanto no âmbito da recordação, quanto do esquecimento, é
determinante o mecanismo das manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a
afetividade, o desejo, a inibição, ou mesmo a censura exercem sobre a memória individual (p.
368). Ao recordar, sobretudo, reorientamos sentidos, ressignificamos sentimentos e novas
narrativas são, então, constituídas.
Uma recordação surge ao espírito sob a forma de uma imagem que,
espontaneamente, se dá como signo de qualquer coisa diferente, realmente
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ausente, mas que consideramos como tendo existido no passado. Encontram-
se reunidos três traços de forma paradoxal: a presença, a ausência, a
anterioridade. Para o dizer de outra forma, a imagem-recordação está presente
no espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve. (RICOEUR,
2003, p.2).
Essa capacidade que temos de retomar acontecimentos ou impressões registradas no
passado, faz com que nesse movimento, revivamos de modo efetivo estados anteriores; é uma
vivência atual do próprio passado, posto que se realiza através do meu corpo, em movimento.
Esse estado é batizado por Henri Bergson (1990) como memória involuntária, tendo a
possibilidade de, ao reconstituir algo passado, ultrapassá-lo, reconfigurá-lo, pois “é do presente
que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação
presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida” (p. 125). É nesse sentido que
Monclar Valverde observa que é inaceitável tratar sedimentos da memória como depósitos,
“posto que, em sua dinâmica global (...) o próprio processo de sedimentação é perspectivo e
relacional, (...) possibilitando uma espécie de arqueologia do vivido, capaz de revelar (...)
distinções de origem, idade e formação de cada imagem” (2007, p. 232). Ainda nas palavras
do autor, as reminiscências individuais
[...] nos abrem, a cada instante atual, novas possibilidades de percepção, de
imaginação, de fantasia e de expressão estética da existência; e se nos
remetem a origens, não é por deterem a guarda dos verdadeiros princípios,
mas por exibirem, em sua própria linguagem, o movimento originante de
nossas representações (MONCLAR, 2007, p. 233).
Nesta perspectiva, cabe ressaltar que desde que o homem criou significações, passou a
constituir um horizonte imaginário, esse horizonte da memória, em que eventos se conectam e
o passado sempre atua como motivação para as ações do tempo presente. O nosso passado, a
nossa história, nos situa no presente a partir de uma perspectiva, que acaba por excluir outras
possíveis, nos direcionando sob a luz dos horizontes que nos foram abertos.
Nesse sentido, vislumbramos uma forte vinculação entre os ingredientes da nossa
memória e os conceitos trabalhados na Estética da Recepção, a partir dos trabalhos de Jauss,
Iser e também Ricoeur. A ideia de horizonte de expectativas em Jauss compreende, em última
instância, um aglomerado de referências complexamente estruturadas por tradições anteriores.
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Geralmente, fala-se do choque de uma obra quando esta frustra as expectativas do seu público.
Ao transpormos essa ideia para o âmbito da recepção das vitrinas de moda, podemos pensar
nesse choque diante de uma composição visual que rompe com nossas expectativas,
promovendo um desvio estético.
Instigado em compreender como um texto nos afeta, Ricoeur argumenta que é necessário
que haja uma hábil combinação entre uma certa estratégia da desfamiliarização e um
repertório do familiar. Só nessa dinâmica se consegue algum tipo de adesão e, ao mesmo
tempo, de excitação do espectador. Assim, compreendemos que é preciso familiaridade para
que algo possa ser compartilhado, mas também inovação, algo diferenciado que nos chame
atenção e nos faça experimentar algo novo.
Iser, por seu turno, nos apresenta a noção de efeito estético, que se refere a todo ato
receptivo em que o espectador se dá conta de que algo está acontecendo com ele naquele
instante; de tal sorte que percebe que seu horizonte está se ampliando, se modificando, uma
vez que uma nova experiência está se configurando. E, no caso particular das vitrinas de moda,
o espectador, não apenas se envolve com a vitrina que o absorve, mas se vê̂ sendo envolvido,
atingido na suas sensações, emoções, percepções e memórias.
Em pleno século XXI, certamente continuamos em busca dessa memória, agora “menos
nos textos do que nas palavras, nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; é uma conversão
do olhar histórico”, como acertadamente observa Le Goff (1990, p.407). Essa conversão é
mesmo partilhada pelos homens e encontra-se imersa numa sociedade de consumo, como alerta
também Le Goff, e, por isso mesmo, não podemos desconsiderá-la nas suas manifestações mais
contemporâneas, como nos dispositivos visuais e midiáticos que são as vitrinas de moda, em
que não só os materiais da moda são desejados, mas a própria memória também ali se conforma
e se almeja...
3. Vitrinas como mídias ativando memórias
De acordo com as observações de Georg Simmel (1999), podemos inferir que as vitrinas
são dispositivos singulares que revelam as condições de vida da cidade grande, nas quais há
um excesso de imagens, criando necessidades específicas de sensibilidade e comportamento.
Nessa conjunção fluida e incessante de imagens, temos as vitrinas como dispositivos visuais
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que emanam sentidos, configurando uma teia imagética de uma cultura. Funcionam como
paisagens urbanas em que nos reconhecemos, nos estranhamos, nos perdemos, nos projetamos.
Desse modo, intentamos compreender os efeitos que as vitrinas nos provocam, como as
mesmas aguçam nossos sentidos, nossos afetos, nossa memória e como nos ajudam a nos
reconhecermos no espaço urbano de uma comunidade.
A vitrina é uma dimensão expressiva visual, na qual se gesta um acontecimento que
supõe, portanto, uma certa duração, evocando, assim, o passar do tempo. Espaço de mediação,
ela é capaz de suscitar mundos do parecer, “realidades” imaginadas em que os desejos dos
indivíduos inseridos numa sociedade extremamente consumista são atendidos. Além disso, não
podemos menosprezar o fato de que os artefatos ali expostos serão um dia de alguém e,
portanto, estarão poderosamente associados à memória; são materiais “ricamente absorventes
de significado simbólico e no qual as memórias e as relações sociais são literalmente
corporificadas, nos lembra Peter Stallybrass (2004, p. 21).
Duas vitrinas, em especial, chamaram mais a nossa atenção. Capacidade de síntese e
combinatória perfeita de elementos são os aspectos que gostaríamos de observar nesses dois
espaços criados por Menchari. A primeira que selecionamos apresenta uma única peça em todo
o ambiente: uma bolsa estilo Kelly, como o personagem principal de uma narrativa. A bolsa
Kelly aparece na década de 1920 e ganha estrondosa visibilidade e esse batismo, em 1950, a
partir do momento em que a princesa Grace Kelly porta uma delas, encobrindo sua gravidez.
O acessório é produzido manualmente e pode levar entre 18 e 24 horas para ser finalizado.
Na versão analisada, a bolsa tem um formato clássico, trapézio, é bem estruturada, se
apresenta na cor branca e tem recortes no couro bastante delicados que sugerem relevos e
reentrâncias, que convidam o consumidor/espectador a penetrá-la. Os orifícios criados deixam
entrever o que está dentro da bolsa, num jogo fascinante de revelação e ocultamento. Os
recortes exigem uma perícia técnica, sobretudo no acabamento; tal engenhosidade também se
revela na sugestão significativa que evoca, uma vez que trabalha com a dimensão do imaginário
que recobre o artefato bolsa na relação com aquele que a porta. A bolsa acolhe e guarda nossos
pertences pessoais, revelando e resguardando, assim, a um só tempo, muito das nossas
escolhas, gostos, valores.
A peça está disposta numa base recoberta de areia e pedras brancas e tem como fundo
duas grandes ondas, também na cor branca, que formam verdadeiras rochas. As ondas de
mármore têm um formato meio ondular, sugerindo movimento e acabam por promover um
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efeito estético na medida em que frustam nossas expectativas, pois geralmente as ondas são
suaves e diáfanas, mas estas, por sua vez, são densas e resistentes. De todo modo, ainda que
estranhas, aludem a um repertório de familiaridade uma vez que o material utilizado, o
mármore, conserva a mesma cor branca das ondas. O ambiente que poderia ser árido ou mesmo
monótono, aposta na “monocromia” e acerta em provocar, através da homogeneidade
cromática, uma harmonia acalentadora. A gradação de valor e intensidade dos tons de branco,
bem como as texturas e formatos dos objetos dispostos, acabam por promover variação e
dinâmica ao ambiente, que ganha força e vitalidade com a parede azulada como fundo, criando
um jogo de sombras bastante sugestivo. O fundo azulado faz um convite ao espectador:
continuar o percurso... seguir em frente, apesar das ondas como supostos obstáculos, nos
fazendo reviver momentos em que fomos capazes de transpor alguma dificuldade.
A escolha da bolsa Kelly nos parece bastante acertada pois traduz, a um só tempo,
tradição e inovação, quando é apresentada de forma renovada, com novos detalhes. Exibe-se,
assim, que também a marca é capaz de manter-se coerente aos seus formatos e surpreender.
Vale mencionar que um único elemento em exposição frustra as expectativas do público, uma
vez que modula uma composição visual que rompe com nossas expectativas, promovendo um
desvio estético. Ainda assim, essa quebra do horizonte de expectativa se ancora num repertório
de familiaridade e se adequa a uma proposta comunicacional possível da vitrina que sugere,
em última instância, uma caminhada ou mergulho solitário numa praia imaginada porque
habita em nossas memórias; um desafio introspectivo, enfim, um contato consigo mesmo.
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FIGURAS 1 e 2: La Vague de marbre, été 1981, Vitrina de Leila Menchari
FONTE: Foto da autora, Exposição Hermès à tire-d’aile – Les mondes de Leïla Menchari, Paris,
dezembro de 2017
A outra vitrina que nos chamou atenção vai associar dois campos aparentemente
contraditórios: o universo da natureza, representado por um animal: o cavalo; e o universo da
tecnologia, com o metal em suas variações. Logo de início, percebemos que Menchari soube
combinar muito bem uma certa estratégia da desfamiliarização e um repertório do familiar
para conseguir algum tipo de adesão e, ao mesmo tempo, de inquietação do espectador.
O espaço é todo concebido a partir de grandes placas de metal, que compõe as paredes
e o piso, o cavalo está centralizado, disposto num pequeno tablado e também apresenta uma
característica compositiva, em que várias partes de madeira e metal configuram o todo. No seu
dorso, uma sela prateada, ricamente trabalhada aparece como o grande destaque da cena, que
é enriquecida com um único sapato prateado, uma bolsa estilo Kelly e uma mala, também
prateadas.
Nas extremidades direita e esquerda temos outros acessórios que compõem o espaço de
forma sóbria e clean: são malas de variados tamanhos, pastas e bolsas, uma corrente que
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sobressai por cima de uma das malas, alcançando o chão e uma vara negra que se integra entre
grandes malas, que funcionam como caixotes. Num deles, temos mais uma bolsa estilo Boldie
(um clássico criado por Emile Hermès nos anos 1920, primeiro modelo de bolsa com zíper),
que chama a atenção pelo fato de não ser prateada como as demais, mas sim em um tom de
ouro velho e detalhes de acabamento em couro natural. Também nesse instante, percebemos
que nosso horizonte de expectativa (nosso sistema de referências complexamente estruturado
por tradições anteriores) é frustrado, promovendo um efeito estético.
Constamos, neste ambiente de Menchari, um diálogo entre passado e modernidade, uma
vez que há a alusão ao momento inicial da marca que começou como uma selaria. A Hermès
aparece no mercado em 1837, primeiro com equipamentos para o cavalo - como selas e arreios
-, depois para o cavaleiro. Sempre atenta às mudanças e à realidade do mercado, a grife soube
se reinventar e se modernizar. Com o aparecimento do automóvel, por exemplo, a selaria
ampliou sua gama de artigos para viagem, produzindo malas, bolsas, carteiras e bagagens. Nos
anos de 1920, introduz relojoaria e objetos para decoração, além de coleções de roupas
feminina e masculina e, em 1937, são criados os primeiros lenços de seda, um dos produtos
mais bem-sucedidos da marca.
A interação entre os produtos para o cavalo e cavaleiro está plenamente presente nesse
espaço criado por Menchari, que nos convida a pensar, sim, sobre essa capacidade da marca
em acompanhar as mudanças da sociedade, sem negar a tradição, mas curiosa e flexível ao
presente. De certo modo, embarcamos no universo histórico da marca em que, como assinala
Paul Ricoeur, através de uma hermenêutica da recepção, “as questões em jogo dizem respeito
à memória, já não como simples matriz da história, mas como reapropriação do passado
histórico por uma memória que a história instruiu e muitas vezes feriu” (RICOEUR, 2003, p.1).
A sofisticação e a elegância continuam presentes nos artigos da marca, confirmando
sua vocação para a produção e comercialização do luxo. A unidade plástica do ambiente se
traduz em mais um diálogo interessante: a afirmação de formas bem estruturadas como as
placas de metal e os próprios acessórios da Hermès que são concebidos de maneira bem
geométrica. Em consonância com o estilo da marca, Menchari constrói um universo com um
design clássico e um sóbrio glamour...
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FIGURAS 3 e 4: Printemps 2011, Vitrina de Leila Menchari
FONTE: Fotos da autora, Exposição Hermès à tire-d’aile – Les mondes de Leïla Menchari, Paris,
dezembro de 2017
Em ambos os casos, apresentamos uma interpretação possível das vitrinas de Menchari,
procurando ressaltar a unidade entre a matéria e a forma na constituição dos espaços criados e
evidenciando como certos dispositivos visuais são capazes de acionar nossa memória e nossos
afetos. Em tal empreendimento, nos deixamos envolver pelo sentimento de prazer ao fruir as
vitrinas, contemplando a beleza e/ou o êxito presente em cada uma delas. Mas também foi
necessário ultrapassar esse mesmo prazer e recorrer a alguns critérios para analisá-las,
restituindo aspectos históricos da própria marca, evidenciando a coerência entre o estilo da
Hermès e o estilo de Menchari, além de identificar certos procedimentos poéticos dos produtos
expostos e a adequação da forma de exibição dos mesmos.
E para nós, espectadores desses dispositivos comunicacionais que são as vitrinas de
moda é justamente no elo entre registro, vigor de uma presença e plasticidade, força
configuradora, que nos transportamos para mundos vividos e outros imaginados, numa
dinâmica que conjuga espaço e tempo como tessituras subjetivas, ainda que respaldadas por
valores coletivos.
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4. Considerações Finais
Como sabemos, construímos aqui uma micronarrativa das vitrinas de Menchari a partir
do testemunho de visibilidade de algumas de suas vitrinas, com a escolha analítica de duas
delas: Não por acaso, aquelas que mais nos impactaram por sua força plástica, poética, bem
como pela capacidade de nos fazer reviver situações e lembranças pessoais e coletivas, de nos
fazer mergulhar em espaços e tempos outros e de nos instigar a rememorar a própria história
de Menchari e da marca Hermès.
Ao que parece, portanto, esses dispositivos visuais funcionam como ativadores da
memória. Incitam, a seu modo, uma certa “busca para reencontrar as memórias perdidas, que,
embora tornadas indisponíveis, não estão realmente desaparecidas. De uma certa forma, essa
indisponibilidade encontra a sua explicação ao nível de conflitos inconscientes” (RICOEUR,
2003, p. 6). Assim nos reportamos ao passado da vitrinista, na medida em que a mesma atualiza
suas memórias plasmando visualidades nas vitrinas: é o mar mediterrâneo com suas
intensidades cromáticas, as vastas praias tunisianas - ainda virgens do turismo excessivo -, em
cujas ondas tantas vezes Menchari se deixou embriagar. Do mesmo modo, as vitrinas enquanto
mídias, atualizam os sentidos e valores da marca Hermès, reavivando nosso arquivo de
lembranças sobre a marca e seu trajeto histórico: do início especializada em artigos para selaria
ao seu desenvolvimento e ampliação, fornecendo artigos também para o cavaleiro e sua dama.
Mas, os espaços fantásticos de Menchari não apenas reconstroem memórias,
individuais e coletivas, mas também criam novos e imaginários espaços e temporalidades
através de misturas e referências culturais diversas que vão, estes agora também, fazer parte
das nossas memórias visuais.
Entre as milhares de imagens conservadas nos arquivos da Hermès, temos que
reconhecer o minucioso e fantástico trabalho de criação de figuras e ambientes imaginários –
mulheres panteras, unicórnios, deuses egípcios... “os lápis e os pincéis de Leila Menchari
multiplicam as possibilidades. (...) Nas vitrinas, estas invenções oferecem ao olhar dos
passantes encantadas e sublimes criações Hermès” (DUMAS; BARROT; BALSAN, 2017, p.
137).
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Referências
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019
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