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nova Economia_Belo Horizonte_15 (1)_117-137_janeiro-abril de 2005 Teoria do federalismo fiscal: notas sobre as contribuições de Oates, Musgrave, Shah e Ter-Minassian Mauro Santos Silva Técnico do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão Professor de Economia do FGV Management Resumo Este texto apresenta e comenta as proposi- ções clássicas de Oates e Musgrave, relativas ao esforço de compatibilização entre o perfil do sistema federativo e as possibilidades de otimização da política fiscal, e as contribui- ções recentes apresentadas por Shah e Ter- Minassian, voltadas ao aperfeiçoamento das relações federativas fiscais em contexto de política econômica orientada prioritariamente ao alcance de objetivos relacionados à estabi- lização. O objetivo do artigo é apresentar e comentar as contribuições teóricas de Oates, Musgrave, Shah e Ter-Minassian, referentes aos temas centrais da questão federativa: au- tonomia, funções fiscais, competências tri- butárias, transferências fiscais e a relevância da ação coordenadora liderada pelo governo central. O texto demonstra a complexidade que envolve o tratamento teórico e as ques- tões vinculadas a políticas federativas e mos- tra a necessidade de aperfeiçoamento per- manente das instituições que presidem as relações fiscais em contexto federativo, com base em ação coordenadora liderada pelo governo central. Abstract This text presents and comments on the classic proposals of Oates and Musgrave, relative to the effort of conforming the profile of the federative system and the possibilities of optimizing the tax policy, to the recent contributions presented by Shah and Ter-Minassian, focused on the improvement of the fiscal federative relations in the context of a guided economic policy concentrated primarily on reaching the objectives related to stabilization. The objective of this article is to present and comment on the theoretical contributions of Oates, Musgrave, Shah and Ter-Minassian, referring to the core themes of the federative issue: autonomy, fiscal functions, taxing authorities, fiscal transfers and the relevance of the coordinating action conducted by the federal government. The text demonstrates the complexity involved in the theoretical treatment and the related issues on federative policies, and shows the need for continuous improvement of the institutions that preside over fiscal relations in the federative context, based on the coordinating action led by the federal government. Palavras-chave economia do setor público; finanças públicas; federalismo fiscal; políticas públicas. Classificação JEL H77. Key words economics of public sector; public finance; fiscal federalism; public policy. JEL Classification H77.

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Teoria do federalismo fiscal:notas sobre as contribuições de Oates, Musgrave,Shah e Ter-Minassian

Mauro Santos SilvaTécnico do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão

Professor de Economia do FGV Management

ResumoEste texto apresenta e comenta as proposi-ções clássicas de Oates e Musgrave, relativasao esforço de compatibilização entre o perfildo sistema federativo e as possibilidades deotimização da política fiscal, e as contribui-ções recentes apresentadas por Shah e Ter-Minassian, voltadas ao aperfeiçoamento dasrelações federativas fiscais em contexto depolítica econômica orientada prioritariamenteao alcance de objetivos relacionados à estabi-lização. O objetivo do artigo é apresentar ecomentar as contribuições teóricas de Oates,Musgrave, Shah e Ter-Minassian, referentesaos temas centrais da questão federativa: au-tonomia, funções fiscais, competências tri-butárias, transferências fiscais e a relevânciada ação coordenadora liderada pelo governocentral. O texto demonstra a complexidadeque envolve o tratamento teórico e as ques-tões vinculadas a políticas federativas e mos-tra a necessidade de aperfeiçoamento per-manente das instituições que presidem asrelações fiscais em contexto federativo, combase em ação coordenadora liderada pelogoverno central.

AbstractThis text presents and comments on the classic

proposals of Oates and Musgrave, relative

to the effort of conforming the profile of the

federative system and the possibilities

of optimizing the tax policy, to the recent

contributions presented by Shah and

Ter-Minassian, focused on the improvement

of the fiscal federative relations in the context

of a guided economic policy concentrated

primarily on reaching the objectives related

to stabilization. The objective of this article

is to present and comment on the theoretical

contributions of Oates, Musgrave, Shah and

Ter-Minassian, referring to the core themes

of the federative issue: autonomy, fiscal

functions, taxing authorities, fiscal transfers

and the relevance of the coordinating action

conducted by the federal government. The text

demonstrates the complexity involved in

the theoretical treatment and the related issues

on federative policies, and shows the need for

continuous improvement of the institutions

that preside over fiscal relations in the federative

context, based on the coordinating action led

by the federal government.

Palavras-chaveeconomia do setor público;finanças públicas; federalismofiscal; políticas públicas.

Classificação JEL H77.

Key words

economics of public sector;

public finance; fiscal federalism;

public policy.

JEL Classification H77.

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1_ IntroduçãoO exercício das funções fiscais alocativa,distributiva e estabilizadora, em tese, po-de ser realizado pelo governo por meiode três formas de organização política:

_ a plena centralização, correspon-dente à forma unitária de go-verno, cujas funções fiscais sãoexercidas exclusivamente pelogoverno central;

_ a absoluta descentralização, mo-delo teórico em que os governoslocais desempenham as compe-tências fiscais;

_ a forma federativa, que combinacompetências centralizadas e com-petências descentralizadas em ummodelo cujas responsabilidadesfiscais encontram-se compartilha-das entre os diferentes níveis degoverno e suas respectivas uni-dades federativas.

Na análise do desenho organizacio-nal mais adequado ao desempenho dasfunções fiscais do Estado, não é conveni-ente pensar em termos de uma dicotomiaentre plena centralização versus extremadescentralização, mas, sim, em desenhosfederativos com diversidade no grau dedescentralização. A análise das experiên-cias históricas de federalismo fiscal indi-ca gradações de descentralização.

Este artigo tem como objetivoapresentar e comentar as contribuiçõesteóricas de Oates, Musgrave, Shah eTer-Minassian, no que se refere aos te-mas centrais relativos ao exercício dasfunções fiscais em contexto federativo,quais sejam: autonomia, funções fiscais,competências tributárias, transferênciasfiscais e a relevância da ação coordena-dora liderada pelo governo central. Aseção 2 analisa os aspectos relaciona-dos à autonomia, a cooperação e a con-corrência no exercício das relações fis-cais federativas. A terceira seção trataas funções fiscais em contexto federati-vo, destacando a análise das competên-cias para o exercício das ações alocati-vas, distributivas e estabilizadora, pornível de governo. A seção 4 discuteas competências tributárias, enfatizan-do os requisitos de um sistema tributá-rio e as possibilidades de exclusividade,concorrência e compartilhamento debases tributárias. A quinta seção abordaas motivações econômicas para realiza-ção de transferências fiscais: externali-dade, compensação e redistribuição. Jáa seção 6 discute os conflitos que po-dem ser gerados na execução das políti-cas fiscais em federações e ressalta aimportância da coordenação lideradapelo governo central.

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2_ Descentralização fiscal:autonomia, cooperaçãoe concorrência

Na organização governamental federa-tiva, o setor público opera por meio demúltiplos centros decisórios (Musgrave eMusgrave, 1980, p. 531), combinando ins-trumentos operados pelo governo centrale outros administrados pelos governossubnacionais. A adoção do federalismofiscal implica distribuição de competên-cias constitucionais fiscais entre os dife-rentes níveis de governo, para que cadaum, de modo autônomo, e na medida desuas competências e capacidade de fi-nanciamento, possa construir desenhosinstitucionais capazes de disciplinar osprocedimentos de contribuição e gestãotributária, transferências fiscais, compo-sição e dimensão da despesa.

A razão econômica central que pre-side o processo de descentralização, ca-racterístico do federalismo, é a otimiza-ção da relação existente entre preferên-cias dos agentes econômicos e o perfildo sistema fiscal, num contexto de pro-dução e consumo em que o sistema depreços não é capaz de gerar informaçõesrelativas às preferências dos indivíduos,isso porque as decisões alocativas do go-verno não são definidas pela lógica daspreferências reveladas nos espaços de

mercado, isto é, do ponto de vista nor-mativo, o mecanismo ótimo de provisãode bens públicos considera as preferên-cias coletivas enquanto o mercado alocaem função das preferências individuais.

A natureza dinâmica do federalis-mo fiscal o faz assumir configurações di-versas ao longo do tempo e no espaço,bem como é produto da interação entre asregras institucionais e a organização e di-nâmica econômica do País. O conceito deinstituições tem por referência a proposi-ção de North (1998, p. 7) segundo a qual:

as instituições constituem as regras do jogo

numa sociedade; mais formalmente, repre-

sentam os limites estabelecidos pelo homem

para disciplinar as interações humanas.

Conseqüentemente, e em compensação, es-

truturam incentivos de natureza política,

social e econômica.

Para Soláns (1977, p. 17), a configuraçãodo federalismo seria resultante da articu-lação entre as regras do jogo, ou etapaconstitucional, e o impacto dessas regrasno sistema econômico, ou etapa funcio-nal. Alterações em um desses elementosgeram conseqüências sobre o desenhofederativo, o que pode resultar em trans-formações no quadro de competênciasem escala nacional ou na capacidade fis-cal para o atendimento das demandasorientadas ao setor público em cada nívelde governo ou unidade federativa.

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As relações fiscais, cooperativasou competitivas são operacionalizadaspor três mecanismos:

_ o primeiro, denominado de verti-cal, refere-se às relações estabe-lecidas entre os três níveis de go-verno – federal, estadual e local –ou entre pelo menos dois dessessegmentos;

_ o segundo, definido como hori-zontal, está associado às relaçõesfirmadas entre unidades federati-vas em um mesmo nível de go-verno, ou seja, entre Estados ouentre municípios;

_ por fim, é identificado o modelomisto, que articula diferentes ní-veis de governo e diversas unida-des federativas.

Essas formas de gestão federativa po-dem ser adotadas como decorrência deimposição institucional ou como produ-to da livre decisão entre as partes, combase no julgamento de que ações resul-tantes do esforço cooperativo ou compe-titivo podem conduzir à otimização dosretornos esperados pelas unidades fede-rativas envolvidas no processo.

3_ Funções fiscaisem contexto federativo

Nos Estados politicamente organizadosem sistemas federativos, as diversas uni-

dades federadas dividem a responsabili-dade pela gestão das funções alocativas,distributivas e estabilizadoras. A princi-pal questão relativa à organização do sis-tema fiscal é a definição clara e precisa decompetências que devem ser atribuídas acada nível de governo, isto é, o grau deautonomia capaz de permitir o alcancede uma situação Pareto-eficiente.

No que diz respeito à função alo-cativa, a autonomia, sob o ponto de vistateórico-normativo, deve ser compartilha-da entre os diferentes níveis de governo ediferentes unidades federadas, segundo ograu de correspondência entre as prefe-rências relativas à contribuição tributáriae à cesta de bens produzidos pelo setorpúblico das comunidades componentesde cada jurisdição. Essa diversidade depreferências é o fator que explica a multi-plicidade de unidades fiscais, ou seja, é odeterminante econômico da opção porum governo federativo em detrimentode um governo unitário. Esse desenho,em tese, permite a maximização do bem-estar dos indivíduos residentes em cadauma das jurisdições.

O modelo ótimo é aquele que per-mite perfeita correspondência entre a ofer-ta de bens pelo setor público e o perfil dedemanda dos agentes econômicos quecompõem uma comunidade. Para o al-cance teórico desse cenário, Oates (1977,p. 56) enumera nove pressupostos:

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_ produção governamental restritaa bens públicos puros;

_ número “n” de bens públicos pro-duzidos;

_ conjunto de bens restrito a umconjunto geográfico específico;

_ perfeita correspondência entre agru-pamentos geográficos e preferên-cias individuais;

_ igualdade no consumo individualentre membros de uma mesmacomunidade;

_ ausência de externalidades;_ ausência de custos de tomada de

decisão;_ ausência de mobilidade individual

entre jurisdições;_ estabilidade de preços e pleno

emprego.

O modelo ideal prevê que a forma federa-tiva maximizadora de bem-estar é aquelaem que a provisão e o financiamento dosbens são realizados valendo-se de jurisdi-ções constituídas em número e espaçosproporcionais aos grupos populacionaiscom idênticas preferências fiscais. O finan-ciamento é ordenado, conforme o “prin-cípio do benefício”, segundo o qual cadaindivíduo contribui de acordo com o bem-estar obtido pela cesta de bens ofertados.

Em síntese, o conteúdo do Teore-ma da Descentralização de Oates (1977,

p. 59) afirma que há maximização da efi-ciência econômica da ordenação fede-rativa fiscal alocativa, sempre que for ob-servada perfeita correspondência entreas ações do governo e a preferência dosgrupos que o financiam. O governo cen-tral deve responder pela provisão de benscujo consumo seja uniforme, em termosde preferência e em termos de quantida-de individual demandada em todo o ter-ritório federativo. Os governos estaduaisassumiriam a responsabilidade pela pro-visão de itens com preferências regio-nais, e os governos locais responderiampelos bens cujo perfil da demanda fosseespecifico de uma localidade.

O modelo teórico ideal, que ga-rante suporte ao “Teorema da Descen-tralização”, precisa ser ponderado quan-do da realização de estudos orientadosà resolução efetiva de um problema eco-nômico. Os desenhos federativos real-mente existentes envolvem elementos queampliam a complexidade do fenômeno;entre eles merecem especial atenção:

_ as questões relativas a cesta debens provisionados pelo setorpúblico, que envolva bens pú-blicos puros, bens públicos mis-tos e bens meritórios;

_ assimetria nas preferências e nasquantidades demandadas pelos

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membros de uma mesma co-munidade;

_ mobilidade dos indivíduos entrediferentes jurisdições;

_ custos de tomada de decisão;_ externalidades positivas ou ne-

gativas,_ observância de economias de escala.

Fenômenos em que uma mudança naquantidade produzida ou na quantidadede indivíduos consumidores gera efeitossobre os custos proporcionais associa-dos, respectivamente, sobre a produçãoou sobre o consumo de um bem.

A plena mobilidade de indivíduosentre jurisdições, nos moldes admitidospelo modelo de Tiebout (1956, p. 416-424), abre a possibilidade de ocorrênciade fenômenos de “congestionamento”;isso ocorre quando há desproporção en-tre a quantidade de bens ofertados e ovolume da demanda efetiva, sendo estaúltima maior que a primeira. Esse fenô-meno produz duas conseqüências:

_ exclusão de parte dos indivíduosdo processo de consumo;

_ perda parcial da satisfação daquelesconsumidores que permanecemdispondo do bem, porém, fazem-no em condições insatisfatórias.

A existência de custos financeiros, de-correntes dos processos políticos de ma-

nifestação de preferências e da necessi-dade de um suporte administrativo paraque o poder público possa arrecadar osrecursos tributários e provisionar os bensdemandados pela comunidade, acarretarestrições quanto ao número de jurisdiçõese ao número de bens, cuja oferta deve sercoordenada diretamente pelo governo.

A combinação entre a presença deeconomias ou deseconomias de escala e aplena mobilidade de indivíduos agregauma dificuldade adicional à construçãodo desenho federativo maximizador, ouseja, a montagem de um tamanho ótimopara cada unidade produtiva nem sempreé compatível com o tamanho das comu-nidades existentes. Por fim, cabe mencio-nar que a inclusão de novas variáveis reaisno modelo inicialmente proposto agregacomplexidade à definição do desenho óti-mo do federalismo fiscal, tornando o no-vo modelo mais próximo de uma “cor-respondência imperfeita” (Oates, 1977,p. 56), entre ações de arrecadação e pro-visão dos recursos públicos e as prefe-rências individuais dos membros de cadaunidade federativa.

No que diz respeito à função dis-tributiva, o modelo de descentralizaçãodo tipo “correspondência perfeita”, apre-sentada por Oates (1977, p. 56), pressu-põe a perfeita distribuição da renda e o

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pleno uso dos fatores. O modelo de “cor-respondência imperfeita”, também ela-borado por Oates, rompe com essespressupostos e introduz a função fiscaldistributiva no desafio de construção deum modelo federativo ótimo.

As economias de mercado obser-vam padrões de organização e dinâmicade acumulação, cujas variações cíclicasrepresentam uma característica central ecujo pleno emprego, quando observado,representa apenas um momento desse ci-clo. Por outro lado, os espaços corres-pondentes às diferentes regiões de umafederação dispõem de especificidades nopadrão de organização e na dinâmicaeconômica, que implicam diferenças nospadrões regionais de desenvolvimento egeram desigualdade nas oportunidades epossibilidades de escolha ou manifesta-ção de preferências entre indivíduos, re-giões e setores produtivos. Esse cenáriodesigual demanda ações econômicas com-plementares de iniciativa do setor públi-co governamental orientadas a promo-ção da redução das diferenças regionais,setoriais e em termos de renda e qualida-de de vida dos indivíduos.

A ação governamental orientada apolíticas redistributivas processa-se pri-mordialmente por intermédio da políticafiscal, ainda que políticas monetárias e

cambiais também exerçam impactos so-bre as rendas individuais e regionais. Emsíntese, a política fiscal redistributiva po-de ser implementada pela operacionali-zação de três instrumentos, a saber:

_ a progressividade do sistema tri-butário;

_ o direcionamento das transferên-cias fiscais intergovernamentais;

_ o perfil da cesta de bens provisio-nados pelo governo.

A progressividade do sistema refere-se àaplicação de carga tributária com alíquotasque crescem de forma mais que proporcio-nal em relação ao crescimento da renda.Isso produz um quadro de contribuiçõestributárias no qual os que dispõem demaior renda contribuem com parcela rela-tivamente maior, quando comparado aosrecebedores de rendas menores.

Pela ótica da despesa, os progra-mas redistributivos podem ser operacio-nalizados por meio de dois mecanismos.Primeiro, a definição da composição dacesta de bens produzidos pelo governo,maior quantidade de bens destinados aoconsumo das populações de renda infe-rior tende a implicar transferências de re-cursos em forma de produtos e serviços.Segundo, por meio de transferências di-retas para as populações de renda maisbaixa, de forma a possibilitar que os indi-

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víduos beneficiados possam realizar suaspróprias escolhas, ou seja, possam dispordos recursos segundo suas próprias pre-ferências. Essas ações são identificadascomo tarefas primordialmente destina-das ao governo central do Estado federa-tivo, por demandarem procedimentos emescala nacional e grau e uniformidade ca-pazes de eliminar possibilidades de deslo-camento espacial dos fatores produtivos.Ações dessa natureza, quando adotadaspor governos subnacionais, num quadrode ampla mobilidade de fatores, podem serneutralizadas, segundo Musgrave (1980,p. 540), por dois movimentos:

_ o deslocamento de famílias de bai-xa renda para a jurisdição gestoradas transferências;

_ a busca por outras jurisdições porparte dos indivíduos e das uni-dades produtivas, detentoras dealto padrão de renda, à procurade menor custo tributário.

As políticas redistributivas são tra-tadas pela teoria do federalismo fiscal co-mo políticas preferencialmente nacionais.Ações locais, num cenário de mobilidadede fatores, tendem a alterar preferênciaslocalizacionais e produzir decisões inefi-cientes ao conjunto do sistema econô-mico. A participação de governos sub-nacionais em ações distributivas é desejá-

vel em circunstâncias especiais, quandoas restrições supramencionadas não fo-rem verificadas, criando, com isso, a pos-sibilidade da adoção de medidas eficien-tes e eficazes.

As transferências às famílias reali-zadas pelo governo central com objeti-vo redistributivo não devem ser conside-radas no âmbito das transferências fis-cais intergovernamentais, dado que nãopossuem natureza econômica associadaao ordenamento fiscal federativo. Cabemencionar que, não obstante as restri-ções teóricas, os governos subnacionaisdispõem de autonomia para execução depolíticas redistributivas e o fazem comêxito em muitas circunstâncias.

No que diz respeito à função esta-bilizadora, o modelo federalista fiscal deOates (1977, p. 56), centrado na corres-pondência perfeita ou identidade ótimaentre as preferências da comunidade eas ações e os custos associados ao setorgoverno, admite, como estratégia sim-plificadora, um cenário de plena estabi-lidade econômica. A eliminação dessepressuposto permite incorporar à análiseos efeitos da instabilidade econômica nojogo federativo, configurando um mode-lo de correspondência imperfeita, con-forme descrito pelo próprio Oates. Esseexercício teórico abre espaço para a in-

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corporação e a análise da função fiscalestabilizadora na construção do modeloótimo do desenho federativo.

A variável “instabilidade de pre-ços e emprego” é adicionada por Mus-grave e Musgrave (1980, p. 541) à análisefederativa, com o objetivo de discutir opapel dos níveis de governo nas açõesgovernamentais orientadas para a buscade maior estabilidade nos ciclos de negó-cios, ou seja, variações de curto prazodos indicadores macroeconômicos em tor-no das tendências de crescimento asso-ciadas a movimentos de longo prazo.A função estabilizadora é considerada,assim como as ações distributivas, comocompetência priordial da esfera central degoverno, em razão dos requisitos neces-sários à obtenção de eficiência e eficácia.

As ações fiscais estabilizadoras,numa perspectiva keynesiana, são opera-cionalizadas principalmente pela mani-pulação governamental do gasto público.Desse modo, uma tendência de baixa nociclo de negócios seria enfrentada comouma ação contracíclica, centrada no au-mento dos gastos públicos e ou na redu-ção da carga tributária, de forma a incre-mentar o nível de atividade da economia.Uma tendência de alta no nível de ativi-dade permitiria uma retração no gastopúblico e/ou aumento da carga tributá-

ria, de forma a reduzir a demanda agre-gada e evitar pressões sobre o nível depreços (Carvalho et al., 2000, p. 192).

As políticas fiscais orientadas à es-tabilização, sejam elas restritivas, sejamexpansionistas, quando adotadas isolada-mente pelos governos subnacionais, aca-bam parcialmente anuladas pelos efeitosde transbordamento, decorrentes da am-pla mobilidade de fatores entre jurisdi-ções de um mesmo Estado federativo.Musgrave e Musgrave (1980, p. 541) afir-ma que as ações de política fiscal de na-tureza expansionista tendem a perdereficiência e eficácia por meio dos trans-bordamentos comercias; os aumentosdos gastos locais seriam parcialmentetransferidos para outras jurisdições viacompra de mercadorias e serviços. Asações restritivas tenderiam a reduzir a de-manda e a pressionar os preços para bai-xo, gerando incentivos sobre demandasoriundas de outras comunidades fiscaisdo mesmo universo federativo. Nos doiscasos, os esforços desenvolvidos unila-teralmente por uma unidade federativaseriam parcialmente neutralizados, ge-rando ineficiências econômicas. Esse é oargumento central utilizado por Oates(1977, p. 55) para fundamentar teorica-mente a delegação, ao governo central, dascompetências associadas à estabilização.

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As participações de governos sub-nacionais em ações estabilizadoras são de-sejáveis; porém, tais esferas devem adotarprocedimentos articulados e coordenadospelo governo central, para que possam ge-rar efeitos positivos. Regras definidorasde condutas fiscais, nos moldes da Lei deResponsabilidade Fiscal – LRF brasileira –,representam esforço de normatizaçãode procedimentos das unidades federa-tivas, dos diferentes níveis de governo,objetivando a otimização das ações depolítica econômica orientadas à estabili-zação; isso implica custos em termos deperda de autonomia das unidades fede-radas, dado os limites impostos à con-dução da política fiscal.

4_ Descentralização fiscale competências tributárias

A constituição de um sistema tributárioótimo, nos termos propostos por Musgra-ve e Musgrave (1980, p. 178), deve atendera pelo menos seis requisitos básicos:

_ eqüidade horizontal e vertical doencargo tributário;

_ neutralidade, ou seja, minimizaçãode interferência nas decisões alo-cativas dos agentes econômicos;

_ correção das ineficiências apresen-tadas pelo mercado;

_ adequabilidade aos objetivos de es-tabilização e crescimento;

_ transparência;_ minimização dos custos adminis-

trativos associados ao sistema.

O conceito de eqüidade é compre-endido como a igual distribuição do ônustributário entre o universo de contribuin-tes de acordo com critérios que reconhe-çam as suas diferenças em termos de ca-pacidade de pagamento. Esse princípioadmite duas leituras:

_ uma horizontal, que trata da igual-dade entre indivíduos com mes-ma capacidade contributiva, o quepressupõe o mesmo montante detransferência monetária aos co-fres públicos;

_ outra vertical, que reconhece asdiferenças relativas à capacidadecontributiva dos indivíduos e su-gere a diferenciação no montan-te da contribuição dos agenteseconômicos ao erário público.

O tratamento conceitual da eqüidade apre-sentado neste texto considera que teori-camente o sistema tributário está fun-damentado no “princípio da capacidadecontributiva”, isto é, cada indivíduo con-tribui segundo sua capacidade de paga-mento. Nesse caso, não há associação di-reta entre a cesta de consumo de bens

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ofertados pelo governo e a contribuiçãotributária, ainda que, indiretamente, a ca-pacidade contributiva do conjunto da co-munidade implique restrições à dimensãoe à qualidade dos bens ofertados pelo se-tor governo. A capacidade de pagamentoestá associada a três macroindicadores:

_ os fluxos de renda;_ os fluxos de consumo;_ o estoque de riqueza.

Atenção especial deve recair sobre as di-vergências entre incidência legal e inci-dência econômica; esta última é observa-da após o processo de ajustamento viatransferências de encargos, em busca deproteção contra o ônus tributário.

Outro requisito desejável ao siste-ma tributário é a neutralidade, a não-inter-ferência ou a minimização da interferên-cia dos tributos nas decisões alocativasrealizadas pelos agentes econômicos. Aintrodução de um tributo no sistema pro-dutivo pode produzir desequilíbrios depreços relativos e com isso provocar dis-torções no sistema informacional con-figurado no espaço de mercado, condu-zindo os agentes a decisões ineficientesdo ponto de vista da maximização dosretornos esperados. O requisito da neu-tralidade admite a observância do efeito-renda, ou seja, a redução do consumo de-corrente da redução na renda disponível

sem alteração dos preços relativos, masrejeita o efeito-substituição, a mudançana cesta de consumo decorrente de ajus-tamentos realizados pelos agentes eco-nômicos na busca de redução dos custostributários. Este último efeito é geradorde desequilíbrios sobre os preços relati-vos e compromete a eficiência do siste-ma de trocas (Oates, 1977, p. 166).

A correção das ineficiências apre-sentadas pelo mercado é outra caracterís-tica identificada como positiva. O tributotende a contribuir para a otimização dosistema econômico sempre e na propor-ção em que for capaz de corrigir falhas demercado, sejam elas relativas a externali-dades, ao perfil distributivo, sejam elasrelativas a qualquer outra natureza. Aqualidade do sistema de tributos deve es-tar orientada não apenas à alocação efi-ciente, mas, também, à capacidade deproduzir resultados compatíveis com osoutros objetivos desejados e necessáriosao bom funcionamento do sistema eco-nômico: estabilização dos níveis de pre-ço e emprego, crescimento econômicoe distribuição do bem-estar gerado peloesforço produtivo entre indivíduos, re-giões e setores econômicos. Outras ca-racterísticas otimizadoras são o graude transparência nas regras que discipli-nam o sistema tributário e nos efeitos

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produzidos pelos tributos, um a um, e aeficiência do processo de gestão da es-trutura administrativa competente paradesenvolver as tarefas de arrecadação egestão da receita.

Cabe mencionar a necessidade deharmonização do sistema tributário, oque implica não apenas a estabilidade, asimplicidade e a uniformidade das regras,mas, especialmente, a compatibilidadeentre o perfil da estrutura tributária fede-rativa e o grau de mobilidade dos fatores.Essa mobilidade não se restringe mais aouniverso intranacional. O mesmo pro-cesso é observado, em relevância cres-cente, em escala supranacional, especial-mente dentro do espaço geográfico dosblocos econômicos regionais. Afonso eAraújo (2000, p. 143) afirmam que, nessaescala territorial, a ausência de harmoni-zação entre os desenhos tributários dasnações e entre estes e a dinâmica de inte-gração regional acaba por gerar distor-ções competitivas prejudiciais à dinâmicaeconômica dos países membros.

Tais objetivos nem sempre são com-patíveis, o que provoca a existência deconflitos e a necessidade de fazer opções,de acordo com os objetivos definidos co-mo prioritários no âmbito da elaboraçãode políticas públicas de natureza fiscal.Observando o Estado federativo, verifica-

se, como desafio adicional, a definição dascompetências tributárias entre os níveis degoverno, isto é, o grau de autonomia para oexercício das ações tributárias, dadas as res-trições de custos consideradas como ad-missíveis pelo sistema econômico.

Ao analisar a tributação em am-biente federativo, Ter-Minassian (1997,p. 9) sugere, como recomendação de po-lítica, que a distribuição de competênciasentre diferentes níveis de governo deveobedecer aos seguintes critérios:

i. submissão à competência federaldos tributos que apresentem pelomenos um dos seguintes requi-sitos: alta mobilidade da base dearrecadação; isso porque a ado-ção desses por governos subnacio-nais poderia implicar a induçãoaos deslocamentos inter-regionaisdos fatores de produção, comcustos de eficiência para o con-junto da Federação; forte sensi-bilidade a mudanças no nível decrescimento da economia, ou seja,grau acentuado de elasticidade-renda; esse tipo de tributo repre-senta um relevante instrumentode ação da política de estabiliza-ção; bases de arrecadação rele-vantes e distribuídas irregular-mente entre as diversas regiões e

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unidades federadas, dado que adescentralização de tributos comesse perfil acentua o grau de assi-metria inter-regional; ou tributosincidentes sobre o comércio ex-terior – importação e exporta-ções – por sua importância con-quanto instrumento regulador dastrocas externas e sua influênciasobre a balança comercial;

ii. submissão à competência das es-feras subnacionais de governo,dos tributos que apresentem bai-xa mobilidade da base de inci-dência ou tributos do tipo taxaspor serviços públicos prestadosà comunidade.

A distribuição de competências tri-butárias no cenário federativo admite, se-gundo a teoria (Rezende e Lobo, 1985,p. 34), pelo menos três regras institucio-nais distintas, que podem ou não ser ado-tados de forma articulada, conforme abase tributária de referência; são elas:

_ a competência concorrente;_ a competência compartilhada;_ a competência exclusiva.

As competências concorrentes existem quandodiferentes níveis de governo dispõem deautonomia para estabelecer regras impo-sitivas sobre mesma base de incidência,podendo até fixar alíquotas e definir

isenções. O aspecto concorrencial podeser absoluto ou relativo, e as experiênciasinstitucionais apontam para esta últimaforma, de modo que a liberdade de ges-tão fiscal de cada nível de governo é dis-ciplinada por legislação. As competências

compartilhadas representam desenhos tri-butários cujos níveis de governo divi-dem, por mecanismos de transferênciascompensatórias, o produto da arrecada-ção obtida sobre determinada base de in-cidência, tomando por referência crité-rios previamente definidos em legislaçãoespecífica. Esse modelo permite maiorprecisão e velocidade no processo de co-ordenação fiscal exercido pelo governocentral. Finalmente, temos a figura dacompetência tributária exclusiva, em que cadanível de governo possui exclusividade paraexercer a tarefa impositiva sobre determi-nada base arrecadatória. Nesse caso, osdesequilíbrios fiscais são corrigidos portransferências intergovernamentais, viamecanismos do tipo “fundos públicos”.

O cenário de competências fiscaisfragmentadas entre os diversos níveis degoverno demanda esforços orientados àmelhoria do grau de harmonização fiscal.A superação dos problemas associados àdefinição das competências dos níveis degoverno não pode ocorrer pela simplesmontagem de uma matriz que relacioneserviços e esfera de governo. Como bem

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afirmou Prud’homme (1985, p. 218), odesafio central está na determinação dodesenho cooperativo, capaz de otimizaros esforços produtivos do setor público.

5_ Transferênciasfiscais intergovernamentais

O modelo tipo correspondência perfeitaidealizado por Oates (1977, p. 56), pres-supondo perfeita correlação entre pre-ferências comunitárias, base tributária,capacidade de financiamento, perfeita dis-tribuição de renda e eficiência tributáriapor comunidade, não dispõe de suporteempírico. A economia real não reservaespaço para a correspondência ideal en-tre distribuição de encargos previamentedefinidos e a distribuição de capacidadede financiamento. Oates (1977, p. 80)também desenvolveu o conceito de cor-respondência imperfeita, admitindo, co-mo o próprio termo sugere, imperfeiçõesnas relações entre área de benefício, uni-verso de preferências, mobilidade defatores produtivos e pessoas, base de fi-nanciamento e capacidade de financia-mento. Esse cenário demanda adoção demecanismos de transferências fiscais in-tergovernamentais, capazes de corrigirfalhas e reduzir imperfeições do sistema.Pelo menos três fatores justificam a exis-

tência de repasses financeiros horizon-tais e verticais entre unidades federadas,para que essas possam fazer frente aosencargos de suas respectivas competên-cias, quais sejam:

_ externalidades;_ compensações;_ redistribuição de renda (Oates,

1977, p. 101).

O “motivo externalidades” estáassociado à correção dos custos ou bene-fícios, gerados pelos efeitos externos queo sistema econômico de uma jurisdiçãoexerce sobre outras. São pagas indeniza-ções ou subsídios, conforme seja a natu-reza da externalidade, respectivamente,negativa ou positiva. A imposição de pa-gamento indenizatório ou o recebimentoem forma de subsídios funciona comosinalização orientada, respectivamente, àinibição ou ao incentivo do desenho pro-dutivo gerador da externalidade. O “mo-tivo compensação” está relacionado ànecessidade de mecanismos tributários,cuja arrecadação, por razões de eficiênciaeconômica, precisa ser realizada por ju-risdições com abrangência estadual oupelo governo central. Essa configuraçãoobriga a esfera arrecadadora a realizartransferências com o objetivo de com-pensar regiões tributadas e viabilizar osgastos dos respectivos governos. A de-

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volução total ou parcial dos recursos per-mite aos agentes econômicos geradoresdo esforço tributário maior autonomiapara a realização das escolhas e maiorpossibilidade de correspondência entrepreferências e provisões públicas. Por fim,temos a “motivação redistribuição” vin-culada a objetivos orientados à reduçãodas diferenças fiscais entre unidades fe-derativas, derivadas dos diferenciais rela-cionados ao grau de desenvolvimento daatividade econômica, à dimensão da basetributária, aos custos de produção e aoperfil da demanda por bens cuja provisãoé de responsabilidade do setor governo.

As transferências fiscais intergover-namentais podem ser operacionalizadaspor intermédio da combinação de diversosinstrumentos de repasse. Ter-Minassian(1997, p. 11) propõe um modelo compos-to por duas vertentes principais: cotas econcessões, cada uma com detalhamen-tos específicos. As transferências por co-tas (revenue sharing) são previamente deter-minadas por dispositivos constitucionaisou leis ordinárias, podem estar associa-das a um imposto específico ou a mon-tantes disponíveis em fundos públicosconstituídos por recursos com origemtributária diversificada. A composiçãodas cotas pode estar orientada a duas fi-nalidades: compensatória e redistributiva.

A primeira ocorre quando o repasse é rea-lizado com o objetivo de devolver re-cursos de uma base tributária específica,cuja arrecadação se processou no territó-rio da jurisdição beneficiada, ainda queessa não tenha assumido a responsabili-dade pela operacionalização da arrecada-ção. A segunda finalidade assumida peladistribuição por cotas refere-se a açõesde natureza redistributivas. Nesse caso,os recursos são repassados segundo cri-térios que guardam uma relação inversa-mente proporcional à renda e diretamenteproporcional à população e a indicadoresde carências associados à disponibilidadede bens públicos ou meritórios.

As transferências por concessões(grants) estão vinculadas à execução depolíticas públicas setoriais e independemde previsão legal específica; nesse caso,as unidades transferidoras dispõem deautonomia para decidir sobre o montan-te e os requisitos necessários ao creden-ciamento para recebimento dos recursos.A realização de repasses dessa naturezadepende de acordos negociados entre uni-dades federativas de governo e podemdepender de condições impostas pela es-fera repassadora, relacionadas à perfor-mance da unidade solicitante na gestãode programas específicos ou de critériosde arrecadação, endividamento e trans-

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parência da gestão fiscal. As transferênciasdo tipo grants não guardam relação diretacom os motivos – externalidade, compen-sação e redistribuição federativa –, por-tanto possuem natureza fiscal federativa.

6_ Descentralização fiscal,conflitos e necessidadede coordenação

Os conflitos de natureza fiscal são gera-dos com base em duas fontes principaisde divergências: a primeira refere-se àscontradições entre funções; nesse caso, ouso de instrumentos disponíveis e orien-tados ao alcance dos objetivos pretendi-dos a uma função A acaba por provocarrestrições ao alcance dos objetivos dese-jados a outras funções B e C. A literaturasugere conflitos entre: alocação eficien-te dos recursos e distribuição justa dosresultados do crescimento econômico;distribuição e estabilização do nível depreços sob condições adequadas de em-prego; e alocação e estabilização. A outrafonte de importância relevante à geraçãode conflitos fiscais é a adoção de políticasorientadas a objetivos totais ou parcial-mente opostos pelos diversos segmentosgovernamentais em unidades federativasestaduais. Em especial, aqueles vincula-dos à arrecadação, a transferências, a in-

centivos fiscais, a gasto público e à con-tratação e gestão do endividamento pú-blico dos governos subnacionais.

A literatura especializada recentetem observado com freqüência que oprincipal ponto de conflito fiscal em sis-temas políticos federativos reside nas di-vergências entre o esforço de estabiliza-ção desenvolvido pelo governo central eo modelo de descentralização fiscal exis-tente. Esse diagnóstico tem merecido ên-fase especial na análise da realidade bra-sileira pós-1988 (Shah, 2000, p. 83).

Ao analisar a necessidade da coorde-nação e harmonização fiscal, Tanzi (1988,p. 16) aponta para duas razões principais:

_ a primeira se refere ao acentuadograu de interdependência das uni-dades federativas, dada a abertu-ra e plena mobilidade de fatoresentre os diferentes espaços eco-nômicos de abrangência local ouregional;

_ a segunda observa que tal motiva-ção está fundamentada nas trans-missões de externalidades, posi-tivas ou negativas, geradas emcada um desses subsistemas eco-nômicos subnacionais.

Os quatro elementos fundamen-tais à coordenação-harmonização, segun-do Ter-Minassian (1999, p. 56-59) e Shah(2000, p. 96), são:

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_ clareza na definição da destinaçãodas receitas e responsabilizaçãodos gastos governamentais;

_ mecanismos de transferências comregras claras, estáveis e transpa-rentes;

_ incentivo ao esforço fiscal;_ fixação de regras limitadoras do en-

dividamento dos governos centrale subnacionais.

A transparência e a precisão na definiçãode competências associadas à realizaçãoda captação de recursos necessários ao fi-nanciamento do setor público e ao de-senvolvimento dos programas setoriaisde atendimento das solicitações comuni-tárias são essenciais ao perfeito esclareci-mento das ações governamentais, quantoà natureza da competência – exclusiva,compartilhada ou concorrente. Esses re-quisitos, quando plenamente atendidos,tendem a evitar desperdícios de recursosem ações exercidas, concomitantemente,por diferentes esferas de governo, ou aimpedir custos sociais derivados da au-sência de atuação governamental em de-terminados segmentos de política. Poroutro lado, a clareza na responsabiliza-ção pela administração dos recursos faci-lita as ações de controle exercidas pelasociedade e aumenta a possibilidade deobtenção de eficiência na gestão fiscal.

As transferências são essenciais aoalcance da eficiência tributária e à com-plementação das disponibilidades finan-ceiras necessárias aos governos subna-cionais, para que possam fazer frente àssuas competências provisionais, especial-mente em federações com forte assime-tria fiscal. No entanto, o desenho dastransferências deve estar pautado em trêsrequisitos, quais sejam:

_ associação entre custos tributários ebenefícios gerados pela provisãode bens públicos por comunidade,resguardadas as necessidades detransferências redistributivas;

_ mecanismos e critérios de transfe-rências compatíveis com os obje-tivos desejados e incentivos aoalcance de metas fiscais, por exem-plo: esforço de arrecadação – arelação entre a arrecadação efeti-va e a arrecadação potencial per-mite mensurar o grau de eficáciadas administrações tributárias;

_ equilíbrio fiscal, ou mesmo metassociais que podem estar ligadas aíndices como o de alfabetizaçãoou o de mortalidade infantil.

O primeiro requisito demanda um esfor-ço de coordenação entre funções, de for-ma a compatibilizar interesses alocativos,estabilizadores e distributivos. O segun-

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do impõe a construção de um desenhoinstitucional capaz de garantir ações ge-renciais coordenadas e complementaresentre União, Estados e municípios no es-forço dirigido à construção do bem-estarsocial. Por fim, mas não menos importan-te, observamos a demanda por gestõesfiscais pautadas no equilíbrio orçamentá-rio, como forma de evitar a constituiçãode déficits e dívidas públicas geradoras deefeitos negativos intergeracionais e incom-patíveis com o crescimento sustentado eequilibrado do conjunto da federação.

A gestão fiscal dos governos sub-nacionais, quando não está pautada noequilíbrio orçamentário, pode gerar duasconseqüências negativas diretas sobre oesforço de estabilização (Riogolon e Gi-ambiagi, 1999, p. 122-123). A primeirarefere-se à geração de déficits fiscais e assuas transferências para a esfera federalde governo, que, em última instância,tende a garantir a solvência dos créditosassumidos por Estados e municípios. Asegunda conseqüência é observada quan-do bancos públicos vinculados a gover-nos subnacionais praticam empréstimospautados em demandas políticas, sem sus-tentabilidade financeira, e acabam sendoobrigados a recorrer às reservas bancá-rias ou a outros mecanismos de liquidezda autoridade monetária, para bancar

suas obrigações contratuais, o que cau-sa efeitos negativos sobre a gestão dapolítica monetária.

Pelo menos três mecanismos decontrole são importantes para o alcance dagestão fiscal equilibrada dos governos sub-nacionais (Ter-Minassian, 1997, p. 60-62):

_ a submissão dos governos regio-nais e locais ao mercado de cré-dito privado e as suas regras deconcessão de recursos e avalia-ção de riscos;

_ o controle direto do governo cen-tral sobre as esferas governamen-tais subnacionais, via autorizaçãopara a realização do empréstimoe monitoramento dos recursosobtidos;

_ regras institucionais formais disci-plinadoras dos limites e das con-dições de acesso do setor públicoàs linhas de crédito, opção seme-lhante à lei Gramm-Rudmam-Hollings Act, adotada nos Es-tados Unidos da América paradisciplinar a gestão fiscal dos go-vernos da federação americana.

Este último mecanismo de controle apre-senta como vantagens a redução do nívelde conflito federativo, derivado da lutapolítica pela contratação de empréstimos,e a garantia de maior estabilidade e trans-parência na gestão fiscal sustentável.

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7_ Considerações finaisA leitura dos argumentos expostos nodebate teórico permite a apresentação dealgumas considerações finais sobre os as-suntos comentados neste texto, sem pre-tensão de esgotar o universo de possibili-dades conclusivas tampouco de definiressa perspectiva de análise como únicocaminho possível para a compreensão eadequada interpretação das ações econô-micas do setor público.

A participação do Estado é rele-vante para suprir as falhas de mercado,estabelecer, fornecer e fiscalizar o consu-mo de bens meritórios, e atender às de-mandas de caráter normativo associadasà mudança no perfil distributivo dos ren-dimentos gerados no processo produti-vo. As ações associadas à orientação alo-cativa exercida pelo mercado e a adoçãodos instrumentos de que dispõe o Esta-do para atuação na esfera econômica de-vem ser adotadas de maneira articulada ecomplementar, de forma a permitir a cons-trução de um processo de coordenaçãoótima do processo produtivo.

Os instrumentos fiscais, monetá-rios e cambiais de que dispõe o Estadopara exercer ações no campo da políticaeconômica devem ser programados e ope-racionalizados de modo articulado e com-plementar. A sustentabilidade das ações

econômicas do setor público guarda for-te relação com a devida compatibilidadeentre os instrumentos adotados e entreesses e os objetivos pretendidos pelosformuladores de política. Em economiasem que a forma de operacionalização dapolítica fiscal é processada de maneiradescentralizada, por meio de múltiploscentros decisórios, é desejável que asações fiscais dos entes federados primempela cooperação sempre que esse proce-dimento for adequado à maximização daeficiência na utilização dos recursos.

Outra demanda relevante em sis-temas federativos é a necessidade de co-ordenação das ações fiscais das unidadesfederadas subnacionais pelo governo cen-tral, para permitir a minimização de ex-ternalidades fiscais, como, por exemplo,as derivadas da geração de déficits e daconstituição de dívidas pelo setor governo,dado que, em grande parte desses eventos,os benefícios recaem sobre determinadacomunidade fiscal local ou regional, e oscustos acabam socializados pelo conjuntoda comunidade fiscal nacional.

Também se faz necessário men-cionar a necessidade de adoção de crité-rios de transferências de receitas entreunidades federadas, destinadas a:

_ realizar compensações por contri-buições tributárias a jurisdições de

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maior abrangência territorial, dadoos maiores custos operacionais daoferta de serviços públicos;

_ realizar compensações por exter-nalidades geradas no processoprodutivo, em especial os custosambientais transferidos entre uni-dades federadas;

_ satisfazer demandas normativasassociadas ao cenário distributi-vo entre regiões ou mesmo entreesfera de governo.

Quanto ao último item mencionado, ca-be destacar os limites das contribuiçõesteóricas analisadas neste texto no trato dedesenhos fiscais federativos em paísesque apresentam fortes indicadores de de-sigualdade regional.

Por fim, cabe mencionar que a de-limitação em termos de contribuiçõesteóricas observadas por este texto nãoimplica a desconsideração de relevantescontribuições apresentadas por autoresque desenvolvem trabalhos sob a óticada teoria das escolhas públicas e da novaeconomia institucional no tratamento dequestões econômicas que envolvem de-cisões políticas. A não abordagem dessascontribuições se deve especificamente àsdelimitações de tamanho impostas a umtexto dessa natureza e ao reconhecimen-to de que essas escolas merecem trata-

mento específico e minucioso, dada a ri-queza de contribuição que podem agre-gar à análise dos problemas relacionadosao federalismo fiscal.

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Referências bibliográficas

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