Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos,...

12
183 CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO: DEUS FEZ UM UNIVERSO ABERTO? A CIêNCIA ATUAL EXIGE UMA REVISÃO TEOLóGICA * CREATION AND EVOLUTION: GOD MADE AN OPEN UNIVERSE? CURRENT SCIENCE DEMANDS A THEOLOGICAL REVIEW Pedro Leiva Béjar ** RESUMO: A ciência mostra que os processos naturais estão regidos por leis e têm causas naturais que se podem investigar e conhecer. Quer dizer, que no postula nunca a Deus como causa de estes processos. Dado que descartar a ideia de onipotência divina é diluir o conceito mesmo de Deus, existe a necessidade de um reposicionamento teológico: Assim, se se conceberia a criação como uma ação de Deus em ‘kénose’, poderia explicar-se um Deus onipotente e, por vez, um mundo que evolui com suas próprias leis. PALAVRAS CHAVE: causas naturais; investigar; processos; kénosis; criação; Deus. ABSTRACT: The science shows that natural processes are governed by laws and have natural causes that can investigate and be known. Which means, we can never postulate God as the cause of these processes. Given to rule out the idea of Divine omnipotence means is to dilute the same concept of God, demands a need for theological repositioning: Thus, if conceived the creation as an action of God in ‘kenosis’ could explain one Almighty God, and at the same time, the world evolves with its own laws. KEY WORDS: natural causes; investigate; processes; kénosis; creation; God. * Publicado originalmente no site Tendencias21 - Tendencias de las religiones (ES), em 28 de junho de 2015. ** Pedro Leiva Béjar: Vice-diretor do Instituto Superior, San Pablo, Superior de Ciências, Ciências Religiosas San, Málaga (ES), doutor em teologia pela Facultad de Teologia de Granada, Instituto Superior de Ciencias Religiosas San Pablo, Málaga, y colaborador de Tendencias21 de las Religiones. Artigos

Transcript of Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos,...

Page 1: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

183

CRIAÇÃO E EVOLUÇÃO: DEUS FEZ UM UNIVERSO ABERTO?

A CIêNCIA ATUAL ExIgE UMA REVISÃO TEOLógICA*

Creation and evolution: god made an open universe? Current sCienCe demands a theologiCal review

Pedro Leiva Béjar **

resumo: A ciência mostra que os processos naturais estão regidos por leis e têm causas naturais que se podem investigar e conhecer. Quer dizer, que no postula nunca a Deus como causa de estes processos. Dado que descartar a ideia de onipotência divina é diluir o conceito mesmo de Deus, existe a necessidade de um reposicionamento teológico: Assim, se se conceberia a criação como uma ação de Deus em ‘kénose’, poderia explicar-se um Deus onipotente e, por vez, um mundo que evolui com suas próprias leis.

palavras Chave: causas naturais; investigar; processos; kénosis; criação; Deus.

aBstraCt: The science shows that natural processes are governed by laws and have natural causes that can investigate and be known. Which means, we can never postulate god as the cause of these processes. given to rule out the idea of Divine omnipotence means is to dilute the same concept of god, demands a need for theological repositioning: Thus, if conceived the creation as an action of god in ‘kenosis’ could explain one Almighty god, and at the same time, the world evolves with its own laws.

KeY words: natural causes; investigate; processes; kénosis; creation; god.

* Publicado originalmente no site tendencias21 - tendencias de las religiones (es), em 28 de junho de 2015.

** Pedro Leiva Béjar: Vice-diretor do Instituto Superior, San Pablo, Superior de Ciências, Ciências Religiosas San, Málaga (ES), doutor em teologia pela Facultad de teologia de granada, instituto superior de Ciencias religiosas san pablo, málaga, y colaborador de Tendencias21 de las Religiones.

Artigos

Page 2: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

184

Abordamos aqui uma questão de hoje e de sempre. Descartar a ideia da onipotência é diluir o próprio conceito de Deus. Por isso, quando nossa experiência da realidade põe em entre parênteses sua onipotência, ou esta se torna problemática em nossa forma de compreender o mundo, é a ideia mesma de Deus a que está em jogo. 

Para a reflexão que queremos expor seguiremos os seguintes passos: em primeiro lugar, partiremos das ideias espontâneas que costumamos ter sobre o que é a onipotência divina, considerando os problemas que nossos conhecimentos atuais colocam sobre a questão.

 Isto nos levará à conclusão da necessidade duma revisão teológica sobre a forma de pensar na onipotência de Deus, se se quer continuar falando deste atributo divino, no que está em jogo a plausibilidade mesma de sua existência. Isto leva à segunda parte, onde exporemos algumas chaves teológicas que consideramos imprescindíveis para uma compreensão adequada da questão.

 

problemas que suscita a onipotência

De uma maneira espontânea, como instintiva, quando pensamos na onipotência de Deus, nos fazemos a ideia de que Deus pode tudo sem restrições. Ao fim e ao cabo, ele está acima de tudo e seu poder é superior a qualquer poder natural.

 Isto parece implicar que Deus submete à sua vontade todo o criado, e ainda que não necessariamente é o mesmo, deduzimos disso que Deus dirige o mundo e a historia, inclusive de uma maneira arbitraria e caprichosa. Deus pode ser arbitrário, pensamos, porque dizer o contrario seria limitar seu poder. Portanto, a Deus, em seu governo do mundo, não escapa nenhum detalhe. De duas maneiras, um tanto simplórias, imaginamos o poder de Deus: ou sendo a causa direta de cada acontecimento, por pequeno que seja, ou aceitando que possa interromper quando quiser as leis da natureza, ou intervir em seus resquícios, posto que são obra sua.

 Desde a visão científica

Um primeiro elemento que devemos tomar em consideração é evidente: a ciência mostra desde seus inicios que nos processos naturais existem leis que regem o comportamento dos fenômenos. Quer dizer, os processos naturais têm causas naturais que podemos investigar e conhecer. A ciência atual não postula nunca a Deus como causa dos fenômenos que investiga. Há um consenso no

Page 3: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

185

mundo científico a respeito da necessidade de se manter em um naturalismo, ao menos, metodológico.

 Um segundo aspecto que desafia a ciência atual é o que mostra o papel do acaso nos fenômenos naturais, que implica na possibilidade de dúvida sobre processo predeterminado na criação. De fato, hoje sabemos que o caminho da evolução até o homem é muito complexo, nada direto, e aparentemente imprevisível desde os estados originais da matéria e da vida. 

Desde o pensamento e a experiência comum

 Outro campo onde se questiona a onipotência divina é o eterno problema da teodiceia: Porque existe o mal? Porque Deus permite o mal? Já desde antiguidade se conhece o chamado paradoxo de Epicuro (s. III-IV a.C.), que diz mais ou menos o seguinte: Se Deus quer prevenir o mal e não pode, então não é onipotente. Porém se é capaz e não o faz, decorre que não deseja fazê-lo, e, portanto, não é bom.

  Nesta linha está atualmente o antiteísmo de C. Hitchens, sobre quem apresentou recentemente um trabalho o professor J. Monserrat: em primeiro lugar, Hitchens considera incompatível a ideia de Deus com a existência do mal.

  Porém, incidindo mais profundamente no argumento, assinala especialmente a incompatibilidade entre o mal que fazem as religiões e a existência de um Deus em que se crê e que as inspira. Como se Deus, que inspira as religiões, não pudesse controlar a orientação delas para o bem e fazendo com que se convertam em fontes inspiradoras de formas de violência? Para ele, é evidente que Deus não existe1. E, que pese o injusto desta generalização, convém aqui recordar que o Concilio Vaticano II já reconheceu o mal comportamento dos crentes entre as causas do ateísmo2.

  A dúvida sobre a existência de Deus não requer argumentos muito sofisticados. Realmente, já está preparada nas ideias espontâneas com as quais costumamos conceber sua onipotência. Na frase que muitos pronunciam diante uma desgraça, «Deus meu, que te fiz eu para merecer isto?», se expressa a perplexidade ante a desproporção entre o que merecemos e o que nos sucede, e é em si uma dúvida sobre Deus mesmo. Não é estranho que esta pergunta seja o começo de um processo que desemboca na incapacidade de crer diante da ineficácia das orações que solicitam a Deus bens que não chegam ou ser libertados

1 Cf. J. Monserrat, «Christopher Hitchens contra A religión», en Tendencias21 de las Religiones2 Cf. GS 19.

Page 4: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

186

de outros mais que nos acabam assaltando. Certamente, às vezes, parecem mais tangíveis as promessas de alguns gurus do que algumas concepções tradicionais de Deus oferecem.

 

Desde a teologia

Contra o que poderia parecer, os problemas postos por esta concepção ingênua da onipotência divina não só vêm do campo da ciência ou do mundo do pensamento. Também a teologia questiona esta forma de entender a Deus. Certamente, a teologia não pode tomar o caminho fácil de racionalizar o sofrimento no marco de um plano geral de Deus, porque um fato que não se pode prescindir é a paixão de Cristo, a paixão do próprio Filho de Deus, a paixão de Deus mesmo.

 Até certo ponto se pode entender que as criaturas sofram, já que são por definição limitadas. Porém o sofrimento atinge ao próprio Deus? Como entender que quando Deus se faz presente no mundo, o faz como servo sofredor? E, sem dúvida, isto é precisamente o núcleo central da fé cristã.

 Dentro das objeções apresentadas desde a própria teologia, não convém passar por alto a pergunta posta pela teologia feminista: Estaria nossa imagem de Deus enviasada por atributos tradicionalmente masculinos? É certo que existe culturalmente um imaginário que atribui ao masculino umas formas de poder que têm que ver com a força, o controle, a razão, a autossuficiência; enquanto a forma de exercer o poder feminino estaria em relação com a capacidade de criar, de cooperar, a interdependência ou a sensibilidade.

 A crítica que suscita a teologia feminista é que, desde uma ótica patriarcal, da qual dificilmente nossa cultura se liberta, tende-se a conceber o poder de Deus com aqueles traços masculinos, e tende-se ver os traços femininos mencionados como um menoscabo de seu onipotência. Porém, Deus é realmente assim?3.

  Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso sobre este tema porque existem perguntas que necessitam respostas, porque há questões às quais não responde adequadamente a concepção espontânea da onipotência divina.

3 Cf. I. g. Barbour, «El poder divino: um enfoque procesual», en J. Polkinghorne (ed.), A obra del amor. A criação como kénosis, Estella (Navarra) 2008, 31.

Page 5: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

187

re-novação do discurso teológico

  O enfoque propriamente teológico desta questão requer uma resposta desde a revelação divina. Esta é a norma de toda teologia que pretenda ser considerada como tal. Se a teologia caísse na tentação de buscar suas respostas desde a razão apenas, deixaria de ser teologia, se converteria em filosofia e, por certo, em má filosofia.

 O próprio e específico da teologia é obter respostas, que certamente teriam que apresentar-se ante o tribunal da razão, porém cuja fonte é a autocomunicação de Deus, que chamamos revelação, presente na Escritura e a Tradição. Este é seu enfoque e sua contribuição específica. 

Novo enfoque

 Para um enfoque teológico sobre qualquer questão, é imprescindível antes de mais nada partir dos princípios fundamentais. O primeiro é o de conceber a revelação de Deus como uma revelação progressiva. Ter em conta este princípio implica que ao tomar em consideração que o texto bíblico - somos conscientes de que cada texto não é senão um momento dessa revelação - é uma luz parcial sobre uma questão, porém que só se compreende adequadamente se ele vem situado no caminho de desvelamento progressivo e à luz da plenitude da revelação, que é Cristo.

 O segundo princípio é o da compreensão progressiva da revelação. Para os cristãos, a revelação chegou a sua plenitude com Jesus Cristo. Porém isso não quer dizer que a Igreja e os cristãos já compreendem perfeitamente toda a profundidade do mistério revelado. A ação do Espírito Santo na Igreja não é supérflua, pois que ele vai ajudando os crentes a compreenderem cada vez melhor o que se nos ha manifestado em Cristo. 

Tendo em conta estes dois princípios, compreender-se-á melhor nosso posicionamento teológico. Pretendemos, primeiro, percorrer brevemente o caminho progressivo da compreensão do tema pelo homem bíblico; num segundo momento, observar como a teologia hoje continua oferecendo novas luzes sobre a questão e possibilita uma renovação das ideias. 

A pergunta é: Deus é onipotente?; e a resposta é a criação como kénosis. Ao conceber uma criação como uma ação de Deus em kénosis, cremos explicar como pode ele ser Deus onipotente e por sua vez que o mundo se faça (crie) a si mesmo através de uma evolução com leis próprias e não previamente programada.

Page 6: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

188

 Isto nos permitirá compreender que o progresso e o êxito, porém também o azar, as extinções e o sofrimento, se integram coerentemente na ação criadora de um Deus que faz ao mundo fazer-se, deixando-lhe espaço para existir com uma dignidade própria. 

Kénosis no Antigo Testamento 

A palavra grega kénosis significa autovaziamento ou autoalienação. O Novo Testamento a usa para descrever o que o Verbo de Deus realizou ao encarnar-se e ao fazê-lo numa vida humana entregue até a cruz. em sua vida verdadeiramente humana, o Filho de Deus, de condição divina, se despojou da forma gloriosa que lhe correspondia. Dito de outra maneira, na encarnação ena cruz, Deus, que é sem limite por definição, paradoxalmente, se autolimita. 

No Antigo Testamento, o conceito de kénosis não é aplicado a Deus, que é bem mais é presentado como o Todo-poderoso4. Porém tampouco se pode dizer que seja uma ideia totalmente estranha. No profeta Oséias, Deus aparece como o Esposo traído que perdoa com misericórdia - um modo de expressar que certamente Israel é consciente de como frequentemente abandonou seu Deus, e em consequência como Deus aceita um mal que o afeta, ao menos enquanto sua vontade não é seguida pela criatura e ele mesmo é objeto de rechaço.

 É interessante aqui observar a evolução das ideias sobre Deus que existe entre dois mitos da literatura bíblica: o livro de Daniel e o livro de Jó. No livro do profeta Daniel encontramos histórias que uma e outra vez transmitem a ideia de que Deus não abandona o justo. O próprio Daniel, atirado à cova dos leões, salva a vida milagrosamente de alguns animais que não ousam tocá-los (cf. Dn 6). Isso sucede de modo claro porque Deus protege seu servo fiel. A mesma ideia é a que observamos na histórias dos três jovens lançados à fornalha ardente (cf. Dn 3) e de Susana, a bela mulher de Joaquim (cf. Dn 13). 

Sem dúvida, muito diferente é a forma de agir de Deus que se descreve no livro de Jó. Aqui vemos, a diferença do livro de Daniel, que Deus não protege o justo, Deus não faz nada diante da acumulação de desgraças que sobrevêm um servo bom e fiel. Decididamente, a história que se nos é contada no livro de Jó é mais fácil de aceitar que as do livro de Daniel, já que é mais análoga a nossa experiência pessoal e histórica. Esta que nos ensina que com frequência ao justo acontece o mal e ao malvado se dá bem na vida. Essa experiência de Jó o leva a compreender o mistério inatingível de Deus, porém outros chegam a imaginar

4 Cf. CEC. 269.

Page 7: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

189

um Deus malvado ou simplesmente a postular sua impotência, que na prática é o mesmo que sua inexistência. 

Ao menos uma conclusão decorre desta breve revisão de alguns mitos do Antigo Testamento: nós não estamos fora da experiência bíblica quando pomos em crise um conceito simples e ingênuo sobre a onipotência de Deus. Este foi também um problema vétero-testamentário, mesmo que nos pareça que com frequência que o Deus do Antigo Testamento é um todo-poderoso invencível.  Esta constatação ao menos nos livra de uma dupla ingenuidade: a de pensar que é uma questão proposta originalmente pelo ateísmo moderno, e a de pensar que é uma questão contemporânea. A Igreja é consciente deste problema, e por isso o Catecismo, depois de descrever o Todo-poderoso, se refere ao «mistério da aparente impotência de Deus» 5.

  

Kénosis no novo Testamento

  Porém onde o conceito de  kénosis  aplicado à forma do agir de Deus adquire status de natureza é no Novo Testamento: Jesus de Nazaré, Filho de Deus, crucificado, já mais além de todo o suspeitado. Desde logo esta ideia está muito longe do Deus descrito em Daniel, algo mais próximo ao Deus de Jó; porém todavia inimaginável para este, como para qualquer ideia espontânea que os homens possam ter sobre Deus.

 Aqueles homens, que ao pé da cruz desafiam Jesus dizendo-lhe que desça dali e então creram (cf. Mt27, 39-42), não estão simplesmente ridicularizando de um desgraçado, mas que estão fazendo teologia: estão dizendo que, segundo seu conceito de Deus, o crucificado não pode ser o Messias. Desde sua perspectiva teológica, Deus não permitiria que o justo sofresse tal suplício, e menos ainda seu Filho único. Que Deus tenha permitido tal atrocidade, para eles confirma a sentencia do juízo religioso por blasfêmia.

 Também o cristão, o seguidor de Jesus, se enfrenta com o escândalo da cruz. gonzález de Cardedal diz que este é um dos problemas mais difíceis da origem da Igreja. Não era em absoluto evidente que a morte de um crucificado pudesse ser evangelho, boa noticia6. Sem dúvida, o foi, como podemos ler na carta aos Filipenses:  

  «Tende entre vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus. O qual, sendo de condição divina, não reteve avidamente o ser igual a Deus; ao contrario, despojou-se de si mesmo assumindo

5 CIC 272.6 Cf. O. gonzález de Cardedal, El rostro de Cristo, Madrid 2012, 147s,

Page 8: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

190

a condição de escravo, feito semelhante aos homens. E assim, reconhecido como homem por sua presença, se humilhou a si mesmo, feito obediente até a morte, e uma morte de cruz» (Flp 2, 5-8). 

Na mesma linha, o evangelista João também fala da boa noticia da entrega do Filho: «porque Deus tanto amou o mundo, que entregou seu Unigénito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha vida eterna» (Jn 3, 16).

 A encarnação do Filho de Deus, que tem sua expressão mais radical na morte de Cristo, é a maior atuação kenótica de Deus no mundo, e paradoxalmente, nesta ação kenótica se manifesta para a teologia cristã a onipotência de Deus: 

«tem-se que intentar compreender o rosto do Cristo crucificado, figura de debilidade e de pobreza, de paixão e de compaixão. Nele temos a fragilidade de Deus fruto de sua onipotência e de sua misericórdia, que se dá sem limite, sem exigir nada, esperando no dor e a derrelição que as entranhas pétreas do homem se comovam e dissolvam. Seu silencio, sua inocência, sua solidão e sua perda de valor são as únicas armas com as quais Deus atua no mundo»7. 

O teólogo R. guardini, além de ter falado da novidade que supõe um Deus pessoal, acrescenta outro elemento, a saber, que Deus ama o homem e, dado que amar seriamente no plano humano supõe afrontar um destino, esta expressão é também aplicável a Deus8.

gonzález de Cardedal nos faz ver que esta forma de Deus atuar na encarnação não é de todo nova, já que de algum modo Deus atuou assim também na criação. A forma de Deus agir em Jesus é chave para compreender como Deus agiu desde o principio. Este teólogo diz que existir no mundo de maneira histórica e finita pela encarnação implica pôr-se «à mercê do mundo»9. Porém, acrescenta que, em certo sentido, Deus já o assumiu ao criar seres livres e também ao estabelecer aliança com um povo10.

 

Kénosis e amor trinitário 

Outro grande teólogo contemporâneo, H. U. von Balthasar tirando as consequências trinitárias da encarnação, nos diz que deixar espaço ao outro é

7 O. gonzález de Cardedal, El rostro, 109.8 Cf. R. guardini, A existencia del cristiano, Madrid 2005, 256.9 O. gonzález de Cardedal, A entraña del cristianismo, Salamanca 19982, 83.10 Cf. O. gonzález de Cardedal, A entraña, 83.

Page 9: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

191

condição do amor verdadeiro. Nesse sentido, na encarnação e na criação se realiza no tempo o que a Trinidade é eternamente: amor. Esta ideia supõe toda uma revisão de nossa concepção de Deus:

«virada decisivo na visão de Deus: de ser primariamente “poder absoluto” passa a ser absoluto “amor”. Sua soberania não se manifesta no aferrar-se ao seu próprio, mas não deixá-lo. Sua soberania se situa em um plano distinto do que nós chamamos força e debilidade. Que Deus se despoje na encarnação é onticamente possível porque Deus se despoja eternamente em sua entrega tripersonal» (H. U. von Balthasar, «O mistério pascal», em MS, III-2, 157)

Deus é um mistério de autodoação mutua, quer dizer, um mistério de amor. Portanto, o que se revela na cruz é a natureza mesma de Deus: «…ao servir e lavar os pés de sua criatura, Deus se revela no mais próprio de sua divindade e dá a conhecer o mais profundo de sua gloria»11. 

Na mesma línea, O. gonzález de Cardedal assinala que a encarnação manifesta para os cristãos o ser de Deus; não só é meta da criação em quanto realização suprema do ser humano, mas também a forma em que «Deus chegou até sua possibilidade máxima como criador e assim `a culminação de seu ser»12. 

Este autor uniu a proposta de K. Rahner - de que a encarnação é a máxima realização da essência humana como entrega13 - com o esforço de pensar a Deus como amor, como disse Balthasar, desde a interpretação da entrega kenótica14. Foi por isso que gonzález de Cardedal disse que «a forma histórica em que Cristo viveu seu destino particular de Filho de Deus encarnado revela o ser de Deus e o ser do homem, sua passividade e condescendimento (descenso, condescendência, kénosis)»15. Entende-se assim que a cruz pareça um feito tão fundamental na manifestação do ser de Deus como amor, e estabeleça uma relação tão direta entre a morte de Cristo e o ser mesmo de Deus: 

Deus estava implicado na morte de Cristo oferecendo reconciliação aos homens. Esta é uma afirmação histórica particular que por sua vez é uma afirmação teológica

11 H. U. von Balthasar, «El misterio pascual», en MS, III-2, 143.12 O. gonzález de Cardedal, Cristología, Madrid 2005, 393.13 Cf. K. Rahner, «Para A teología de A encarnación», en Escritos de Teología IV, Madrid 1962, 145.14 Cf. O. gonzález de Cardedal, Cristología, 395.15 O. gonzález de Cardedal, Cristología, 393.

Page 10: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

192

transcendental. Deus não pode oferecer reconciliação real na cruz de Cristo se no está nele, se não é inerente a ele e, por conseguinte, se de alguma maneira Cristo não está expondo e expressando o ser mesmo de Deus. Existe uma equivalência de realidade e de ação entre o ser de Deus e a morte de Cristo. Deus diz quem é que está morrendo conosco e por nós em Cristo16]. 

O teólogo jesuíta J. I. gonzález Faus escreveu que pela encarnação, a realidade adquire um valor absoluto no sentido de que nossa relação com Deus já não tem lugar mediante a fuga da realidade, mas através de ela.

 Assim mesmo, pela morte de Cristo, a realidade, que se nos apresenta com frequência realidade crucificada, não mais representa a ausência de Deus, mas antes que esta aparente ausência se torna forma de presença: estupefata, sofredora e interpelante. Pela ressurreição, a realidade se nos apresenta como futuro, como criação em processo, como história, uma história pela qual ao sanar o dor do outro nos faz participar de Deus, que é amor. Por isso, as palavras de Jesus em Mt 25 não são para ele metafóricas: o copo d`água que se dá ao sedento realmente alcança a Deus17.

Una nova metafísica: o Mal e o Amor 

gonzález de Cardedal insiste na necessidade de uma nova metafísica para sustentar uma nova imagem de Deus e de seu poder baseada na prioridade do pessoal. Falamos de Deus através de metáforas, porém já não serve a metáfora tecnológica do engenheiro que controla e determina o funcionamento de sua criação. A teologia depende mais da metáfora pessoal do pai que ama a seu filho, que não determina, nem controla, nem força, mas que atrai e espera: «a parábola do pai que espera o Filho é mais importante para a teologia e antropologia que a Metafísica e Ética  de Aristóteles»18.  A modernidade, intentando salvar o conceito de Deus, desnaturalizou-o, convertendo-o em primeira instancia em fundamento da ética, ou fundamento do cosmos, ou fundamento do ser. Porém o Deus da religião é antes de mais nada mistério de amor pessoal, não ferramenta explicativa para nossas perguntas éticas, cosmológicas ou metafísicas. Só depois de ser identificado em sua essência como amor pessoal, tal como a entende Jesus de Nazaré, pode explicar nossos questionamentos19. Sucede então que desde essa metáfora se pode compreender

16 O. gonzález de Cardedal, A entraña, 654. O cursivo é nosso.17 Cf. J. I. gonzález Faus, Migajas cristianas, Madrid 2000, 2218 O. gonzález de Cardedal, Cristología, 39119 Cf. ou gonzález de Cardedal, Jesús de Nazaret. Aproximación a A cristología, Madrid 19933, L.  

Page 11: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

193

o que sob o modelo do Deus engenheiro parece, sem dúvida, como um escândalo, a saber, a presença do mal no mundo. 

O mal nem é divino, nem se identifica com a matéria. Para compreender sua natureza é iluminadora a definição agostiniana do mal como  privatio boni. Sem dúvida, na criação existe corrupção porque ela não é Deus. Por ser criação de Deus, é boa; porém por ser criatura, não é perfeita, quer dizer, carece por definição do supremo bem, que é só Deus mesmo. Desde esta perspectiva, a pergunta de porquê Deus permite o mal, fica respondida: ele permite porque ao criar pretendeu que existisse algo que não é ele mesmo, supremo bem. Porém tem razão P. Fernández Castelao ao dizer que a pergunta que devemos formular não é porque Deus não fez um mundo perfeito?, coisa que não tem sentido desde a perspectiva que acabamos de formular, mas porque, sendo o mundo necessariamente ambíguo, Deus criou apesar de tudo?20.

  A resposta cristã a esta questão não pode proceder de um suposto balanço onde o bem e a beleza compensariam o horror e o dor. Uma resposta tal não procede da fé e, desde o ponto de vista da razão, tão pouco é evidente: seguramente, entre nós haveria quem opinasse que não há beleza no mundo que justifique um só dos dramas dos males existentes no mundo. 

Cristo, resposta a uma criação kenótica

  A resposta cristã é Cristo. O cristão pode pensar que se Cristo existiu, a criação toda valeu a pena. Cristo é a plenitude da criação, a realização plena da vocação divina que palpita na história do mundo e do homem. Nele a história da criação tem sua redenção porque nele Deus se fez história, nele conduz a história à sua plenitude e ele se fez companheiro de cada ser humano.

 A criação é, pois, uma criação kenótica, quer dizer, uma criação na qual Deus não exerce seu poder como um monarca absoluto e dominador, nem como um engenheiro ao mando de sua obra. Deus faz participar no ser, sustem no ser, infunde vida, infunde amor, potencia as possibilidades da criatura sem forçá-la, inspira nossa capacidade de amar e sanar. Deus é muito mais poder persuasivo que coercitivo. Deus é todo-poderoso, porém, exerce seu poder de maneira muito diferente de como fazem os seres humanos: ele o exerce desde o respeito absoluto, entrando em jogo com outros poderes, não separando-os. 

20 Cf. P. Fernández Castelao, «Antropología teológica», en A. Cordovilla (ed.), A lógica de fe. Manual de Teología dogmática, Comillas, Madrid 2013, 218-227.

Page 12: Revista Teologia 2016 - intranet.redeclaretiano.edu.br Contudo isso, e desde vários ângulos, pretendemos ter chegado a uma conclusão: a teologia tem necessidade de renovar seu discurso

194

Estas formas de exercer seu poder são coerentes com a dignidade, a autonomia e a liberdade que ele concedeu a sua criatura, porque, como diz gonzález-Carvajal, «Deus é Pai, porém não paternalista»21.

 Desde esta ótica, podemos ter a sensação de apresentar um Deus débil, um Deus sem capacidade de conduzir com êxito sua criação. Porém esta forma de pensar se parece com a tentação de Pedro em Cesárea de Filipe, que não queria admitir que o Messias pudesse sofrer.

 Obviamente, não é minha intenção resolver todas as nuances da questão colocada. Nós nos conformaríamos em ter assinalado que toda busca de uma compreensão da ação eficaz de Deus na criação há de fazer-se no marco da cruz de Cristo como paixão de Deus mesmo.

Tradução: HR

21 L. gonzález-Carvajal, Esta es nossa fe. Teología para universitarios, Santander 1989, 119.