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© Agnes Guimaraes Rosa do Amaral, Vilma

Guimaraes Rosa eNonada Cultural Ltda.

Direi tos de edi l' iio da obra em lingua portuguesa

adquiridos pela EDnORA NOVA FRONTEIRA S.A.

Todos os direitos reservados. Nenhuma p'lrte

desta obra pode ser apropriada e estocada em

si stema de banco de dados ou processo s imi la r,

em qualquer forma ou meioj.{~j~ e le tr6nico, de

fotocopia, grava\:ao etc., scm a permissao do

detentor do oopirraitr-.

--, ,_ Morro alto, morro grande,

m e conta 0 ten padecer.

P ro baixo de mi m, tuio olho;

p'ra cima, nao posso v c r . ..

(Contracanyao_ Peca pscudofolckn-ioa.)

EDlTORA NOVA FRONTEIRA S.A.

Ru a Bambina, 2 .5 - - Botafogo 22251-0S0

Rio de Janeiro - R J Brasil

ra. (21) 2131-1111 Fax: (21) 2286-6755

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o recado do morro

Bihlioteca do Estudante

CDD: 869.93

CDU: 821.134.3(81 )-3

em que bern se saiba, conseguiu-

se rastrear pelo avesso urn caso de vida e de morte,

extraordinariamente comum,que se armou com

o enxadeiro Pedro Orosio (tambem acudindo par

Pedrao Chabergo au Pe-Boi, de alcunha), e teve

aparente principio e fim, num julho-agosto, nos

fundos do municipio onde ele residia; em sua raia

noroestea, para dizer com rigor.

Desde ali,0ocre da estrada, como de costume, e

um S,que comeya grande frase. E iam, serra-acima,

ClP,Brasil. Cataloga\,ao-na-fonte

Sindicato Nadonal . dos Editores de Livros, RJ.

R694r Rosa, Joao Guimaraes., 1908-1967

() rccado do morro I Joao Guirnaraes

Rosa. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2007<(Btblioteca do estudante)

ISBN 978-85··209- J 977-·4

1. Couto brasileiro. LTitulo.IL Ser ie,

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o RECADO DO MORRO ~ 7

cinco homens, pelo espi~ao divisor. Dia a muito

menos de meio, solene sol, as sombras deles davam

para 0 lado esquerdo.

Debaixo de ordem. De guiador ---- ape, des-

calco - Pedro of6sio: moco, a nuca bem--feita,

grallda membradura; e marcadamente erguido: nem

lhe faltavam cinco centimetres para ter urn talhe de

gigante, capaz de cravar de engolpe em gualquer

terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em

cruz os ossos da cabeca de urnmarruas, com urn soco

em sua cabeloura, e de [evantar do chao umjumento

arreado, carregando-o nos braces por meio qUil6-

metro, esquivando-se de seus coices e mordidas, e

sem nem por isso alrouxar do f()lego de ar que Deus

empresta a todos.

Seguindo-o, a cavalo, tres patroes, entrajados e

de Iimpo aspecto, gente de pessoa. Urn, de fora, a

quem tratavam por seoAlquiste ou Olquiste - espi-

go, alernao-rana, com raro cabelim barba-de-rnilho

e cara de barata descascada. 0sol faiscava-Ihe nos

aros dos 6culos, mas, tirades os oculos, de grossas

lentes, seus olhos se amaciavam num aguado azul,

inocente e terno, que ate por S 1 semblava rir, aos

poucos se acostumando com a forte luz daqueles

altos. Caicava botas cor de chocolate, de um novo

feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda-p6 de

Iinho, para verde; traspassava a tiracol as correias

da codaque e do binoculo; na cabeca urn chapeu-

de-palha de abas demais de largas, arranjado ali na

roca. Enxacoco e desguisado nos usos, a tudo quanto

enxergava dava urn mesmo engrayado valor: Fosse

uma pedrinha, uma pedra, urn cipo , uma terra de

barranco, urn passarinho atoa, uma moita de carra-

picho, urn ninhol de vespos.

Segundo, urn frade louro _- frei Sinfrao des-

ses de sandalia sem meia e tunica marrom , que tern

casa de convento em Pirapora e Cordisburgo. Tam-

bern trazia, sobre °habito, urn guarda-p6, creme; e

punha chapeu branco, de pano mole. Relia 0brevia-

rio, assimmesmo montado, e fumava charuto. Falava

completo a lingua da gente, porem sotaqueava.

Com eles, seo Jujuca do Acude, fazendeiro de

gado, e filho de fazendeiro, deseu Juca Vieira, com

apelido seu Juca do Acude, da Fazenda do Acude,

para 1. 1atras do Saco do Sajoao.

Derradeiro, outro camarada - a cavalo esse, e

tangendo os burros cargueiros -: urn Ivo , Ivo de

Tal, Ivo da Tia Merencia.

De seu, 0guia Pedro Or6sio preferisse mesmo

viajar a pe , ou talvez, culpa de seu tamanho, nem

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8 IIIJOAO Gur!\.'iARAES ROSAo RECADO no MORRO °9

acharia cavalgadura que Ihe assentasse. Mas ele era

urn sete-pernas. Abrindo passo muito extenso e li-

geiro, e, tao forcoso, de corpo nunca se cansava. Por

mais, aqueles ali nao estavam apurados, iam jornada,1'

vagarosa. 0 loura~a, seo Alquiste, parecia querer

remedir cada palmo de lugar, ver apalpado as grutas,

os sumidouros, as plantas do caatingal e do mato.

Por causa, esbarravam a todahora, se apeavam, meio

desertavam desbandando da cstrada-mestra.

De feito, diversa e a regiao, com belezas, mara-

vilhal. Terra longa e jugosa, de montes p6s montes:

monos e corovocas, Serras e serras, par prolonga-

cao. Sempre urn apique bruto de pedreiras, enormes

pedras violaceas, com matagal ou Iavadas. Tudo cal-

careo. E elas se roem, nao raro, em formas -, que

nem pontes, torres, colunas, alpendres, chamines,

guaritas, grades, campanarios, parades animais,

destrocos de estatuas ou vultos de criaturas, Por L 1 ,

qualquer voz volta em belo eco, e qualquer chuva

suspende, no ar de cristal, todo tinto arco-iris, cor

por cor, vi vente longo ao solsim, feito urn pavao.

Umas redondas chuvas acidas, de grande diametro,

chuvas cavadoras, recalcantes, que cacm fumegando

com vapor e empunam enxurradas mao de rios,

se engolfam descendo por funis de furnas, antros e

grotas, com tardo gorgolo musical. Nos rochedos,

os bugres rabiscaram movidas figuras e letras, e sus

se foram. Pelas abas das serras, quantidades de ca~

vernas - do teto de umas poreja, solta do tempo,

a agiiinha estilando salobra, minando sem-Iim num

gotejo, que vira pedra no ar, se endurece e dependu-

ra, por toda a vida, que nem renda de torroezinhos

de amendoa ou fios de estadal, de cera-benta, cera

santa, e grossas lagrimas de espermacete; enquanto

do chao sobem outras, como crescidos dentes, como

que aquelas sejam goelas da terra, com boca para

morder. Criptas onde 0ar tern corpo de idade e a

agua forma pele muito fria, e a escuridao se pega

como uma coisa. Ou lapinhas cheias de rnorce-

gos, que juntos chiam, guincham, porfiam. Largos

ocos que servem de malhador ao gado, no refrio

das noites, ou de abrigo durante as ternpestades.

Lapas, com salitrados desvaos, onde assiste, rodeada

de silencios e acendendo glob os olhos no escuro, a

coruja-branca-de-orejhas, grande mocho, a estrige

cor de perolas --- strix perlata, Cafurnas em que as

andorinhas parte do ano habitam, fazendo ninho,

pondo e tirando cria, depois se sornem em bandos

por este mundo, deixaram Ia dentro s o a ruiva mo-

Ieja, as rumas, e sua ardida cheiracao. Fim do campo,

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-t 0 ij J 0 A 0 G U ] MAR A 1, S R 0 SA o RfCADO DO MORRO =- r r

nas sarjetas entremontas d~s bacias,um ribeirao de

repente vern, desenrodilhado, ou 0fiume de urn

riachinho, e da com 0 emparedamento, entao cava

urn buraco e por ele se soverte, desaparecendo num

emboque, que algmt'lsainda tern pelo nome gentio,

de anhanhonhacanhuva. Vara, suterrao, travessando

para 0 outro sope do morro, ora adiante, onde re-

brota desengulido, a agua ja filtrada, num bilo-bilo

facil, logo se alisando branca e em leves laivos se

azulando, que qual polpa cortada de caju. Emesmo

corregos se afundam, no plao, sem razao, a nao ser

para poderem cruzar intactos por debaixo de rios,

e rernanam do tune], ressurtindo, longe, e depressa

se afastam, seguindo por terem escolhido de afluir

a urn rio outro. E lagaazinhas, em pontos elevados,

sao ao contrario de todas: se enchem na seca, e

tempo-das-ayuas se esvaziam, delas mal se sabe. E

nas grutas se achavam ossadas, passadas de velhice,

de bichos sem estatura de regra, assombracao deles

--- 0megaterio, 0 tigre~de-dente-de-sabre, a proto-

pantera, amonstra hiena espelea, 0paleo-cao, 0lobo

espeleo, 0 urso-das-cavernas -------, homenzarros,

duns que nao ha mais. Era so cavacar 0duro chao, de

laje branca e terra vermelha e sal. Montes de ossos,

de bichos que outros arrastavam para devorar ali, ou

que massas d'<igua afogaram, quebrando-os contra

as rochas, quando as manadas eles queriam fugir,

se escondendo do Diluvio. Agora, pelas penedias,

escalam cardos, cactos, parasitas agarrantes, gravatis

se abrindo de Hares em azul-e-vermelho, azagaias

de piteiras, 0 pau-d oleo com raizes de escultura,

gameleiras manejando como alavancas suas sapope-

mas, rachando e estalando 0que acham; a bromelia

cabelos-do-rei, epifita; a chita-- uma orquidea; e a

catleia, sofredora, rosissima e roxa, que ali vive no

rosto das pedras, perfurando-as, Papagaios rouco

gritam: voam em amarelo, verdes. V ez ern vez, se

esparrama urn grupo de anus, coracoides, que piam

pingos choramingas. 0 caracara surge, pousando

perto da gente, quando menos se espera -- urn

gaviaoao vistoso , que gutura. Por resto, 0mudo

passar alto dos urubus, rodeando, recruzando -~;

pela guisa esses sabern 0 que-ha-de-vir.

Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo

nao se governava bern. Tomava nota, escrevia na ca-

derneta; a caso, tirava retratos. A gameleira grande

esta estrangulando com asraizes a paineira pequena!

- de apreciava, a exclama. Colhia com duas maos a

ramagem de qualquer folhinha campa scm serventia

para se guardar: de marroio , carqueja, sete-san-

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r 2 It J 0- A . 0- G U I M A It A l: S R 0 $ A o Rl,CADO DO MORRO'" (3

grias, amorzinho-seco, pe-,de-perdiz, joao-da-costa,

unha-de-vaca-rdxa, olhos-de-porco, copo-dapua,

Hngua-de-tucano, lingua-de-tciu. Umahora, revirou

a correr atras, agachado, feito pegador de galinha,

tropecando no barllburral e espichando tombo, 56

porter percebido de relance, inho e zinho, fugido no

balango de entre as moitas, 0orobo de urn nhambu,

Outrarnao, ele desenhava, desenhava: de tudo tirava

trace e figura leaL Daquelas cumeeiras, a vista vai

de bela a mais, dos lados, se alimpa, treze, quinze,

vinte, trinta Ieguas lonjura .....- "Da acoite de se

ajoelhar e rezar ... "-- ele falou. Dava. E sorria de

ver, singular, elas trepando pela reigada da verten-

te, as labaredas verdes dum canaviaI. Saudou, em

beira de capac, urn tamandua longo, saido em seu

giro ineerto; se nao 0 segurassem, ia la, aceitava 0

abraco? Mas bastantemente assentava no caderno,

it sua satisfacao, Quando nao previa melhor coisa,

especulava perguntas; frei Sinfrao, que se entendia

na Iinguagem dele, repetia:

-- Quer saber donde voce e , Pedrao. Se voce

nasceu aqui?

Nao. Pe-Boi era de mais alastado, catrumano,

nato num povoadim de vereda, no sertao dos cam-

pos-gerais. Hornem de brejo de buritizal entre cha-

padas arenosas, terra de rei-trovao e gado bravo. E,

mesmo agora, 56 se ajustara de vir com a comitiva

era porque tencionavarn chegar, mais norte, ate ao

comcyo de la , e ele aproveitava, queria rever a va-

queirama irma, os de chapeu-de-couro, tornar a es-

cutar os soires cantando claro em bando nas palmas

da palmeira; pelo menos pisar 0 chapadao ehato,

de vista descoberta, e cheirar outra vez 0 resseco

ar forte daqueles campos, que a alma da gente nao

esquece nunca direito e 0 coracao de geralista esta

sempre pedindo haixinho. Porque Pedro Orosio nao

era servical de seu Juca do Acude > ele trabucava

forro, plantando a meia sua rocinha, colhia ate cana

e algodao.

_._-_Se voce e solteiro ou casado, Pedro?

E frei Sinfrao mesmo sabia, ja respondia, jocoso,

linguajando. Que 0Pedro era ainda teimoso solteiro,

e 0rnaior bandoleiro narnorador: as moyas todas

mais gostavam dele do que de qualquer outro; por

abuso disso, vivia tirando as namoradas, atravessava

e tornava a que bern quisesse, s o por divertimento

de indecisao, Tal modo que muitos hom ens e rapa-

zes the tinham odic, queriam 0fim dele, se nao se

atreviam a pega-lo era por sensatez de medo, pOI'

de ser turuna e primao em forca, feito um touro

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.E4 -·JO I\O GUrM A RAES ROSAo RECADO DO MORRO I 'S

ou uma montanha. Aquelemesmo Ivo, que evinha

ali, e clue de primeiro tao seu amigo fora, andava

agora com ele estremecido, por conta de uma mo-

cinha, Maria Melissa, do Cuba, da qual gostavam.

E, a causa de outra< delas nem 5e lembrava, ali em

Cordisburgo tinha 0Dias Nemes, famanaz, virado

contra ele no vi] frio de uma inimizade, capaz de

tudo. Com frequencia, Pedro Orosio tirava do bol-

so um espelhinho redondo: se supria de se mirar,

vaidoso da constancia de seu rosto.

-----E quando e que voce toma juizo, Pedro, e

se casar

Todos riam. Ate 0Ivo, que ria fazia, destornado.

Seu Alquiste quis bater uma fotografia de Pedro

Orosio: recomendou que ele ficasse teso, descidos

os braces. -"Grande ... Muito grande ... "---falou.

- "Born para soldado 1"De por si sem acanhamen to

nenhum, antes saido, e mais ainda se espiritando

com aquele regozijo geral, 0Pedro prosapiou gra<;:a

de responder, sem quebra de respeito- que per-

guntassem ao outro se na terra dele as mo<;:aseram

bonitas, pois gostava era de se casar com uma assim:

de cara rosada, cabelo amarelo e olho azul ...

Seo Alquiste, quando 0frade a entendeu para

de, apreciou muito a parlada, e mesmo disse urn

ditado, la na lingua: que um quer salada fina e

. outro quer batata com a casca . .. Porque ele, seo

Olquiste, premiava para si, se pudesse, era casar

com uma mulata daqui, uma dessas quase pretas de

tao roxas ... E entao 0Iva, Iide tras, encolhido na

sela mas forcejando pOl'espevitar boa-cera, a refal-sa, tambem disse: "A born, amigo Pedro, quem

sabe ele havera de querer te levar, por conhecer a

cidade dele?"

E Pedro Or6sio, subido em sua fiuza, dava

resposta de claro rosto. Tinha medo de ninguem,

assim descarecia de Hgado ou peso de cabeca para

guardar rancor. Contentava-o ver 0 Ivo abrir paz;

coisa que valia neste mundo era se apagarern as

duvidas e quizilias. 'Ioda desavenca desmanchava 0

agradavel sossego simples das coisas, rendia ate pre-

gui<;:apensar ern brigar. Nunca desgostara do Ivo, e,

quando mesmo, ali era 0Ivo0unico de sua igualha,

a proprio, e a gente sentia falta de algum compa-

nheiro, para se entreter presen<;:ade conversa; do

contrario a viagern ficava aborrecida. Outros eram

os outros, de born trato que fossem: mas, pessoas

instruidas, gente de mando. E urn que vive de seu

trabalho bracal nao cabe todo avontade junto com

esses, pOl' eles pago.

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~6.Q-J-oA.o GUlMARAES ROSA o RECADO DO MORRO =- r7

De qualidade tambem, que, os que sahem ler e

escrever;.a modo que mesmo °trivial da ideia delesdeve de ser muito diferente. 0 seo Alquiste, por

um exemplo, em festa de entusiasmo por tudo, que

nem uma crianca ,rio brincar; mas que, sendo sua

vez, atinava em por na gente um olhar ponteado,

trespassante, sernelhando de feiticeiro: clue divul-

gava e discorria, ate adivinhava sem ficar sabendo.

Ou 0frade frei Sinfrao, sempre rezando, em hora

e folga, com 0terce ou no missalzinho ;mas rezava

enorrnes quantidades, e assim atarefado e alegre,

como se no lucrativo de urn trabalho, produzindo, e

nao do jeito de que as pessoas comuns podem rezar:

a curto e com distracao, ou entao no per-socorro

de uma tristeza ansiada, em momentos de aperto.

Por isso tudo, aqueles a gente nem conseguia bem

entender. Mesmo 0 seo Jujuca do Acude , rapaz

moyo e daqui, mas com seus estudos da lida certa

de todo plantio de cultura, e das doencas e remedies

para 0gado, para os anirnais. Pois seo Jujuca trazia

a espingarda, cayava e pescava; mas, no mais do

tempo, a atencao dele estava no comparar as terras

do arredor, lavoura e campos de pastagem, saber

de tudo avaliado, por onde pagava a pena comprar,

barganhar, arrendar -- negociar alqueires e novi-

lhos, rnadeiras e safras; seo Jujuca era urn moco

atilado e ambicioneiro.

Do que des tres falavam entre si, do muito que

achavam, Pedro Orosio nao acertava compreender, a

respeito da beleza e da parecenya dos terrttorios, Ele

sabia para isso qualquer urn tinha alcance------que

Cordisburgo era 0 Iugar mais formoso, devido ao

ar e ao ceu, e pelo arranjo que Deus caprichara em

seus morros e suas vargens; por isso mesmo, la, de

primeiro, se chamara Vista-Alegre. E, rnais do que

tudo, a Gruta do Maquine - tao inesperada de

grande, com seus sete saloes encobertos, diversos,

seus enfeites de tantas cores e tantos formatos de so-

nho, rebrilhando risos na luz-- ali dentro agente se

esquecia numa admiracao esquisita, mais forte que

o juizo de cada urn, com mais gloria resplandecente

do que uma festa, do que uma igreja.

Nao, bronco ele nao era, como 0 Ivo, que nem

tinha querido entrar, esperara ca fora: disse que je i

estava cansado de conhecer a Lapa. Mas, daquilo,

daquela, ninguem nao podia se cansar. Ah, e as es~

trelas de Cordisburgo, tambem v+ 0 seo Olquiste

falou ~- eram as que brilhavam, talvez no mundo

todo, com mais agarre de alegria.

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,8 °JOAO GUIMARAES ROSAO RJ~CAno DO MOnRO· '9

Pedro Orosio achava do mesmo modo lindeza

comum nos seus campos~gerais, porsaudade de 1 . 1 ,

onde tinha nascido e sido criado. Mas, outras coisas,

que seo Alquiste e 0frade, e seo Jujuca do Acude

referiam, isso ficavapor ele desentendido, fechado

sem explicacao nenhuma; assim, que tudo ali era

uma Lundiana ou Lundlandia, desses nomes. De

certo, segredos ganhavam, aspessoas estudadas; nao

eram para 0usa de urn lavrador como ele, so com

sua saude para trabalhar e suar, e a protecao de Deus

em tudo. Urn enxadeiro, sol a sol debrucado para a

terra do chao, de orvalho a sereno, e puxando toda

forca de seu corpo, como e que ha de saber pensar

continuado? E, mesmo para entender ao vivo as

coisas de perto, de so tinha poder quando na mao da

precisao, ou esquentado _. por odio ou por amor.

Mais nao conseguia.

Agora, 0que 0tirava, era 0garantido de voltar

por um pouco aos Gerais, ate h i iam, para h i guiava.

E chegariam aos Gerais quase sem necessidade de

se apear das serras em seu avanqo: uma emendada

com outra, primeiro aque1as com pedreiras; depois

as com cristais recortados; depois, os escalvados, de

- d d d "al "" ."hao rosa 0 e greta 0, os a egres e campmas ;

enfim, depois as serras areentas: e a gente dava com

a primeira grande vereda -- os buritis saudando,

Ievantantes, sempre tinham estado la , em sinal e

ceu, porgue 0buriti 6 mais vivente.

Entrementes, ia cantando. Gostava. Canta-

cantando, surdino, para nao incomodar os grandes

nern os escandalizar com toadas assim: ".. .Jararaca,

cascavel, cainatia ... Cunhiio de u rn gata, cunhiio de lim

rata. . . a qual cantarolava, parecia um sobredizer

de maluco. 'Moda de copla ouvida do Laudclim, que

era dono de tudo que nao possuisse, ate aproveitava

a alegria dos outros -- trovista, repentista, preci-

sando de viver sempre em mandria e vadiice, mas

mais gozando e sofrendo por seu violao; apelido dele

era Pulgape. Fazia tempo que Pedro O1'6s10 nao 0

via. Mas era, quem sabe, 0unico amigo seguro que

Ihe restasse, agora que quase todos os companheiros

estavam de volta com ele e lhe franziam cara, por

meia-bobagem de ciumes.

Ainda na vesper a, na Fazenda do Saco-dos-

Cochos, de sea Juca Saturnine, onde tinham falhado,

aparecera 0Maral, primo do Iva, os dois resurniram

muita conversa apar tada. 0Maral, outro que mal-

escondia 0Ierrao. Sujeito feioso e lero, focinhudo

como um coati. Entao era de, Pedro, quem devia

crime, par as mocas nao gucrerem saber de namo-

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l c ~ J 0 -1 \ 0 G U I MAR A E s R a SAo Rl~CAD() DO MOrt.RO ,a. 2J

ro com esse? Em todo 0c,aso, melhor estava que 0

Ivo retornasse as boas. A vida era curta para nela se

trabalhar e diver tir; para que tantas dificuldades?

Prazia caminhar, isto sirn , e estava sendo bern

gratificado. Cantav/ou assoviava, e, pe-dobro, puxa-

va estrada. Ajeitava a calca preta de zuarte, desbotada

mas bern arrega<;ada, por nao poir a barra da roupa;

dobrava-a para dentro, para nao ajuntar poeira. E,

os pes de sola grossa, experimentava-os firme em

qualquer chao.

o ceu nao tinha fim, e as serras se estiravam,

sob 0esbaldado azul e enormes nuvens oceanosas.

Ora os cavaleiros passavam por urn socalco, entre

uma quadra de pedreira avancante, pedra peluda ,

eo despenhadeiro, uma fra altissima. Eles seguiam

Pedro Orosio; era vaqueao, nele se fiavam. Ia bern

na dianteira, Aquele elevado moyo, sern palet6, a

camisa furada, urn ombro saindo por urn buraco;

terminando, de velho, seu chapeu-de-palha: copa

uma linha geodesica. Mais ou menos como a gente

vive. Lugares, Ali, 0 caminho esfola em espiral uma

laranja: ou e a trilha escalando contornadamente

o morro, como urn 1a<;0jogado em animal. Que-

dam subir, ever. 0 mundo disforrne, de posse das

nuvens, seus grandes vazios. Mas, com brevidade,

desciam outra vez. Sairam a onde a estrada e reta,

born estirao. Ate que, a pouco trecho, enxergavam,

adiante uma pessoa caminhando.

Um homenzinho terem-terem, ponderadinho

no andar, todo arcaico." ' G ·lh·" pA B . d'--. Eo' orgu 0... _.0 c- 0] isse.

Quem? Urn velhote grimo, esquisito , que mo-

rava sozinho dentro de uma lapa, entre barrancos e

grotas - uma urubuquara casa dos urubus, uns

lugares com pedreiras, 0 nome dele, de verdade,

era Malaquias.

E ia 0Gorgulhodireito bern no meio da estrada,

parecia urn garatujo, urn desses calungas pretos, ou

carranquinha escoradora dc veneziana. Tinha urn

surrao a tiracolo, e se arrimava em bordao ou man-

guara. Como quase todo velho, andava com maior

afastamcnto dos pes; mas sobranceava comcdimento

e esturdia dignidadc.

I I A , .e circu 0, com 0 rego concave, e a cintura a garru-

h f - . 1 "S - "ana capa, e urn acao; ia, a ongo ~ oansao .

- disse seo Alquiste, Fazia agrado ver sua boa co-

ragem de pisar, seu decidido arranque.

E assim seguiam, de urn ponto a urn ponto, por

brancas estradas calcareas, como par uma linha va,

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o RECADO DO MORRO" 13

2'2 oJOAO GUIMt\RAES ROSA

Devia de ouvir pouco, pois a cornitiva ja quase

o alcancara e ele ainda nao dera por isso. Ora, pela

calada do dia, ali e lugar de muito silencio. Assim

que, 0Gorgulho ca!<;:avaalpercatas, sua roupa era,

de sarja fusca, for~ato antigo-- casacao cornpri-

do demais, com gualdrapas; uma borjaca que de

cerro tinha sido de dono outro-- mas Iirnpa, sem

desalinho nenhum; via-se que de fazia questao de

estar composto, scm em ponto algum desleixar-se.

E 0 que empunhava era uma bengala de alecrim, a

madeira roxo-escura, quase preta.

E, nisso, de arranco, ele esbarrou, se desbracan-

do em gestos e sestros, brandindo seu cacete, Fazia

espantos, Falou, mesrno, voz irada, logo ecfonico:

._ Eu?! Naol Nao comigol Nenhum filho de

nenhum ... Nao tou somando!

Tomou fOlego, deu um passo. Scm sossegar:

--....Nao me venha com [oxiasl Conselho que nao

entendo, nao me praz: e agouro!

E mais gritava, batendo com 0alecrim no chao:

______i, judengo! Tu, antao, vai p'r' as profun-

dasl ...

De tanta maneira, sincera era aquela furia. Silen-

ciou. E prestava atencao toda, de nariz alto, como se

seu queixo Fosse urn aparelho de escuta. Ao tempo,

enconchara mao a orelha esquerda.Alguem tarnbern algo ouvira? Nada, nao. En-

quanto 0 Gorgulho estivera aos gritos, sim, que

repercutiam, de tornavoz, nos contrafortes e pa-

redoes da montanha, perto, que para tanto sao dos

melhores aqueles lancos.Ajjora e antes, porern , tudo

era quieta.

-- "Que foi que foi, seuMalaquia?"- ja ao lado

dele Pedro Orosio indagava.

Apenas no instante 0 Gorgulho percebia-os.

Voltou-se . Mas nao rcspondeu. Empertigou-se,

saudando circunspecto; tudo nele era formal. Ate a

barba branco-amarela, s6 na orla do rosto, chegan-

do ao cabelo. Pedro Or6sio teve de apresenta-Io, a

cada urn, e ele cumpria serio 0cumprirnento, com

vagar a frei Sinfrao beijou a mao, mencionando

Jesus Cristo. Se descobrira e segurava 0chapeu ,

pigarreando e aprovando, com lentos anuidos, a

boa preseno;a daquelas pessoas. Mas a gente notava

quanto eslorco de fazia para se center, tanta per-

turbacao ainda 0 agitava.

"H'h Q / t. um... ue e que 0morro nao em

preceito de estar gritando ... Avisando de coisas ... "

--- disse, por fim, se persignando e rebenzendo, e

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24 " J 0 A 0 G u [ MAR Ji . E S R 0 SA o RECADO DO MORRO'" 25

apontando com 0 dedo nO.rumo magnetico de vinte

e nove graus nordeste.

La_- estava 0Morro da Garca: solitario, escale-

no e escuro, feito uma piramide. 0 Gorgulho mais

olhava-o, de arrevirar bogalhos; parecia que aqueles

olhos seus dele iam sair, se esticar para fora, com

pedunculos, como tentaculos.

"P 'I havid 1 '?" f.- OSSlve ter aVl 0 a guma COlsa. --- reI

Sinfrao perguntava. -- "Essas serras gemem, ron-

cam, asvezes , com retumbo de longe trovao, 0chao

treme, se sacode. Serao descarregamentos subter-

ranees, 0desabar profundo de camadas calcareas,

como nos terremotos de Bom-Sucesso ... Dizem que

isso acontece mais e pOl' volta da lua-cheia ... "

Mas, nao, ali ilapso nenhum nao ocorrera, os

monos continuavam tranquilos, que e amaneira de

como entre si eles conversam, se conversa alguma

se transmitem. 0 Gorgulho padeceria de qualquer

alucinacao; de que ate era meio surdo. E Pedro

Orosio, que semelhava ainda mais alteado, ao lado

assim daquele criaturo ananho , mostrava grande

vontade de rir. 0 GorguIho ainda arirmava a vista,

enquanto engulia em seco, seu gogo sobe-descia.

-- "E que foi que 0Morro disse, seu Malaquias,

que mal pergunto?" -- seo Jujuca quis saber.

-- Pois, hum .. , Ao que foi que ele vas disse,

meu senhor? Ossenhor vossernece, com perdao,

ossenhor nao esta escutando? Vigia ele-la: a modo

e coisa que tem paucta ...

Muito mais longe, na direcao, outras montanhas

-- sendo azul a Serra da Diamantina. Sobre essa,

o estender-se de estratos. Depois, 13:puxada por

grandes maos, sempre nuvens ursas giganteiam. E

aqui perto; de repente, se tracou 0rapido nhar de

urn gaviao, passando destombado, seu sol nas asas

chumbo: baixava para a bacia, para as restingas de

mato.

- E-e-e-e-e-e-ch, morro! ... - bradou entao

Pc-Boi, por desfastio. Mas fazendo a moda certa deecar do povo roceiro serraino, por precisao de se

chamarem pelo ermo de distancias, monte amonte:

a1ongando 0 eb, muito agudo, a toda a garganta, e

dando curto com 0nome final, tal uma martelada,

que quase nao se ouve --- so 0sell dono entende.

Perspeito , em seu pousado, 0da Garca nao

respondia, cocuruto. Nem ele, nem outre, aqui

a esquerda, proximo, superno, morro em mama

erguida e corcova de zebu,

A i de, ja se arapuava 0Gorgulho, mestre na des-

confianca. Com urn modo proprio de qucrer rodar

B U 3 U O T E C A ss C E FE T , . M GC F ~ M ? U SI

i

i

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26°JOAO Glrji\1AR)~":ES Ros :A. o RIC.f\DO no MORRO .g, 2]

'"!

com 0nariz e revolven?o as magras boeheehas.

Dele, ai, ninguem zombava graeejo, que era homem

se prezando, forte zangadiyo. Piscava redobrado, e

para a beira da estrada se oeupou, esperando que

os outros passasseme se fossem- fazia por viajear

fora de cornpanhia.

-- O f Ack ! -_ glogueou seo Olguiste, igual urn

pato. Queria que 0Gorgulho junto viesse. -- Tro-

g lo dyt? T ro glo dyt? - inquiria, e, abrindo grande a

boca, rechupava um o o h ! . .. Quase se despencando,

desapeou. Frei Sinfrao e seo Jujuca desmontaram

tambem.

o Gorgulho persistia calado, amarrada a cara.

Gastara voz, saira de si, agora estava aquietado,

cansado quem-sabe. De tao alto em sua estima, e

cerimonioso , ganhava meia parecenya com algum

bicho, que nunea demuda de suas praxes. Enquanto

seo Alquiste se afadigava, como com eerto susto de

que 0homenzinho Fosse escapulir, E frei Sinfrao

cayoava e se afligia, repartido no receio de que seo

OIquiste se desgostasse, mas tambem de que pudes-

se obrar alguma maior inconveniencia. E seo Juju-

ca se tolhia, no dever de que tudo se arranjasse a

gosto de seus h6spedes. Seo Jujuca se aborrecia.

Nunca de seguro imaginara que urn divertido de

gente como aquele Gorgulho - que nem casa tinha,

vivia nurna gruta, perto dos urubus, definito sozi-

nho - que pudesse se eneoseorar, assirn, se dando

tanto valor. E Pedro Orosio mais 0 Ivo tinham de

tomar em si parte dessas tribulacoes, conforrne aos

empregados serve. S6 mesmo 0Gorgulha era ali

quem resguardava sua inteireza.

Mas Pedro Orosio tocou ajuda:--- "Ele gasta

d ." di "L. ."e rrum -. isse. -- Emeu amlgo ... ---; e, sem

pau nem pedra, fez a velhouco vir a fala, repedindo,

nome do frade, que ele quisesse de bern se chegar

e emparelhar caminhada.

Pclo que, de concordando, tiveram de ir dali

por diante todos a pe e a contados passos, visto que

o Gorgulho, a-prazer-de se empenhando, sempre

nao passava de urn poupado andarilho. Nem ne-

nhum deles ria, a que a menor mencao de troca 0

Gorgulho subia no S1S0, hornem de topete. Doido,

'? "N- El ' !, , A· 1 dsena. - 1rao. e, no que e, e e plrronlco, (a 0 a

essas manias ... Que parece foi querer morar inde-

pendente em oco de pedreira, so p'ra ser orgulhoso,

longe de todos. Enao perdeu 0bom-uso de qualquer

sociedade ... " Pedro Or6sio podia explicar isso, bai-

xinho, ao sea Jujuca, des que 0Gorgulho escutava

reduzido. Mas ele respondia as perguntas, sempre

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18 ·JOAO GUJMARAES ROSA

o RECADO DO MORRO -a 2.9

depois de rnatutar seu pouco, retorcendo 0 nariz e

bufando fraco, A faIa dele era clue nao auxiliava 0 se

entender .._ as vezes urn engrol fanho, ou baixando

em abafado nhenhenhem , mas com partes quase

gritadas. Em cada ftl0mento, espiava, de reves, para

o Morro da Gan;:a, posto la, a nordeste, testemunho.

Belo como uma palavra. De uma feita, 0Gorgulho

levou os 01h08 a de, abertamente, e outra vezse

benzeu, tirado 0 chapeu; depois, expediu urn escon-

jure, com a mao canhota. Frei Sinfrao recomendava

a seo Alquiste que agora deixasse de tornar notas na

caderneta.

Passando-se assim estas coisas, discorriam de

ficar sabendo, melhor, que 0 Gorgulho residia, havia

mais de trinta anos, na dita furna, urna caverna a cis-

morro, no ponto mais brenhoso e feio da serra gran-

de. Lapinha antes anonima, ou "Lapa dos Urubus",

mas agora chamada a "Lapinha do Gorgulho". Santo

de sozinho de santo: nunca tivera voutade de se casar

"0 hor saib . .,_ ssen or Sal a; nem con]o, nern conp -_ mea

razao sera esta ... "Mesmo 0motive dessa sua viagem

era ir de visita ao seu irrnao Zaquias, morador tao

lontao, tambern numa gruta pequena, pegada com

a Lapa do Breu, rumo a rumo com a Vaca-em-Pc.

Porque tinha tido sabenca de que 0 Zaquia andava

imagiuando se casar. E entao ele achava obriga<;ao

de aviso de deixar seus trabalhos, por uns dias, e vir

reconselhar 0 irmao, tivesse juizo, considerasse, as

paciencias, nao estava rnais em era de pensar em

mulher. E, de s se modo, pondo em efeito.

Afora causa tao precipitada, so de longes meses,

nao mais de uma vez na roda do ano, era que urn

deles resolvia, deixava sua gruta, e espichava estrada,

por mor de vir vel' 0 outro irmao Iapuz. - "Mas, pOl'

- . 7" "0 h di ? "que nao rnoram Juntos. - ssen or isse....

- e 0Gorgulho fitava 0 frade, espantado com 0

desproposito,

Porem seo Olquiste queria saber como era a

gruta, pOl' fora e pOl' dentro? Seria boa no tamanho,

confortosa, com tres comodos, dois deles dareados,

por altos suspires, abertos no paredao, 0 salao der-

radeiro e que era sempre escuro, e tinha no meio do

chao urn buraco redondo, sem fundo de se escutar

o fim duma pedra cair; mas l a a gente nao preci-

sava de entrar - so urn casal de suindaras certos

tempos vinha, ninhavam, esse corujao faz barulho

nenhum. Respeitava ao nascente. A boca da entrada

era estreita, urn atado de feixes de capim dava para se

fechar, de noite, mode os bichos. E tinha ate trastes:

urn banco, urn toco de arvore, urn caixote e uma

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30-q>jO A.O G UfM AR A f;,'j ROSAo RECADt) DO MORRO ~ 3'

barrica debacalhau. E ti?ha pote d'agua. Dormir,

ele dormia numa esteira, Vivia no seu sossego.

E de que vivia? Plantava sua roca, colhia: --- "A

gente planta milho, arroz, feijao, bananeira, abo-

bra, rnandioca, m~ndobi, batata-doce, rnelancia ... "

Roca em terra geradora, ali perto, scm possessao de

ninjjuern, chao de cal, dava de tudo. Que ele tinha

sido valeiro, de profissao, em outros tempos ...

-- emendava baixinho Pedro Or6sio. Abria valos

divisorios. Trabalhava e era pago pOl' varas: preyo

por varas. Pago a pataca. Fechou estes lugares todos.

_. "Pechei!" - ...de mesmo dizia. Contavam que

ainda tinha guardado hom dinheiro, enterrado, por

isso fora morar em gruta: tudo em meias-patacas

e quarentas, moedoes de cobre zinhavral. Com a

mudanca dos usos, agora se fazia era cerca-de-ara-

me, ninpuem queria valos mais; ele teve de mudar

de rumo de vida. Cultivava seu de comer. E punha

esparrelas para caca, sabia cavar fajo grande; pOl'

redondo ali, dava muita paca: nem bern ve uma

semana, tinha pegado em munden uma paca ama-

rela, dona de gorda. S6 pelo sal, e pOI' se servir de

merce de alguma roup a ou chapeu velho, era que

ele surgia, vez em raro, em fazenda ou povoado.

Trazia frutas, tambem fazia os balaios, mestre no

interteixo. Dizia: -- "Tambem faco balaio ... Os-

senhor fica com 0balaio ... Tambem faco balaio ...

Tambem faco balaio ... "

Mas, nesse entremeio, baixando 0 lancante,

chegavam a urn lugar sombroso, sob muralha, e

passado ao fresco por urn riaohinho: cis, cis. Urn

regato fluifim, que as pedras olham. Mas que mais

adiante levava muito sol. Do calcareo corroido subia

e se desentortava velha gameleira, imensa como urn

capao de mato. Espacados, no chao, havia cardos,

bromelias, urtigas. Do mundo da gameleira, vez clue

outra se ouvia urn trinco de passarinho, Ali fizeram

estacao ·para a hora de comer.,

Dado urn lombo aos cavalos, estes pegavam a

pastar, nas bocainas do barranco, urn mdoso ressal-

vado da seca e entrancado, cheirando born, com seus

6leos e seus pelos, Pedro Orosio ia ajuntar galhos de

graveto, acola, debaixo dos pes de itapicuru; acendia

o foguinho, coava cafe. Davapreven9ao: de repente,

uma laje daquelas, da trempe, podia estalar, rachada

se esquentando, com bruto rumor. Tinham queijo,

biscoitos, farinha, e carne de porco nevada na banha,

numa lata. Todos se assentavam, mesmo no solo, ou

em blocos e lascas de pedra, s6 0Gorgulho como

que teimava em ficar de pe, firme em seu pr6prio

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todo respeito e escoradoem seu alecrim. Rejeitou

de tudo, com breves mesuras de cortesia: ~ "A

Deus sejam dadas! Ea rnelhor sustancia paraVossen-

cias ... N6s matulamos inda agorinhao. 0"--- falou.I'

"E I 1 0 I d b ba?" J 0--._- .stara e e JeJuan 0 sua so er _ao·--·- seo ujuca

perguntou, baixo. Mas Pedro Or6sio sussurrou es-

I . t I lh di "/" .iarecrmen 0,que a guns ve os izram nos aSSIm,

que de certo era por eles mesmos e de cada urn seu

anjo-da-guarda, por mais de.

POl' ai, caso e coisa, e j.1 que de morava dito

numa urubuquara, queriam poder saber a respeito

de cornpanhia tal, dos urubus, qual era 0regimento

d "A I" - 1 Iesses. ---- rre. ~ que nao era ~ e e renuia, vez

vezes. Nao em sua gruta de vivenda, onde assistia.

Urubu nenhum 1.1nao entrava, nenhonde. --- "Mas,

?" "P "Q rpor perto. or perto, por perto... ue e que

de podia fazer, por evitar? Urubu vinha la, zuretas,

se ajuntavam, chegavam por de longe, muitos todos,

gostavam mesmos daquelas covocas. Que e que ele

ia fazer? Ossenhor diga ... Amem que, urubu, de

seu de si, nao arruma perjuizo p'ra ninguem, mais

menos p'ra ele, que nao tinha criacao nenhuma,

tinha so lavouras ... E 0Gorgulho calcava -com a

ponta da bengala em terra, e grave, de cabeca,

afirmava, atirmava.

o RECADO DO MORRO'" 33

Todo mesmo, percebeu comoreperguntavam, e

botousilencio, desengrayado com isso, nao enten-

dendo COIDO pessoas de tao alta distincao pudessem

perder seu interesse, em coisa. E so manso a manso

foi que Pedro Or6sio e frei Sinfrao conseguiram tirar

dele noticia daqueles passaros, 0geral deles.

Assaz quase milhares. Que passam tempo em

enorrnes voos por cima do mundo, como por cima

de urn deserto, porque so estao vendo o seu de-

comer. Por isso, despois, precisam de um lugar

sinaladamente, que pequeno seja. Para eles , ali era 0

mais retirado que tinham, fim-de-mundo, cafund6,

ninpuern vinha bulir em seus avos. -~ "Arubu tirou

heranca de alegre-tristonho ... "Tinha hora, subiam

no ar, urn chamava os outros, batiam asa, escure-

dam 0 recanto. Algum ficava quieto; descansando

suas penas, 0 que costuravam em si, corn agulha

e linha preta, pareda. Careca ,-- mesmo a cabe-

<;ae 0 pescoqo sao pardos. Mas, bern antes, todos

estavam ali, de patuleia, ocasioes de acasalar. Os

urubus, scm chapeu, e dansam seu baile. Quando e

de namoro, urn figurado de dansa, de pernas moles,

despes, desesticados como de urn chao queimante,

num rebambejo assoprado, de quem estaria porse

afogar no meio do ar. Ou entao, pousados, muito

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.3 4- ·0[o 0 G u ~M·A R A f ~ Ro s I\.

existentes.todos rodeados. Pretos,daquele preto

de dar einzas, umpreto que se esburacae que rouba

alguma coisade vida dos olhos da gente. A chibanca,

de quando vinham. Chegavam no sol-se-por.Vinham

magros, vinhanf gordos ... Botavam seus ovos, sem

ninho nenhum, nossolapos, nas grotas, nas rachas

altas dos barrancos, nos buracoes, nas arvores do

mato Iajeiro. Cada precipicio estava eheio de nichos,

dentro eles ehocavam, punham para fora as cabecas e

os pescoyos, pretos, de latao. Era ate urgente, como

espiavam pra urn e pra outro lado. Dai, tiravam os

filhotes. Entao, f'cdiam multo, os lugares.Cada par

comseus dois filhos, danados de bonitinhos, primei-

ro eram plumosos, branquinhos de algodao, por logo

lam ficando Iilas. Quando viam a gente, gomitavam:

~ "Arubu pequeno rumita 0tempo todo, toda a

vida ... " Tambem e dessa feiyao assim que pai e mae

botam comida no bico de cada urn. Eh, arubuzinho

pia como pinto novo: pintos pios ...

Sc nao tinha me do de serem tantos, e ali encos-

tados? Ah, nao, ch, eles tambem tern ate regra: uns

castigam os outros. Dao paneada, dao urn assorto

de guincho, de repreensao. Eh, e urn reino deles.

Tal que, ali no esconso , uns podiam se apartar para

morrer, morriam rnocos, morriam velhos, doenca

o RECA.DO DO MORRO • 3~·

mereciam? Uns cscondiam os pes, clams, e abriam

as asas, lam eneostando as asas, no chao, tempo-

de-chuva chovia em cima, urubu virava monturo,

se acabava, quase... Mais morre, ou nao morre?

~_ "Eu nunca vi arubu morto ... Eu nunca vi arubu

morro ... "

E se tinha, se era verdade, urn urubu todinho

branco, sempre escondido pclos outros, mas que

produzia as ordens? Nao, disso 0Gorgulho nunca

tinha vislu.mbrado. Pudesse em haver, so se sendo

o capeta ... Tcsconjurava. E a fala deles, uns com

os outros? Conversavam? 0seu Malaquias enten-

dia? () Gorgulho mais se endireitava, cismado; sua

cara era tao suja, sarrosa. Que nao nem que sim:

nunca tinha vislumbrado. Mas falava. Pela feitura,

talvez ele nao pudesse ter toda a mao em seu dizer,

porquanto tanto esforco punha em nao bambear 0

corpo. Se esdruxulou:

~ "Vao pelos mortos ... Oficio deles, Vao pelos

mortos ... Dar em vante. Este morro e born de ven-

to ... Eu sou velho daqui, bruaca velha daqui. A fui

morar la, rna de me governar sozinho. Tenho nada

com arubu, nao. Assituamento deles. Por este e este

cotovelol Vossernece ossenhor sabe. Careco de ir

dereitamente, levar conselho de conigimento p'ra

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meu irmao Zaquia, Por conta de coisa que se diz,

que ele cluer se casar. ;rira meu assossego. Careco de

desdizer que nao case. Ta Irouxo de juizo?Viagem

desta muito me cansa, estou de grandes dias, fora de

forya, maItreito. 56 por ele ser 0rneu irrnao, rnais,J'

novo. Arreside Com ruins vizinhos perto, aprende

o mal, ideias, Se casa, casa scm rneu agrado: seu

quis, sen seja ... Vou indo de forasta, tendo minhas

obriga<;:oes, e, dai, aquele Morro ainda vern gritar

recado?! Quer falar, fala: nao escuto. Tenho minhas

amarguras ... "

o Gorgulho, como arrastava as palavras, aoparecer de se esquecia, num costume de quem rno-

rava sozinho e sozinho necessitasse de falar. E, nesse

eomenos, Pedro Or6sio entrava repcntino num

imaginamento: urna vontade de, voltando em seus

Gerais, pisado 0 de la , ficar pennanecente, para os

anos dos dias. Arranjava uns alqueires de mato, roca-

va, plantava0

bonito arroz, urn feijaozinho. Secasavacom uma moca boa, geralista pelo tambem, nunea

mais vinha ernbora ... Era uma vontade empurrada

ligeiro, uma saudadea ser cumprida. Mas pouco

durou seu dar de asas,porque a cabeya nao sustentou

dernora, se distraiu, eora9ao fieou batendo somente.

Pequenino, Urn resto de tristeza se queixando por

o RECADO DO MORRO 0

37

dentro, de transmusica. Ali0riachinho, por pontas

de pedras, parecia correr defugido, branquinho com

uma porcao de pes. Suaves aguas. Da gameleira, 0

passarim ,superlim. E, longe, piava outro passarinho

_.- urn sern nome que se saiba --- 0que canta a toda

essa hora do dia, nas ar vores do r'ibeirao: --~-"Toma-

a-benfao-ao-seu-ti-f-o,joao! ... "

Mas, enquanto isso, seo Alquiste punha uma

atenc;ao agl~da, quase angustiada, nas palavras do

Gorgulho -- frei Sinfrao e seo J ujuea se admiravam:

como tinha de podido saber que agora justamente

o Gorgulho estava recontando a doidice aquela, de

ter eseutado 0Morro gritar? Pois falava:

-~ Que que disse? DeI-rei, 6, demo! Ma-hora,

esse Morro, asparo, so se e de satanaz, hoi Pois-olhe-

que, vir gritar recado assim, que ninguem nao pediu:

(;de tremer as peles ... Por mim, nao encomendei

aviso, nem quero ser favoroso ... Del-rei, del-rei,

que eu ca

eque nan arrecebo dessas conversas,

pelo similhante! Destine, quem rnarca e Deus, seus

Apostolosl E que toque de eaixa? E festa? S6 se for

mor te de alguem ... Morte a traicao, foi que ele

Morro disse. Com a caveira, de noire, feito Historia

Sagrada, del~rei, del-rei! ...

- "Vad?Faro?Pan?":»: e seo Alquiste se levan-

tava. -_. "Hom' est' diz xoiz" imm'portantl" ---- ele

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.3 - 8 • J o.A- 0 G U [ M II R A. E.s R 0 S ,,\

falou,brumbrum. S6.se pelo acalor. de voz do Gor-

gulho de pressentia. E ate se esqueceu, no afa, deu

apressadas frases ao Gorgulho, naque1a lingua sem

as possihilidades. 0 Gorgulho meio se arregalou, e

defastou urn pl'isso. Mas se via que algum entendi-

mento, como que de palpite, esteve correndo entre

ele e 0estranjo: porque ele ao de leve sorriu, e Ioi a

unica vez que mostrou urn sorriso , naquele dia. Os

dois seremiravam. SeoOlquiste reconheceu que nao

podia; e olhou para frei Sinfrao. -- "Chois' muit'

imm'portant?" ..-.- indagou.

Nao, nao era nada importante, 0frade explicou,

o quanto pode. No mais, que 0Gorgulho disse, que

foi breve, se repetia menos mesmo, continuativo,

nao havia pOl' onde se acertar. -_- " E do airado ... "

-- disse seo Jujuca. Nem eram coisas do mundo

entendivel. De certo 0Goraulho por sua maniab ,

estava transferindo as palavras. Mais achou, como

de relance, que seo Alguiste era capaz de pegar 0

sentido escogitado; e entao afiou boca. Mas, nesse

afogo, falando rnuito depressa, embrulhava tudo.riao

vencia se desembargar. S6 Pedro Orosio asvezes ca-

piscava, e reproduzia para frei Sinfrao, que repassava

revestido p'ra seo Olquiste. E seo Jujuca tambem

auxiliava de falar estrangeiro com frei Sinfrao -_. mas

ORE C A f) 0 D 0 i\"l. 0 R R 0 .e 39

era vagaroso e noutra toada diferente de linguagem,

issose notava. Mas,depois, todaa.resposta de seo

Alquiste retornava, via 0frade e Pe-Boi. Por tanto,

todos entao estavam nervosos, detanta conconversa.

E 0Ivo, que no meio daquilo era 0sem-prestimo,

glosou qualquer tolice -- nem era chacota -, e0

Gorgulho expeliu nele urn olhar de grandes raivas;

e dai esbarrou: quis nao falar mais nada nao.,

Ao fim de tanto transtorno, 0 rosto de seo Al-

quiste se ensombreceu, .meio em decepcao; e de

desistiu, foi se sentar outra vez no pedaco de pedra,

56 se ouvia 0resumo de uma mosca-verde, que pas-

sava; 0tertere dos anirnais boqueando seu capim; e

o avexo em chupo do riachim, que estarao frigindo.

Tambem 0passaro da copa da gameleira fufiou. E0

outro, 0passarinho anonimo, 1aem baixo, no morro

de arvores pretas do ribeirao: Toma-a-bencdo-ao-

seu-ti-lo.Lo-aol 0 resto era 0 calado das pedras, das

plantas bravas qlJecrescem tao demorosas, e do ceu e

do chao, em seus lugares. 0 Gorgulho riscava 0ter-

reno com a bengala; pigarreou, e perguntoll se seo

Olquiste nao seriaalgum bispo de outras comarcas,

de longes usancas, vestido assim de cidadao?

Mas seo Alquiste pegava no lapis e na caderne-

ta, para lancar os assuntos diversos, Do Gorgulho

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40 -. J 0, k 0 ',G U tM A oR PI . E S : R 0 S A

ningwhn queria escarnir, mas todos estavam risaos,

porqueele tinhaquebrado seu encanto, agora chega

caceteava. Aide mesmo devia de ter sentido isso, ou

notou que a tempo do sol iaavancando, Caso que

tirou 0chapeu e bferton as despedidas: care cia de

segnir, alcancar de noitinha no seu ir-mao Zaquias.

---"Ver 0outro espeleu, em sua outra espelun-

ca... "_ 0frade pronunciou. Eo Gorgulho pensou

que era algum abencoado, e fez 0em-nome-do-

padre. Sea Olquiste enfioua mao no .bolso, tirou

a carteira de dinheiro. --- "Olhe, que de vai nao

aceitar, com ma-criacao!" _ seo Jujuca observou.

Mas, jeito nenhum: 0Gorgulho bern recebeu anota,

nao-sei-de-quantos mil-rei», bem a dobrou dobra-

dinho, bem melhor guardou, no fundo da algibeira.

"0 dA bA

I I "-ens vos e a oa paga, pOl' esta esportu a...

-- disse merce.

A termo que, depois de outra reverencia, deles

sequitou, subindo par urn sernideiro, caminhando

sem se voltar, firme com 0 alecrim. A formiga, su-

miu-se na ladeira, tapado pOl' uma aresta de rocha

e urn gravata _ panoplia de muitas espadas presas

pelos punhos. Ainda tornou a aparecer, um instante,

escuro como urn gregotim, que muito sol alumiava,

no patamar da serra, E, de vez, se foi.

o RECADO DO MORRO ·41

Trastanto, set>Olquiste se estendeu nos pelegos,

para sestear, segundo uso. 0 .frade desembolsou 0

rosario, tecendo uma pouca de reza, ali na borda

do riacho, cuja agua, alegrinhaem frio, nao espera

pOl'ninguem.----- "Voce sabe 6 que 0Ingar aqui esta

aconselhando, 6 Pedro ?"--- ele pas. _- "Pais para

fazer arrependimento dos pecados, p'ra se confes-

sar. .. Hemr Voce esta recordado do catecismo? .. "

Frei Sinfraose faziamuito ao gracejar com a gente,

dava gosto. Rezava como se estivesse debulhando

milho em paiol , ou rocando mato. Aquele exemplo

aumentava qualquer fe. 0Ivo tinha botaclo as gar-

rafas de cerveja debaixo da correnteza d' agua, para

refrescarem; entre uma oracao e outra, frei Sinfrao

bebia um copo cheio.

Mas, porque havia de ter ameacado com aquilo,

de contricao e conlissao? Pe-Boi restava perturbado,

seu pensamento desobedecia ..Aquela hora, nem

que quisesse, nao podia dar balance em pecados

nenhuns. Frei Sinfrao podia tel' comecado pelo Iva.

o Ivo que nao perdia vaza de adular: fora cortar

capim para calcar par baixo dos pelegos, sempre

na esperanqa de que seo Alquiste ao fim 0gratifi-

casse com bom dinheiro, -- "Voce nao quer confes-

sar com 0 frei, por absolvicao, hem Iva?" "-- Ara,

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4.2 • J . Q.·.A_, ·o ·G U: I·M A RAE S R () S A

t ... d "ou.asorc ens ... ----':-~"<Ivo .respondia. Abem dizer

1 - I '

e e nao era rna pessoa. Ia cuidar dos cavalos.

E Pedro Orosio nao podia parar quieto. 0 es-

tatutode seu corpo requeria sempre movimentos:

tinha de estar;,trabalhando, ou caminhando, au

ca9~n~0 como se divertir, Seo Jujuca tinha pegado

o binoculo do outro, e vinha ate ao tim do lanc;o da

escarpa-- onde razoavel tempo esteve apreciando:

no co~ao, uma boiada branca espalhada no pasto.

P~,ra~l,a gente avistava mais trilhos-de~vaca do que

veiazinhas nas orelhas de urn coelho N . d' ,10macro 0

ceu, seria born passar 0dedo.-- "Voce entendeu al-guma coisa da estoria do Gorgulho, ei Pedro?" "-~-A

pois, entendi nao senhor, seo Jujuca. Maluqueiras ... "

Claro que era poetage E, J .. , m. seo uJuca emprestava

a Pedro Orosio 0 binoculo, para uma espiada, Ele

havia a linha das serras desigualadas a toda I ., onjura,

as pontas dos morros pondo 0 ceu ferido e bai xo.

Olhou, urn tanto. Depois, esbarrado assim, sem que-

fazer, sem ser para prosear ou dormir, desnorteava.

Praz:ive~ era se estivesse com companheiros, jogar

uma mao de truque. 0riachinho, revirando, todo

se cuspia. E foi contentamento para Pedro Orosio,

quando se arrurnaram para continuar de seguida.

E, indo des pelo caminho, duradamente se

avistava 0 Morro da Caroa, sobressainte. 0 qual

o HECADO D) MORRO "'43

comentaram. Pedro Orosio bern sabia dele, de ouvir

o que diziam os boiadeiros. Esses, que tocavam com

boiaelas do Sertao, vinham do rurno ela Pirapora,

contavam --- que, por eliase dias, caceteava enxer-

gar aquele Morro: que sempre clavaar de estar num

mesmo lugar, sem se aluir, parecia que a viagem nao

progredia de render, a presenc;a igual do Morro era

o que mais cansava.

E voltou a mente 0 querer se deixar ficar [a,

em seus Gerais, nao havia de faltar onde plantar ameia, uma terreola; era um born pressentimento.

Mas logo a ideia raleou e se dispersou --- ele nao

tinha passado pOI'estreitez de dissabor ou sotrimen-

to nenhum , capaz de impor saudades. Assim, era

como se minguasse terra, para dar sustento aquela

semen tezinha.

Agora estavam torando para a fazenda do Jove,

pOI' pernoite. Depois, desde a manha seguinte,

sempre para 0norte, H onde agora se fechava um

falso-horizonte de nuvens, a sobre. Caminhar era

proveitoso. Aqui, c a arras, os outros conversavam e

riam ~ seo Alquistee frei Sinfrao cantavam canti-

gas com rompante, na lingua de outras terras,que

nao se entendia; seo Jujuca acompanhava-os. Enin-

guem se lembrou nem disse rnais do Gorgulho,nem

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44 - I J 0 A 0 G U I MAR A E S R -o S ~ '\

da serra que Bcou li.l::u:deava, quando chegaram no

Jove, a casa de {rente dada para urna Iagoa. Marre-

cos voavam pretos para 0ceu vermelho. que vao se

guardar junto com 0sol.

Adiante, hcnfve dias e dias, dado resurno.

A onde queriam chegar, ate Iichegaram, a co-

mitiva, em fins.

Mas, quando vinham vindo, terminando a torna-• • I I 1 Jvlagem, ja 0ceu ue todas as partes se enfumac;:ava

cinzento, por conta das muitas queimadas que nas

encostas lavravam. 0 sol a tarde era uma bola car-

mesim, em liso, nao obumbrante_ A barba do Ivo

igualava, apontando cavanhaque em feio corneco.

E Pedro Orosio, espiando no espelhinho, se achava

meio carecido de cortar 0 cabelo, que pOl' sobre as

orelhas caracolava.

Variavam aIgum trajeto, a mol' evitavam agora os

espinhacos dos morros, por causa do frio do vento

-- castigo de ventanias que nessa curva do ano

rodam da Serra Geral. Mas quase todas as mesmas,

que na ida, eram as moradias que procuravam, para

hospedagem de janta ou almo~~o, ou em que ficavam

de aposento. As quais, so] a sol e val a val, mapeadas

por modos e caminhos tortos, nas principals tinham

sido, rol: a do Jove, entre 0 Ribeirao Maquine e 0

o RECADO DO MORRO ~45

Rio das Pedras--- fazenda com espayo de casarao

e sobrefartura; a dona Vininha, aprazivel , ao pe da

Serra do Boiadeiro ------ai Pedro Orosio principiou

namoro com uma rapariga de muito quilate, por

seus escolhidos olhos e sua fina alvura; 0NhS Herme s ,

a beira do Corrego da Capivara ---~-----nde acharam

noticias do mundo, por meio de jornais antigos e seo

Jujuca fechou compra de cinquenta novilhos curra-

leiros; a Nha Se lena, na ponta da Serra de Santa Rita

-~ onde teve uma festinha e frei Sinfrao disse duas

missas, conf:essou mais de umas duzias de pessoas;

o Marc iano , na fralda da Serra do Repartimento, seu

contraforte de mais cabo, mediando da cabeceira do

Correzo da Onca para a do Con-ego do Medo Ii

o Pedro quase teve de aceitar malajuizada briga com

urn campeiro morro-verrnelhano; e, assaz, passado 0

Sao Francisco, 0Apolinario, na vertente do Formoso

-- ali ja cram os campos-gerais, dentro do sol.

Medido, Pedro Orosio guardara razao de orgu-

Iho, de vel' 0alto valor com quc seo Alquiste con-

templara 0 seu pais natalicio: 0 chapadao de chao

verrnelho, desrcgral, 0 frondoso cerrado escuro

feito urn mar de arvores, e os brilhos r isonhos na

grava da areia, 0ceu urn ser tfio de tao diferente

azul, que nao se acreditava, 0ar que suspendia toda

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46 " J () A 0 G U I M A I I . . . A E S R 0 S A

claridade, e OS brejos compridos desenrolados em

dobras de terreno montanho _. veredas de atoleiro

terrivel, com de Iado e lado 0enfile dos buritis, que

nem plantados drede pOl' maior mao: por entre

o voar de araras e papa.gaios, e no meio do gemer

das rolas e do assovio limpo e carinhoso dos sofres,

cada palmeira semelhando urn bem-querer, coroada

verde que rnais verde em todo 0verde, abrindo as

palmas numa ligeireza, como sois verdes ou estrelas,

de repente.

Ah, quern-sabe, trovejasse, se chovesse, como

lembrando longes tempos Pe-Boi talvez tivesse re-

pens ado mesrno sua ideia de parar para sempre por

la, e ficava. Mas, de assim, ali, a saudade nao tinha

presa, que ela e outro nome da agua da distancia

- se voava embora que nem passaro alvo acenando

asas pOI'cima de uma.lag6a secavel. Eo que ele mais

via era a pobreza de muitos, tanta mlngua, tantos

trabalhos e dificuldades. Ate lhe deu certa vontadc

de nao ver, de sair dali sem tardanca, .

Mesmo,senso reconhecia, no que estavam

praticando os tres donos viajantes. ~.- "Eu estou

em ferias, descanso ... " --- frei Sinfrao explicava.

E carregava pedras --- confessando, doutrinando,

pondo 0povo para rezar conjunto, onde estivessem,

o R:ECAUO DO MORRO 447

todas as noites; e terrninou uma novena no Marcia-

no, e ja na Nha Selena comecava outra. E seo Jujuca

aprendia tudo de seu interesse ~- tirava conversa

com os sitiantes e vaqueiros, ja tracava projeto de

arrendar par Ii urn quadradao de pastagens, que ali

terra e bezerros formavam maisemconta. E 0 seu

olquiste estudava 0que podia, escrevia amonte em

seus muitos cadernos, num Iugar recolheu a ossada

inteira limpa de uma anta-sapateira, noutro ganhou

uma pedra enfeitosa, em formato de Iundido e cores

de bronze, noutro comprou para S 1 urn couro de

dez metros de sucuri macha.--- "Cada urn e d6ido

de sua banda!" - definia 0 Ivo, a respeito, E em

combinavam no rir, Pedro Orosio e ele.

Porque, desde dias, estavam outra vez compa-

nheiros, a amizade concertara. Ao que 0lvo era

um rapaz correto, obsequioso. -- "Mal-entendido

que se deu, so ... Ma estoria, que um bom gole

bebido junto desmancha ... " Nisso que 0Ivo pelos

outros respondia tambem: 0Jovelino, 0Veneriano,

o Martinho, 0Helie Dias Nemes, 0Joao Lualino, 0

Z6 Azougue ...~ que, seainda estavam arredados,

ressabiando, no rumo nao queriam outra coisa senao

se reconciliar, Deixasse, que ele, Ivo, logo chegassem

de volta no arraial, arreunia todos, festejavam aspa-

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zes;~"O Nemestambe,m?!"- -Pe-Bot perguntou,

duvidoso, quase nao.crendo. - "Pois elel Voce vai

ver. No simpor mim, velho! ... "Eesse Ivoera urn

sujeito, de muita opiniao, clue teimava de cumprir

tudo 0que dava.anuncio de urn dia fazer, Por isso, 0

apelido dele, que tinha, era; "Cronico" - (do qual

nao gostava). Agora, que vinham seaproximando

de final, os agrados dele aumentavam. Adquiriu

uma garrafa de cachaca, deviam de beber, os dois,

dum eopo so. E estendeu a mao, numa seriedade

1 1 "'T" "\I" "'T" I"D' .ea ; .~. !Oques (. -- lOques. OlS almgos se

entendiam.

Isso foi no Nha Hermes. De Ia ate a dona Vini-

nha, era urn transvale com cerradao de altas arvores ,

o que enjoava. Mas, lisas, no meio daquilo, as vezes

umas varzeas de brejo, verdoengas, feito recantos

oasis. Touros mais suas vacas se viam, pastando num

ponto 01.1 noutro, A toda hora urn gaviao voante,

sempre gavioes, sempre 0brado: pinh'nh!! E, como

chegaram tarde-noite na dona Vininha, Pedro Oro-

sio nao pade ver aquela moca de finos oIhos.

Mas bern veio que, redespertos, ao outro dia, se

achavam todos no alpendre da Fazenda, de I a esti-

mavarn 0movimento da tiracao de leite no curral, e

mesmo 0estilodo tempo, pois fazia uma viva manha

de amarelo em branco.

ORE CAD 0 DO M 0 R R0 '" 49

Ali era uma varanda abastante extensa. Seo

Olquiste, {rei Sinfrao e seo Jujuca formavam roda

com a dona Vininha e seu Nh6to, rnarido dela. Por

quanto, em outra ponta, PedroOrosio, conversava

com 0menino joaozezim _.- a meio de saber noti-

cia daquela moeinha completa, cujo nome dela era

Nhazita. Pedro Orosio podia notal' -~ e ate, sem

nada dizer, nisso achava certa graya ~ ..que 0 Ivo se

desgostava; serio, de que ele caprichasse tanto inte-

resse nessas namoracoes, - "Descaminha filha-dos-

outros nao,meu amigo!"- 0 Ivo cochichava, pelo

menino joaozezim nao ouvir, Ao que esse menino

Joaozezim era urn caxinguele de ladino: pis cava os

olhinhos, arregalava os olhos, de bonitas crescidas

pestanas, e divisava a gente de cima a fundo, nada

nao perdia. Pena era que a mOya Nhazita, segundo

se sabia agora, ali nao estivesse mais. Tinha passado

por la , com 0 pai, s6 de vinda da casinha deIes,no

Morro da Cachaca, e indo para 0lugar conominado

Osorio de Almeida, beira de estrada-de-Ierro. E essa

moca era noiva -- 0 noivo estava par mais urn ana

no Curvelo, purgando por crime, prisioneiro de

prjsao. Pareee que se chamava Jose Antonio.

Desde isso, porem , veio ehegando, saco bern

mal-cheio as costas e roupinha brim amarelo de

o RI~CADO n o MORRO· SO l

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paleto ccalca, umcamarada .muito comprido; rna-

grelo, com cara de sandeu·-~custoso mesmo se

acer tar alguma ideia de donde, que calcanhar-do-

judas, urn sujeito sambanga assim pudesse ter sido

produzido. 0 pal~to era tao grande que nao se aca-

bava, abotoados tantos.botoes, mas a calyachegava

so, estreitinha, pela meia-canela. Os pes tambern

marcavam por descomuns no comprimento, calca-

dos com umas alpercatas floreadas, de sola do sertao.

Ao que, com tudo isso, prasapio assim, mas de era

dos desses vaidosos. Caminhava com defeitos, e, das

pernas ao pesco<;:o, se alceava em tres cur vas , como

devia de ser uma cobra em pe. Viu urn banco vazio,

e confiou 0 corpo as nadegas. Nao cumprimentara

ninguern. Mas todo se ria, fechava nunca a boca.

- ~ E 0Catraz! --. 0menino Joaozezim logo

disse.~Apdido dele e Qualhacoco, Mas, fala nao,

que ele da odio ... Ele cursa aqui. E boco.

o Catraz tinha 'linda berganhar milho por fuba,

condizia 0conteudo do saco. Mas nao mostrava

nenhuma pressa. Ver tanta gente reunida, para de

mudava as felicidades. ~~. "A-ha~ha ... Pessoas de

criacao ... ".- ele disse, espiando os viajantes. ---~"0

Catraz, conta alguma novidade! Voce viu 0arioplae?"

" A pois, inda ontem , ele torou avoando p'ra a

banda de baixo ... Passarao de pescoyo duro ... "Mais

o menino Joaozezim perguntava: ~~ "E a mo<;a da fo-

lhinha, CatrazrVoce guardou?"~-·; qual era uma es-

tampa de calendario de parede, a figura de uma moca

civilizada, com um colar de sete voltas, 0Catraz pelo

retrato pegara paixao, e tanto pedira, tinham dado

a ele. _- "Ha-de, ha-de, que esta la o Fremosural ...

Ah, s6, a mo de coisa que ela e tabaquista, e ficou

com aquela pintinha preta de rape, na cam ... Ainda,

ainda, que eu conseguisse de casar com cia, ah, ah .

Fiz promessa de nao casar com mulher feiosa "

o Catraz suspirava com 0saco. -- "Mal que foram

contar pra 0 meu irmao Malaguia que eu estava

tratando casorio ... Meu irmao Malaquia entonces

veio me ver, de passar pito. Ele e casmurro , e muito

apichicado ... Malaquia me apertou, ei, tive de dar

juramento, de ao menos nao me casar nesses prazos

de clez anos, A escapula que tive, Me vali com aguas

"ornas ...

_~_ "Este Catraz tern urn dinheirinho. EIe ate

engorcla porco ... " ~~ alguem dizendo. Mas Pedro

Orosio disfarcara e saira a chamar seo [ujuca, 0

frade, seo Alquiste: estava ali 0 irrnao do Gorgulho,

e tambem grotesco. Aqueles acorreram. Explicaclo,

seo Olquiste exclamouzao: -~- Yppetst! E 0Catraz,

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52 ·R J 0 .i\ 0 G u r 1 ' . 1 A 'R Ii: E S R 0 S A

falanfao, naose acanhaya com as altas presen~as,

antes continuava a esparolar, se dando a todos os

desfrutes.

..- "Vamos ver esse milho, 0 Catraz. Despeja 0

saco " ~..~ diss{"eo Nhoto, pegando uma medida

de cinco litros e erguendo a tampa da tulha de ma-

deira, que era ali rnesmo, de duas partes, uma com

milho, a outra repleta de fuba rosado. Entre tudo,

atento a medicao, 0 Catraz se [astimava: ~- "Aqui

me valha, ossenhor seu Nhoto, ossenhor homem

dinheiroso! ".; ..suplicando que 0 fazendeiro encal-

casse cada mancheia de fuba, a mais caber, e ao fim

deixasse ainda alto 0 cogulo, scm 0 rasourar com

a borda da mao. Pobre triste diabo risonho, desse

Catraz. Mas seu Nhoto cedia em sobreencher a vasi-

lha, para 0alegrar .. -~ "Ah, exatosl Ah, bern medido,

mesmo ... " .-~ de se balancava. Ai abria a boca do

saco, recebendo seu fuba, e logo a amarrava bern,

com tres nos de embira.

A tao, de respondia e proseava, lesto na loque-

lao Arenas, nada conseguia relatar da lapinha onde

morava, agenciada no mineral branco, entre plantas

escalantes, debaixo do mato das pedreiras, Visfvel

rnesmo se admirava de que especulassem de a saber,

dessem importancia ao que menos tinha. Por que

o !"l..ECA()() DO MORRO ""5·3

vivia hi dentro? Ara, causa do Malaquia, que tudo

aconselhava. E a lapa era de born agasalho. Bichos? A h ,

nao. So uns buracos, por onde entravam morcegos. E

.~ " " ho-d "t~ ..cocuruJao.,. ~ .....Eo moe o-nas-grutas ... -. rei

Sinfrao esclarecia. E 0Catraz 0Iitava, reverente,

c ord o, - . _.. "Ah, 1.1eu tenho de tudo. Ate banca de ca-

rapina ... "Que era verdade falou seu Nhoto. Esse

Catraz urn sujeito que nunca viu bonde ..... - mas

imaginava rnuitas invencoes, e movia tabuas a serrote

e martelo, para coisas de engenhosa fabrica. "0

antomovej.ihern, Catraz?""- Uxe, me falta e uma

tinta, p'ra mor de pintar ... Mais, pOl'o ras, de so anda

na descida, na subida e no plaine ainda nao e capaz

d d " "E r A A ' Z · · · · · . ' 7"e se 1'0 ar .. , ~- 0 carroco que avoa, se lqma.

" Vai vel', urn dia, inda apronto ... " Era para ele se

sentar nesse, na boleia: carecia de pegar duas duzias

de urubus, prendia as juntas deles adiente; entao,

levantava urn pedaco de carnica, na ponta duma vara

desgrayada de cornprida: os urubus voavam sempre

arras, em tal guisa, 0trern subia viajando no ar. , .

"E seu irrnao Gorgulho, s e Ziquia? Quantos

dias passou de hospede Ia em sua lapa?" "-- S6 uns

tres dias so. Transeunte. Dixe que, eu casar, cIe me

amaldicoa ... " , ,~- E 0 que mais, que de dizia e fa-

zia?""~· Dava todos os eonselhos. Ficava os tempos

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54 ,,_ o i\_ 0 G U·I M r\ R 1\ ); : s ·R 0 SA o R fi. CAD 0 T) 0 M 0 R RO· .. 5· 5

sentado de coc'ras, na beira da grota. Gosta mais de

sol do que jacare ... Mas escria pessoa, rneu irmao

. lh "" J I AC t ?"" Eh .! Oats ve 0... -- acare,o a raz. -- ,pOlS. "-

jacarefica de h i na moira, com seu olhao dcle?Tiro

em cabeca de jat:~re nao adianta nada ... "

Mas 0MaJaquia conversava com de coisas de

relighio, tambern. Tinha falado num lUgar, no lugar

muito estranho -- onde tem a tumba do Salomao:

quase que ningucm nao podia chegar ate h i. Recanto

Iimpo e fundo, entre desbarrancados, tao sumido que

parecia a gente estar vendo ali em sonho; e so com

umas palmeiras e urnas grandes pedras pretas; mas

o melhor era que 1<1em urubu nao tinha Iicenca de

if. ..-"A born, agora e que eu estou alembrado, vou

contar 0que foi que meu irrnao Malaquia dixe ... "

Mas, por essa altura, so 0menino joaozezim,

que se chegou mais para perto, era quem 0 ouvia.

- "Dixe que ia andando por urn caminho, rom-

pendo por espinhaco dessas serras ... " Porque seo

Jujuca se entendia com seu Nhoto, assunto dumas

vacas e novilhas - massa de negocio provavel. Frei

Sinfrao abrira obreviario e Iia suas rezas. 0 Ivo fora

ate la , no curral, sempre inquietamente. Dona Vi-

ninha entrava para a casa, decerto dar uma vista no

apreparo do almoco. Sco Olquiste agora desenhava

na caderneta as alpercatas do Catraz.era 0que de

portava demais imponente. E PedroOrosio mesmo

se esquecia, no meio-lembrar de uma coisa ou outra,

fora do que 0Catraz estivesse dizendo.

- " ... E urn morro, que tinha,gritou, enton-

ces, com de, agora nao sabe se foi mesmo p'ra ele

ouvir, se foi pra alguns dos outros. E que tinha uns

seis ou sete homens, pOI'tudo, caminhando mesmo

juntos, por. ali, naqueles altos ... E0morro gritou

foi que nem satanaz. Recado dele. Meu irrnao Ma-

laquia falou del-rei, de tremer peles, nao querendo

ser favoroso ... Que sorte de destino quem marca

e Deus, seus Ap6stolos, a toque de caixa da morte,

coisa de festa ... Era a Morte.Com a caveira, de

noite , feito Historia Sagrada ... Marte a traicao ,pelo semelhante. Malaquia dixe. AVirgem! Que e

que essa estoria de recado pode ser?! Malaquia meu

irrnao se esconjurou, recado que ninguern se sabe

di "e pe ru...

De repente, frei Sinfrao ergueu os olhos do

b .1. "\1, A I d Drevtarto: - oce como e que an a com eus,

meu filho?"- docernente perguntou ._--."Voce sabe

rezar?" "- Ah, isso, rezo. Rezo p'ra as almas, toda

noite, e de menha rezo p'ra mim ... Pego com Deus.

A gente semos as criacaozinhas dele, que nem as

1· h "a IIIias e as porcos ...

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~6 • j 0 A 0 G U I MAR II E S R 0 A

E 0Catraz botava osacoaoombro, se dispunha

a puxar embora.caminho de sua Iapa, lapinhaperto

pegada corn a Lapa do Breu, rumo a rumo corn a

Vaca-em-Pe, em partes terrentas de pedreiras e

rocha nua, num ponte diante do qual outra serra

vai Ingreme, talhada como urn queijo. Disseram-

lhe que retardasse urn pouco: aproveitasse cafe e

almoco. E de concordou, mas tinha apuro -- desceu

a escadinha da varanda, ebeirou a casa indo para a

porta da cozinha. Falando, perguntando, 0 rnenino

joaozezim 0acompanhou,

Assim. Tanto que almocararn, sua vez os viajantes

iam tambem partir. Nem viram mais 0Catraz, nele

nem pensavam. Ate certa distancia ate ao Pantano. ,

porem, em compensacao, teriarn outro companhei-

ro, da mesma vaza.

Esse urn ~- 0Guegue -- que outro nome nao tinha;

e nem precisava, 0 Guegue era 0bobo da Fazenda.

Retaco, grosso, mais para idose, e papudo -"- urn papaem tres bolas meando emendas, urn tanto de lado.

Nao tirava da cabeca urn velho chapeu-de-couro de

vaqueiro, preso por barboqueixo. Babava sempre um

pouco, nos cantos cia enorrne boca com um au dois

tocos amarelosde dentes. Uma faquinha, de nao es-

tando trabalhando, figurava com a dita namao. E tinha

intensas maneiras diversas de resmungar. Mas falava.

o RICADO 1)0 MORRO' 57

Ah, era urn especialmente, 0Guegue! --- dona

Vininha e seu Nhoto contavam, para se rir.Tratava

dos porcosde ceva, levava a comida doscamaradas na

roca, e cuidava acontento de todoservicode terreiro,

prestavamuito zelo. Derradeiro, a Lirina, filha de dona

Vininhae seu Nhhto, se casara, fora morarno Pantano,

dali a legua irnperteita, Quando se carecia, mandavam

la 0Guegue ~ com recados, ou doces, quitandas,

objetos de emprestimo. Principalmente, era de por-

tador de bilhetes, da mae ou da fiIha, rabiscados a.lapis

em quarto de folha de papel. Mais pois, de apreciava

tanto aquela viajinha, que, de aIgum tempo, os bilhetes

depois de lidos tinham de ser destruidos logo; por-

que, se nao lhe confiavam outros, 0Guegue apanhava

mesmo urn daqueles, ji bern velhos, e ia levando, 0

que produzia confusao. A outros lugares, 0Guegue

nem sempre sabia ir. Errava 0caminho sem erro, e se

desnorteava devagar.Levavarn-no a qualquer parte, e

recomendavam~Ihe que marcasse atencao, entao de ia

olhando os entressinados, forcejando pOl' guardar de

cor: onde tinha aquele burro pastando, mais adiante

tres montes de bosta de vaca, urn anu~branco chorro-

chorro-cantando no ramo de cambarba, uma galinha

ciscando com sua roda de pintinhos. Mas, quando

retornava, dias depois, se perdia, xingava a mae de

,SO J O A O GU1MARA1<:' Ros" o !l..ECADO DO MORRO ·59

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todo 0mundo .-.- porquE; nao achava rnais burrinho

pastador, nem trarnpa, nem passaro, nem galinha e

pintos. 0Guegueeraum hornem serio, racional.

Reconforme, viria junto 0 Guegue, pois passa-

yam pelo Pantano.El« devia de trazer urn boiao com

doce de limao em calda, mais urn bilhete para a NM

Lirina. E ja estavam arreando os cavalos, quando 0

Guegue aparecia, rico de seus movimentos sem-cen-

tro, saindo dos fundos de uma grave manha: tinha

estado a amarrar, por simpatia, urn barbante na cerca

da horta, para 0xuxu crescer depressa; ele estava

sempre querendo fazer alguma coisa de utilidade.

A mais, Iimpara, ja pronta, urna saboneteira, feita

da concha de um cagado. A bern dizer, seu trabalho

nisso fora longo esimples: pegara 0cagado na rede

do rego, matara-o a pontadas de faca no entre-casco,

depois 0colocara por cima de urn formigueiro - as

formiguinhas, devorando, consumiram 0 glude,

fabricaram a saboneteira, a qual ele presenteava ao

menino [oaozezim. Era s61avar, no rego -_- 0Cue-

gue vivia it sua beira, 0rego era 0rio dele.

Por modo, quem ia por atenyao no Guegue?

Quem, no menino Joaozezim? Onde foi assirn que

este ultimo achava de contar ao outro aquilo que ou-

vira e lhe soara tao importante por esquipatico , e

• I mais aceitaria de comentar. Nenhumque nmguem . ,_ . ' ,

d 1 T mbem por ardicao que trvesse, 0dos autos. a. .,

- J - I'm nao conferira 0 assunto commenmo oaozez ..

. .. . 1 siso desgostariam de se es-aqueles _-- que, pe o s ,

1 .- . nte 0 silencio que vern antes da per-c are eel , consoa .

, lados J - a estao nao-respondendo.gunta: e que, ca ,

__ ". ,.Urn morro, que mandou recado! Ele

1- Catraz o Qualhac6co -- . Esse Catraz, Qua-( isse, 0·,

lhacoco, qlJe mora na lapinha, foi no Salornao, ele

disse. ,_ E tinha sete homens la, com 0 irrnao dele,

ih d - tos pelos altos, .. Voce acredita?"camm an 0 jun ., .

·E . -. Jo-aozezim .primeiro quis olhar deo menmo "- b - 0o Guegue' nao podendo, por serpe-Clma para aIX .1 c ' _

- , acocorou e ficou agachado assrm, 0queno, entao se ,

" do para 0ar: pare cia urn pato branco.pescoyo estica .. A

I 'a So' the faltava crescer as orelhaso Guegue OUVI -

I 1 uito peludas, Babeava, mostrava ose avanca- as, m

dois cacos de dentes. E se ria.

_~_recadofoi este, voceescute certo: que era

. "\T ~ ,,.,be0que e rei? 0 que tern espada nao rei. .. voce sa

- c . - omprido e fino chama espada. Re-mao, urn racao c '. _ .

Ab 0 rei tremia as peles, nao quena serpete. om", r

f ' Disse que a sorte quem marca e Deus,avoroso. .

A I ,t 1 sEa Morte tocando caixa, naquelaseus pos 0o. , ~., ,

f. t A Morte com a caveira, de noite, na Festa. Ees a.

matou a traicao. --

o (l.ECADO DO MORRO II 6r

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60 0;. J 0 A 0 G u ~MAR A E S R 'O S A

omenino joaozezimfalava desapoderado, como

se tivesse aprendido s o na memoria 0ao-comprido

da conversa. Equeria uma confirrnacao de resposta,

saber do Gucgue. Mas, enquanto a esperava, nao

podia deixar de rriexer os Iabios, continuasse a re-

produzir tudo para si, num sussurro scm som.

Mas0Guegue nao sabia dar opiniao, apenas rept>

tia, alto, as palavras; e, no intervalo , imitava com 0

cochicho de beicos. Representando por gestos cada

verdadc que 0menino dizia: sungava asmaos a alturade urn homem, ao ouvir do rei; e apontava para 0

morro, e mostrava sere dedos pelos sete homens,

e alongava 0brace por diante, para ser a espada, e

formava cruz com dois dedos e beijava-a, ao nome de

Deus; e batia caixa com as rnaos na barriga, e com

uma carcta e um esconjuro figurava a aparicao da

Morte. Tudo, por seus meios, ell" recapitulava, e

pontuava cada estancia com um feio meio-guincho.

Mas Pedro Orosio , que via e ouvia e nao entendia,

achava-lhe muita (Jraca.b '

--Voce tem medo nao, Guegue?-- 0menino

joaozezim perguntava, ao cabo.

Entao 0Gucgue foi apanhar no telheiro do enge-

nho ()seu bom cacete, um calaboca, que levavapreso

debaixo do brace, mesmo quando carregando 0boiao

de d6ce e tocando pela estrada, com a pequena ca-

ravana, ape e as gingas, e resmungando 0resmungo

sibilado, para apar com Pedro Orosio, osdois a frente

de todos.

- Mais urn dia, rnano Pedro, a gente esta aqui

esta chegando ... - 0 Ivo observara.·~- Voce tern

o que fazer, por este restinho de semana?

__ Nenhum, nao. 0 trivial, vou ver'... Ta em

prazos de se rocar e encoivarar, ja principia 0tempo

d' a coclorniz cantar, querendo chuva ...

Oras, deixa! A gente carece de arrumar urn

pagode, com os companheiros, carece de se gastar

este dinheirinho tao ganho ...

Seguiam por terras convalares, na bacia do

Riacho Magro, sob 0palido ceu de agosto, fumacas

subindo para ele, de tantos pontos. Ai, quando che-

gavarn no topo de alguma ladeira e espiavam para

tras, la viam 0Morro da Garca so -.. seu agudo

vislumbre. Assim bordejavam alongados capoes, e

o mais era 0campo estragado, revestido de placas

de poeira. Va, a distancia, aquela sucessao de linhas,como 0 quadro se olerece e as serras se escrevem e

em azul se resolvem. A direita, porem, mais proxi-

mas as encostas das vertentes descobertas, a grossa, '-

corda de morros ~ ...sempre com as cstradinhas, as

62 "JO AO GtlIMAR,~ES RO$,~ o l-tECAI)O DO MORRO "6J

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trilhas escalavradas, OS cap~netes nas dobras, sempre

a sempre. Mesmo seo Jujuca sequeixava: -"Como e

que urn pode conhecer esses espig6es? E tudo igual,

c tudo igual ... E 0mesrno diflcil que se campear em

lugares de vargem,. :."

Frei Sinfrao rezava ou se queixava do rnau comedo

na sela. Seo Olquiste quase nao davamais ar de influen-

cia: por falta de pratica, ja se via que ele estava cansado

de viagern; e com soltura de disenteria, pelos bons de-

comer nas fazendas. 0jenipapeiro grande, na cur va

do Abelhciro, calvo de toda folha. Menos afastado,

trafegou urn carro-de-bois, cantando muito bonito,

grosso- devia de cstar com a roda bern apertada,

e 0eixo seria de madeira de itapicuru. Passon urn

casal de pica-pans, de pervoo, de belas cores. A gente

agora ouvia 0pipio seriado da codorna. Uma res veio

ate ca - urn boi pesado de ossos secos.

- Born rapaz, esse Pedro ... - dizia seo Ju-

Juca.

- Por uns assim, costumo rezar mais ... -~ frei

Sinfrao respondeu.

Mas seo Olquiste agora so dava atencao a aIgum

passaro. 0pitangui, escarlate, sangue-de-boi. Mes-

mo voava urn urubu-cacador, de asas preto e prata.

o mais eram joaos-de-barro, A viuvinha-do-brejo

tentava can tar melhor: 0macho se dihgindo a fe-mea, no apelo de reunir, Depois, vendo 0espiralar

de gavioes,soltou 0grito-pio de alarme.

E0Guegue a cacetadas matou umacobra vene-

""1.[ A f' . . . f" E Itnosa: - voce 01VIr,agora morre: . sevo avap ara

os ou t ros: - "Eh, cobra anda em toda parte ... "

-Olhao boiaol Olhao boiao, Guegue! --(de

depusera 0boiaono chao).

E Pedro Or6s10 se incomodou: tinham errado 0

caminho? POl' certo, alguma errata dera, havia mais

de hora-e-rneia caminhando, por uma estrada de

carros-de-bois e por fim de trilha em trilha, e nao

chegavam a fazendola do genro de dona Vininha. Per-

guntou ao Guegue, oGuegue demorou explicacao.

Que tinha favorccido essas voltas, de extravio, pelo

agrado de se pass ear, em tao prezadas condicoes. 0

que fosse urn tel' confianca em mandadeiro idiota!

Onde vinham parar era no rasa da Vargem~do-

Morro, seu paredao , e 0Sumidor do Sujo. Ali, re-

conhecia, aquele plaine pardo, poeirante, Iugar de

maIhador de gada selvagem, um ermo sem vivalma,

nem bananeiras, nem telhado de gente residindo

perto. Pastos do Modestine. S6 os grupos de gran-

des pedras, lajes amarelas, espalhadas. Urn cocho

o RECADO DO MORRO - 8 6 s '

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velho, abandonador.asombra de urn pau-d' 6leo. E,

asombra de uma faveira.e de umjacaranda-cabiuna,

a lagoinha de agua salgada e turva. Motivo desse

bebedouro, sempre rodeavam por Ia numerosas

manadas, e na c~sca das arvores havia riscas de

afio das pontas dos touros. Mas, aquela hora, so se

enxergava uma vaca, angulosa, mal podendo com

seus enormes chifres. Desde que cessou 0 pipar

de dois gavi6es que se libravam circunvoantes, no

silencio daquela solidao podia-so escutar 0 sol. Era

uma planicie morta, que ia vazia ate longe, na barra

escura do Capao-do-Gemido. Ca, no reconcavo cia

bocaina , a serra limitava urn quadrante, 0 paredao

arcade, uma ravina ,com sombrias bocas de grutas.

Trepava-se caminho acima, contornado, de desvio,

segurando no cipo-neyro e no cipo-escada, aprovei-

tando uma grota seca, muito funda e apertada, cheia

de calhaus. Quiseram ir acola, para ver, em certo

terraplem, um salto-d'agua, barbadinho, surtido da

pedra fonta e logo desapareeido em ocos, gologolao.

Mais urn cruzeiro em que 0raio desenhara a quei-

mado umas figuras bern repartidas, sobreditas como

milagrosas; Mas disseram a Pedro Orosio que os

esperasse, ficando vigiando os animais, e 0Gucgue,

porconta do boiao de dace.

Ficaram.

E entao grande foi 0susto dos dais, quando uma

voz solene e cavernosa proclamou de la, falafrio:

.-_._Bendito! que evem em nome em d'ho-

mem ...

Ai, viram. Quanda.o, donde viera a rna voz, se

soerguia do chao uma cabecona de gente. Era um

homem grenhudo, magro de morte, arregalado,

seus olhos espiando em zanga, requeimava. Deitado

debaixo duma paineira, espojado em dma do esterco

velho vacum, ele estava proposto de nu s6 tapado

nas partes, com urn pano de tanga. E assim tornoua arriar a cabeca e estirado de semelhante feiyao

continuou, por nao querer se levantar.

-- Bendito, quem envem em nomindome!

E solevava numa mao uma comprida cruz, de

varas amarradas a cipo --- brandia-a, com autorida-

de. Era urn doido. 0 Guegue nao lhe tirava de riba

as olhos, satisfeito, uma coisa de tanto feitio ele

jamais tinha avistado, POl'fim, se voltou para Pedro

Orosio, e perguntou:

- ~ E logro?

Mas foi 0proprio sujeito seminu do chao quem

entrou com a resposta:

~ E logro? E virtude? Em nome do Pai, do

Filho, do Espirito-Santo ~_ quem esta vos pergun-

." ... -.----." .. ~.~,~-~,,--_..~ . . . . : . . : . ;

66 - ] o· A . o G u r M A I I . . A T; S R 0 S Ao RJ,CADO DO MORRO ~ 67

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tando SOU eu, me declarern: voces dois sao criaturas,

ou sao figurados do Inimigo?l Entao, me sigam no

sinal sagrado f---- e tracou em testa e boca e peito

o cia Cruz. Pedro Orosio e 0 Guegue 0 imitaram ,

Jcom 0 que de pareceu se abrandar .. -- Se vos sois

anjos, mandados pelo Divino, para refrigerar minha

fe no duro da penitencia, dizeis! vos rogo, porque,

seforem, entao me levanto do estrume dos grandes

bichos do campo, limpo minha cara e meus cabelos,

e vos recebo ajoelhado, loas e salmos entoamos ...

Aceitou 0 que 0 Pedro Orosio disse: que era

apenas um sitiante cornum, com sua lavourinha

para tras da Serra do Cuba; e que ali 0 Guegue

era acostado na dona Vininha, fazenda do Boamor;

e que vinham transeuntes, jornaIados, service de

comitiva.

-- Faz mal nao. Bendito 0 que vern in nomine

Domine! ... Todo service pode ser de Deus, meus

filhos. Secorrijam! Ainda nao completei meus nove

dias de jejum e reforco, que vim preencher aqui

neste deserto, entre penhas e fragas brabas ... Mas

estou em acabamento -------epois-d' amanha tenho de

tornar a sail' pregando, pois 0 fim-do-mundo esta

apressado, nao dou por mais tres meses, se tanto. A

humanidade ve? Nao vel Nao sabe. Cada um agar-

rado com seus muitos pecados ... Mas hei de gritar

fOgo e chorar sangue, ate converter ao menos uma

boa partel Vao rezando, VaG rezando: VaG se conver-

tendo logo, pOl' si, pra me poupar trabalho ... Mas,

olhem 0Arcanjo! Silencio, ajoelhem ai em ponto,

I •rezem urn rosario ...

Edepos a cruz do lado do corpo, fechou os olhos,

as maos no peito, feito gente morta. Agente podia

admirar e achar .- que as delicias e que estavam

com ele,

Em seguimento disso, porern, Pedro Or6sio se

afastou, cacando urn Iugar melhor, para se sentar.

Por seguranc;:a, pegou 0boiao de dace das maos do

Guegue. Mas 0Guegue, se acocorando, nao queria

sail' da beira do outro. Pedro Orosio, ali perto uns

dez metros, de olho em ambos, para 0caso de ter de

moderar alguma malucagem, espantava os mosqui-

tos, enquanto escutasse qualquer alta conversacao.

Primeiro, 0Guegue se permanecia, temperado,

de certo repassava, descascava suas ideias, 1SS0 para

de sempre ainda mais dificil. Aquela vaca junqueira

se deitou, para remoer seus dentes. Amais, uma pe-

quena maloca de gada deu de aparecer ~-- um tourao

e umas novilhas, que de distancia espiavam -- que-

riam da agua da lag6inha. Se feriu, das brenhas da

6· 8 .I I : ! .J 0 A 0 G U 1M A. R ,~ES R 0 SA o RECAno DO MORRO " " 6 9

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encosta, urn rente grito: urn casal de maitacas saiu

pelo ar, A gente olhavapara 0 ceu, e esses urubus,

Vez em quando, batia 0vento -_ girava a poeira

brancada, feito moido de gesso ou rnais cinzenta,

dela se formam v6ltos de seres, que a peclra copia. 0

goro, 0onho e a saponho, 0 6sgo e0pitosgo, 0nha-a,

o zambezao, a quibungo-branco, 0 morcegaz, 0

regonguz, 0sobre-Iobo, 0monstro hornem.

o Guegue, por fim, perguntava:

--- Oce e da procissao? Vai dansar no Rosario?

A nhum? Mundo vai se acabar? Oce disse ... Oce

sabe?

--- Silencio, mais silencio! Me deixa, a hora e

de Deus. Nao embargando, voce e urn pobre filho

dele, se ve que tern 0 espirito simplorio ... Quer

ver 0fim do mundo? Que vern vindo redondando

ai, rodando feito pe-d'agua, de temporal e raios: os

querubins ja estao com as brasas bentas, arnontados

em seus trapes cavalos] Tu, treme ...

- Ue ... Como e que oce sabe? Oce e padrealgum?

- Enche tua boca de bosta, p'ra nao carecer

de blasfemarl Como que sei?Tu tambem vai saber,

refiro que nao seja tarde: assentado de dentro da

panda de breu, tu entao sabe ... Arrepende, treme

e reza, e te prostra, cara no chao, infieis publicano!

Olha a trombeta! De profundas, eu escuto: olha a

morte, atencao]

~-- Uai, entao e ! E que nem 0 Menino ...

---0menino? 0menino? De uns assim foi dito,

que entram no Reino-do-Ceu dansadamentc. , . Que

menino?

- A born, no Boamor: foi que 0Rei isso do

Menino -_ com espada na mao, tremia as peles, nao

queria ser favoroso. Chegou a Morte, com a caveira,

de noite, falou assombrando, Falou Ioi 0 Catraz,

Qualhac6co: 0da Lapinha ... Fez sinosaimao .. , Mas

com sete homens, caminhando pel as altos, disse que

a sorte quem marca e Deus, seus Doze Ap6stolos,

e a Marte batendo jongo de caixa, de noite, na festa,

feito Historia Sagrada ... Querendo matar a trai-<;:ao.. Catraz, 0 irrnao dum Malaquia ... Oce falou:

a caveira possui algum poder? Efim-do~mundo?

- Eo comeyo dele, e 0come90- alvorada de

toda a Gloria! Urn arcanjo sabe 0poder de palavras

que acaba de sair de tua boca ... Ajoelha, as gra9as,

ajoelha, ja!

o Guegue obedecia, se ajoelhava. Mas aquele

estapafurdio - 0 esturdio homem, pronto nu e

espichado no scm pre do chao, lazarado por seu

7 C -III J 0 ;; ._0- G U 1 MAR A :Es R 0 S A o RECADO DO MORRO "7]

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proprio querer, ali entre 0verde e 0preto do gado

solteiro do Modestino --- agora mandava que ele

botasse fora 0cacete. E 0Guegue hesitava,

_~m Se c vossa vez, encosta aqui comigo, para um

resto de jejum e l\efuissao aspra: que de hoje a dia-e-

meio podemos pegar este mundo pelas alcas ...

U e, eu nao posso. Tenho de levar recado

e boiao de dace, nha Dona Vininha mandou ...

Posse nao.

- Nao pode, pela salvacao dessa humanidade

sacana, em vesperas de inferno geral?J Que e de seu

companheiro?

- A , ali, atras do joao,

..._ Sursol Surge!

Mas 0homem se solevava e virava, via 0que via

atras da moita de mentrasto, e iracundo aborninou:

~----"Caifaz! Isso e direito? E respeito?! Raca de

viboras, cambada de pagaos, obrando! Te aparta,

maldito! Raca de viboras! ...

Nenhuma cortesia ou desculpa para de tinha

valor: se levantou de todo, sacudiu aquele corpo

mujo de magro e nuelo, segurou muito a cruz e foi

desertando,audaz, se caminhando para longe--- ain-

da prometia que ia para 0beira-rnato, prosseguir em

seu forte dever de penitenciacao. Ao gue bramava e

escarceava, semolhar para tras. Com uma gaforina

de cabelo assim , devia de ter ate piolho,

o Guegue queria ir tendo algum medo, acari-

nhava seu grande papo. Mas Pedro Orosio veio e lhe

entregou de novo 0 boiao de dace, sem parlandas.

Dava 0 vento, outra vez, suspendia maos daquela

esponjosa poeira, que tem gosto de agua de pote e

de comida cozinhada. Aquele lugar era muito feio.

- U e, uai, eh ... - 0 Guegue se manifestava.

- ... Homem zuretado! ... Sera que 0mundo

acaba?

Que nada e nao, assegurava Pedro Orosio. Aca-

bava nunca. E aquele inesperado homem era leso do

juizo, DO que dizia nao fazia razao, Ca, se tivesse 0

mundo de se acabar, outros, de mais poder e estudo,

era que antes haviam de obter sua noticia. E bem

veio que, pOl' essa altura, justa 0 pessoal estavam

retornando.

DaB sairarn , rearrumando rumo, modo de

conduzir 0Guegue ao Pantano, de nha Lirina e sio

Duque, seu marido. Constando que era uma bonita

fazenda branca, entre arvores; l a tomaram cafe com

biscoitos, e h1deixaram 0Guegue e 0boiao.

Daf, acima caminho, ainda Pedro Or6sio se

lembrou de dar parte ao frade do que no raso do

]2 o5IJO;\O GUIMARi\ES ROSAo RECADO D{) MORRO 073

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pronunciando brados do fim-do-mundo --~ estreito

prazo de tres meses ... Bomjdesse jeito, assim, nao

c vantagem: algum dia ele acerta ...

o velho Trontoio riu, de si, e se tocou avante,

lambando no cavalo baio a tala do chicote. Ao que

de era tic-avo de uma mocinha, das Iindas, cha-

mada Quiteria, ai Ribeirao-da-Onya abaixo. Born

homem.

-- "Sera que foi, a respeito de quem era clue voce

estava perguntando?" _- 0 Ivo qUlS se informar, ja no

Jove, depois que tinham jantado e faziam redondo

de conversas no patio da [rente, junto com algum

pessoal de h i.

"Fa1ando do Rosario, da festa ... "- Pe-Boi

preferiu atalhar, por preguiyas de depor a verdade,

tao tola.

_- Ah, pois isso, A festinha, vamos ter e no

Azevre, domingo de noite, na certa. Sem falta, voce

vem ... Alegria da palavra!

Nisso , outros vinham. Eram, ver e nao ver, 0

Joao Lualino e 0Veneriano - e nao despraziam de

se encontrar com ele, Pedro Or6s10, por contrario

riam amistosos, e se chegavam. -"Pois, ei ,Croni-

co ... Ei, Pel Salve essa bizarria ... " Saudavam com

palmadas de abraco. E0Ivo tomava a gerencia da

Modestino se passara, e 90 extraordinario daquele

homem por nu - 0Nomindome - ameacador de

tantas prosopopeias. Embora, ficou calado. Expor

tudo nao era convinhave], ele nao sabia facil passar

a ideia de como "tinha sido, e eles podiam fazer

maiores perguntas cansava sua cabeca distribuir

a pess6as cidadas um caso de tanto comprimento.

Guardou consigo. 56, ja quasc chegavam no Jove,

de tardinha, cruzou numa porteira com um velho,

das Lajes, um Torontonho ou Tororitoe, que vinha

ate no joao Salitreiro, comprar fogos para as festas

do Rosario. Tal veIho conhecia 0Nomindome: re-

portou que ele era d6ido varrido, mas tinha passado

bons anos no Serninario de Diamantina. Seu nome

em Deus, ninguem nao sabia, portanto. 56 era co-

nhecido por apelativo de Jubileu, ou Santos-Oleos,

- Faz tempo quc esse Santos-Oleos, ou Jubileu,

o que seja, que nao aparcce por arrabaldes. Ninpuern

sabe donde ele assiste, nao tem pouso nenhum. Vara

por este mundo todo: some daqui, vai se apresentar

jajao em longes beiradas, diz-se que testemunha

ate nos Fechos-do-Funil, numa tapera de capela,

em Oestes, mais 1ade la da capital do Estado ... De

uns dez anos que ele sobrevive as feitas carreiras,

d' acola p'r' alem, enfiando por dia muitos lugares, e

74 • J o A. 0 G U J MAR A E S R 0 S A o RECADO DO MORRO 07,)'

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conversa, avindadorqueria que todos rnais compa-

nheiros estivessem , fora de lembranca de qualquer

injuria passada. -- "A mais e a festa, hem, hem?"

" T" tei " 1 ' / . bi d» d- am elra. a com ma os ... --- respon iam.. . /

oVeneriano era um pre to jeitoso, impapavcl em

toda festanca, pelo que melhor dansava _ ..- nem

se imagina: mesmo com aqueles pes de inhauma,

dedoes abertos e enorrnes , e 0calcanhar muito

salientado, cabo de cacarola. 0 joao Lualino ,

pardaz, sempre muito luxo no vestir, botava ate

agua-de-cheiro na cabeca; diziam que era sujeito

muito mau, e sangrador, faquista. -"A ser, quand'

e que voces ficam forros de pajear essa gente de

ambulante?" -- 0Joao Lualino perguntou. Arre,

era amanha, estavam no arraial, de volta -_._0 Ivo

explicava.i--; "Eh, Cronh 'co -_._falava 0Veneriano

-: Voces foram arranjar urn carcamano mais es-

tranhavel. Hum, que zanza pOl' ai a garimpa, mo de

atestar amostra de pedrinhas e foIhas d' arvores ...

Que e que estara percurando, de verdade?" E 0

Lualino: - "Alto cidadao Vai ver, e cristaleiro,

mais safado que os outros Botar preso em cadeia,

mode se dizer de ser , . . " POl'urn meio-pensamen-

to, Pedro Orosio se comparava: aqueles pareciam

hom ens mais seguros de si, com muita capacidade.

Estavam rindo, falando por brincadeira, mas mes-

mo assim a gente via que, des, cada urn queria ser

sem chefe, scm obrigayao de respeito , alforriados

de qualquer regra. Talvez de, Pe-Boi, dava apreyO

demais aos patroes, resguardando a ordem, Ihe

faltava calor no sangue, para debicar e dizer ditos

maldosos. Outramente, admirava seu tanto a vivice

do Lualino, mesmo do Ivo Cr onico. Por rnais que

virasse e vivesse, eleficava diferente daqueles: era

sempre 0horn em dos campos-gerais, ser'io festivo

para se decidir, querendo bern a tudo, vagaroso.

Agora, tinha estado la, ate nas veredas do Apoli-

nario, onde papagaio bravo revoando passa, a qual-

quer parte do dia. Ao que fora, imapinando de ficar,

e nao tinha Iicado. Mesmo no momento, se queria

par a rumo 0pensamento, de [ernbranca de hi, nao

conseguia, sem sensatez, sem paz. Faltava a sauda-

de, de sope. Toda aquela viajada, uma coisa logo de-

pois de outra, entupia, entrincheirava; so no fim,

quando se chega em casa, de volta, 6 que urn pede Ii-

vrar a ideia do ernendado de passagens acontecidas.

Mais valia a boa amizade, companheiragem

- 0 Iva Cronico , 0 ]oao Lualino , 0 Vener ia-

no -- e a festa, pOl' ser, ja que ocasiao dela: nas

cafuas, perto de estradas, em casas quase de cada

7 6 O l o J O A O GUr!\1,"R.~FS ROSA o RECAI)O DO MORRO'" 77

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negro se ensaiava, tocando. caixas, com grande

ribombo. Agrado de festar, isso sim, as mocinhas

mocas, tinha desejos de umas.Ao depois, care cia de

retomar seu trabalho costumeiro, ir dando preparo

para 0plantio das'rocas, reconhecia falta dessa lida,

mesmo que nem igual de dorrnir, tomar cafe, comer

e beber. -~ "Ouve, Pedro: alern do que foi ajustado,

voce acha que eles vao gratificar a gente com mais

urn POllCO mais? Ah, 0carcamao de certo da, Ele e

frouxo de munheca ... " o Ivo, no fa.lar, pegara mao

no braco dele; 0 Ivo era amigo, supria confianca,

Pedia para ver a arrna: ~.- "Oi, Pe, essa sua garru~

cha e mesmo boa, mandaddra?" "--- Regularzim.

Tiver urn dinheiro, compro outra. Revolver, feito

" " A db" "0 csse seu... ~ ra, na a, ozoqe... Ivo lazia

questao de encarar bern a gente, com uma firrneza

de ser sincero, e falava falas de afeiyiio. Unico defei-

to dele era urn cismo destruido no jeito de olhar e

falar, parecendo coisa que estivesse reparando uma

A • t boi d "Ab A des VIS osa, urn 01 gor o.~ em, Pe, tu isse

que estava pensando em querer voltar p ' ra la, pra os

Gerais altos ... " 0 Ivo, falante assim , a gente tinha

urn gostinho de rebater os conselhos dele: - "A

ja , Cronhco velho, aquilo era aragem de fantasia

atoa, so. Eu fico, mas fico aqui mesmo ... "A mais,

outro gosto, de arreliar adiante 0amigo, que estava

sempre volteando e se queixando no mesmo assun-

to, de que ele Pedro devia de nao querer namorar

com as m09as todas, mas escolher uma, ou as duas

ou tres, s6, e deixar a cada urn outro a de amor de

cada urn: --- "Voce sabe, Cronhco, 0 remelhor e ir

namorando namoriscando, enquanto elas quiserem.

Mocidades ... " Entao 0Ivo arriava a crista, demu-

dava de conversacao. Ali no Jove tinha luz-eletrica,

o povo escutava radio, se ia dormir mais tardado. E

se cornia uma ceia boa: de sopa-de-batatinha com

bastante sal, com folha verde de eebola picada, e

broa de milho; depois, leite frio no prato fundo, com

queijo em pedacinhos e farinha-de-munho. Ca fora,

as estrelas belezavam, e a lua vinha subindo cedo,

ja bern: dali a uns tres dias, era 0dado da lua-cheia,

conforme se sabe.

De vez , ora assim foi que, no outro dia, em

vez de torarem para 0arraial, ainda inventaram de

enrolar caminho para as'Trairas, pOI' mostrar ao seu

Alquiste 0rio das Velhas ~ seus matos montoados,

suas belas varzeas, seus passaros vazanteiros. Urn

aborreeimento. Tino foi 0do frade, que disse nao

podia vadiar mais, se separou e desviajou deles. Seo

[ujuca determinou que, se 0Ivo quisesse, podia ir

o RECAlJO DO MORRO Ojl 79

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tambem, acompanhar frei Sinfrao, agora 0movi-

mento era mais resumido, tao perto. 0 Ivo nao quis

--- por esperanya de maior dinheiro, sarnava de ficar

ate ao fim. Pedro Or6sio mesmo, pelo sim pelo

certo, tratava de zd1ar mais agl'adador e prestativo.

Mas achava mais graqa nenhuma, no seo Olquiste,

sempre nas manias de remexer ever, e pel'guntar,

e tomar 0mundo por desenho e escr ito. 0 que, a

partir dali, esclarecia aos tantos seucoracao, era 0

palpite da festa. E foi 0 proprio Ivo que uma hora

careceu de ter mao nele: - "Modera essa influen-

cia, P c , que ainda nao e hoje. Mas vai ser festa p'ratoda a vida ... " E Pedro Or6sio, pelo que tinha de

esperar, repensava na Laura, filha do Timber to, do

Saco-do-Mato, e na Teresinha e na Joana Joaninha,

do arraial; e em todas. A-prazer-de que nao queria

deixar de pensar tambem na Maria Melissa, do

Cuba, por causa do Ivo ele sentia uma qualidade

de rernorso; descontente com isso, do Ivo mesmo

era que entao comeyava quase a tel' raiva. Andava,

d "M A I l' pA S I'n ava.~.. as voce e gera ista, e .... ua terra, a,

.. ' 'b ' bA

" " U I P' .u VI, e em que e oa... - rna osga ... OlSVal

'I' A P I -. dP ra a, voce. . . ra vel' como e que 0sertao e pat e

bom ... ""-- A bern, falei pOI' falar. Azanga comigo

nao, Pe ... "Ate escarmentava a paciencia da gente,

aquele lazer do Iyo. Ao que tinha interesse nenhum ,

de cabimento, aquela andacao, para deletrear ao seo

Alquiste os recantos do rio das Velhas. Poetagem.

o trivial estava indo, sem pior; mas 0que havia era

que a vida toda se retardava.

Ao em seguimento disso, s o na sexta-feira de

tardinha foi que chegaram no arraial, terrninada a

viajacao. Aquela hera mesma, Pedro Orosio e 0Ivo

tocaram suas pagas e agrados 0gratisdado, em

boas cedulas. "Gastar at6a, nao gasto. E baixo] Nem

entro em frojoca.,." -- Pedro se constou. -"Ain~

da, olha, amanha de noite e a festa, oe? Melhor a

gente ir junto, em az.ViTO,venho te buscar ... "-~ 0

I di A "U . "A' P 1 0"o lSpOS.----- ai, ara... 1, ec ro rosio passou

para a casa de seo TolendaI, que tinha venda. A ele

satisfez 0resto de urn as dividas, 0restante Ihe pediu

que guardasse. Cobre seu, nao-ve, era para bern-

baratar no justo e certo. E seoTolendal

entendido em confianca e inteligencia

homem

mandou

arrumar uma cama para 0 Pedro repousar aquela

noite. Dorrniu em born colchao com lencol e colcha,

em cima do balcao.

E faz e acontece que, sabado, de manha, cedinho

ate demais, 0povo todo morador naquela rua prin-

cipal teve de se acordar debaixo duma continuacao

80 .. J 0 A 0 G U I MAR A . E -S R 0 SAo RECADO DO MORitO I 8r

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de gritos grados, que naoachavam suspensao. Pedro

Orosio se levantou, abriu em fresta a porta da venda.

Que viu? Era 0homem doido ~ aquele Nomine-

domine! Em bern que ele aoora estava vestido deb '

algum jeito. E tinli'a enrolado uma ruma de panos

em cada pe, em guisa de servir de calcado: aquilo

pareda 0 sujeito pisando poeira enfiado em dois

travesseiroes, frouxoso. Estaferrno mesmo assim ,

Se via que de estava no ultimo ponto de escar-

nado, escaveirado, 0sol queimara aquela cara, de

descascar pele. Mas perdera a gaforina devia

de ter pedido a alguem para lhe rapar a cabeca. E

os olhos frechavam, resumode brasas. Dava pena.

De seguro, teria terminado 0 traquejo de jejum e

rezas no malhador de gado do raso do Modestim, e

nem esperara por mais nada, para executar 0danado

avanco, de deu em deu, em nome de Deus. S6 podia

ser que tivesse navegado a madrugada inteira, para

vir chegar agora a esta hora. Em algum sitio podia

ser que tivessem dado a ele urn cafe?

~ ... Sua pergunta e do rogo da fe, e nao da

carne, nao, moco. 0 senhor ehomern gentil, tern ga-

lardao!"fem galardao ... Mas eu sou 0zerinho zero,

malemal uma humilde criatura do Senhor: eu nem

sou aVoz... Vinde, povo: senvergonhas, pecadores,

homens e mulheres, todos. Todos eu amo, vim por

vosso service, Deus enviou par mim, ele rcqucr

o vosso remimento. Dele tenho 0praz-me. Olha 0

aviso: evem 0fim do mundo, em fogo, fOgo e fogo!

o mundo ja comecou a se acabar, e v6s semprando

na safadeza, na goiosa! Contraforma! Contraforma!

Olha 0enquanto-e-tcmpo ... Vamos, vamos: p'r' a

igreja! Todos me acompanhem. Aqui-del-papal

Aqui-del- presidentel

arava 0 passo, pernas tantas, ate cada £lm da rua, e

retornava, estroso, ardente, cachorro cacado, sete

folegos. Abria 0 peito: -- " ... E aVoz e 0Verbo ...

E aVoz e 0Verbo ... Arreunam , todos, e me escu-

tem, que 0Iim-do-mundo esta pendurando! Siso,

que minha predica e curta, tenho que muito ir e

converter ... "

Da casa-de-venda do Flor, do outro lado da

esquina, urn moco cometa se chegava a janela e

t ", r A I C . t tpergun ava: ~ voce e risto ,mesmo, ou e so Joao

Batista? .. "

E0vira-mundo malucal, que ja ia se afastado, se

revirou, rente, pOl'sobre 0descompasso de suas altas

pernas, que nem umas andas, e levantou os braces,

bern escancarados - feito precisasse de escorar a

qucda do ceu. E deu exclama:

- Bendito 0 que vern in nomine Domine! ...

82 °JOAO GUIMARAES ROS , i J . .o RECADO DO MORRO I 8].

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Desabalou de vez, olho da rua a longe,quase cor-

rendo, feito pulando reg~, tinha de alargar tambem

as pernas .. aqueles rolos de pano nos pes dele foi-

cavam porcao de poeira. Por um vago, a gente estre-

mecia, salteado d e f aflecho eomandante daquela voz,

que instava calafrios: quase que se ia aereditando. As

mulheres se benziam. Ai ja havia pessoas em prac;a

---- pois era vespera de festa, a arraial se apostava

com limpezas e arcos embandeirinhados, estando

cheio de forasteiros; par major, pretos. Outros, que

acordaram com a latomia do Nominedomine em seu

ir e desvir, durado em mais de quarto-de-hora, ja

tinham vestido roupa, e saiam como publico. Que

era que deviam de fazer? Ir chamar os frades? 0

doido, direto para a igreja do Rosario, era capaz de

obrar muitos desatinos. Devia-se de ir para h i. Pedro

Orosio tambern ja estava pronto, fora de portas.

Aquele dia-de-sabado principiava bem.

Ede repente 0sino do Rosario se tangeu - col

a col, cantarol. Ah, quem batia, sabia: tantoava em

repique e repinico, muito claro no bimbalho. Mas,

foj logo a forte, dez maos pelo badalo, pegon a be-

delengar a torto, dla e dlem, parecia querer romper

de vez a forma de seu caroyo dele. Virgem! -- 0

Nomined6mine tinha alcancado de chegar a torre,

a igreja estava entregue aos mascaras, carecia de a

pessoal todo do arraial correr para lao 0 hom em

dava rebate, rebimbo, dobra que redobrava, a tal.

Depois, perdia qualquer estilo. Era so aquela Furia:

dladlava, dlandoava, a sino tambem fer-via do [uizo l

Ora, a sinao do Rosario e reinol, de boa marca, bern

santificado: e sino de uma legua. A portanto, aquilo

bronze zoava fora de rol, transtornava a gente.Ago-

ra sim 0 Nomined6mine, Nomendome, Santos-"

Oleos ou Jubileu -----ele cujo tinha encontrado seu

poder de rachar os ouvidos do povo todo, em prol,

corn sua or itacao do fim do mundo. Corriarn parab '

1.1.Manejar errado com sino e neg6cio tenebroso.

E Pedro Orosio cor-ria mais na frente--- ele era

por longe 0 truculo de homem mais possante do

lugar, capaz de capaz. Para agarrar, seguro, braces e

pernas do desgraqado, e arretira-lo do santo assoa-

lho da igreja, e socar paz e sossego, a bern dos usos

da razao. Todos iam ficando por detras do Pedro.

- "Dit nele, Pel Senta a mao nesse desordeiro ...

Isso Ie pmo herege!" --~ uns gritavam, ja alegres,

assanhados. Eo sino feria, estalava facas no ar, feito

raios, Mas no plem dele se sentia uma alegriama-

luca e santa, rompendo salvacao, pelas altas g16rias.

A voz do Nominedornine, em seu desproposito de

84 0 : 1 ' J o i\ o G U l.M .\ It A E S R 0,0; A o RECADO DO M()RRO I'- 8 5 "

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urgente felicidade. A i, quando iam acabando de subir

a Iadeirinha, e chegando la~~- ele parou. Esbarrou

de tocar, de urn pronto curto, no coracao da gente,

que se tonteou. Como quando uma cigarra grallda

de dezembro esta ti'hindo muito perto, e acaba.

Na igreja, la estava ele, 0Santos-Oleos, junto

do altar-mer e virado para os fieis--- pois mesmo

aquela hora ja havia gentc ajoelhada em posto ---- as

velhas igrejeiras, umas velhas ou mesmo mocas,

cada qual com seu terce nosdedos, quase todas com

mantos na cabeca, seus fichus.

E pois, de pregava. Alargaya bravos altos, glo~

riava os olhos, santamentc, para cima, cruzes que a

mao sinalava no ar, administrava, Mas muito sacu-

dia as pernas, ligeiroso, 0pior era que a gente via

aqueles travesseiroes que ele calcava, parecia coisa

que estava maldansando.

A igreja agora estava cheia, de mulheres e ho-

mens, que escutavam aquietados. E ninpuem , nem

Pedro Orosio, nao tinha coragem de ir sojigar 0

homem dali, e 0 expulsar pra fora, so pelo tanto

que ele invocava 0 nome da Virgem e de Deus, e

po1'que tinham medo de produzir algum sac1'ilegio, .

no consagrado daquele recinto, estando 0Senhor no

Tabernaculo, Mas nada ou quase nada do que 0No-

mined6mine dava dc serrnao, se aproveitava. Que

o que ele dizia:

A s almas, meus irrnaosl 0 fim do mundo,

mesmo, ja comecou, pOl' longes ten-as. E vern vin-

do ... Olha os prazos!Vamos rezar, vamos esquentar,

vamos sed Bons jejuns ... Alerta-- as almas! ...

Daqui you, beijar 0 pe esquerdo e a mao direita de

Santa Manoelina dos Coqueiros. A data exata do

fim, Deus val me dizer e la na capelinha largada nos

campos, nos Fechos-do-Punil ... La nao me ouvem:

terra de um maltrata seu mensageiro. Carnbada!

Quer sono, nao tem sonho ... Orate fratres ... Voces

mesmo nao notam: mas a alma de cada um ja come-

yOU a ficar adorrnecida ... Olha os prazosl Olhem

para os bichos, por comparacao ...

Mas, nesse justo momento, vinham ehegando os

frades -- frei Sinfrao e frei Florduardo -- evinham

en(~rgicos. 0 Nomined6mine, de la do altar, eurvou

me sura profunda, e garrou a acabar de serrnoar,

depressa ainda mais, sabendo que agora Ihe sobrava

pouquinho tempo. Refalava: ~" ... No errno onde

fortifiquei meus dias de jejum maior, num recampo

de gados, veio um anjo mandado, urn anjo papudo

e idiota mais do que assim eu nao mereci ... Ele

mesmo me confirmou e me disse do aspecto do fim

grave. Me escutem!"

86 • J 0 A 0 G u [ M A n A E S R 0 s .o RECADO DO MORRO ~87

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E nisso Pedro Orosio, correndo pelo meio da

igreja, a fito de ajudar a defender os frades, caso 0

Nominedomine reagisse contra eles, deu uma es-

barrada no Cole tor, 0 qual Coletor era outro que

nao regulava beY;;. Estava com sua pilha de papeis e

jornais, e com as algibeiras cheias de tocos de lapis,

com des constantemente fazia contas de numeros

nas beiradas brancas dos jornais. E 0 Coletor era

urn que gostava de frequentar scmpre perto ou

dentro de igreja, e se ajoelhara rente na primeira

fileira, junto com as mulheres mais beatas, ao pe do

gradil da banca de cornunhao. E com 0 esbarrao

do Pedro Orosio de se desper tou e alevantou a

prumo a cabeca,

-- ... Escutem minha voz, que e a do Anjo dito,

o papudo: 0que foi revelado. Foi 0Rei, 0Rei-Me-

nino, com a espada na mao! Tremam, todos! Traco

o sino de Salomao ... Tremia as peles --- este e 0

destine de todos: 0fim de mor te vern a traicao,em hora incerta, e de noite ... Ninguem queira ser

favoroso! Chegou a Morte -- aconforme urn que

ca traz, urn dessa banda do norte, eu ouvi - ba-

tendo tambor de guerra! Santo, santo, Deus dos

Exercitos ... A Morte: a caveira, de dia e de noite,

Festa na floresta, assombrando. A sorte do destino,

Deus tinha marcado, ele com seus Doze! E 0Rei,

com os sete homens-guerreiros da Historia Sagrada,

pelos caminhos, pelos errnos, morro a fora ... Todos

trerneram em S 1 , viam 0poder da caveira: era 0fim

do mundo. Ninpuem tern tempo de se salvar, de

chegar ate na Lapinha de BeICm, pe da manjedou-

ra ... Aceitem meu conselho, venham em minha

companhia ... Deus baixou as ordens, temos so de

obedecer, E 0 rico, e 0 pobre, 0 fidalgo, 0 vaqueiro

eo soldado ... Seja Caifaz, seja Malaquias! Eo fim

e a traicao. Olhem os prazosl ...

Mas, pOl' ai, 0frei Florduardo ja se chegava,

bastou so levantar a mao, para atencao: eo Nomi-

nedomine se ajoelhou de vez, aos pes dele, prostrou

a cara.- "Pode ir, meu filho. Deus te abencoe ... "

· · · · · · · · 0 frade falou. EoN ominedomine se levantou e

foi puxando, vagaroso, pela beira da igreja, de olhos

postos, rezando cantado em latim 0Credo e 0Padre-

Nosso, com voz tao enfadonha. A porta, se voltou e

dedarou assim inesperado: -"Olha 0responsoriol

Olha 0Ialimento do fim, cambada!" Dai, se foi.

Dava do. Quem sabe ele nao estava pressentindo

urn Iiapo dos tempos? Pedro Orosio ainda veio ca

fora, persegui-Io com a vista. Embora, 0 cujo para

comer estrada: rumou, rumou, era aquela terrive]

88 ~ JO A O GUIMAR)iES RosA o Il."ECAD() no MORRO & 89

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Viva 0nosso santo Sao Benedito!" Mesmo, em di-

versas casas, na Rua dos Pequis e Rua dos Pacas, se

ajuntavam pessoas, e era aquele guararape brabo:

rufando as caixas, baqueando na zabumba. Mor,

lomba acima, indo para a Matriz do Sagrado Cora-

cao, uma turma serodeara, a sombra de uma arvoregrande, ali tarnbem ainda ensaiavarn: era 0pessoal

do Mascamole --~ ele e 0Tu, cunhado seu, vin-

dos do Santome , Multo reluziam. 0 povo vivava. E

oTu co Mascamolc, chefes, tribuzando no tambor:

tarapatao, barabao , barabaol ... Tudo era grande

muito movimento.

Baixo urn momento, Pedro Orosio esteve namo-

rando, com uma rnoca ou outra, a incerta. Depois,assim sem prisao de regra, tcncionava trancar pelo

arraial, resves, para valer ° tempo. S6 um tanto, por

tudo, agora ele precisava de querer pensar em sua

casinha, sua lavoura -- na segunda-feira era que ia

la , por fim de ter andado fora pouco faltava para urn

mesoTarnal' a entrar no diario do trabalho tambem

era aceitavel, mestreava 0 corpo, e punha calco na

cabeca, pais mais a ideia da gente vinha sendo tao

removida. E encontrava 0Josue, quase seu vizinho.

---.. "Tudo ta bern, ta la, Zue?""-- Ta la , ta." 0 Josue

j<'linha queimado campo, estava encoivarando para a

velocidade, dum lado e doutro nao queria saber

de nada. Tirou dali, desceu, cortou a varzea, subiu

como quem ia para a Lag6a, pelo Bento- Velho. Ja

estava alongado demais. Por fim, foi para 0morro,

"dversamente, abriu urn furozinho preto no hori-

zonte, pOI' de se passou, e se sumiu do mundo.

Mais tinha esquentado aquele sabado. Frei

Sinfrao ja come«ara uma missa, sempre mais povo

chegando, a reio. Tambem muitos ja revestidos, para

figurar na festanca do dia-seguinte. Os dos ranchos:

os moyambiqueiros, de penacho e com balainhos

e guizos prendidos nas pernas; grupos congos em

cetim branco, e faixa, s6 faltando os mais adornos;

e a rapaziada nova, com uniforme da guarda-mari-

nheira.lmponente foi quando comungaram 0preto

Zabelino, todo serio, e a preta Maria-da-Fe, com

urn grande ramo de flores nos braces, quens iam

ser rei-congo e rainha-conga. Seo Alquiste estava

presente, com sea Juca do Ayude e seo [ujuca, e as

senhoras da Fazenda, e acabada a missa seo Alquiste

aproveitou para bater chapa de todos os fardados.

Musica ia tocar era no outro dia, no outro dia era

que era 0registrado da festa. Uns gritavam desde

agora seu grande contentamento:---"Viva a Senho-

ra do Rosario! Viva a grande santa Santa Efigenia!

90 '" j 0 A 0 G U 1 .'1.1A R ii_ I': S R 0 5 A o RECADO DO MORRO °91

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roca. Eo Alvinho Diogo ja tinha seu servico acabado

de pronto; p'ra semear agora 56 esperava chuva.

Prazia 0Pe vir beber urn gole? Se ia. ~- "Capaz que

este ana chover cedo ... "Tomara. Deus queira, E,

apesar d' ele ser nlpiau, roceiro muito, aspessoas fi -nas do arraial apreciavam 0Pedro --- principalmente

por seu tamanho em desabuso, forcudo assim, dava

gosto e respeito.

De contria, vinham 0Ivo e0Martinho -- mais

esse!---- queriam pOl'toda a le i que 0Pedro Orosio

quisesse ja de ja se amadrinhar com eles.---- "Nao,

por ora, amigos .. ." Pois enquanto, ele precisava de

gerir seu dia sozinho. A bern nao falar, alguma coisa

naqueles ainda 0 punha a resguardar urna menos

confianca, Muito leve. -- "Mas, olha: de tardinha,

depois do jantar, hcm?''' '---- Mas a festa nao e ama-

nha?""-Virou pra hoje. Sabc nao sabe?Voce e um)"" 'r "ue vern, ---- vou,

POI'vez, nao tivesse dado palavra. Quem diga

Fosse melhor nem nao ir? Essa festa, meio longe,

quando a ooasiao maior estava sendo no arraial,

aquilo mesmo desdizia, uma duvida lhe soletrava

assim. Repensou e nao pensou.

--- Ara veja, Peboizao! ...

A i quem estava saudando era 0Laudelim Pul-

gape, bons olhos 0 conhccessem. Como scmpre

amigos, se encontravam. A- e bem -_- era ideia:

o Laudelim podia vir junto, cornpanhia confortada.

-- "Vamos batucar hojc, Pulgo velho, na beirada

do Cuba numa casa?" "--- Vou nao." 0 Laudelim

marcara de ir tocar e cantar, para aquele homem

estrangeiro, no hotel do Sinval. Depois, ele tinha

de dormir para arnanha.

o Laudelim era alegre e avulso. POI'perto da

matriz , estavam num campo aberto. E ele olhou

urn cavalo que pastava, c se lembrou de seu violao.

Com 0 Laudelim, se podia Iacil conversar, ele en-

tendia 0mexe-rnexe eo simples dos assuntos, sem

precisao de urn muito se explicar; e em tudo de

cornpletava uma simpatia. 0 violao estava mesmo

ali a mao, no botequim. Dat que 0Laudelim tam-

bern usava cisminha de tristeza, que era urna tris-

teza leviana, diversa das de todos, uma tr isteza sem

razao cer ta, que nem doenca pegada ou chao para

a sombra de sua alegria. Dava agora para querer

passear vago, violao ao peito, votou que chegassem

ate no cerniterio -- carecia de visao assim, porque

aquela noite tencionava cantar melhores, Pois ca-

minharam. Mas, passando pelo oitao da Matriz, l e i

estava 0Coletor, rabiscando suas contas.

Se disse que esse Coletor era gira. Bern dizer,

nem nunca tinha sido coletor , nem aquele era nome

92 a-JO AO GUIMAH)\ES ROSA o RECADO DO MORRO ~9J

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valido. Transtornos e desordens da vida, a peso disso

ensandecera. Agora, achacado e velho, inda bom que

a doideira dele era uma so: imaginava de ser rico,

milionario de riquissimo, e 0 tempo todo passava

revendo a conta,gem de suas posses. Escrevia empapel, riscava no chao, entalhava em casca de arvore,

em qualquer parte. Mas onde tinha mais gosto de

cifrar aquelas quanti asera nas paredes, porque assim

todo 0mundo podia invejar a irriensa fortuna. De

qualidade que, pOl' azo, preferia a Matriz, por ter

asmaiores paredes brancas no arraial, Ia alinhando

nurneros tao desacahados de compridos, que pes-

soa nenhuma nao era capaz de tabuar: seus ouros,

suas casas, suas terras, suas boiadas no invernar, sua

cavalaria de otimas eguadas, seus contos-de-reis

em numerario, cada Iancamento daqueles era feito

uma correicao de formiguinhas pretas enfileiradas.

Aquele homem tinha uma felicidade enorme.

Quando a Laudelim e Pedro Orosio vinham

transeuntes, cayaram jeito de desladear urn pouco,

pOI-quetinha vez que 0Coletor estava tao duro en-

tertido nas somas, que ate gemia e coyava a cabeca,

e dava pena na gente, pois aquila semelhava urn

afadigo de tarefa de cativo.

Mas, par dessa, ele Coletor mesmo foi quem

se virou e sorriu.

- "6, 0 senhor, 6 0 das botas! Faz favor ... "

- foi 0que ele invocou. 0 que, por mais, tambem

era absolute absurdo, porquanto nem Pedro Orosio

nem 0 Laudelim, perfeitamente, nao tinham nem

calcavam betas nos pes. Mas entao 0 Coletor pas-

sou a mao aberta em frente de seus olhos, feito se

retirasse daquele espayoa lubrina de alguma visao

outra, pelo que ele mesmo via estar errado. Emos-

trou 0encifrado novo algarismal, que se produzia

por metros e metros na face do oitao, era aritme-

tica toda muito bern feita, sem tremor de mao, os

numeros altamente caprichados. E ele, orgulhoso,

muito se considerava. Os dois concordaram com 0

acerto de tudo, deram louvor. - "Estou padre de

rico, padre de rico ... "~~ 0Coletor faIou. -- "To~

mara agora eu saber 0menos de fazer, com tanto

dinheiro ... " E retornava a numerar, nao podia es-

perdicar tempo. -"0que eu precise e dum born

guarda-livro, de confianca Acho que, depois da

coresma, vou chamar ajuda "A nao regular, nem

mesmo ele sabia em que era do ana se estava. Por

ultimamente, 0 Laudelim notou, quase que de so

assentava numeros maiusculos, par render mais: os

noyes, oitos ou setes. E, de costas mesmo, sempre

registrando, e1e ponderou em voz: --"Friolei-

94 '" J 0 A a G U I MAR A E S R () S A o R~,;_CA.DO Do MORRO -95

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rasl ... " Ih, ah, que aqui ele estava ficando com

raiva. - "Frioleiras, baboseiral Fim do mundo ...

J.1se viu?!"Virou a cara - avermelhado, aperuado,

- "Por que 0senhor nao pegou aquele, a forca, nao

derrubou pla porta a fora, da igreja, zero, zezerol?"

Ele suspendia as sobrancelhas ..- "Aquele, sim , 0

Santos-Oleos ~-- diz-se que Ie 0 vulgo dele. PO lS

o senhor nao investiu?Ate naome esbarrou, 1.1dentro,

ao pe do Sacrario? .. " Botou mais urn palmo de nu-

meracao, ligeiro, ligeiro. -"Fim do mundo ... Fim

do mundo ... 0 cao! Agora que eu estou tao rico ...

Pois ainda nem acabei de pOl' em competente firma

todas as riquezas minhas, de meu possuido, p'ra

depois poder so descansar e gozar ... E aquele vern

prenunciar 0£lm do mundo! Uma tana! ... "Agora,

escrevia mais Iestinho, a gente tinha de vir andando,

beirando aMatriz, para 0seguir. E so Iancava ----di-

zia 0Laudelim - .era noyes, noyes, noves.

Acabou quebrando a ponta do lapis; enfiou

aquele toea na algibeira, foi logo tirando outro,

born. _ "Uma tana! Mistifo do homem Por meu

seguro Onde Ie que j.1se viurl 0 rei-menino ...

Bom, isso tern, na Festa: urn rei menino, uma rainha

menina, mais 0Rei Congo e a Rainha Conga, que sao

os de proprio valor ... 0 rei-rnenino , com a espada

na mao! Eo cinco-salmao: ara , s o se ve disso, hoje

em dia, e na ba.ndeira do Divino, bordado rebor-

dado ... Baboseiral Morrer a traicao, hora incerta,de tremer as peles ... Doze Ie duzia isso e mo-

do de falar? 0 que vale a gente e as leis ... Quero

vel',meu ouro. Nan sou 0favoroso? Mais novecentos

mil e novecentos e noventa-e-nove mil milhoes de

milhoes ... A Morte -- esconjuro, credo, vote vai ,

ca l Carece de prender esse Santos-6Ieos, mandar

guardar em hospicios ... VeIie a Morte vern vindo,

dai da banda do Norte, feito coisa de Embaixador,

no represento de Festa de cavalhada? E caixa e tam-

bor, quem estao batendo Ie essa gente do Satome, a

revelia ... Cristaos scm 0que fazer. .. Frioleiras ...

De que 0Rei, pelos ermos, sete soldados, fidalgos

e gucrreiros da Historia Sagrada, e lapa de Belem,

tudo por traicao, dando conselho e companhia, ao

pe da manjedoura, porque Deus baixou ordens .

Novecentos milhoes ... Nove, seis e urn -----sete .

Acabar? Posso dar meu juramento. Acaba nunca!

Isso de mundo se acabar, de noite ou de dia, e inven-

cao de gente pobre ... Arrenego! Uma tana! Que seja

p'ra o Capataz, e esta aqui pra 0Malaquias! ... "

Por assim , e quantos numcros compunha, 0

Coletor nao esbarrava de resmonear 0 serrnao do

96 I JO. l \O ·GUfMARAES ROSA ORE C i\ DO D 0 MOrt ..H0 00-.97

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Nominedornine, sem-pes-nem-cabeca, Na pobre

da ideia dele, ia levar tempo para se gastar aquilo.

~- "Vamos chegando, Pulgape ... "--- chamou Pedro

Orosio, Mas 0Laudelim cismara tanto e tanto, en-

quanto estava ou'Vindo, seu rosto se ensombreceu,

logo se alumiou ainda mais. C a que nao se esperava,

ele propunha assim desses esquisitos.Ave, matutava.

E mesmo, quando 0 Pedro Or6sio 0 pegou pelo

brace e ia levando, ele entreparou, asseteado, pe

"I I • t I" di E Jno ar. -- sso e Impor ante. -- isse .. pennurou

cara, por escutar mais. -" ... 0 extraordinario de

importante. .. Tremer as peles,>, Cristdos sem a que

JazeT. .. Qyero ver meu aura ... Urn danado de extraor-

dinaric! ... " 0 que? A tontaria do Coletor? Patarata!

Mas, que e que se havia, se 0Laudelim era mesmo

assim - que dava de com os olhos nao ver, ouvido

nao escutar, e se despreparava todo, nuvejava. Nunea

se sabia de seus porhns. Ainda, ainda. E a-duro vinha

vindo, mas quebrou para abanda da casa do Sio'Tico,

de donde se avistava todo 0arraial, L i em baixo, e a

a gente ir aproveitar 0oco do mundo noutra parte,

conceder que ele ficasse fieando. - "Vai embora

inda nao" ele pediu. 0 violao toava bem afinado.

"P , A -I d'E perguntou:-- _or que e que voce nao des lZ

_] f' _ .,r . " " A h -essa estar vem Junto, se cantar , . . ....._- , nao.

Mulheres quem." 0 LaudeIim mal ouvia. Relou as

cordas, ponteando, silamissol cantava. Arrastou urn

rasgado. Pe-Boi se despediu, ---"''' '--0 Rei menino ...

Passagens fortes! A toque de tomb or , .. Passagens

fortes .. , Passagens fortes.,. "- 0 Laudelim deu

resposta.

A i, em tudo e por tudo de S 1 satisfeito, Pedro

Or6sio passeou. Chefe que sechegou, aqui e ali, ven-

do bastante gente e com tantas pessoas proseando,

ponto, falando e ouvindo disto e daquilo, duma coisa

e outra; e mesmo, em sabado de festa, vespera do

Rosario, 0arraial nao era tao pequeno assim.

Almocou no J i Antonho, na Rua-de-Cima, esse

tinha duas carrocinhas e quatro burros, ultima-

mente andava tirando areia das beiras do da Onca e

trazendo para revender-- e era homem de carater

muito exato, contava estorias porcas, engrayadas,

e tratava todos de "compadre". Filhas mocas do J i

Antonho eram duas: Nelzi e Nilzi. Para se com pare ~

eer razoavelzim em tao born almoco, Pedro Orosio

r '" t . . ,. - J ' hei "varzea. ~--.. vou mars no cerrnterio nao. a ac CI ...

Que era que podia tel' aehado? Se sentou debaixo

do itapicuru, temperava 0violao, apalpou as cordas.

Com ele desse jeito, arredado crente, baas horas de

perdidas se podia tel'. Melhor, mesmo melhor, era

98 • J ( ) A () G U 1 MAR A E S R () S Ao RECADO DO MORRO "99

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foi buscar tres garrafas de cerveja, que ofertou, pOl'

mais que 0 Ji Antonho falasse que nao fizesse, que

nao carecia de tomar incomodo. Nelzi era a mais

bonita. Com elas, quer dizer, com todo 0 pessoal,

inteirado pOI' outros pais e maes, e outros rapazes e

mocas, se veio ate it Rna-de-Baixo it estacao _ ver, ,

alegres falas. Mesmo 0Helio Nemes, que tinha sido

o mais picado de todos. 0 Nemes, dito urn dunga,

felao de mau. Amem, medo, ah, isso, e de ningucm,

de Pe nunca sentiral Bastava se ver, pra saber. Receio

de mazda, isto sim, de algum dia se enfermar de

grave doenca, nao dar conta de cumprir seu trabalho

para sustento, nao ser mais querido das moyas nem

respeitado do povo. _ "Oi, Pedro, como e que vai

essa carcaca?" ,,_ Banzando... E voce, Jize?" Ze

Azougue era irmao do Martinho. Contavam que

eles, com 0pai, ja falecido em Deus, uma vez ti-

nham matado urn homem, por conta de uma divida

atoa. E vinham passando uns vinte sujeitos, todos

compostos nos trajes brancos e com os capacetes

- era a Guarda Marinheira - arnanha haviam de

dansar e cantar, rendendo todas as cortesias a Nossa

Senhora dos Pretos, E a Nelzi se virava para de e

perguntava: --- "Seu Pedro, o senhor nao gostade

figurar?" "_._ Tenho graya nenhuma ... Ate iam se

rir, por meu tamanhao ... "_ de tinha respondido.

A Nelzi era muito boazinha. -- "Pois eu gosto de

pessoa alta. Acho que assenta bern, emhomem ... "

Pe- Boi nao se acanhava facil: .._ "Muito agradecido,

por suas boas palavras ... " S6 nao teve coragem fo i

d di " h . "f' fiizer sen onta - con orme pensou; era no.

passar 0trem-expresso que segue para 0Sertao. Urn

dia tivesse de casar, mas mais tarde, podia mesmo

ser com a Nelzi que ele havia-de. E mocinhas de

fora compareciam , de maos dadas, umas ate eram

de Araya ou das Lajes, ele bern cer to nao estava.

Todas tao bern vestidas, todas elas de novo. Era sorte

que de estava assim calcado de botinas, apertavam

urn pouco os pes, nao fazia mal. As botinas era que

pareciam grandes demais, maiores que as de todo

o mundo. E dai? 0 que valia era estar com sua vida

em ordem, e no perfeito da saude, Da estacao, en-

tender am de ir de visitas, Muita gente queria visitar

com altas honras a Maria-da-Pe e 0preto Zabelino,

que iam ser os reais.

Mas, por umas tres vezes, Pedro Orosio se

encontrou com 0Ivo Cronico, que vagueava. Ate,

sem querer rnau juizo, mas parecia que 0Ivo tomava

conta. Sujo desse ciume, causa das mocas, azangan-

do. Ainda bern, que agora estavam reavindados, em

IOOOJO·A.O GU1MAJI,.AES ROSA o RECADO DO MORRO'" iOI

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A cabecinha da Nelzi nao ,dava no ombro dele. A

parte que ela falava: de sua vida em casa~- gostava

de fazer doces, de cozinhar, os irrnaos peguenos

cram uns dcmoninhos de engrac;:ados,0pai dizia queI'

no carnaval clue vern iam todos em cidade. Pedro

Orosio podiaficar muitas horas perto dela, ate se

esquecia das outras demais,

A Festa era de pretos e brancos, mas mais dos

pretos: ja naquele dia eles espiavam os brancos com

sobrancaria de importancia maier -~ pois eram os

donos da Santa. Carecia de rnandar fazer urn ter-

no de brim novo, tirar do dinheiro para comprar

umas duas ou tres camisas, melhor das que tern

bolsinhos, Nao imaginava como era que alguem

podia querer ser trabalhador de trem-de-ferro:

guarda-freio, foguista, maquinista, Dansador de fa-

rna -~ 0Juminiano, agora alguns tinham escrupulo

com ele, porque 0 pai dele morrera com mal-de-

lazaro. 0 pior, quando se esta em roda de pessoas,

conversando com moyas, e quando da vontade de

verter agua, carece de arranjar desculpa, para sair

de perto, pior entao e quando a gente volta. Cria-

tura para conversar fiado nunca falta: como e que

urn podia afirmar, em mes de agosto, se as chuvas

do ana vao vir mais cedo ou mais tarde? Mulher-da-

vida, quando passa na rna, em dia de festa, adquire

urn ar de sobre-dona, desdenha do alto as senhoras

e mccas-de-familia. Por agora, no arraial, dava de

estarem levantando muitas casas novas; mas, quando

aquele movimento esbarrasse, quem e que ia com-prar areia do Ji Antonho? E 0quee que ele ia fazer

das carrocinhas e dos burros? Ji Antonho dizia que

era patricio, geralista tambem; aldemenos afirmava

que era, dos Gerais de Andrequice. Se os parentes

dele, Pedro, no Veredao da Cuia, se des ficassem

sabendo que ele tinha ido ate Iiperto, nos Gerais,

mas sern chegar nem aparecer, haviam de ficar pen-

sando mal, Viajar era born, mas pOI' curto prazo de

tempo. Se entre aquelas vaquinhas que pastavam ali

no capim daVargem, que alguma delas fosse brava,

e quisesse bater, ele escorava a bicha, escornava e

baqueava----~ salvava a vida daquelas mocas todas,

salvava mais era a Nelzi, e era uma imponencia,

todos tinham de vel', gabar e admirar, Para namoro,

de noite e muito mais agradavel do que de dia. Mais

festivo, melhor de tudo, e em igreja - todos em

seus lugares, 0padre naquela solenidade de estado,

o harmonic tocando, mulheres cantando; e a gente

correndo com jeito 0 olho, era capaz de namorar

com diversas, de uma vez, Quantos anos devia de

l 0 1 • j 0A 0 G U 1 11 ' AR A li' R 0S A o RECADO DO MORRO" 103

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ter a Nelzi? A .Nelzi era a mais velha. Do Laudelim

Pulgape era que as familias e as moyas nao queriam

saber ..~~ diziam que era bandalho. Tocar bern urn

violao era a coisa que ele P c mais invejava. Amanha,

devia de se apresentar para tamar acorea, no giro de

redor da igreja, agradecendo asbencaos? Nao Fosse 0

rebulico born do dia, e a batuque determinado para

de noite, dava vontade era de sentar as pes par ai,

ir ate em casa, via como par ti estavarn as coisas, de

tardinha mesmo jo i estava de volta, bern era capaz.

Dia de domingo mesmo nao estando quente, a gente

sente mais calor: calor e poeira estao s6 combinados

de amarrotar e sujar a roupa da gente, em tudo se

precisa de por atencao. E, ei, que aquele ainda nao

era bern dia-de-domingo, era so sabado de vespera,

mas domingo parecia - todo 0mundo revestido

e passeando ...

E ele felizmente tinha 0 assunto da viagem feita,

para conversar, De sea Jujuca, sempre negocioso. Do

frei Sinfrao, como folgazao rezava. 0 seo Alquiste?

Era doutor, era sim. E doutor dos bons, de mao

cheia. Homem importantissimo, Queria ate levar ele

Pedro para seu ajudante, a fim de conhecer a terra

dele, tao estrangeira. Dizia que Ia 0 P e podia ser

soldado ... -"Fosse eu, ia ... "- falava a Nelzi, se

via que por momice, leve de despique. _. "Ah, isso

nao] Absolutamente ... Nao quero ficar tao lange das

pessoas de que eu gosto ... "- ele aproveitava para

referir, olhando bern para ela, se pondo e repondo

nesse olhar, Eh, bern que de podia passar meses e

anos assim pertinho. A Nelzi era a cabeceira entre

todas, senhorinhazinha, rainha de solertes forme-

suras, aquela merecia amor,

Mas, par cabo do dia, nao podia ficarmais tempo.

Aquilo ainda nao era noivado, como para embroma,

dando na vista: 0que nao e cas6rio e fa1at6rio! Disse

adeus, com pena. _.._ "Amanha 0 senhor vern?"Ah,

amanha ele estava. Supridamente.

Jantou no Tolendal, nao podia ser ingrato com

os amigos bons protetores. E0Floriao estava la, se

conversou. 0 Floriao tinha chegado, com 0cami-

nhao dele, vindo para a festa. Falavam na confusao

daquela manha, na trompagem do Santos-6Ieos. Eo

Floriao, por volta de meio-dia, tinha avistado aquele,

cruzmente, despassado pela estrada pelo menos

a umas quatro leguas dali. ~- "0 tal parece ia tirar

algum pai da forca ... Gritou: Viva Deus, e 0fim do

mundo! ..~~ e ainda espripipipou mais, envoado ... "

o diogo, urn desse, 0coitado! Mais para grac;a nao

eram as panoes enrolados nos pes, ja se viu alguma

104 .,._ 0 A 0 G U I MAR i\ E S R 0 SAo RICADO DO dIl,l,ORr~() I IO~·

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vez disso?Mas, nao-- 0Floriao informava - quan-

do 0 caminhao se cruzou com de, decerto ja tinha

desmanchado e Iargado aqueles aparelhos - pois

assim mesmo clemente andava, andava, quase corr ia,I

estava descalco de'toclo, seco, serio, sorteado. Que

lugares enguliam urn homem assim?

Falar nisso , 0 sino repicou, era hora da reza,

noveneira. Outra vez 0povo para a igreja. Pe-Boi

tambem . Para a andaclura dele, aquelas ruas e a

ladeira eram menores. - "Eh, Pedro! Desta vez,

nao te largo. Despois, daqui, a gente ruma ... " Era

o Ivo, Que seja, por certo, estavam compalavrados.

Enfileiracla no aclro, a tunna dos Mocambiqueiros,

completa, a luz da tarde. Da outra banda, a Guarda

Marinheira, clavaprazer vel'0estique deles, eada urn

de queixo alto--- nenhum nao se ria. Eja vinham

chegando os Congos, a toque de rufo, pessoal do

Tu e do Mascamole adiante. Aqueles ranchos todos

porfiavam. E passavam muitas senhoras, levando

para dentro suas criancas em branco, preparadas

de virgens e de anjos. S6 mesmo na hora em que os

coroinhas do padre tangeram sineta, foi que esbar-

rou, a um tempo, de e e l e de hi, 0tungo e 0vungo

das caixas de couro, Ah, uma festa, com suas saudes,

era boa estancia, mesrno assirn de vespera so.

--A paz, agora vamos ...

- Pais vamos. Qu' e de as outros?

- Estao esperando , no fim do beco do Satur-

nino.

Ia porque ia , a bern dizer nao tinha grandes

vontades. Ao mesmo, enquanto durava a reza.

Nchi estava la, na parte das mulheres, e ela olhava

para de, com sineeras docuras. Aquela, s o sim. A

proprio, Pedro por ela desdeixara de namorar as

outras. Somente, par habituacao, olhara uma vez

para a Miinha, clara, que estava na escada do coro.

Uma vez, ou urnas duas. E outras tantas para uma

mocinha doAraca, de vestido vermelho .~ disseram

que a graya dela era Candida. _- "Bam, tao que-

rendo, vamos ... " Nao queria ser discordioso. Mas,

pOl' primeiro, segundo 0Iva, careciam ja de beber

urn cauim qualquer. Ah, co Pulgape? _... "Ternos de

passar mesmo pOl' defronte do hotel do Sinval... "

Na saida, em ouso saudou a Nelzi, com aceno de

cabeca. 0 mes de agosto, ainda anoitece depressa;

fuseava.-- "Pode sossegar, Pe, que la tambem vai

tel' maya, e muitas ... E baile de born batuque, samba

t d !"" 'IT •• 1 "" Mapa ea o. --_ vamos inteirar ( e ver. ~ as, os

principios, a gente prova urn acende-goela.Tu, bebe,

bebe, Pedro: estou com uma garrafa aqui ... "

1 06 .0 J 0 A 0 G U I MAR A a s R 0 s A ORE CAD 0 DO M 0 R It0 OJ 107

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o violao do Laudelim ja desestremecia, ah, pi-

nho assim na mao, prosa que e um reinado. E podiam

entrar, tambem, caso quisessem. Queriam nao, dali

de fora mesmo, da janda, estavam em comedo de es-

eutar ever, a dernora deles era apoucada.-- "0 lha,

a gente nao deve de estabe1ecer, Pe. Por causa do

born caminhar que ainda falta ... " -------or baixo e

por cima 0 Ivo de 0 puxar nao esbarrava. Um raio

de Ivo Cronhco, pago por molestar a perscveranya

da gente, poaia. Mas, dentro de sala, governava 0

Laudelim, Pulgape born amigol - ..~ assentado im-

portante entre as pessoas, impondo 0aprumo de seu

valor. Que e <:Jueele cantava? Ai encerrava de dar 0

lundu da Gamela. Todos batiam palmas. Sea Alquis-

te E tomava um copo grande de cerveja, Iimpava

os cantos da boca com a guardanapo. Batia com as

maos, estrondoso. Punham cerveja para 0Laudelim

tambem. Ah, de estava de grandartel Agora, bom

de ja bcbido, retomava 0 violao, desrasgava, trazia

das cordas, principiava aquela trova tao formosa,

canto retardado, que pespega so: ... Serra, serra

--- serrania ... - dizendo a relrem. Ave de aprazivel,

aquilo geava.

Mas, de Ia, aquele seo Alquiste, que era homem

terrivel para tudo enxergar, tinha feito reparo neles

dois - no Ivo e no Pedro, e e l fora. E seo Alquiste se

alegrou, saudou grosso alto, chamou que entrassem,

era precise de se servir uma cerveja para eles. Seo

Jujuca vinha insistir. Born homem notavel, 0 seo

Alquiste. Pouco era0

que ele falava em vulgar, masassim mesmo alguma coisa se colhia. E 0 Laudelim

tanto ficava satisfeito, de ver seu amigo cumprindo

de vir, para ajudar a apreciar,

Assim ele cantava agora 0lundu da Laranjinha

--- a pedido do seo Juca do Acude, Acabou -- pal-

mas. Seo Alquiste esvaziava de continuo sua cerveja,

e zas na caderneta, escrevendo, escrevendo. "Lau-

dlim ... - dizia ele batidas vezes: - Laud'lim ...

Lau'dlim ... l.aau-d'limm - falava Laude1im assim,

quica nos sentimentos dele fazia coisa que se estives-

se tremeluzindo campainha. E mais escrevia. Tudo

o gue dos versos nao era para ele poder entender,

seo Jujuca transfalava todo 0simples significado. A

mor, quem ria, ria bern.

Ai, de arranco, deu seguida que 0 Laudelim

mudou, cavalo de orgulhoso, estadeava. Afa, que 0

violao obedecia, repulando a teso, nas pontas de seus

dedos, a virtude; com um instrumento fogoso tal,

tal, em mesmo que ele podia tomar 0espayo. Se via

que vinha ja 0maior melhor, aos sons de retombou

a cabeca, carinhoso, seus olhos se fechavam.

10S'liJOAO GUIMARAES ROSA o H.r: CAD 0 nOM OR It0 " 109

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~.~ Que e que vern, Laudelim? - seu Juca do

Acude indagou.

--- Pobre coisinha minha, se licenca me dao.

Cornposicao ...

Todos acenararrf que srm , com atencocs, que

esperavam. Pulgape pronto. Apos que pigarreou,

dedeou de esbarrondo, e meteu comcyo, com rom-

pante, descantou:

chegou da banda do norte

e com toque de tambor.

Disse ao Rei:-~ A tua sorte

pode mais que a teu valor?

Qyando a Rei era menino

)6 tinha espada na mao

e a barule ira do Divino

com a siqtio-de-salomiio.

Mas Deus marcou seu destino:

de passar par traicdo.

---- Essa caveira que eu vi

nao possui tienhum podet!

~ Grande Rei, nenhutn de nos

escutou tambor bater ...

Mas e so baixar as ordens

que havemos de obedecer.

Doze guerreiros somaram

pm servirem suas leis

-_ ganharam prendas de aura

usaram names de teis.

Meus soldo do s , minha gente,

esperem por mim aqui.

Vou a Lapa de Belem

pm saber que J O i que ami.

E qual a sorte que e minha

desde a bora em que eu nasci . ..

Sete deles mais valiam:

---- Niio convem, oh Grande Rei,

juntar a noite com a dia ...

--- Niio pedi vosso conselho,

pq:o a vossa cotnpanhial

Meus sete bans cavaleiros

dos doze eram um tnais seis ...

Mas, um dia, vela a Marte

vestida de Embaixador: fiSr da minba fidalguia ...

IIOOJOAO GUIM.f\RAES ROSA o RECAOO 00 MORRO" III

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UmJalou pra OS outros seis

e as sete com um pensamento:

-- A sina do Rei e a motte,

temos de tamar assento ...

Beijaram suas sete'espadas,

produziram juramenta.

belos entusiasmos! 0 que era, era que nao conse-

guia, nao aguentava mais. - "Diabo! Despois tu

mija! ... " ---- 0Ivo cochichou ralhando. Eo que era

[usto, Valia a pena, por tanta saboria de sonancia, eo

gloriado daquele descante, as grandes palavras.Valia

mesmo, apertar as pernas uma na outra, e curtir a

dura necessidade. 0 Ivo razao tinha.

Mesmo porque, por diante, 0Laudelim percor-

ria todo 0viajar, com suas vicisses, e dava no vivo

da est6ria cantada ~-- com urn sinalamento preto

no ceu, e a lua no redeado das arvores, e 0 rir do

corujo vismau, saido de sua gruta, que anunciavarn

a falsimonia, Triz e truz dai, era aquele desatamento,

presto: 0nefand6rio! Arre, al, que tudo fuzuava, no

roldao de uma matanca quando os reus guerrei-

ros investiam no Rei, de mao-comurn, suas espadas.

Nas champas delas 0 luar lampeava, contra todos os

sete 0Rei se defendendo, que esbravejava, acuado

mas scm se entregar, ao longo choro do vento e.na

solidao dos campos - par Iorca e armasl

Nos entres dos pes-de-verso, 0 Laudelim dava

urn acompanhamento dace, de contraste, em diz

pim-pim, feito os passarinhos madrugados. Aquela

estoria era terrivel!

A viagemfoi de noite

por ser tempo de luar.

Os sete nada diziom

porque 0 Rei iam tnatar.

Mas 0 Rei estava alegre

e eomefou a cantor ...

-~ Escuta, Reifavoroso,

nosso humilde pareeer:

Ainda mal que, por essa altura, Pedro Or6sio

tinha de sair l a fora, por forca, jit vinha nao rcsistin-

do, se sentando no banco de meia-esgueIha; ca<;:ou

formas de escapar sem percebido ser. Mas 0Ivo

segurou-o pelo palet6: que tal coisa nao fizesse, que

ficasse! Ah, nao por isso, que ate estava gostando

apaixonado dessa cantiga, ela era de referver. Os

Mais. Cada que 0 Rei dava urn urro, por ferido

- era tambem urn dos outros, que matado. Travante

112 eJOA.O GU.fM.ARAES ROliA o R]~CADO DO .i\'10RRO "11)

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gritavaque malditos fossem, por assim quererem

apagar 0 ro1 de tantos beneflcios .dos palacios 0 A i,

entao, eles careciarn de ser bichos, de odio. De vez-

vez defastavam e revinham, mais crus, sangue se via,

de noire,0

verrnelho nas roupas semelhava pretooUivavam. Dcsuso --- que nem urn estouro de hoiada

curraleira: tudo em estrondo e estracalho. Mas a dol'

no corp a do Rei ardia, pOl' seus muitos bastantes

talhos sofridos, de tanto sangue que perdia ia-se

indo em cansaco, e do seu sangue rnesmo precisava

de aparar e rebeber, pOl' nao deixar 0alento. Pedro

Orosio ja estava nas ultimas. Mas ai0

Rei matava0

derradeiro setimo, e proprio morr ia -- na horinha

de falecer via 0 escrito de sua velha sina, nos altos

do ceu ...

e os cegos vendern pelas estradas. Ate ao seu [uca,

seu pai, ou mesmo a urn sujeito rustico bracal,

como aquele Ivo, ali defronte, se embaciavam os

olhos, quase de cai lagrimas. "Impor tante ...

Importante ... "-- atirrnava0

senhor Alquist, sisudosubitamente, desejando que Ihe traduzissem 0 texto

digestim oc districtim, para 0 anotar, Scm apreender

embora 0inteiro sentido, de fora aquele pudera

perceber 0 profundo do bafo, da forca melodia e

do sobressalto que 0 verso transmuz da pedra das

palavras. E seo Jujuca pedia ao Laudelim que recan-

tasse e acornpanhasse em surdina, e ia explicando.Tarefa que se Ievava, pois ° senhor Alquist queriacomentar muito, em Ingles ou frances, ou mesmo

em seus cacos de portupues, quando nao se ajudando

com terrnos em grego ou latim, ~ .....Digno! Dig-

no! Como na saga de Hrolf filho de Helgi, Hrolf 0

Liberal: ainda era menino, quando Helgi morreu,

e ele subiu ao tr0110 da Dinamarca ... " Referia:-----~Ah, esta em Saxo Grammaticus! Ou quando 0

outre, Hrolf Kraki, entrou na peleja: Io i como urn

rio estua no mar - ele simultaneo, a todo atimo

pronto na espada, qual com os bifidos cascos 0veado

se atira ... Esta em Saxo Grammaticus ... " E, nesse

ardor, senhor Alquist Iimpava os oculos, e, tornando

Ainda bern que 0Pedro ainda teve tempo de sair

do salao, e chegar hi fora em prazo. Trasquanto os

restantes batiam palmas, mais valentes do que das

outras vezes: de entoar e acompanhar assim,0Lau-delim merecia florae de cantador-rnestre. Prazia.

Era 0que pensava seo jujuca, molhando cerveja

na boca e atendendo a s perguntas do senhor Alquist.

Comovido, ele pressentia que estava assistindo ao

nascimento de uma dessas cantigas migradoras, que

pousam no coracao do povo: que as violas serneiam

1 I4° J 0 A . 0 G 11 1 MAR A I~ S R () .< ; A o R,ECADO DO MORRO .I Il~

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a entrar na sala ° pobre do Pedrao Chabergo, urn

capiau simplorio, assim transvisto, sem outro des-

taque a nao ser 0 da estatura _ ..0 senhor Alquist

o admirava, dizia: k a lo s k a 8a th 6 s . .. Q sertao tivesse

mais uns assim. ,f

E 0Pedro vinha voltando, aliviado, cacava seu

Iugar em seu banco, clava com os olhos em seo

Alquiste. Esse sonia, e para de Ievantava 0copo,

v Id . D' . "E 1 I "E Isau e, nas praxes. lZla: _ ~sco a,... ~ e e

Pedro retribuia com 0mesmo born gesto, tambem

ja tornava a ter sede de cerveja, mais bebia. Nisso 0

Laudelim retomava a cantar a recem grande cantiga,

para os frades ouvirem, pois frei Flor e [rei Sinfrao

estavam chegando.

Num sempre se podia ficar escutando, sem fastio,

Mas 0too mesmo da trova se recebia na gente, teso

em cheio, precisao de urn se engrandecer, por meio

de qualquer movimento _ espiritacao de romper,

andar, caminhar, _.- "Eh, born, vamos, Cronhco?"

o Pe-Boi proprio ora convidava, em doenca de se

ir, ~- "Quero com vontade de dansar urn recorta-

do ... "Eo Ivo tambern se aluia, quase entre a-gosto

e contragosto, reproduzindo: -~ "Em boa razao,

A pois, vamos." Mas 0 Ivo, em luzes assim, tinha

que ficava com os olhos encarnicados, de cachorro

que cacou onca. _ "Tu behe?" "_ Se hebe!" Por

bern, os dois saiam, sem mencao de ninguem. Va-

ravam pelaspessoas no sereno. -"Oi la , Rijino ... "

,,_ Chama ninpuem mais p'ra vir, nao ... " _. baixo

o Ivo recomendava. Laudelim descantava solene l e i

dentro, estribil, ele cantava continuado. A lua havia,

grandada, clara. EIes passavam 0comprido do beco.

Ainda vinha, a toada tarda. Passavam 0bambuzal.

"_ Se bebe?''' '-~ Bebe!" A cantiga adormeceu.

A i eis que ali, no juajem, na ultima casa sozinha,

na saida para 0Saco-dos-Cochos, estavam todos os

companheiros, por cerimonia de recongraya. _

"Ara viva, Pe-Boil Pedrao Chabergo, velhol" Aqueles

eram ° Jovelino, 0 Martinho, joao Lualino, 0 Z e

Azougue, 0Veneriano, 0 Helio Dias Nemes. Pois,

iam. Casa de luzinha, no campo, estavam tocando?

Estavam dansando 0bendengo. Todos 0rodeavam, a

d d "A' A • PA • !"}) dfeicao e agra os: ~ mlgos,Ol e amigo. e ro

Orosio queria andar a folego, singular, com muita

perna e muito brace, sem cuidando; daque1a estatu-

ra de passo, nenhum com ele podia se emparelhar,

-"Que e isso, gente?Tao me levando de charola?

Deixa de enrolo ... " Todos davam a ele a confirrna-

I ",r' deterrninar.v."aO (0 r iso. ~ vamos If, vamos eterrnmar ...

_ 0 Ivo Cronhco falava, 0 Ivo era 0 cabecilho,

116 "JOAO GUIMARAES RO.~A o RECADO DO MORI-tO ·]'7

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Carecia de ordern, porque tinharn estado bebendo.

o Martinho vinha com uma lata com comida de

farofa, comia deb corn uma colher. 0Joao Lualino

tocava urn reco-reco. 0Veneriano pegou de ir na

[rente. lam indio-asindio. Pedro Or6s10 regozijava

de eaminhar de noite, debaixo de Iua.

Entremente, ia cantando. Mal e mal, tinha apren-

dido uns pes-de-verso, aquela cantiga do Rei nao

sara do raso de sua ideia. Canta que canta, ate 0 Ivo

tambern, de falsete. E 0Veneriano, que tinha bom

ouvido, acompanhava, segundando. Era bonito, era

born. Pulgape devia de ter vindo. Ao que se podia

arejar, cabeca e 0 corpo ganhando ern levezas, Cos-

tava daquela musica, Gostava de viver.

Ao sim, tinha viajado, tinha ido ate principio

de sua terra natural, ele Pedro Orosio, catrumano

dos Gerais. Agora, vez, era que podia ter saudade

de la, saudade firme. Do chapadao - de onde

tudo se enxerga. Do chapadao, com desprumo de

duras ladeiras repentinas, onde a areia se cimenta:

a grava do areal rosado, fazendo pururuca debaixo

dos cascos dos cavalos e da sola crua das alpercatas,

Ou aquela areia branca, pOl' baixo da areia amarela,

pOl' baixo da areia rosa, pOl'baixo da areia vermelha

- sarapintada de areia verde: aquilo, sim, era tel'

saudadel 0 vivido velho dos vaqueiros, gritando

galope, encourados rentes, aboiando. Os bois de

todo berro, rnarruas com marcas de unha de onca.

Chovia de escurecer, trovoava, trovoava, a escuridao

Iavrava em fogo. E na chapada a chuva sumia, bebida,

como por encanto, nao deitava urn lenco de lama,

nao enxurrava meio rego. Depois, subia urn branco

poder de sol, e urn vento enorrne falava, respondiam

todas as arvores do cerrado ~- a caraiba, 0 bate-

caixa, a simaruba, 0pau-santo, a bolsa-de-pastor,

De lua a lua. Sempre corriam as ernas, os veados,

as antas. Sonsa, nadava a sucuriju, Tanto 0gruxo de

gavioes, que voavam altos, os papagaios e araras,

e a maria-branca cantava meiguinha, todo aquele

arvoredo ela conhecia, simples, saia pimpa do meio

das folhas verdes com urn fiinho de cabelo de boi no

bico.Ar assim farto, ceu azul assim , outro nenhurn.

Uma luz mae, de milagre. E 0 coracao e coroo de

tude, 0 real daquela terra, cram as veredas viven-

do em verde corn 0muito espelho de suas aguas,

para os passarinhos, mil -._ e 0buritizal, realegre

sempre em festa, 0belo-belo dos buritis em tanto,

a contra-sol.

Urn hornem chega a porta de sua casa, se rindo

de si e eseorrendo agua, desvestia pesada a croya de

r l S .. J 0 Ii0 ·G U I MAR A ES R 0 SAo RECADO DO MORRO" 119

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fibra de palmeira boa. E uma mulher moca, dentro

de casa, se rindo para 0homem, dando a ele cha de

folha do campo e creme de cocos bravos. E urn

menino, se rindo para a mae na alegria de tudo,

como quando tudo'€ra falante, no inteiro dos cam-

pos-gerais ...

Ah, ele Pedro Orosio tinha ido h i, e hl devia de

tel' ficado, colhendo em sua roya num terreol- era

o que de profundos dizia aquela cantiga memoria:

a cantiga do Rei e seus Guerreiros a continuar seus

caminhos, encantada pelo Laudelim. "Se bebe?"

"'T' . - pA

A h "" A !"- lorna mms nao, e. c ega. ---. rre.

Em vel', que tinham medo dele. Ah, tinham!

Aquele Ivo Cronhico, ranheta, cocador de costa de

mao; aquele Jovelino ~-- eh, bronho, - metade

de si mesmo! Aquele Martinho ... Companheiros

para ele? De muxoxo ... Cabecudo como esse Cro-

nhico: pior que se meter 0 freio na boca dum ruirn

burro. E 0Veneriano pe prancho, e 0focinho do

Martinho, e esse joao Lualino assassinador de gente,

todos eles. E0Nemes? Podia algum?! Sucia ...

Deveras, tinham receio. Pois nao era? Urn exa-

gero de homem -boi, urn homao desses, tao alto que

urn morro, a sobre. Assim desmarcado, pescoyo

que nao dobrava, braces de tamandua, inchos de

musculos, aquilo era de ferro se eleestouvava,

perigava qualquer sociedade, destruia as certezas.

-"Escuta, gente. Escuta, Pe. Vamos determinar ... "

- falou 0 Ivo, quando pararam. - "0 quer!"

" PIBAd ' A I

- ec 1'0 ergo, voce tomou .emais, voce esta

esquentado. Entao, melhor, reservar com a gente

sua garrucha e faca, p'ra se guardar ... Evita alguma

di t - A t h "" U I f dif ?"S racao que voce en a... - e, az 1 erenya.

"--- Convinhavel dar. 0 Ivo pode ter razao, P e . .. "

" E 1 I "" E 1 A PA ? D id . "- - - s eo a . . . . .- - - - - seo a 0 clue, e . 01 eras ...

"A t - "I ' b ?!"" N d - -- que e... usa e.. _._ ome- a-mae, nao,

, P "ente. az ...

-- "Pois canta!" ---- Pedro gritou, animante.

~ -- - " Es co la l .. . "Sobre sem sim, e andado, ele se sen-

tia, estava grave. P e- Bo i, P e- Bo i, P e- Bo i. .. Caminhava,

Cantava forte, do Rei, com a lua, pelas estradas, dos

Guerreiros, das espadas, do violao do Laudelim.

Bem, agora estava ali mesmo, indo para a festa, indo

para sua casa, para Iido alto do Saco-do-Campo, ou-

tras encostas da vertente. Toda aquela serra subida,

cheia de grutas e sumidouros - 0dos Morcegos,

o da Lapinha do Geraldo, 0do Brejinho, 0funil da

Pedra Bonita, 0do Corgo do Cuba --, cheia de

tratos onde ninpuern pode pisar e 0 gaviao-gran-

de e dono. Conhecia ali, palmo e palmo , tambem

! "2 0 "" J 0 A 0 "G U 1 MAR Ii. E S R 0 s !\ o R"ECADO no MORRO" i z r

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era de muito terra dele, aqueles contornos. Toda

parte, por la, 0corujao saia esvoacado dum oco de

lapa, pousava em ponta de pedra, dava gargalhadas

-- assim com luar a eoruja branea depunha sombra.

Quanta eoisa que a'gente nao sabe nunea no escuro ,

sufocado: como 0glude frio das minhocas da terra.

Seo Alquiste soubesse? 0 trade sabia? Seo Jujuca?

Ele Pedro Orosio .tinha sua easinha-- . uma easinha

pobre, com alpendre, entre umas palmeiras, terra

boa, de orecanga. Perto da Pedra do Boi, perto do

reconcavo dos Monjolos, depois do Pasto dos Mon-

jolos, depois do Capac do Pequi, rumo a rumo com

o Limpa-Goela, onde tern 0morrinho, um cruzeiro

e urn banana], indo pelo espigao da Ponte-Seca ...

Grande Rei, a tua sorte - pede t na is q ue 0 teu valor?

Pedro Orosio esbarrou, As botinas 0 rnaltra-

tavam. Sentou no chao, se [ivroti. Deu ao Iva as

botinas, para levar. Grande Rei, a tua sorte ... Dai, se

rernantelou em pe , ealcou bern a terra, sapateou

urn tanto. Grande Rei ... Tinha ido e tinha voltado,

por aquelas todas fazendas --- dcsde 0Apolinario:

o Marciano, no eaminho das boiadas do Norte; a

Nha Selena, numa belavista, fim de serra; 0Nh6

Hermes, na Capivara; a dona Vininha, tinha aquela

moqa tao alva; 0Jove, donde quebra para as boiadas

)

que vern do Urucuia e do Abaete ... Eh, Ivo Cr6-

nhico, carrega minhas botinas! Ele, Pe, era 0Rei,

dono dali, daquelas faixas de matas, verdes ver ten-

tes, grandes morros, grotas cavacadas e lapas com

lagoinhas, poc;:osd' agua. Mas e s6 batxat as ordens, que

h av em os de o bed ece t ... Ai entrar outra vez dentro da

Gruta, a Lapa Nova do Maquine ~ onde a pedra

vern, incha, e rebrilha naquelas paredes de Iencois

molhados, dobrados, entre as roxas sombras, escor-

rendo as lajes alvas, com grandes form as e bicos de

passaros que a pedra fez, pilhas de sacos de pedra, e

o chao de cristal, sernelha urn rio de ondas que no

endurccer esbarraram, e vindas de cima as pontas

brancas, amarelas, branco-azuladas, de gelo azul,

meio-transparentes, de todas as cores, rindo de

luz e dansando, de vidro, de sal: e afundar naquele

bafo sem tempo, sussurro sem sorn, onde a gente se

lembra do que nunca soube, e acorda de novo num

sonho, sem perigo sem mal; se sente.

Que desse as arrnas, por guardar, que era mais

assisado 0Ivo fechou mao nisso. -_.-"Uma osga!"

Pe-Boi nao queria saber de embusteria.·-"Cuida

das botinas, amigo, que eu quero e festal" Queria

cantar. Vieram todos de pare lba . . . 0 Rei. . . E em eles

tremerata p e le s . .. A sina do Rei e avessa ... 0Rei dava,

l 24- j o X 0 G 1J 1M A It i\ E S R 0 S- A

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entao 0depoSitou,o depos, menino, no centro do

chao.

Dai, com medo de crime, esquipou, mesmo com

a noite, abriu grandes pernas. Mediu 0mundo. Por

tantas serras, pulando de estrela em estrela, ate aos

seus Gerais.

Roteiro de leitura

II!

i

i

I ,

1. A novela "0 recado do morro" foi publicada

pela primeira vez em 1956, no livro C or po d e b aile ,

que reunia sete novelas. Segundo [oao Guimaraes

Rosa, as novelas de Co rpo de ba ile compunham um

espetaculo unico, cada historia e seus personagens

encenando urn ato desse grande espetaculo. o que

significa dizer que, mesmo com todas as suas dife-

rens:as, as novelas de Corpo d e b aile se comunicam.