Semiotics And Marguerite Duras

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE LÍNGUA E LITERATURA FRANCESA POÉTICA DA POROSIDADE Semiótica plural e música em India Song de Marguerite Duras Maurício Oliveira Santos Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Língua e Literatura Francesa, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Véronique Marie Braun Dahlet São Paulo 2006

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Semiotics And Marguerite Duras

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

    PROGRAMA DE LNGUA E LITERATURA FRANCESA

    POTICA DA POROSIDADE Semitica plural e msica em India Song

    de Marguerite Duras Maurcio Oliveira Santos

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Lngua e Literatura Francesa, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Letras.

    Orientadora: Prof. Dr. Vronique Marie Braun Dahlet

    So Paulo 2006

  • Ao meu pai, que me ensinou o valor da liberdade. minha me, que me ensinou a inventar as coisas que eu sei.

  • Agradecimentos A Vronique Dahlet, que com tanto carinho acolheu, apoiou e orientou cada momento deste trabalho. Pati, por tudo, tudo, tudo: sabe l quanto desta tese pertence a voc... A Jorge Lescano e Flo Menezes, pela generosidade. Aos professores Slvio Ferraz, Marcos Mesquita, Diva Brbaro Damato, Christian Doumet e Haroldo Outa. Ao Juca, maestro Dudu, Raiane, Rni e Marilda, pelos coraes abertos. A Jos-Andrs Murillo, el compay, e ao Primo, companheiros de todos os dias. A Maya les promenades , Dagmara les dialogues et Nina le jogging. A B, Moara, Lenuts, Cris Ceschi e Pati Cabral, minhas irms, que me acolheram em suas casas. Cris Toledano, pelos poemas e tudo o que eles abrem. A Paulo e Suzana, pelas idias e a cachaa sempre espera, Grudinei e Lia, amigos queridos, Las e Cicinho, os cumpdis. Ao meu I-Book, in memoriam, companheiro mais prximo nesta aventura, no pode ver sua concluso. Agradeo sobretudo Santa Marguerite Duras, que foi quem me valeu nos momentos em que precisei. Que ningum duvide do seu poder. Este trabalho foi realizado com o apoio da Capes (bolsa de Mestrado em 2003-4), Rgion le de France (bolsa de DEA na Universit de Paris VIII em 2004-5) e CNPq (bolsa de Doutorado em 2005-6).

  • Resumo

    O livro India Song, de Marguerite Duras, estudado, primeiramente, do ponto de vista de sua pluralidade semitica, uma vez que a autora o caracteriza como um texto teatro filme. Tal pluralidade parece revelar a comunicabilidade entre os diversos elementos, similares ou dspares, mobilizados na escritura. A partir deste questionamento, busca-se compreender como a msica participa da esttica da obra. As anlises abordam os seguintes aspectos: 1) a lentido e o (meta)andamento; 2) o papel dos temas musicais evocados e o agenciamento temporal dos rudos e das luzes; 3) a musicalidade na vocalizao das falas; 3) o agenciamento de processos temporais em sucesso e simultaneidade. Palavras-chave: Marguerite Duras, Literatura francesa no sculo XX, Pluralidade semitica e msica, Literatura e msica

  • Abstract Marguerite Duras book India Song is studied, firstly, with a focus on its semiotic plurality, since the author describes it as a text theatre film. This plurality seems to show the communicability between the several elements, similar or dissimilar, that are used in the writing. Secondly, this study seeks to understand the way music participates in the works aesthetics. The analysis focuses on the following aspects: 1) slowness and (meta)time; 2) the role of the musical themes evoked and the temporal management of noises and lighting; 3) the musicality in speech vocalization; 3) the management of temporal processes in succession and simultaneity. Key-words: Marguerite Duras, 20th century French literature, Semiotic plurality and music, Literature and music

  • Rsum Le livre India Song, de Marguerite Duras, est tudi, premirement, du point de vue de sa pluralit smiotique, vu que lauteur le caractrise comme un texte thtre film . Cette pluralit semble dtacher la communicabilit parmis les plusieurs lments, similaires ou dissemblables, mis en jeu lcriture. partir de ce questionnement, on cherche comprendre la faon par laquelle la musique participe de lesthtique de loeuvre. On analyse les aspects suivants: 1) la lenteur et le (meta)tempo; 2) le rle des airs de musique voqus et lagencement temporel des bruits et des lumires; 3) la musicalit de la vocalisation des paroles; 3) lagencement des processus temporels en succession et simultanit. Mots-cls: Marguerite Duras, Littrature franaise du XXme sicle, Pluralit smiotique et musique, Littrature et musique.

  • Sumrio

    Parte I: discusses

    1. A msica no percurso criativo de Marguerite Duras: questes e hipteses 1

    2. O livro como partitura 47

    3. Configuraes do espao-tempo 71

    4. Leituras do tempo-espao 91

    5. Voz e fala: corpo e linguagem 115

    Parte II: anlises

    6. O (meta)andamento de India Song: reflexes sobre a lentido 123 7. Msicas, rudos, luzes 140

    8. A vocalizao da fala: entre o silncio e o canto 163

    9. Os tempos de India Song: perfis e processos 189

    Consideraes finais 217

    Bibliografia 220

  • Parte I: discusses

  • 1. A msica no percurso criativo de Marguerite Duras: questes e hipteses

    O ttulo India Song em geral associado ao cinema. A literatura vem imediatamente a

    seguir, pois o filme realizado por Marguerite Duras (1914-1996) em 1975 considerado um

    film dcrivain. No entanto, pouco se fala do livro publicado em 1973 e quando se lhe faz

    referncia normalmente para apoiar um discurso sobre o filme. O teatro, enfim, no mais das

    vezes simplesmente esquecido. Contudo, Duras caracteriza seu livro India Song escrito alis como uma encomenda de Peter Hall, ento diretor do National Theatre de Londres como um

    texto teatro filme (texte thtre film). este aspecto singular da obra, sua pluralidade

    semitica, que ser situado no centro das anlises desta tese. Por essa razo, ser aqui

    estudado no o filme, mas o livro. Pensar como se resolve no livro essa pluralidade ou seja,

    como ele pode funcionar a um s tempo nos universos do texto, do teatro e do filme torna-se

    ento uma questo capital. Ser feita referncia ao filme sempre que isso se mostrar

    esclarecedor em algum sentido.

    Nesta obra a um s tempo una e trina, vem inserir-se a msica. Tal

    insero , de incio, uma evidncia. Primeiramente, porque em India Song filme as peas musicais de Carlos DAlessio ou a 14 Variao Diabelli de

    Beethoven revm constantemente, so uma presena marcante, impossvel de

    passar despercebida. Essas msicas so em grande medida responsveis pela

    pregnncia do filme na memria do espectador. A prpria Marguerite Duras

    situa a msica na origem do trabalho, dizendo que o filme todo parte de um

    tema [musical] que India Song (Turine, 1997, CD 3, n. 7). Sobre como se

    deu essa colaborao com DAlessio, ela conta:

    (...) que alegria, eu fiquei muito feliz e lhe pedi que fizesse a msica para um filme meu, ele disse sim, eu disse sem dinheiro, e ele disse sim, e eu fiz as imagens e as falas em funo do branco que eu deixava para a sua msica e lhe expliquei que esse filme se passava num pas que nos era desconhecido, tanto dele quanto de mim, as ndias coloniais, a extenso crepuscular de lepra e de fome dos amantes de Calcut, e que devamos invent-las inteiramente ns mesmos. Ns o fizemos.1 (Duras, 1984, p.328)

    1 Original: (...) quelle joie, jai t bien heureuse et je lui ai demand de faire la musique pour

    un film de moi, il a dit oui, jai dit sans argent, et il a dit oui, et moi jai fait les images et les paroles en raison du blanc que je lui laissais pour sa musique lui et je lui ai expliqu que ce film se passait dans un pays qui nous tait inconnu, aussi bien lui qu moi, les Indes coloniales, ltendue crpusculaire, de lpre et de faim des amants de Calcutta, et que nous devions les inventer tous les deux en entier. Nous lavons fait.

  • Nas Notas Gerais de India Song livro, o tema musical ainda inexistente:

    O tema intitulado India Song, do nosso conhecimento, ainda no existe. Assim que ele for composto, ser vlido para todas as representaes de India Song, na Frana e alhures. Isso ser ento comunicado pela autora.2 (p.10)

    Percebe-se ento que a escritura de India Song foi desencadeada por um tema musical inexistente, que, ainda assim, situa-se no centro de sua

    potica. Mas o papel desempenhado pela msica nessa obra parece ir muito

    alm da presena de peas ou temas musicais. Duras diz, na mesma

    entrevista citada pouco acima:

    Muitas vezes disseram que meus livros eram feitos como a msica feita, e sempre algo que me toca muito, tamanha a importncia que dou msica. Mas eu acho, se posso ter uma opinio, que verdade. Em todo caso, para India Song livro e India Song filme verdade.3 (Turine, 1997, CD 3, n. 7)

    O foco mudou consideravelmente, pois agora do modo de feitura

    dessas obras que se trata. Duas obras no-musicais (um livro e um filme) so

    feitas como a msica feita. Como isso seria possvel? Como se daria este

    parentesco entre msica, literatura e cinema que se encontra na prpria

    maneira de se fazer, se so coisas to diferentes? preciso, em todo caso,

    que se trate de algo reconhecvel na apreciao mesma das obras, uma vez

    que Duras se refere a comentrios de leitores, que no conheciam as

    condies em que seus livros foram produzidos.

    Estas questes encontram-se na base desta tese, j que eu, enquanto

    leitor de Duras, compartilho da opinio daqueles leitores. Intuitivamente,

    sempre tive a impresso de que havia em Duras um parentesco com o fazer

    musical, que no sabia caracterizar com clareza. Ao ler India Song essa intuio at ento um pouco diluda, difusa precipitou-se em algumas

    2 Marguerite DURAS, India Song, Paris, Gallimard, LImaginaire, 1973 (1998). Todas as

    citaes de India Song sero feitas a partir dessa edio; nas prximas citaes, sero indicados apenas os nmeros das pginas. Original: Lair intitul India Song, notre connaissance, nexiste pas encore. Lorsquil sera compos, il vaudra pour toutes les reprsentations dIndia Song, en France et ailleurs. Il sera alors communiqu par lauteur.

    3 Original: On a souvent dit que mes livres taient faits comme la musique est faite, et cest toujours une chose qui ma beaucoup touche, telle est limportance que je donne la musique. Mais je pense, si je peux avoir un avis, que cest vrai. En tout cas pour India Song livre et pour India Song film, cest vrai.

  • hipteses, que se revelaram com implacvel fora. Como compositor,

    dramaturgo e estudante de literatura, vi-me obrigado a investig-las, entre

    outras razes, porque atravs de tais hipteses eu podia vislumbrar pontos de

    contato da obra durasiana com o sentido geral de minhas pesquisas pessoais

    em potica escritural, tanto musical quanto teatral e literria. Foi nessa

    perspectiva que o trabalho se desenvolveu.

    Pretendo aqui formular as questes e hipteses que nortearam a

    pesquisa, para que o leitor possa acompanhar os seus desenvolvimentos no

    decurso da tese. A melhor maneira de faz-lo pareceu-me ser situando-as no

    percurso criativo de Duras. O leitor ser ento capaz de considerar as

    hipteses que dizem respeito a India Song em meio a um quadro mais amplo, e enxergar esta obra como uma etapa de um processo, uma estao num

    caminho. Uma das hipteses justamente a de que se trata de uma etapa

    muito especial no que diz respeito ao lugar e funo da msica, pela

    multiplicidade de formas como esta a aparece. Tamanha riqueza nas relaes

    da msica com outros universos semiticos em uma mesma obra algo sem

    paralelo no interior da obra de Duras e mesmo, arrisco-me a dizer, na obra de

    seus contemporneos (at onde arriscaria a levar essa hiptese?).

    Estrategicamente, iniciarei o percurso por India Song, para depois retomar do princpio em ordem cronolgica, pois a obra durasiana ser aqui lida com as

    lentes fornecidas por India Song. Ao leitor pouco familiarizado com Duras, este texto poder funcionar

    como uma apresentao. Claro que se trata de uma apresentao bastante

    parcial, de um recorte e seleo de obras a partir de um ponto de vista bem

    definido, que entretanto permitir entrar em contato com os principais temas

    durasianos.

    Nascimento da tragdia

    India Song, de que se trata? Seguindo as orientaes da autora, vejamos o que diz o resumo ao final do livro apresentado como sendo o

    nico vlido:

  • a histria de um amor, vivido nas ndias, nos anos 30, numa cidade superpovoada s margens do Ganges. Dois dias dessa histria de amor so aqui evocados. A estao a da mono de vero.

    VOZES sem rosto em nmero de quatro (vozes de duas mulheres jovens, de um lado, e vozes de dois homens, de outro) falam dessa histria.

    As VOZES no se dirigem ao espectador ou ao leitor. Elas so de uma total autonomia. Elas falam entre si. Elas no sabem ser escutadas.

    A histria desse amor as VOZES conheceram, leram, h muito tempo. Algumas se lembram melhor que outras. Mas nenhuma se lembra completamente, e, tampouco, nenhuma esqueceu por completo.

    No se sabe em nenhum momento quem so as vozes. No entanto, pela maneira que elas tm, cada uma, de se esquecer ou de se lembrar, elas se fazem conhecer mais do que por sua identidade.

    A histria uma histria de amor imobilizada na culminncia da paixo. Em torno dela, uma outra histria, a do horror fome e lepra mescladas na umidade pestilenta da mono imobilizada tambm num paroxismo cotidiano.

    A mulher, Anne-Marie Stretter, mulher de um embaixador da Frana nas ndias, agora morta seu tmulo est no cemitrio ingls de Calcut , como que nasceu desse horror. Ela fica em meio a ele com uma graa onde tudo se abisma, num inesgotvel silncio. Uma graa que as VOZES precisamente tentam rever, porosa, perigosa, e perigosa tambm para algumas das VOZES.

    Ao lado dessa mulher, na mesma cidade, um homem, o Vice-cnsul da Frana em Lahore, em desgraa em Calcut. No seu caso, por sua clera e pelo assassinato que ele se une ao horror indiano.

    Uma recepo na Embaixada da Frana ter lugar durante a qual o Vice-cnsul maldito gritar seu amor a Anne-Marie Stretter. Isto, diante da ndia branca que olha.

    Depois da recepo, ela ir s ilhas da desembocadura pelas estradas retas do Delta.4 (p.147-8)

    Percebe-se, de incio, que Duras dedica boa parte de seu resumo s

    vozes. Voltarei a elas adiante, pois h a uma pista a perseguir do ponto de

    vista de um trabalho musical. Mas no que diz respeito histria, temos duas

    personagens centrais (o Vice-cnsul e Anne-Marie Stretter), um evento (os

    4 Original: Cest lhistoire dum amour, vcu aux Indes, dans les annes 30, dans une ville

    surpeuple des bords du Gange. Deux jours de cette histoire damour sont ici voqus. La saison est celle de la mousson dt. / Des VOIX sans visage au nombre de quatre (voix de deux jeunes femmes, dune part, et voix de deux hommes, dautre part) parlent de cette histoire. / Les VOIX ne sadressent pas au spectateur ou au lecteur. Elles sont dune totale autonomie. Elles parlent entre elles. Elles ne savent pas tres coutes. / Lhistoire de cet amour, les voix lont sue, ou lue, il y a longtemps. Certaines sen souviennent mieux que dautres. Mais aucune ne sen souvient tout fait et aucune, non plus, ne la tout fait oublie. / On ne sait aucun moment qui sont ces VOIX. Pourtant, la seule faon quelles ont, chacune, davoir oubli ou de se souvenir, elles se font connatre plus avant que par leur identit. / Lhistoire est une histoire damour immobilise dans la culminance de la passion. Autour delle, une autre histoire, celle de lhorreur famine et lpre mles dans lhumidit pestilentielle de la mousson immobilise elle aussi dans un paroxysme quotidien. / La femme, Anne-Marie Stretter, femme dun ambassadeur de France aux Indes, maintenant morte sa tombe est au cimtire anglais de Calcutta , est comme ne de cette horreur. Elle se tient au milieu delle avec une grce o tout sabme, dans un inpuisable silence. Grce que les VOIX essaient prcisment de revoir, poreuse, dangereuse, et dangereuse aussi pour certaines des VOIX. / A ct de cette femme, dans la mme ville, un homme, le Vice-consul de France Lahore, en disgrce Calcutta. Lui, cest par la colre et le meurtre quil rejoint lhorreur indienne. / Une rception lAmbassade de France aura lieu pendant laquelle le Vice-consul maudit criera son amour Anne-Marie Stretter. Cela, devant lInde blanche qui regarde. / Aprs la rception, elle ira aux les de lembouchure par les routes droites du Delta.

  • gritos do Vice-cnsul na recepo) e algo que poderamos chamar de

    dissoluo final (a ida de Anne-Marie s ilhas do Delta). Dissoluo aqui diz

    respeito morte de Anne-Marie nas guas do mar na desembocadura do

    Ganges. Quase nada acontece, portanto, e a nfase maior em uma

    imobilidade (do amor, do horror) no paroxismo, a indicar que viver a

    intensidade dessa paixo (lembremos que a paixo de algum que est em

    desgraa) e desse horror mais importante do que acompanhar o fio de suas

    histrias.

    Acrescentando alguns dados ao resumo, reconhecemos elementos

    fundamentais de uma tragdia. A desgraa do Vice-cnsul diz respeito no

    apenas a sua paixo impossvel por Anne-Marie, mas tambm a um evento

    anterior, que poderamos identificar como uma falha trgica: da sacada de

    sua casa em Lahore, ele desfere tiros contra uma multido de leprosos que se

    amontoa nos jardins de Shalimar, depois atira nos espelhos da casa. Tais atos

    causam escndalo na classe colonialista, a chamada ndia branca, e exigem

    do Embaixador (o marido de Anne-Marie) uma soluo. Ele opta pela sada

    diplomtica, que seria transferir o Vice-cnsul de Lahore e esperar que as

    pessoas o esqueam. Na recepo na Embaixada da Frana, o Embaixador o

    aborda, mas o Vice-cnsul recusa qualquer soluo. Essa recusa tambm

    expresso da falha trgica, a afirmao de sua teimosia diante da soluo

    razovel.

    O que se apresenta em India Song ento o momento da consumao dessa tragdia. Diante da recusa de Anne-Marie Stretter com relao a seu

    amor, ela que mulher de muitos amantes (Ela de quem quiser (p.46)5), o

    Vice-cnsul grita o seu amor diante da ndia branca. Segundo suas prprias

    palavras, ele grita para que alguma coisa tenha lugar entre [ela] e [ele]. Um

    incidente pblico (p.99)6. No poderamos entender por incidente pblico a

    prpria encenao dessa dor? Como no Prometeu Acorrentado de squilo, em que tudo j aconteceu e s nos resta vivenciar junto com o heri o seu

    padecimento, alm de contemplar sua obstinada recusa em ceder a uma

    soluo?

    5 Original: Elle est qui veut delle. 6 Original: Pour que quelque chose ait lieu entre vous et moi. Un incident public.

  • Para tentar compreender os tiros do Vice-cnsul contra os leprosos e os

    espelhos (suas razes?), talvez seja preciso levar um pouco mais longe uma

    reflexo sobre o trgico. Pois India Song destila em profundidade a experincia de uma era trgica. O livro apresenta uma maneira pessoal de

    experimentar o estado em que o mundo se encontra. Neste momento, para

    Duras, como alis ela vinha anunciando desde os ltimos anos da dcada de

    60, o mundo agoniza, e isso seria visvel por toda parte. Eu acho que o fim

    do mundo, sim, eu acho que India Song tambm um filme sobre o fim do

    mundo (Duras & Porte, 1977, p.77).7 Duras explica:

    Penso em nosso desaparecimento, no desaparecimento da Europa. No somente a morte da histria que est escrita em India Song, que est dita em India Song, a morte de nossa histria. (...) O colonialismo, aqui, um detalhe, o colonialismo, a lepra e a fome tambm. Acho que a lepra foi mais longe e a fome tambm. A fome tambm est por vir e, veja, em India Song, ela vem. (Duras & Porte, 1977, p.78)8

    portanto a morte do mundo que escrita (no digo narrada) em India Song9. Ao nvel da narrativa, so muitos os elementos que permitem reconhecer essa grande decadncia,

    por exemplo, a localizao da histria numa ndia imaginria, um pas que, do lado de l das

    grades da elite colonial, feito s de misria e lepra. Porm, Duras foi bastante direta, a morte

    aqui vai mais alm, uma morte radical, a morte de nossa histria. Toda uma sociedade est

    moribunda. Tanto que a separao entre esses dois mundos a ndia da misria e a ndia

    branca , desaparece num nvel profundo, nada evidente:

    Voc reparou? Os brancos aqui s falam de si mesmos. O resto... E no entanto... os suicdios de europeus aumentam com as fomes...

    ... fomes que eles no sofrem... (Riso leve.) . (p.90-1)10

    7 Original: Je pense que cest la fin du monde, oui, je pense quIndia Song est aussi un film sur

    la fin du monde. 8 Original : Je pense notre disparition, la disparition de lEurope. Ce nest pas seulement la

    mort de lhistoire qui est crite dans India Song, qui est dite dans India Song, cest la mort de notre histoire. Parce que ladhsion immdiate que jai eue ce chateau Rothschield tait telle que je naurais pas pu tourner ailleurs, jaurais plutt renonc au film que dy renoncer. Cette adhsion immdiate, elle ne peut pas seulement sexpliquer partir dun lieu de fiction. Autre chose parlait l. Javais trouv le lieu pour dire la fin du monde. Le colonialisme, ici, cest un dtail, le colonialisme, la lpre et la faim aussi. Je crois quici la lpre a gagn plus loin et la faim aussi. La faim, elle est aussi venir, voyez, dans India Song, elle vient.

    9 Duras diz: A morte est por toda parte em India Song. Por toda parte, no sol que se pe, na luz, sempre a tarde, sempre a noite, nas formas, na recepo que completamente moribunda. (Les lieux, 1977, p.78) Original: La mort est partout dans India Song. Partout, dans le soleil qui se couche, dans la lumire, cest toujours le soir, toujours la nuit, dans les formes, dans la rception qui est compltement moribonde.

    10 Original: Vous avez remarqu? Les Blancs ici ne parlent que deux-mmes. Le reste... Et pourtant... les suicides dEuropens augmentent avec les famines... / ...dont ils ne souffrent pas... (Rire lger.) / Non...

  • H ento um desespero latente, uma espcie de desejo de morte,

    prestes a eclodir. Os gritos do Vice-cnsul, que so como ecos dos tiros que

    ele deu nos leprosos, talvez sintetizem esse contato obscuro entre os brancos

    e a lepra. Duras, no final de sua vida, olhando retrospectivamente para sua

    carreira, dir: O vice-cnsul aquele em quem eu creio. O grito do vice-

    cnsul, a nica poltica (Duras, 1993, p.21)11. Aqui h uma autocitao,

    remetendo frase que marcou sua obra pouco posterior a India Song, Le camion: Que o mundo caminhe sua prpria perda a nica poltica12. Os gritos do Vice-cnsul realizariam, assim, a prpria morte do mundo. Para

    Duras, essa seria a nica atitude poltica possvel, caminhar destruio, ao

    desaparecimento da Europa. Seria o reconhecimento de uma situao de fato

    vivida por todos, que bastaria ter olhos para ver.

    Duras situa portanto sua tragdia numa dimenso poltica. A perda do

    mundo a morte de uma sociedade, de uma histria. Talvez as palavras de

    Raymond Williams sobre a relao entre tragdia e revoluo ajudem a

    iluminar este ponto: A revoluo enquanto tal , num sentido comum, tragdia,

    um tempo de caos e sofrimento (Williams, 2002, p.93). Uma revoluo

    vitoriosa torna-se pica, mas isso s pode ser herdado pela gerao ps-

    revolucionria; a contra-revoluo procura reduzi-la a simples caos e

    sofrimento. A alternativa viva fundamentalmente diferente em seu carter. No nem a rejeio revoluo, por meio da simples caracterizao dessa revoluo como caos e sofrimento, nem a caracterizao da revoluo por meio de leis e probabilidades ainda no vivenciadas. Trata-se, antes, de um reconhecimento; o reconhecimento da revoluo como uma ao total dos homens que vivem no presente. (Id., ibid.)

    Estaramos ento diante de uma manifestao revolucionria, um tempo

    de dolorosa morte de um mundo, necessria ao nascimento de um outro.

    preciso no entanto marcar aqui uma diferena do pensamento marxista de

    Williams com relao a essa poltica da destruio de Duras. verdade que

    Duras se filiara ao Partido Comunista Francs no imediato ps-Segunda

    Guerra e que dele fora expulsa, muito mais por no aceitar o cerceamento de

    sua vida ntima e de sua liberdade intelectual do que por descrer no marxismo 11 Original: Le vice-consul cest celui en qui je crois. Le cri du vice-consul, la seule politique. 12 Original: Que le monde aille sa perte, cest la seule politique.

  • e na Revoluo Comunista. Mas o pensamento poltico de Duras ir se

    transformar consideravelmente no decurso das dcadas de 1950, 60 e 70, at

    se tornar um antimoralismo radical, que se formula como uma certa

    indiferenciao de valores e uma aproximao a uma concepo bastante

    peculiar de loucura.

    Ao nvel da escritura, pode-se ento conjeturar se India Song no seria a culminncia de um processo que em Duras se inicia com Moderato Cantabile e que tem no Maio de 68 uma experincia emblemtica: a experincia da destruio dos valores e o amor que corre solto pelas ruas.

    Dtruire, dit-elle, de 1969, uma conseqncia imediata dessa experincia. Em Boas falas, livro de dilogos com Xavire Gauthier, Duras diz que com Moderato Cantabile ela comeou a sentir um certo incmodo ao escrever, um certo medo, como se o peso do ato de escrever tivesse mudado, mas que a

    transformao mesmo viria com o Maio de 68 e Dtruire... Em 69, Duras diz aos Cahiers du Cinma, referindo-se a Dtruire...:

    Falo de esvaziar o homem: que ele esquea tudo. Para poder recomear. Que ele renasa em si mesmo. Poderamos ento com uma extrema prudncia retornar ao conhecimento. Claro. Mas que ele no se torne jamais uma escolstica. Uma exegese. Nunca. (Vircondelet, 1972, p.68)13

    Esse esvaziamento do homem a constituio do louco: para mim, [a

    loucura] equivale a uma destruio, mas seguida de uma reconstruo, original

    dessa vez, no ditada pela sociedade. A se encontraria uma beleza nica,

    justamente por no estar submetida aos binmios que regulam moralmente a

    sociedade, por situar-se alm de bem e mal: O que belo a ponto de chorar

    o amor. E mais ainda talvez: a loucura, a nica salvaguarda contra o falso e o

    verdadeiro, a mentira e a verdade, a estupidez e a inteligncia: fim do

    julgamento (Idem, p.180). O medo dessa loucura, dessa destruio, a

    reao burguesa por excelncia: O medo da burguesia (...), o medo do ps-

    destruio, acho que esse medo j participa da revoluo. (...) No ms de maio

    [de 68] eu dizia: no sei para onde vamos, mas ns vamos (Idem, p.165). E,

    vale pontuar, menciona finalmente a msica: As pessoas perguntam com 13 Original: Je parle dun passage vide de lhomme : cest quil oublie tout. Pour pouvoir

    recommencer. Quil renaisse en lui. On pourrait alors avec une extrme prudence revenir la connaissance. Bien sr. Mais quelle ne devienne jamais une scolastique. Une exegse. Jamais.

  • freqncia se a msica de Dtruire, dit-elle foi a revoluo. J a noite completa (Idem, p.165-6). Todos os ingredientes da morte do mundo burgus

    e do renascimento num outro estado de coisas (totalmente desconhecido)

    esto a presentes.

    Vozes e outros sons

    At aqui foi possvel delinear o campo de sentido fundamental em que

    se inscreve India Song. Digo fundamental porque esse campo parece situar-se no cerne da experincia do estar no mundo de Duras e diz tanto de suas

    idias polticas e sua vivncia do estado do mundo como de sua postura como

    escritora e como mulher. Voltando nossa ateno s vozes que a autora

    menciona no resumo citado acima, ser agora possvel comear um

    questionamento a respeito da presena da msica na obra.

    Essas vozes, as chamadas vozes descorporificadas, tm origem numa

    obra anterior, o filme La femme du Gange (cf. India Song, p.10). Elas foram acrescentadas depois que o filme j estava pronto. Duras o denominou como

    o filme das vozes que se sobreps ao filme das imagens. As vozes no

    possuem um corpo visvel, elas so integralmente feitas de seus corpos

    audveis. Essa dissociao entre esses dois corpos ainda mais evidente nas

    personagens que tm um corpo visvel, pois nesse caso h uma defasagem

    entre a imagem e o som: Nenhuma conversao ter lugar em cena, ser

    vista. No sero jamais os atores em cena que falaro (p.56)14. Uma vez que

    ela elimina a obviedade, no seria essa dissociao uma forma de

    problematizar a relao som-imagem, provocando uma ateno diferenciada

    do leitor-espectador para a qualidade desses sons e dessas imagens?

    Em todo caso, nas rubricas, as vozes so descritas minuciosamente do

    ponto de vista da prosdia, ou seja, de como a fala deve ser vocalizada. As

    indicaes podem dizer respeito inteno e a expressividade de uma fala, o

    que comumente encontramos nas rubricas teatrais. Contudo, h outras que

    dizem respeito unicamente a questes sonoras e que por isso assemelham-se

    14 Originais: Aucune conversation naura lieu sur scne, ne sera vue. Ce ne seront jamais les

    acteurs sur scne qui parleront. / Une seule exception cette rgle : les sanglots du Vice-consul de France : ils seront vus et entendus.

  • a indicaes de uma partitura15. H por exemplo indicaes referentes ao que,

    no jargo musical, costuma-se chamar de dinmica: Duras indica baixo (bas),

    o que equivale a dizer piano. Outras referem-se distncia com relao s

    vozes (mais longe (plus loin), bem perto (assez prs)), e tambm a como o

    texto deve ser ouvido/entoado (como se lido (comme lu)). H tambm muitas

    pausas (pausa (temps), silncio (silence)) e indicaes que remetem a algo

    como um andamento (lento (lent), lentido (lenteur)).

    Na primeira parte, h um momento em que Duras explicita um

    tratamento musical a ser dado ao texto:

    As vozes entrelaadas, com uma doura culminante, vo cantar a lenda de Anne-Marie Stretter. Narrativa muito lenta, melopia feita de cacos de memria, e no decurso da qual, s vezes, uma frase emergir, intacta, do esquecimento.

    VOZ 1

    De Veneza. Ela era de Veneza...

    VOZ 2 Sim. A msica, era em Veneza. Uma esperana da

    msica... VOZ 1 (pausa)

    Nunca deixou de tocar? VOZ 2

    Nunca. Silncio.

    VOZ 1 (muito lento) Anna Maria Guardi...

    VOZ 2 Sim.

    Silncio. VOZ 1

    O primeiro casamento, o primeiro posto...?16 (p.40)

    As vozes cantam. Esse canto , curiosamente, uma melopia feita de

    cacos de memria, expresso que une coisas dspares, j que a melopia,

    uma forma de entonao, constituda pela memria. A introduo de uma

    quase melodia permitir a Duras chamar de canto o texto entoado, que , no

    fim das contas, uma narrao. Tratar-se-ia, pois, no de um canto enquanto 15 Alis, a partir de meados do sculo XIX (Barthes, 1982, p.237) as partituras musicais foram

    sendo acrescidas de indicaes quanto expressividade (apassionato, tempestuoso, spirituel et discret etc.) que se assemelham s rubricas dos textos dramticos.

    16 Original: Les voix entrelaces, dune douceur culminante, vont chanter la lgende dAnne-Marie Stretter. Rcit trs lent, mlope faite de dbris de mmoire, et au cours de laquelle, parfois, une phrase mergera, intacte, de loubli. / VOIX 1: De Venise. / Elle tait de Vnise... / VOIX 2: Oui. La musique, ctait Venise. Un espoir de la musique... / VOIX 1 (temps): Na jamais cess den faire? / VOIX 2: Jamais. / Silence. / VOIX 1 (trs lent): Anna Maria Guardi... / VOIX 2: Oui. / Silence. / VOIX 1: Le premier mariage, le premier poste...?

  • tal, no de uma fala visando construo de um mundo referencial, mas sim

    de uma fala originada pela memria, j quase apagada, cuja musicalidade

    tende mais ao universo da sensao do que ao da representao? Seria a

    entoao a responsvel por conferir continuidade ao discurso, j que ele

    fragmentado ao nvel da fala?

    H, ainda, indicaes quanto ao timbre das vozes:

    A voz do Vice-cnsul seca, quase estridente. A do Jovem Adido, ao contrrio, suave, baixa.17 (p.74)

    No depoimento a seguir, observa-se a importncia dada por Duras s

    vozes, quando da montagem de India Song filme. Ela cita algumas experimentaes feitas nas gravaes das vozes, em busca de sonoridades

    interessantes.

    O trabalho sobre as vozes foi o mais longo de todos. Mais longo que a montagem de imagens. Fiz tomadas de som por toda parte: em igrejas, em lugares muito ruidosos, em adegas, em corredores, em minha casa, na casa da montadora... Sempre fui sensvel s vozes ouvidas ao acaso, aos fragmentos, em lugares pblicos, em cafs, em ptios de imveis... Em Paris, abro minhas janelas no vero. Para ouvir os rumores. E acho que eles testemunham de Calcut, essas vozes.18

    Mesmo que para Duras essas sonoridades remetam a um significado especial um

    lugar simblico, pleno de sentidos no imaginrio durasiano trata-se sempre da pesquisa do

    som, da qualidade tmbrica das vozes em diferentes situaes e espaos. Alis, no estaria

    justamente nesta pesquisa qualitativa dos sons a busca por Calcut?

    O mesmo tipo de indicao quanto sonoridade das vozes pode ser encontrado

    fazendo referncia a outros sons. Veja-se essa descrio, por exemplo: O rudo da chuva.

    Rudo saciante, fresco (p.21). A descrio aqui menos tcnica, diz respeito mais ao efeito

    psicolgico que o som deve produzir do que a suas qualidades acsticas imediatas. Em todo

    caso, sempre na qualidade tmbrica do som que Duras est pensando. Entretanto, o texto

    que d seqncia ao trecho citado coloca um outro problema:

    O rudo da chuva. 17 Original: La voix du Vice-consul est sche, presque stridente. Celle du Jeune Attach, au

    contraire, est douce, basse. 18 Fala de Marguerite Duras citada em Tlrama, 23 de janeiro 1991. Original : Le travail sur

    les voix a t le plus long de tous. Plus long que le montage-images. J'ai fait des prises de son partout : dans des glises, dans des lieux trs bruyants, dans des caves, dans des couloirs, chez moi, chez la monteuse... J'ai toujours t sensible aux voix entendues par hasard, en lambeaux, dans des lieux publics, dans des cafs, dans des cours d'immeuble... A Paris, j'ouvre mes fentres en t. Pour entendre ces rumeurs-l. Et je pense qu'elles tmoignent de Calcutta, ces voix.

  • Rudo saciante, fresco. Chove sobre Bengala. No se v a chuva. Ela somente ouvida. (...) Todos olham o rudo da chuva.19 (p.21-2)

    Como possvel olhar um som? Depois de ouvir o som da chuva,

    deve-se formar, interna e individualmente, uma imagem a partir desse som? Ou

    ser que deveramos entender olhar aqui com o sentido de examinar e

    neste caso as personagens estariam tomando o som como objeto de anlise

    pela escuta? Olhar o rudo seria o mesmo que apreci-lo, degust-lo? Ainda

    um passo adiante, o pronome todos no incluiria tambm o leitor/espectador?

    A partir desses breves apontamentos, ter sido possvel reconhecer um

    trabalho plstico e neste sentido musical com as vozes e os outros sons.

    Fica levantada tambm a questo de como esse trabalho se realiza para que

    funcione simultaneamente nas dimenses de texto, teatro e filme. No entanto, o

    interesse pelo plano sonoro parece ir um pouco alm da composio

    qualitativa dos sons. Os rudos e os sons so submetidos a uma marcao

    precisa: a entrada e a sada de cada som, o tipo de rudo ou som e a seqncia

    em que aparecem, quase nunca correspondendo a uma seqncia naturalista.

    No trecho a seguir, parece-me claro como, nas rubricas, Duras fornece as

    indicaes para esse trabalho de montagem de uma espcie de trilha sonora

    formada por sons de vozes e de chuva. Gritos ao longe, de alegria, chamados nessa lngua desconhecida: o hindustni. (...) A chuva, o rudo, muito forte durante muitos segundos. Diminui. Os gritos isolados e os risos perfuram, mais precisos, o rudo da chuva. De repente, gritos mais precisos, mais perto, de mulher. Risos da mesma mulher. 20 (p.22)

    Nenhum desses sons tem correspondncia direta com a imagem, que

    nesse momento mostra um parque sendo observado por dois homens e uma

    mulher sentados. A alternncia de gritos e risos parece estabelecer um

    contraste sonoro que valoriza a escuta de cada um dos sons. H uma

    preocupao em definir a distncia da qual os sons so ouvidos, a

    19 Original: Le bruit de la pluie. / Bruit assouvissant, frais. / Il pleut sur le Bengale. / On ne voit

    pas la pluie. Elle est seullement entendue. (...) /Tous regardent le bruit de la pluie. 20 Original: Cris au loin, de joie, appels dans cette langue inconnue : lindoustani. (...) / La pluie,

    le bruit, trs fort pendant plusieurs secondes. / Il diminue. Les cris isols et les rires percent, plus prcis, le bruit de la pluie. (...) / Tout coup, cris plus prcis, plus prs, de femme. Rires de la mme femme.

  • reconhecibilidade de cada um deles. A prpria escolha de uma lngua

    desconhecida do leitor/espectador, o hindustni, revela uma preocupao,

    nesse momento, com a escuta dos sons em vez do entendimento das palavras.

    E h ainda a variao de fora do rudo da chuva: o fato de que essa variao

    possa corresponder representao de uma chuva real no muda em nada o

    fato de que o que parece estar em jogo aqui a relao entre os diferentes

    sons na formao de uma textura. Quando o rudo da chuva baixa, os gritos se

    tornam mais precisos (plus prcis) que talvez devssemos entender como

    mais incisivos, ou compactos por oposio aos sons difusos da chuva e

    tomam o primeiro plano, criando uma dinmica interna, um projeto de

    mixagem. Isso poderia ser apenas uma indicao referente gramtica udio-

    visual do teatro e do cinema. Mas, uma vez que essa mixagem

    problematizada, ela pode remeter ao trabalho em estdio do compositor de

    msica eletroacstica, que, ele sim, volta toda sua ateno, como uma

    finalidade em si, morfologia dos sons e ao resultado de sua interao.

    Uma msica para alm dos sons?

    Fizemos at aqui um percurso de ampliao do conceito de msica, partindo do sentido

    mais tradicional da palavra (as msicas) at incluir nele todos os sons que participam de India Song. At a, nenhuma grande novidade, pois essa ampliao antiga, remonta pelo menos ao ruidismo dos futuristas na dcada de 1920 e, com mais consistncia de linguagem (e

    tambm terica), Msica Concreta surgida no final da dcada de 40. No entanto,

    encontramos ainda indcios de que essa mixagem ou montagem sonora apontada acima talvez

    seja ampliada tambm para outros elementos no-sonoros. Vejamos o seguinte exemplo:

    medida que se opera o aumento do rudo exterior, o tempo se cobre nas alamedas do parque. Luz plmbea. Nenhum vento. (...)

    A luz se torna ainda mais plmbea. O rudo de Calcut cessa. Espera. Mais espera. Quase trevas. De repente, a espera cede: O rudo da chuva.21 (p.21)

    21 Original: mesure que sopre la monte du bruit extrieur, le temps se couvre dans les

    alles du parc. Lumire plombe. Aucun vent. (...) La lumire se plombe encore davantage. / Le bruit de Calcutta cesse. / Attente. / Attente encore. Il fait presque noir. / Fout coup, lattente cde : / Le bruit de la pluie.

  • No parece haver uma relao necessria, do ponto de vista de uma representao

    realista, entre o aumento do rudo de Calcut e o escurecimento da luz. Lano ento a

    hiptese de que Duras estabelece um campo de ao comum entre os elementos sonoros e

    visuais, de maneira a tratar todos segundo um mesmo princpio, um princpio musical. A obra

    seria ento construda por movimentos internos, que entretm toda uma trama temporal de

    imagens e sons, enquanto do ponto de vista da histria temos a imobilidade no paroxismo.

    assumindo desse ponto de vista que Dionys Mascolo descreve a construo de India Song filme, comparando-o a uma composio musical:

    Essa tragdia cinematogrfica integralmente construda como uma composio musical (). Todo o filme, inclusive a imagem, escrito como uma partitura. So tantas as partes dessa partitura: as imagens, seu enquadramento, os cenrios onde so localizadas ou que deixam margem; os movimentos de cmera (as alternncias de mobilidade e de imobilidade); os movimentos no plano (coreografia); os gestos expressivos (andamento dos atores, dirigidos como msicos de orquestra); a prpria msica as msicas na verdade, uma exterior, a outra no; os sons (os pssaros, o rudo csmico do mar) dos quais quaisquer rudos realistas so excludos: nesse aspecto o filme mudo; as vozes por fim: as vozes presentes dos oficiantes; vozes atemporais que tanto comentam o evento evocado na imagem maneira de um recitativo, e cujos encantamentos permitem a passagem incessante das fronteiras do tempo, quanto meditam sobre a ao realizada; voz da mendiga enfim, presente-ausente eterna, pois que a inocncia e a infelicidade sempre sobrevivente do mundo. Toda a parte central do filme (a recepo) uma seqncia, agenciada com um prodigioso sangue-frio, de entradas, sadas, perguntas, respostas, olhares e gestos, de chamados e anncios, de msica e gritos, que faz subir como um mar a inteleco sem remdio das coisas, assalto inquietante, marcado pela serenidade mortal com a qual se encadeiam alguns golpes de espada22. justamente de morte que se trata, mas definitiva e total: da prpria esperana.23 (Mascolo, 1975, p.143)

    Muito alm da msica no sentido convencional da palavra (a msica

    exterior no dizer de Mascolo), haveria uma orquestrao geral de todos os

    22 Observao sobre essa traduo: os passes de muleta so as investidas do toureiro sobre

    o touro, em que crava suas lanas no dorso do animal. preciso revisar essa traduo. 23 Tambm citado em Duras, Quarto, Gallimard, Paris, 2002, p. 1204.Original: Cette tragdie

    cinmatographique est tout entire construite comme une composition musicale (). Tout le film, image comprise, est crit comme une partition. Sont autant de portes de cette partition : les images donc, leur cadre, les dcors o elles se logent ou quelles maintiennent en marge ; les mouvements de camra (ses alternances de mobilit et dimmobilit) ; les mouvements dans le plan (chorgraphie) ; les gestes expressifs (tempo des acteurs, dirigs comme des musiciens dorchestre) ; la musique elle-mme les musiques plutt, lune est extrieure, lautre non ; les sons (les oiseaux, le bruit cosmique de la mer) do tout bruitage raliste est exclu : cet gard le film est muet ; les voix enfin, quadruple systme de paroles sans relations entre elles : les voix prsentes des officiants ; voix intemporelles qui tantt commentent lvnement voqu sur limage la manire dun rcitatif, et dont les incantations permettent le passage incessant des frontires du temps, et tantt mditent sur laction accomplie ; voix de la mendiante enfin, prsente-absente ternelle, puisquelle est linnocence et le malheur toujours survivant du monde. Toute la partie centrale du film ( la rception ) est une suite agence avec un prodigieux sang-froid dentres, de sorties, de questions, de rponses, de regards et de gestes, de rappels et dannonces, de musique et de cris, qui fait monter comme une mer lintelligence sans remde des choses, assaut bouleversant, empreint de la srnit mortelle avec laquelle senchanent certaines passes de muleta. Cest bien de mise mort quil sagit, mais dfinitive et totale : de lespoir mme.

  • elementos postos em jogo na construo do discurso udio-visual do filme.

    Mas o que devemos entender por orquestrao aqui? Isso parece ter algo a ver

    com a temporalidade da msica, o fato de que a msica no mais que a

    organizao de eventos no tempo em sucesso e simultaneidade. Essa

    multiplicidade de elementos enumerados por Mascolo seria posta no tempo de

    uma maneira musical. Estaria a a resposta para a questo de como India Song filme feito como a msica feita? Esta a hiptese que ser posta prova. Mas ainda seria preciso efetuar a transferncia desse discurso sobre o

    filme para o livro, e a questo se coloca ento da seguinte maneira: como

    transformar a descrio/anlise do filme em hipteses para se pensar o livro,

    levando em conta todas as implicaes que isso traz? A principal dessas

    implicaes o fato de que o livro , como foi dito, um texto teatro filme. Pois

    o filme e a msica tm algo em comum: h um evidente nvel performativo no

    filme e na msica que tem uma temporalidade similar em ambos os casos, um

    tempo mensurvel. No livro, o performativo existe na leitura, mas o tempo

    desta obscuro, depende de inmeros fatores e varia a cada vez. No se pode

    estud-lo como um dado do livro. Como ento resolver essas questes?

    Responder a elas significa tornar possvel as anlises que sero apresentadas

    na segunda parte da tese.

    Antes de passar ao percurso criativo de Duras, falta ainda discutir um

    ltimo problema para o qual o artigo de Mascolo d uma pista importante

    que a relao entre o sentido do trgico e a msica em India Song. sintomtico que o artigo citado seja intitulado Naissance de la Tragdie,

    fazendo evidente referncia ao clssico de Friedrich Nietzsche conhecido como

    O nascimento da tragdia a partir do esprito da msica24 (Nietzsche, 2005,

    p.25). Mascolo apresenta India Song como uma tragdia que se constri como msica. O pensamento esttico do primeiro Nietzsche nos protegeria ento

    contra a possvel reduo de achar que o construir-se como msica poderia

    indicar um mero trabalho formal. A tragdia nasceria do esprito da msica

    porque ela o lanar-se no tempo, despido de moral; na tragdia a vida fala

    em sua inteireza, com todo o seu contedo de crueldade e destruio. O mito

    representado na tragdia permite suportar o embriagante e centrpeto fluxo

    temporal da msica, mas da msica que o mito retira todo o seu sentido. 24 O ttulo de capa O Nascimento da Tragdia ou Helenismo e Pessimismo.

  • Nietzsche inicialmente estabelece uma oposio entre dois impulsos

    fundamentais do artista grego, o apolneo e o dionisaco.

    Teremos ganho muito a favor da cincia esttica se chegarmos no apenas inteleco lgica mas certeza imediata da introviso [Anschauung] de que o contnuo desenvolvimento da arte est ligado duplicidade do apolneo e do dionisaco, da mesma maneira como a procriao depende da dualidade dos sexos, em que a luta incessante e onde intervm peridicas reconciliaes. (Nietzsche, 2005, p.27)

    Apolo est ligado s artes visuais, beleza harmnica e perene, ao

    equilbrio e ao sonho; Dionsio, msica, manifestao da vida em sua

    desarmonia e crueldade, alegria primordial do corpo e da vontade,

    embriaguez. Nietzsche retoma a idia de que a tragdia grega teria nascido do

    ditirambo, coro dionisaco constitudo por pessoas comuns travestidas em

    stiros que se punham a celebrar a fertilidade e a unio suprema entre os

    seres no Uno-primordial: originalmente a tragdia s coro e no drama

    (Idem, p.62). Ser por uma associao com o apolneo que do coro dionisaco

    se destacaria um ator para comear a representar o mito. Nos termos desse

    entendimento devemos compreender a tragdia grega como sendo o coro

    dionisaco a descarregar-se sempre de novo em um mundo de imagens

    apolneo (Idem, ibid.).

    Estamos prximos de uma descrio de India Song. Inicialmente, h algo como um mito, retirado no de uma tradio religiosa mas de outro livro

    da prpria Duras: Le vice-consul. Mas, segundo Duras, no foi essa histria mas as vozes que motivaram a criao de India Song.

    O fato que India Song penetra e desvela uma regio no explorada do Vice-consul

    no seria uma razo suficiente de escrev-la. O que sim foi uma razo a descoberta do meio de desvelamento, de explorao,

    feito em La Femme du Gange: as vozes exteriores narrativa.25 (p.10)

    No seriam essas vozes exteriores narrativa as correspondentes ao

    coro da tragdia clssica, de onde nasce a tragdia? Um coro que, enquanto

    meio (artstico), seria capaz de incorporar a narrativa em sua estrutura e dela

    desvelar regies inexploradas? Se a simetria das descries e o seu cuidadoso

    25 Original: Le fait quIndia Song pntre et dvoile une rgion non explore du Vice-consul

    naurait pas t une raison suffisante de lcrire. / Ce qui la t cest la dcouverte du moyen de dvoilement, dexploration, faite dans La Femme du Gange : les voix extrieures au rcit.

  • controle remetem ao equilbrio apolneo, tem-se a impresso de que um

    enorme vazio se expande por trs delas. As aes no se justificam por uma

    lgica aparente, mas esto de tal forma coordenadas temporalmente entre si

    que um outro sentido, obscuro, parece ento nascer, um sentido ligado ao

    prprio devir temporal, dionisaco.

    Vejamos ento, a partir do incio do percurso de Duras, como a msica

    vai tomando espaos cada vez mais importantes. Peo licena para considerar

    as hipteses levantadas at agora como dados, apenas com o intuito de

    levantar novas hipteses. Ou seja, a leitura desse percurso criativo de Duras

    ser feita com as lentes extradas de India Song.

    Depois da tragdia...

    Un barrage contre le Pacifique (1950) foi o primeiro romance de Duras a conseguir notoriedade, tendo chegado perto de conquistar o Prmio

    Goncourt. Seu enredo baseia-se em experincias da biografia da autora,

    embora bastante recriadas. A histria que gera o livro a tragdia de sua me,

    vivida na Indochina francesa, terra natal de Marguerite. Viva e vivendo muitas

    dificuldades financeiras, a me investe as economias de dez anos de trabalho

    na compra de uma concesso de terras, pensando sobretudo no futuro dos

    filhos. Sem saber que deveria ter pago propina aos agentes do cadastro

    colonial, lhe so conferidas terras incultivveis, que durante alguns meses do

    ano so invadidas pelo mar. A me v perder-se o trabalho de um dcada

    quando o mar devasta o que restara dos sonhos que a levaram ainda jovem a

    tentar construir a vida nas colnias asiticas. Esteve a ponto de perder

    completamente a razo. Possuda pela raiva, decide resistir e realizar o

    impossvel: barrar o avano do oceano, construindo barragens. A intensidade

    de sua f convence multides de colonos e nativos da regio, que se engajam

    na construo das tais barragens. Sem possuir nada, a me empenha a si

    mesma nessas barragens, o sentido de sua existncia. E perde. As barragens

    desabam ao primeiro avano do mar.

    A narrativa do romance principia num momento posterior, quando tudo j

    est perdido, a tragdia j aconteceu. Alienada at de si mesma, a me se

    apega ao que lhe restou: seu destino trgico e sua condio de me. Joseph e

  • Suzanne, os dois filhos, esto presos loucura da me, terra morta. O

    romance ser, ento, no a narrativa de uma tragdia, mas sim do

    esvaziamento da herona, da disperso de sua tenso trgica, de sua loucura.

    A situao lembra a de dipo em Colono: dipo j est acabado e cego, resta-lhe caminhar morte, para que sua filha Antgona possa finalmente

    libertar-se de estar presa ao pai e comear, talvez, uma vida (ou viver sua

    prpria tragdia).

    A fuga dos filhos existe desde o incio como possibilidade. Joseph o

    elemento ativo desse processo, que vive a angstia e o desejo de evadir-se,

    enquanto Suzanne vive sobretudo a espera. No decorrer do livro, o desejo de

    ir-se embora se tornar insuportvel; finalmente surgiro as condies para

    que tal se concretize, e a me, sem os filhos, esvaziada at mesmo de sua

    condio de me, se deixar finalmente levar pela morte. At que isso

    acontea, ela far a manuteno desta situao invivel. O paradoxo est em

    que a inviabilidade o extremo da instabilidade, quando inevitavelmente algo

    novo desponta; a sua manuteno, a estabilidade no extremo da instabilidade,

    a prpria substncia da loucura da me.

    Nesta situao, a msica exerce um papel central, por meio da figura do

    fongrafo. Ele , primeiramente, um lenitivo, que permite suportar a situao.

    So as palavras de Joseph: quando no tem mulheres, sem cinema, quando

    no tem absolutamente nada, a gente se enche menos com um fongrafo26

    (Duras, 1997, p.189). Ou ainda:

    O fongrafo tinha um papel importante na vida de Joseph. Ele tinha cinco discos e

    os tocava toda noite, regularmente, depois do banho. s vezes, quando estava bem de saco cheio, ele os tocava um depois do outro, por toda uma parte da noite, at que a me tivesse se levantado duas ou trs vezes para vir ameaar de jogar o fongrafo no rio. (...)

    Quinze dias sem fongrafo e eu me mando daqui. 27 (Idem, p.166)

    26 Original: quand on na pas de femmes, pas de cinma, quand on na rien du tout, on

    semmerde un peu moins avec un phono. 27 Original: Le phonographe tenait une grande place dans la vie de Joseph. Il avait cinq

    disques et les passait chaque soir, rgulirement, aprs le bain. Quelquefois, quand il avait bien marre, il les remettait les uns aprs les autres, sans arrt, toute une partie de la nuit jusqu ce que la mre se soit leve deux ou trois fois pour venir le menacer de jeter le phonographe dans la rivire. (...) Quinze jours sans phono et je fous le champ dici.

  • Se o reduzido nmero de discos j enfatiza a repetio, esta restringe-se

    ainda mais, pois praticamente uma nica cano que se repete por todo o

    livro: Ramona. Um trecho da letra citado:

    Ramona, jai fait un rve merveilleux Ramona, nous tions partis tous les deux Nous allions, Lentement Loin de tous les regards jaloux Et jamais deux amants Navaient connu de soirs plus doux (Idem, p.198) [Ramona, tive um sonho maravilhoso Ramona, tnhamos partido juntos Ns amos Lentamente Longe de todo cime E jamais dois amantes Conheceram noites mais doces]

    A letra de Ramona alimenta, mantm viva, a esperana de um dia deixar

    aquele lugar. Sobretudo para Joseph, a sada era s uma questo de tempo:

    Com Ramona, era inevitvel, a esperana de que os carros que deveriam

    lev-los para longe no tardariam a parar ficava mais vivaz.28 (Idem, p.189) A

    msica tem, portanto, uma funo dbia em Un barrage..., pois ao mesmo tempo que ajuda a suportar e portanto prolonga uma situao a rigor

    insuportvel, tambm fortalece a esperana e o desejo de abandon-la. Ela

    permite que a situao persista, ao mesmo tempo que anuncia o seu fim.

    Assim, neste romance a msica se ope loucura. A loucura aqui a

    morte em vida da me, a sua priso situao de morte, enquanto que a

    msica vem tornar possvel aos filhos resistir morte e imaginar a possibilidade

    de dela libertar-se. A msica, neste momento, a cano, ou seja, uma msica

    cotidiana, em que o fluir de uma voz que entoa uma letra numa melodia o

    dado principal. Participamos do reino de Orfeu, o poeta-msico que seduz a

    todos mulheres e homens, deuses e animais encantando a vida ordinria e

    dando a imaginar um mundo melhor e permite imaginar at mesmo a

    superao da morte. Orfeu sendo um semideus da linhagem de Apolo, sua

    msica participa da ordem do mundo, provm deste princpio e capaz de

    28 Original: Avec Ramona, ctait invitable, lespoir que les autos qui devaient les emmener

    loin, ne tarderaient plus sarrter, devenait plus vivace.

  • auxiliar a reencontr-lo. Essa msica, como Ramona, abre uma fenda no

    mundo, rompe a sua compacidade e permite que ele se recombine, que ele

    seja outra coisa diferente do que .

    Entretanto, importante lembrar que o meio de difuso dessa msica

    bastante evidenciado no romance. A imagem do fongrafo a repetir

    incansavelmente sempre a mesma cano talvez diga algo sobre a situao

    vivida por aquela famlia. Afinal, eles esto vivendo como num disco riscado,

    num ciclo constante que nunca se completa, um corpo agonizante que nunca

    acaba de morrer. Ampliando o foco para alm da famlia, observa-se que tudo

    na colnia segue o mesmo ritmo travado, paradoxal, da vida que se constri na

    prpria autodestruio.

    Cada mulher da plancie, desde que jovem o bastante para ser desejada por seu

    marido, tinha o seu filho a cada ano. Na estao seca, quando os trabalhos nos arrozais relaxavam, os homens pensavam mais no amor e as mulheres eram naturalmente possudas nesta estao. E nos meses seguintes os ventres engordavam. (...) Isso continuava regularmente, num ritmo vegetal, como se de uma longa e profunda respirao, a cada ano, o ventre de cada mulher se inchasse de um beb, o expelisse, para em seguida retomar o flego de um outro.29 (Idem, p.216) preciso notar que, com a mesma regularidade com que nascem, os

    bebs morrem, so sepultados nas terras lamacentas da plancie. Trata-se de

    um ritmo vegetal, involuntrio, de algo que se faz por si s. No se pode

    contudo dizer que se trate de um ciclo de vida e morte, pois na realidade a vida

    mesma no se completa; a criana sempre (ou quase sempre) abortada em

    formao, uma no-vida, algo que no vinga, e que contudo se mantm

    numa certa estabilidade, digamos, natural. vida sem devir, sem vontade, o

    oposto mesmo de vida. Mas, ainda assim, vida.

    No seria ento possvel pensar que Un barrage contre le Pacifique j contm o grmen de uma penetrao da msica na prpria estrutura formal do

    romance, algo que ser plenamente evidenciado em India Song? No estaria a tambm o grmen da morte do mundo mencionada acima? Este mesmo

    tipo de ciclo fechado que se repete indefinidamente est presente no romance

    29 Original: Chaque femme de la pleine, tant quelle tait assez jeune pour tre dsire par son

    amri, avait son enfant chaque anne. la saison sche, lorsque les travaux des rizires se relchaient, les hommes pensaient davantage lamour et les femmes taient prises naturellement cette saison-l. Et dans les mois suivants les ventres grossissaient. (...) Cela continuait regulirement, un rythme vgtal, comme si dune longue et profonde respiration, chaque anne, le ventre de chaque femme se gonflait dun enfant, le rejetait, pour ensuite reprendre souffle dun autre.

  • Le marin de Gibraltar (1952). Neste caso, o ciclo consiste em buscar o marinheiro de Gibraltar sem nunca encontr-lo, passar de porto em porto, de

    amante em amante, sempre na busca desse amor.

    Retorno ao inferno

    Como em Un barrage..., uma grande perda ou experincia traumtica figura como origem em muitas obras de Duras. No se trata necessariamente

    de uma origem autobiogrfica, como o caso de Un barrage..., muitas vezes trata-se to somente de uma origem intradiegtica que polariza a ao, como

    um ncleo gerador. Em Un barrage..., como vimos, o movimento principal est em libertar-se deste passado trgico, em afastar-se dele, e a msica tem o

    papel de anunciar tempos melhores. Mas em outras obras, ao contrrio, a

    protagonista (pois geralmente uma mulher) busca reencontrar este passado

    traumtico. Esta aproximao, no entanto, mostra-se a rigor impossvel, pois a

    separao definitiva, irremedivel. Mesmo assim, o corpo clama por reviver a

    morte.

    Em Moderato Cantabile (1958), Anne Desbaresdes volta repetidas vezes ao caf onde no primeiro captulo um homem, numa espcie de xtase

    de amor, mata sua amante. Neste caf, freqentado pelos operrios que

    trabalham na empresa dirigida por seu marido, ela conhece aquele que vir a

    ser seu amante; e para l retorna dia aps dia. O tema principal de seus

    dilogos o assassinato passional que ali teve lugar. Tudo se passa como se

    buscassem de alguma forma recriar as condies daquele crime; como se,

    estando irremediavelmente distantes de entender suas razes profundas, e ao

    mesmo tempo profundamente atrados pela possibilidade de um to extremo

    amor, precisassem repetir a histria.

    A msica posta em jogo desde o ttulo em Moderato Cantabile. E o livro se inicia com a cena de uma aula de piano, em que a professora chama a

    ateno justamente a essa expresso:

    Voc quer ler o que h sobre sua partitura? Perguntou a senhora. Moderato cantabile, disse o menino.30

    30 Original: Veux-tu lire ce quil y a au-dessus de ta partition ? demanda la dame. /

    Moderato cantabile, dit lenfant.

  • (Duras, 1958, p.7)

    O menino desempenha o papel de leitor. Leitor de uma partitura,

    verdade, mas o paralelismo metalingstico se coloca inevitavelmente: aquilo

    que ns, leitores do romance, temos sob os olhos tambm traz sobre si a

    inscrio moderato cantabile, e como se a professora de piano estivesse

    chamando tambm a nossa ateno para isso. Somos ento identificados

    posio do menino, por um paralelismo de funo (entre o nvel da histria e o

    nvel da enunciao). Duras comporia uma dupla simetria: com Diabelli, o autor

    da sonatina que o menino deve tocar, e com a professora.31

    Numa partitura, a indicao de andamento moderato cantabile diz

    respeito ao modo como devem ser tocadas, lidas, as estruturas musicais que

    ela apresenta. Atribui-se um certo carter ou sabor ao fluir do tempo musical. O

    vocabulrio tradicionalmente utilizado, principalmente a partir do sculo XIX, diz

    respeito muitas vezes a um sentido emocional, que estaria implcito no

    andamento. No se trata portanto somente de uma velocidade dos eventos

    musicais, mas tambm de algo que o executante deve fazer aflorar na

    sensibilidade do ouvinte. Neste contexto, o termo cantante projeta uma luz

    vocal sobre a msica instrumental: a msica no cantada, mas traz em si a

    memria de uma cano. Mas como pode a partitura emprestar um modo de

    leitura ao livro? possvel que o paralelismo que identifica o leitor ao menino o

    coloque na seguinte situao: o leitor deveria efetivamente assumir o papel de

    um leitor de partitura, que deve fazer viver aquilo que est escrito, conferindo

    assim ao ttulo um sentido funcional. O leitor de Duras seria ao mesmo tempo

    executante e ouvinte, como um msico que toca para si mesmo. E o texto

    deveria ento soar internamente para o leitor com um tempo moderado e como

    que cantado; ele deveria ser capaz de ouvir a msica que se introduz no fluxo

    das frases.

    A professora enfrenta a resistncia do menino e insiste que ele diga o

    significado do termo italiano. A cena, qual a me assiste pouco mais que

    passivamente, sem qualquer interveno relevante, prolonga-se em deflagrada

    31 Num outro plano, Duras se identifica com a me: o romance tambm baseado num caso

    vivido por Duras, quando ela insistia em que seu filho, bastante talentoso, tocasse piano.

  • oposio de foras. Quando o menino finalmente pronuncia as palavras

    moderado cantante (modr chantant), a professora ataca:

    Recomece, diz a senhora. O menino no recomeou. Recomece, eu disse. O menino no se moveu muito mais. O rudo do mar no silncio de sua obstinao se

    fez ouvir de novo. Num ltimo sobressalto, o rosa do cu aumentou.32 (Idem, p.10)

    neste momento que o menino declara expressamente: Eu no quero

    aprender piano. Como por um reflexo, na rua, embaixo do imvel, um grito de

    mulher retiniu. Um gemido prolongado, contnuo, se elevou, to alto que rachou

    o rudo do mar (Idem, ibid.). Na citao acima nota-se a penetrao do mundo

    exterior na sala de aula, algo que vinha se desenvolvendo desde o incio da

    cena. Mas s quando se desvela totalmente o jogo de foras entre o menino

    e a professora que ocorre o ato que mover todo o romance: um homem matou

    sua amante dentro do caf e ainda jaz sobre o corpo dela, numa espcie de

    transe. H portanto uma simultaneidade entre, na realidade, trs planos: a aula

    de piano, o caf onde ocorre o crime e o ambiente externo (o rudo do mar,

    rudos de barcos e mquinas do porto, as cores do cu, etc.).

    De fato, toda essa cena se desenvolve em justaposio de planos, como

    uma montagem paralela cinematogrfica. A justaposio aqui funciona para

    criar a sensao de simultaneidade, numa espcie de contraponto a trs vozes.

    Inicialmente so duas vozes: o interior e o exterior. O grito d a entrada a uma

    terceira voz, que tambm vem do exterior, mas em vez de elementos do

    ambiente (sons da natureza e sons dos barcos e mquinas no porto) do som

    das pessoas que se acumulam em torno do caf que ela se constitui. bom

    lembrar que a segunda voz (e mesmo a primeira) no apenas constituda de

    sons, mas tambm da luminosidade do cu, em transformao num fim de

    tarde. quando a montagem cinematogrfica parece encontrar-se com o

    contraponto musical, tudo isso no texto literrio. A ligao indicada no

    apenas pelo ttulo do livro, mas tambm pelo fato da cena apresentar uma aula

    de piano.

    32 Original: Recommence, dit la dame. / Lenfant ne recommena pas. / Recommence, jai

    dit. / Lenfant ne bougea pas davantage. Le bruit de la mer dans le silence de son obstination se fit entendre de nouveau. Dans un dernier sursaut, le rose du ciel augmenta..

  • Nos captulos que se seguem at o final do livro, no se dar tanta

    evidncia construo em planos paralelos. Algo no entanto faz lembrar o

    fongrafo de Un barrage... Ainda que com variaes, as aes se repetem, dia aps dia, como presas a um mecanismo. A mulher retorna com seu filho quele

    mesmo lugar, re-encontra seu amante, bebe com ele, sob a forte presena do

    mar que ressoa igualmente esse ciclo.

    Algo aproxima Moderato Cantabile de Hiroshima, mon amour (1959) filme dirigido por Alain Resnais (com roteiro de Duras) que marcou o incio da

    Nouvelle Vague , do ponto de vista da relao texto-msica. Na realidade, isto

    ficar mais claro em obras posteriores, mas j pode ser reconhecido aqui.

    A cena inicial de Hiroshima, mon amour, tal como descrita no roteiro (pois o filme no coincide exatamente), tambm apresenta uma construo em

    trs planos (aos dois descritos a seguir se acrescenta a msica de Giovanni

    Fusco). As cenas referentes catstrofe de Hiroxima so sobrepostas ao

    dilogo entre a atriz francesa e seu amante, o arquiteto japons. Eles falam

    dessa catstrofe, da possibilidade e impossibilidade de v-la. O dilogo em si j

    instaura um contraponto entre o sim e o no: ela diz que viu tudo em

    Hiroxima e enumera tudo o que viu; em resposta, ele apenas pontua que ela

    no viu nada em Hiroxima. Este dilogo se d em um registro declamatrio,

    num tom solene. H um trabalho explcito de estilizao da voz, afastando-a da

    fala cotidiana ou realista e aproximando-a do canto. No estaramos em um

    registro prximo ao cantabile, um canto que se introduz internamente num

    texto instrumental? Ao final da cena, quando os amantes so focalizados, as

    vozes deixam esse registro. A rubrica revela algo sobre essa mudana de

    registro:

    O tom recitativo cessa. As ruas de Hiroxima, mais ruas. Pontes. Passagens cobertas. Ruas. Subrbio. Trilhos. Subrbio. Banalidade universal.33 (Duras, 1997, p.558)

    33 Original: Le ton rcitatif cesse. / Les rues de Hiroshima, les rues encore. Des ponts. /

    Passages couverts. / Rues. / Balieue. Rails. / Banlieue. / Banalit universelle.

  • O abandono do recitativo ento marcado por um retorno banalidade.

    Como se a musicalidade (estilizao) introduzida na fala fosse um recurso de

    elevao, necessrio para se tratar de um tema to fundamental quanto a

    bomba de Hiroxima, que contrastaria com tudo afinal. Depois disso, tudo

    banal.

    Em Dix heures et demie du soir en t (1960), que como Moderato Cantabile se desenvolve em torno de um crime passional (Rodrigo Paestra assassinou sua namorada e o amante dela), encontramos novamente um

    trabalho de polifonia. Christian Doumet analisa uma cena deste romance para

    mostrar o trabalho de estruturao musical, que ele chama de escritura

    auditiva. Inicialmente, Doumet afirma que sem dvida, preciso aqui estender

    a acepo da palavra msica a toda sorte de sonoridades naturais, tratadas, na

    escritura romanesca, como verdadeiros temas meldicos (grifei) (Doumet,

    2000, p.84). Atentemos ao fato de que o tratamento conferido s tais

    sonoridades naturais que as transforma em msica, processo no qual

    reconhecemos duas facetas.

    A primeira, sublinhada por Doumet, diz respeito organizao dos sons

    no tempo, que se daria de maneira similar a temas meldicos. A segunda,

    hierarquicamente anterior primeira quanto transformao que se opera, diz

    respeito ao fato de que esses sons devem antes de mais nada ser ouvidos

    como musicais, includos no universo da msica. O foco se deslocou dos sons

    escuta, do objeto ao tratamento que lhes dado no ato perceptivo (que

    mais que nunca ganha um estatuto criador).

    Em seguida, Doumet reala o fato de que a ausncia de luz coloca os

    sons ainda mais em relevo: Em Dix heures e demie du soir en t, a trama

    sonora toma um lugar ainda maior pelo fato de que uma parte do romance

    envolvida pela obscuridade devido a uma pane eltrica. Doumet atenta

    escritura auditiva, mas seria possvel incorporar sua leitura as

    transformaes observadas nas luzes, tambm tratadas como temas

    meldicos, como se poder observar. A escurido inicial teria ento de ser

    entendida como um silncio da luminosidade. Vejamos ento como Doumet

    analisa a cena:

  • O episdio no decurso do qual Maria recolhe em seu Rover o assassino Rodrigo Paestra, ento escondido em um telhado, nos d a ler entre lufadas de vento o canto da mulher, o ronco do motor do automvel e os rudos da patrulha. Todo o virtuosismo da escritura auditiva reside nisso: que cada notao sonora s advm se fincando numa enorme massa de silncio, essa massa que constitui a espessura mesma da angstia durante a cena. Por um efeito notvel de ruptura, cada som estria a pgina, rasgando a compacidade imvel do instante. A passagem se abre, alis, com um grito: O vento quente (...) faz gritar as palmeiras da praa; e se acaba da mesma maneira: Uma janela se acendeu. Algum gritou. De um ao outro, a obscuridade das coisas se aclara; sem desenhar ainda um rosto (e o rosto do assassino ser pouco a pouco revelado pela aurora no carro), ela pelo menos se encarnou e tomou o sentido do desejo de Maria por Paestra (As coisas gritam. o vento quente que acaba de acordar? Rodrigo Paestra?). (Idem, p.84-5)

    Note-se a presena de eventos pontuais, como os gritos e a janela que

    se acende, e de processos mais contnuos, como o som do automvel ou o

    grito das palmeiras movidas pelo vento e a luz da aurora que paulatinamente

    se instala. Para finalizar, Doumet aponta um acontecimento paralelo cujo foco

    est no tratamento dado voz:

    Noutro lugar, a voz de Pierre adquire uma beleza particular, quase oratria, que se eleva por sobre as pancadas da tempestade. Assim a escritura avana em grandes rasgos sonoros no enigma do mundo, como a desbravar uma floresta.34 (Idem, p.85)

    La Musica (1965), embora seja uma pea sem grande interesse, enfocando o drama de um casal, ilumina um novo aspecto do problema da

    msica na obra durasiana. Aqui, a presena to explcita da msica no ttulo

    que torna gritante o fato de que ela totalmente ausente do corpo mesmo da

    pea. O ttulo instaura uma questo, que no respondida. Lemos ou

    34 Original: (...) sans doute faut-il ici tendre lacception du mot musique toutes sortes de

    sonorits naturelles, traites, dans lcriture romanesque, comme de vritables thmes mlodiques. Dans Dix heures et demie du soir en t, la trame sonore tient une place dautant plus grande quune partie du roman est enveloppe par lobscurit due une panne dlectricit. Lpisode au cours duquel Maria recueille dans sa Rover le meurtrier Rodrigo Paestra, alors embusqu sur un toit, nous donne lire entre les menes du vent le chant de la femme, le ronflement du moteur de lautomobile et les bruits de la patrouille (684-685). Toute la virtuosit de lcriture auditive rside en ceci : que chaque notation sonore ny advient quen sarrachant une norme masse de silence, cette masse qui constitue lpaisseur mme de langoisse au fil de la scne. Par un effet saisissant de rupture, chaque son strie la page, y dchirant la compacit immobile de linstant. Le passage souvre, dailleurs, sur un cri: Le vent chaud (...) fait crier les palmiers de la place ; il sachve de mme : Une fentre est allume. On a cri. De lun lautre, lobscurit des choses sclaire ; sans dessiner encore un visage (et ce sera le visage du meurtrier peu peu rvl par laube dans la voiture), au moins sest-elle incarne, et a-t-elle pris le sens du dsir de Maria pour Paestra (Les choses crient. Est-ce le vent chaud qui vient de se lever ? Est-ce Rodrigo Paestra ?). Ailleurs, la voix de Pierre acquiert une beaut particulire, presque oratoire, slever au-dessus du fracas de lorage. Ainsi lcriture avance-t-elle grands coups de dchirures sonores dans lnigme du monde, comme on dfriche une fort.

  • assistimos pea procurando uma msica que no se manifesta. Somos

    convidados (ou obrigados) a especular sobre o lugar dessa msica.

    Na pea, um homem e uma mulher se encontram no saguo de um hotel

    na cidade onde anos antes foram casados. Acabaram de assinar o acordo de

    divrcio. Nenhum dos dois precisava estar presente, mas ambos optaram por

    estar ali: para ver-se (mutuamente e a si mesmos). O encontro ser pretexto

    para que relembrem o inferno que havia sido o casamento, quando estiveram

    muito prximos do pior: ele, de mat-la (numa ocasio, na estao ferroviria,

    ele aguardava, com uma arma, seu retorno do encontro com um amante em

    Paris); ela, de matar-se (quando ele decidiu deix-la). H apenas dilogos,

    conversas ao telefone. De msica, nem sinal.

    Onde est a msica? Por que evoc-la em italiano? Ser por uma

    referncia ao universo operstico e grande tragdia que esteve a ponto de

    ocorrer? Mais importante que isso, como afinal a msica pode ser ao mesmo

    tempo centro e ausncia da pea? A msica no seria a um sentido calado e

    estrondoso? Esse amor falecido e reencontrado (com tranqilidade por ela,

    beira do desespero por ele), amor que continha a morte como possibilidade

    latente? A msica no seria ento esse silncio espesso, esse vazio cheio?

    A voz da loucura

    Chegamos ao final dos anos 60, quando reencontramos a fase em que

    se inscreve India Song. Nesta fase Duras far constantes menes msica em entrevistas e escritos. tambm quando se dar a gestao desse novo

    gnero, o texto teatro filme, e quando a autora passar, durante uma

    dcada, a ter como atividade principal o cinema em vez da escritura literria.

    Embora apenas em India Song Duras utilize expressamente o termo texto teatro filme, j Dtruire, dit-elle (1969) faria jus a tal denominao. Trata-se primeiramente de um texto literrio, mas que contm ao final

    instrues para uma eventual montagem teatral e a prpria Duras realizou um

    filme a partir do livro. Nota-se o parentesco com Lamour (1971) e La femme du Gange (1973). Em que consiste esse parentesco? A questo poderia ser reformulada da seguinte maneira: como pode um livro funcionar ao mesmo

    tempo em trs universos semiticos to distintos como a literatura, o teatro e o

  • cinema, como se fosse a um s tempo um romance, uma pea de teatro e

    um roteiro de cinema? Qual esse ponto comum, essa encruzilhada

    semitica onde Duras situa o escrito?

    Sem dvida, preciso que o escrito contenha em si os elementos que

    caracterizam esses gneros, mas que se abstenha dos elementos que sejam

    exclusivos a cada um deles, isto , daqueles que sejam excludentes com

    relao aos outros universos semiticos. Deve haver a ento uma confluncia

    de linguagens, a concepo de um espao-tempo que opere nos trs

    universos, realizando uma porosidade entre eles. Essas questes sero

    desenvolvidas na primeira parte da tese, em que o foco central estar nas

    condies de possibilidade de um texto teatro filme. Aqui, gostaria antes de

    enfocar um conceito fundamental na obra de Duras, que neste momento se

    mostra da forma mais explcita: a porosidade.

    A porosidade

    H, portanto, uma porosidade entre os universos semiticos que se

    realiza no escrito, estabelecendo contatos livres (no-lgicos, no-lineares)

    entre as coisas mais diversas. Esse ponto essencial, pois, ampliando o foco

    de nosso olhar, percebemos que a prpria noo de porosidade , por assim

    dizer, porosa em Duras e admite sentidos em contextos muito distintos,

    podendo ser aplicada entre diferentes nveis de articulao da obra, podendo

    inclusive ser generalizada a uma postura diante da prpria escritura.

    A porosidade de maneira bastante explcita a caracterstica definidora

    da figura do louco. O louco durasiano o ente poroso, totalmente aberto ao

    mundo, atravs do qual passam idias, sentimentos e memrias alheios, sem

    se fixar. Ele poroso, o Louco. Ele no nada, logo as coisas o atravessam

    completamente (Duras & Porte, 1977, p.96).

    Duras se refere ao Louco de La femme du Gange. No texto deste livro o louco descrito da seguinte maneira: O Louco, a forma oca do Louco

    atravessada pela memria de todos. A cabea passadio atravessada pela

    memria do todo aqui incorporada aos muros (Idem, ibid.). No pode haver

    uma real diferena entre o louco e o lugar que ele habita. E o lugar tambm o

    lugar da memria, essa memria comum e ancestral, anterior a toda cultura:

  • uma cabea passadio, sim, esburacada. isso, sim. Como ele no nada, ele no oferece resistncia a nada e a memria para mim uma coisa espalhada em todos os lugares, eu percebo os lugares dessa maneira... (Idem, ibid.)

    Duras aponta ainda a possibilidade de que no apenas o louco, mas

    qualquer um seria permevel a essa memria ancestral. O que nos veda o

    acesso a tais experincias so as resistncias culturais, justamente aquelas

    que o louco no tem. Tais resistncias so como um preenchimento, uma

    vedao mesmo:

    muito raro que eu ande por meu jardim, pelo campo, ou aqui, na praia, sem que eu reviva certas coisas muito, enfim, incomensuravelmente distantes. (...) e eu digo que so os lugares que recendem essa memria... que se no oferecssemos resistncia cultural ou social, seramos permeveis a isso. (Idem, ibid.)

    No livro de dilogos com Michele Porte do qual extra essas citaes,

    Les Lieux de Marguerite Duras (1977), Duras passa em revista o conjunto da sua obra daqueles anos e assim constri todo um imaginrio da porosidade, a

    comear pela figura da floresta. Espao poroso por excelncia, que se pode

    atravessar mas no habitar, a floresta o lugar do perigo e do medo, da

    violncia, que remonta s florestas onde Duras entrava quando criana em

    plena desobedincia. a mesma floresta que Joseph de Un barrage... adentra para caar panteras, aonde Alissa e Stein de Dtruire... vo para se amar. A floresta portanto o lugar onde os instintos primitivos se manifestam

    livremente, aonde a civilizao ainda no chegou: Todas as florestas, em

    princpio, remontam pr-histria. A floresta tambm onde nasceram as

    bruxas:

    Michelet diz que as bruxas surgiram assim. Durante a Idade Mdia, os homens iam

    guerra ou cruzada, e as mulheres no interior ficavam completamente ss, isoladas, durante meses e meses, em suas cabanas, e foi assim, a partir da solido, de uma solido inimaginvel para ns hoje em dia, que elas comearam a falar s rvores, s plantas, aos animais selvagens, ou seja, a entrar..., a..., como dizer?, a inventar a inteligncia com a natureza, a reinvent-la. Uma inteligncia que devia remontar pr-histria, reat-la. E as chamaram de bruxas, e as queimaram. (Idem, p.12-3)

    Foi na floresta que ns, as mulheres, falamos pela primeira vez, que proferimos uma

    fala livre, uma fala inventada; tudo isso que eu lhe dizia de Michelet, que as mulheres comearam a falar aos animais, s plantas, uma fala delas, que elas no tinham aprendido. porque era uma fala livre que ela foi punida, que, por causa dessa fala, a mulher desistia de seus deveres para com o homem, para com a casa, justamente. a voz da liberdade, normal que ela provoque medo. (Idem, p.27-8)

  • Os elementos atribudos inicialmente floresta so incorporados

    caracterizao da fala feminina, autntica porque inventada. A fala da mulher

    nasce da floresta, como um saber ancestral que no aprendido, mas

    recuperado nesse contato poroso com o ambiente selvagem. a inveno de

    uma inteligncia com a natureza que libera a mulher da sociedade, que

    masculina, tendo como conseqncias prticas imediatas o abandono dos

    deveres domsticos. O medo que ela provoca no homem se deve liberdade

    dessa fala, a algo que ameaa fazer ruir toda a sociedade masculina, e isso

    explica a dimenso da reao que ela provoca. Trata-se de calar essa voz livre,

    ao mesmo tempo muito menor e muito maior que a do homem: menor porque

    ela se abstm de toda civilizao, contida na fala masculina, mas maior porque

    muito mais antiga, csmica em certo sentido, maior que o Homem. O medo que

    ela provoca o mesmo que a floresta pode provocar. Voltarei a isso.

    Outro dado importante a casa (a cabana da bruxa). A casa um

    lugar feminino:

    S uma mulher pode ficar vontade [na casa], pode aderir-lhe completamente, sim, sem se entediar. (...) Um homem retorna [ casa] noite, come nela, dorme nela, se aquece nela, etc. Uma mulher outra coisa, h uma espcie de olhar exttico, de olhar em si da mulher sobre a casa, sobre seus cmodos, sobre suas coisas, que so evidentemente o contedo de sua vida, sua razo de ser, praticamente, mesmo, para a maior parte delas, que o homem no pode compartilhar. (Idem, p.21)

    Duras conta que as suas personagens mulheres habitaram a sua casa, e

    como se essas mulheres a contivessem, a ela, Duras, como se elas e

    [Duras] fossem dotadas de porosidade. a mesma porosidade de sempre: a

    durao na qual elas esto mergulhadas (dans laquelle elles bagnent) uma

    durao de antes da fala, de antes do homem (Idem, p.12). O olhar em si da

    mulher aquele que entra em contato direto com as coisas, poroso, portanto,

    enquanto que o olhar do homem precisa da intermediao da fala, da palavra.

    Porque o homem, quando no pode nomear as coisas, entra em perdio, na

    infelicidade, fica desorientado. O homem doente de falar, as mulheres, no.

    Nomear as coisas, o ato admico, apropriar-se delas antes de ouvi-las,

    instaurando uma distncia irrecupervel. Diante das coisas, dos lugares,

    preciso primeiro calar, fazer-se vazio, para ento comunicar-se. O feminino

  • aqui, como no I-Ching, o receptivo. Assim, a fala feminina ser uma fala cheia de silncio, de vazio interno.

    Se a porosidade do louco, da floresta, da casa e da mulher, esses

    lugares dotados de vazio parece sempre fazer remontar a um tempo anterior

    civilizao e ao homem, fala, enfim, a um passado incomensuravelmente

    distante, h uma inverso quando a msica entra em jogo.

    Esto ligadas, a floresta e a msica, em algum ponto. (...) Acho que h na msica

    uma completude, um tempo que no podemos conceber atualmente. H uma espcie de anunciao na msica de um tempo por vir em que se poder ouvi-la. (Idem, p.28-9)

    Se a floresta a permanncia de uma pr-histria, a msica anuncia um

    porvir ps-histrico. Se a fala (masculina) no dava conta de dizer a floresta e

    o silncio, porque sobreps a esse passado um vu intermedirio, a msica

    depende de uma superao da fala. Atualmente, no se pode falar da msica,

    mas um dia ser possvel conceber sua completude, e de se supor que se

    trate de um tempo ps-fala. Novamente, o medo est presente, na floresta

    como na msica:

    Quando tenho medo da floresta, tenho medo de mim, com certeza, (...) eu tenho medo de mim desde a puberdade, no . Na floresta, antes da puberdade, eu no tinha medo.

    E a msica me assusta tambm. (...) A msica, ela me... enfim, ela mexe comigo e no posso escut-la, embora eu pudesse quando era jovem, quando era ignorante ainda, e ingnua, eu podia escutar msica.35 (Idem, p.28-9)

    O medo seria, portanto, um medo de si mesmo. H uma espcie de

    reatualizao do mito da queda. A puberdade o momento em que ocorre

    essa passagem no plano corporal, originando esse medo bastante bsico do

    lugar fsico que a floresta. A passagem da juventude maturidade outra

    forma de se vivenciar esse mito, agora no plano mais elaborado que o plano

    da linguagem. A conscincia da perda dessa ingenuidade se acompanha agora

    35 Original: Cest li, la fort et la musique, quelque part. Quand jai peur de la fort, jai peur de

    moi, bien sr, voyez-vous, jai peur de moi depuis la pubert, nest-ce pas. Dans la fort, avant la pubert, je navais pas peur. / Et la musique mpouvante aussi. Je pense quil y a dans la musique un accomplissement, un temps que nous ne pouvons pas actuellement recevoir. Il y a une sorte dannonciation dans la musique dun temps venir o on pourra lentendre. La musique, a me... enfin, a me bouleverse et je ne peux pas lcouter, alors que je pouvais quand jtais jeune, quand jtais ignorante, encore, et nave, je pouvais couter de la musique. (...) Bien sr, on ne peut pas parler de la musique, je ne peux pas vous parler de la musique.

  • do medo da msica. Tornar-se adulta , em larga medida, individuar-se. Num

    momento anterior conscincia, ao indivduo, no pode haver o medo. E

    individuar-se de certa forma perder essa porosidade, oferecer resistncia. A

    partir da, entende-se que a interpenetrao total com o lugar seja privilgio do

    louco e da criana, pois ela contm em si o risco de perder-se, o qual s no

    existe no vazio (o louco no nada) ou na ignorncia, na ingenuidade.

    preciso tentar compreender como a msica realiza essa porosidade,

    propor uma hiptese quanto a sua ligao com a floresta. A princpio, a ms