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REPRESENTAÇÕES E NARRAÇÕES RELIGIOSAS: ANÁLISE DOS TEXTOS ESCRITOS E PINTURAS ACERCA DA NATIVIDADE DE MARIA RELIGIOUS REPRESENTATIONS AND NARRATIVES: ANALYSIS OF WRITTEN TEXTS AND PAINTINGS OF THE NATIVITY OF MARY Jacqueline Rodrigues Antonio (UEL) 1 Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar o imaginário medieval mariano, em especial da baixa Idade Média, por meio das representações acerca do nascimento da mãe de Jesus, Maria. Para tanto é necessário a compreensão das narrativas do período sobre este tema, como também as evidências sobre a tradição que percorria. Para esta análise foram utilizados textos apócrifos que apresentam essa tradição, como também de representações pictóricas sobre a natividade da Virgem Maria. Dentre os vários apócrifos marianos foram selecionados o Protoevangelho de Santiago e o Evangelho do Pseudo Mateus. Para a análise das representações foi escolhido o afresco A natividade da Virgem, pintado entre os anos de 1303-1305, e localiza-se na Capela Arena, em Pádua, na qual é atribuída ao pintor florentino Giotto di Bondone (1267-1337). Esta pertence a um conjunto que faz parte de uma narrativa do Novo Testamento segundo a tradição do período analisado. Com estes apócrifos e imagem é possível traçar a formação desse imaginário acerca do nascimento de Maria, sendo este um dos elementos mais importantes para definir a devoção mariana. Palavras-chave: Religiosidade. Imaginário Medieval. Representações. Abstract: This work aims to analyze the Marian imaginary medieval, in particular of the middle ages, through representations about the birth of the mother of Jesus, Mary. So it is necessary to the understanding of narratives of the period on this theme, as well as evidences about the tradition that ran. For this analysis were used Apocrypha that present this tradition, as well as pictorial representations on the Nativity of the Virgin Mary. Among the various Marian Apocrypha were selected the Protoevangelho de Santiago and the Gospel of Pseudo- Matthew. For the analysis of representations was chosen the fresco of the Nativity of the Virgin, painted between the years 1303-1305, and finds himself in the Arena Chapel, in Padua, in which it is assigned to the Florentine painter Giotto di Bondone (1267-1337). This belongs to a set that is part of a narrative of the New Testament according to the tradition of the analysis period. With these apocryphal and image is possible to trace the formation of this imaginary about the birth of Mary, being this one of the most important elements to define the Marian devotion. Keywords: Religiosity. Medieval Imaginary. Representations. Introdução O presente trabalho realizado traz uma análise comparativa entre uma imagem produzida no baixo medievo e dois textos apócrifos realizados anteriormente a ela, com os quais é possível delinear o imaginário medieval quanto à personagem de Maria no referente III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 1477

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REPRESENTAÇÕES E NARRAÇÕES RELIGIOSAS: ANÁLISE DOS TEXTOS

ESCRITOS E PINTURAS ACERCA DA NATIVIDADE DE MARIA

RELIGIOUS REPRESENTATIONS AND NARRATIVES: ANALYSIS OF WRITTEN

TEXTS AND PAINTINGS OF THE NATIVITY OF MARY

Jacqueline Rodrigues Antonio (UEL)1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar o imaginário medieval mariano, em especial da baixa Idade Média, por meio das representações acerca do nascimento da mãe de Jesus, Maria. Para tanto é necessário a compreensão das narrativas do período sobre este tema, como também as evidências sobre a tradição que percorria. Para esta análise foram utilizados textos apócrifos que apresentam essa tradição, como também de representações pictóricas sobre a natividade da Virgem Maria. Dentre os vários apócrifos marianos foram selecionados o Protoevangelho de Santiago e o Evangelho do Pseudo Mateus. Para a análise das representações foi escolhido o afresco A natividade da Virgem, pintado entre os anos de 1303-1305, e localiza-se na Capela Arena, em Pádua, na qual é atribuída ao pintor florentino Giotto di Bondone (1267-1337). Esta pertence a um conjunto que faz parte de uma narrativa do Novo Testamento segundo a tradição do período analisado. Com estes apócrifos e imagem é possível traçar a formação desse imaginário acerca do nascimento de Maria, sendo este um dos elementos mais importantes para definir a devoção mariana. Palavras-chave: Religiosidade. Imaginário Medieval. Representações. Abstract: This work aims to analyze the Marian imaginary medieval, in particular of the middle ages, through representations about the birth of the mother of Jesus, Mary. So it is necessary to the understanding of narratives of the period on this theme, as well as evidences about the tradition that ran. For this analysis were used Apocrypha that present this tradition, as well as pictorial representations on the Nativity of the Virgin Mary. Among the various Marian Apocrypha were selected the Protoevangelho de Santiago and the Gospel of Pseudo-Matthew. For the analysis of representations was chosen the fresco of the Nativity of the Virgin, painted between the years 1303-1305, and finds himself in the Arena Chapel, in Padua, in which it is assigned to the Florentine painter Giotto di Bondone (1267-1337). This belongs to a set that is part of a narrative of the New Testament according to the tradition of the analysis period. With these apocryphal and image is possible to trace the formation of this imaginary about the birth of Mary, being this one of the most important elements to define the Marian devotion. Keywords: Religiosity. Medieval Imaginary. Representations.

Introdução

O presente trabalho realizado traz uma análise comparativa entre uma imagem

produzida no baixo medievo e dois textos apócrifos realizados anteriormente a ela, com os

quais é possível delinear o imaginário medieval quanto à personagem de Maria no referente

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ao seu nascimento. Também é possível avaliar como que a transmissão oral de relatos

apócrifos auxiliara na formação da tradição transparecida nas representações, como também,

levando em conta a cultura inserida, conceberam um imaginário único em relação à vida de

Maria, e conseqüentemente de seus pais Joaquim e Ana.

Como fontes escritas religiosas têm o Protoevangelho de Santiago e o Evangelho do

Pseudo Mateus, que são tradicionalmente datado dos princípios do século II e mais divulgado

no Oriente, o primeiro, e fins do século III e início do século IV, sendo notório no Ocidente, o

segundo. Ambos têm o intuído de expandir a devoção a Maria ao expor a sua vida antes do

nascimento de Jesus.

Enquanto fonte imagética tem-se um afresco de Giotto di Bondone, O Nascimento da

Virgem, sendo este identificado, até então por esta pesquisa, o mais antigo sobre este tema,

havendo, posteriormente, pinturas que aparentam terem como inspiração a obra de Giotto.

Maria foi retratada desde as comunidades primitivas cristãs. O tema do nascimento é

posto somente duas vezes na narrativa da Capela da Sagrada Virgem Maria da Caridade, a

Capela Arena, a primeira quando se refere à Maria e a segunda a Jesus. Nesta capela,

dedicada à Maria, encontramos um diferencial nas representações quanto à vida de Maria e

Jesus: estas apresentam uma estrutura narrativa, numa seqüência, contando uma história e

revelando aos espectadores parte a parte da vida de Maria atrelada a de Jesus, sendo este o

provável motivo de apresentar somente estes dois nascimentos.

Os traços de Giotto são marcantes e levam o espectador sentir como sujeito ativo da

cena que observa. Cada quadro revela uma nova cena e representa o imaginário sobre as

histórias retratadas, seja a partir dos livros canônicos ou advindos da tradição e dos livros

apócrifos. A representação da vida de Maria, mãe de Jesus, na Capela Arena, leva o

espectador a se inteirar acerca dos eventos anteriores e posteriores ao nascimento de Jesus,

afirmando assim, a santidade da origem de Cristo, servindo como uma confirmação das fontes

escritas cristãs.

Num primeiro momento é voltado para as imagens, com os argumentos para tal estudo

histórico, e as concepções imagéticas e posteriormente a importância da pessoa de Maria para

a história da humanidade. Em seguida é necessário contextualizar o período e sua

religiosidade. E por fim é feita uma análise dessas fontes, escritas e imagéticas, expondo suas

conexões para assim identificar que tipo de imaginário se formava pela sociedade leiga da

baixa Idade Média.

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Olhar histórico para as imagens

O estudo de imagens na história exige mais que uma simples leitura do que é visto,

sendo necessária a análise da produção, das condições sociais, políticas e econômicas da

sociedade em que esta floresceu.

Como já dito anteriormente, este trabalho se dedica a análise das obras de Giotto sobre

Maria, a mãe de Jesus, em função do estudo sobre a devoção mariana no medievo. O afresco

em questão, O nascimento da Virgem que se localiza na Capela Arena, em Pádua, na

península Itálica, com o tamanho de 200 cm X 185 cm. Como este afresco, os demais também

são emolduradas com faixas decorativas, e nestas faixas estão contidas também pequenas

cenas do Antigo Testamento. Na parte inferior das paredes, desta mesma capela, também há

alegorias2 das virtudes e dos vícios3, além do imenso painel do Juízo Final. No teto são

visualizados os rostos dos quatro evangelistas e ao centro o de Jesus.

Sobre os afrescos que contêm as representações de Maria na capela em questão há as

pinturas que se dedicam por narrar sua vida, sendo cinco afrescos com a figura de Maria

presente4, e dois que se refere a ela, mas sem sua presença5. Há também algumas inseridas na

vida de Cristo, sendo aqui elencadas sete com a presença de Maria6. Ao olharmos para o

conjunto que se dedica a paixão de Jesus, são três afrescos com a presença de Maria7.

Ao considerar que este estudo trata-se da análise de um objeto iconográfico que

pertence ao conjunto de Novos Objetos na historiografia, pondera-se importante apresentar

como as imagens religiosas são vistas pelo olhar da iconografia e iconologia. Primeiramente,

houve a influência da Escola dos Annales, depois da corrente historiográfica Nova História e

finalmente da Nova História Cultural sobre tal estudo de imagens na história.

Neste presente trabalho, foram utilizados como métodos, os contidos em Peter Burke,

Jean-Claude Schmitt, com as análises de imagem proposta por Erwin Panofski. Os dois

primeiros tratam do estudo de imagem pela história, as suas implicações, métodos e objetivos.

Panofski fornece os métodos de iconografia, que são os estudos dos sentidos e significados

das imagens. Também foram de igual importância os estudos de Jaroslav Pelikan, para a

compreensão da figura de Maria para os devotos, como também a compreensão na literatura

escrita.

Em especial, nos estudos da Idade Média há diversos historiadores que empregam

imagens para seus trabalhos. Um exemplo dessa utilização está em Indagações sobre Piero,

que Ginzburg remete-se a três obras de Piero della Francesca para fazer uma análise histórico-

social. Para tal, ressalta a combinação iconografia e clientela. Notam-se algumas estratégias

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para se trabalhar com ícones na historiografia, a exemplo, ele faz uma busca sobre quem é o

pintor e os estudos sobre suas obras. Como também localiza o contexto em que está obra foi

concebida, possibilitando dessa maneira, a investigação dos elementos contidos nas obras e os

relacionando com as descritas no período a que se refere.

Percebe-se em Testemunha Ocular que Burke nos esclarece sobre o lugar das imagens

como evidência histórica, mas antes disso, ele mesmo recomenda que “é prudente iniciar pelo

seu sentido [, pois as] imagens são feitas para comunicar” (BURKE, 2004, p. 43). No decorrer

da obra, vemos que o autor adverte várias vezes que as imagens, apesar de comunicar algo ao

espectador, não falam por si, e o historiador ao tentar decifrar as mensagens nela contida,

acaba por interpretar algo estranho ao que o pintor pretendia. Portanto, o estudo de imagens

permite enxergar nas obras algo além do que primeiramente referenciado, seja pelo pintor,

seja pelo encomendador.

Schmitt, nos evidencia que:

Todas as imagens, em todo caso, têm sua razão de ser, explimem e comunicam sentidos, estão carregados de valores simbólicos, cumprem funções religiosas, políticas ou ideológicas, prestam-se a usos pedagógicos, liturgicos e mesmo mágicos. Isso quer dizer que participam plenamente do funcionamento e da reprodução das sociedades presentes e passadas. Em todos os aspectos, elas pertencem ao território de “caça” do historiador. (SCHIMITT, 2007, p. 11)

Portanto, as imagens transparecem aquilo que não está escrito e fala sobre aquilo que

desconhecemos, e só a conhecemos a partir de um olhar iconográfico sobre ela, um olhar no

qual a coloca num contexto, no qual damos uma finalidade. A imagem se situa na imaginação,

pois ela representa e torna real aquilo que está somente no campo do sonho ou idealização, ou

seja, torna visível aquilo que estava invisível. Sendo um estudo da mentalidade, e, por

conseguinte, do imaginário da sociedade em que o ícone foi confeccionado.

Pelikan nos revela o poder que o embasamento na Bíblia tem sobre uma personagem:

No entanto, talvez em nenhum outro ponto o desafio desse dilema tenha sido mais inevitável do que na relação entre o crescimento da doutrina de Maria e sua pretendida fundamentação nas Escrituras. O embasamento parecia relativamente honesto no que diz a respeito a alguns componentes doutrinários. Os evangelhos de Mateus e de Lucas deixaram bem claro que Maria concebeu seu Filho virgem. Porém, estudos ulteriores realmente revelaram uma intrigante discrepância sobre a qual o Novo Testamento permanece calado, como se, com efeito, esse assunto fosse pouco ambíguo e nada essencial. As epístolas de Paulo, as outras epístolas no Novo Testamento e as pregações dos apóstolos, como foram registradas no livro dos Atos, nem sequer mencionam a concepção virginal. Tanto Mateus como

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Lucas fazem menção a ela, e com isso os dois outros evangelhos passaram a ter um interesse especial. (PELIKAN, 2000, p. 28)

Com isso, Pelikan nos indica a importância de entender o que a Bíblia cita sobre

Maria, para assim compreendermos a sua devoção e desdobramentos ao seu respeito entre os

fiéis.

Panofsky expõe que a iconografia compreende um método descritivo, que para nós

historiadores, são de fundamental importância, pois para fazê-lo permite um o conhecimento

histórico sobre o que foi retratado. A iconografia é uma interpretação de imagens que analisa

os detalhes da obra. Se iconografia são os elementos essenciais de uma imagem que precisa

ser esclarecidos, o que seria iconologia? Uma iconografia interpretativa. Na obra em questão,

O nascimento da Virgem, foi primeiro feito um olhar sem juízo de valores, do qual só se via

os elementos sem seu contexto, posteriormente foi comparada às outras obras, mas somente

viram-se estas produzidas após a de Giotto. Finalmente teve-se um olhar histórico, vendo o

contexto, o texto literário que a concebeu e as intenções explicitas e implícitas na obra.

Outro aspecto a se ressaltar é a confiabilidade que as imagens transparecem, pois se

deve olhar também para aquilo que a imagem omite, para isso é preciso ver a variedade, seja

de imagens, ou de usos, ou ainda de visões sobre a mesma em diversos períodos históricos.

Dessa maneira, o uso de imagens como fonte histórica para o historiador é viável, mas

de igual importância é o uso de textos escritos, pois os textos revelam alguns aspectos da

tradição popular, porém as imagens explicitam elementos além do descritos na literatura.

Como também notar a coerência ou não, com o escrito do assunto analisado, além de

evidenciar as tradições, torna-se mais palpável o imaginário do contexto em que a obra está

inserida.

Maria, a Theotokos8

Há uma personagem que tem um lugar privilegiado, e que é possível dizer

que a questão principal do Segundo Testamento está posta nela. Era uma simples jovem que

morava na pequena Nazaré, numa região pobre chamada Galiléia. Essa personagem é Maria, a

mãe de Jesus, que aparece por diversas vezes nos quase dois mil anos de história do

cristianismo. Em textos canônicos ela aparece como a escolhida de Deus para ser a mãe de

seu filho. Nos apócrifos é confirmada tal atribuição e também muito valorizada, tendo a ela

muitos apócrifos dedicados. Maria também foi tema a ser discutidos nos concílios

ecumênicos9. A título de exemplo, o primeiro concílio de Éfeso, instituiu o dogma primaz

mariano, da Theotokos.

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A devoção à Maria constitui um dos principais elementos da expressão religiosa cristã

(católica) e marcou profundamente o desenvolvimento da religiosidade medieval, pois, ainda

que encontremos traços do culto marial na Antiguidade, no Medievo se definiu quanto ao

dogma, em especial da Theotokos, e expandiu-se. A emergência desta devoção ocorreu

particularmente no contexto da religiosidade urbana e no meio laico, a partir do século XII,

quando Maria assume papel central na política de salvação.

Nos livros canônicos, Maria é evidenciada de maneira sutil, mas decisiva, como no

caso do livro de Lucas e João. Em Lucas10 é através dela que Jesus divino se torna Jesus

humano. João11 coloca sua atitude nas Bodas de Caná como responsável pelo início da vida

pública de seu filho.

Em apócrifos há inúmeras indicações sobre a personagem Maria, tendo pelo menos

quatorze dedicados a ela. Há apócrifos que se dedicam a narrar parte da vida dos pais de

Maria, Joaquim e Ana, o nascimento de Maria e, geralmente, vão até o nascimento de Jesus

ou um pouco depois. Há aqueles que contêm somente citações sobre Maria, e também que se

proponham a fazer um texto ascensionistas, e são destes textos, juntamente com a piedade

popular, que surge a devoção da Assunção de Maria.

No campo imagético, temos um exemplo na catacumba de Santa Priscilla,

em Roma. A imagem em questão mostra Maria com o menino Jesus no colo, num momento

de intimidade entre mãe e filho.

Figura 1: Maria e o menino Jesus, Catacumba de S. Priscilla, Roma, século III. Fonte: Disponível em: <http://www.guiasjp.com.br/opcoes.php?option=591&id_noticia=24315&id_

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canal=48>. Acesso em: 31 jan. 2010.

Essa ascensão que percebemos na Idade Média da devoção mariana, é fruto de uma

crescente identificação dos fiéis com esta figura marcante na história do cristianismo. Neste

contexto aparece Giotto e a Capela Arena. A Capela Arena, sendo dedicado a Virgem, é um

exemplo da emergência em conhecer mais sobre Maria, encontrando retratada a sua vida e

origem, esta última representada na figura de seus pais, Joaquim e Ana e como ocorreu seu

nascimento. Na figura a baixo percebe-se a importância de Maria no ato do encomendador da

Capela Arena, Enrico Scrovegni, ao dedicar esta à Maria e representado no gesto da entrega

da miniatura da mesma a ela. Tal entrega é retratada de um modo especial no afresco que

representa o juízo final, como que pedindo à Maria sua intervenção para o perdão dos pecados

de usura cometidos por ele e seu pai, Reginaldo Scrovegni, conforme relatado por Dante12.

Figura 2 – Juízo Final e o Detalhe de Enrico Scrovegni no Juízo Final, Giotto, Capela Arena. Fonte: (WOLF, 2007, p. 33)

Este ato coloca o encomendador num gesto último, tendo ele no lado dos justos, para

que ele possa buscar a sua salvação.

A baixa Idade Média e Giotto como difusor da devoção mariana

Os séculos que compõe a baixa Idade Média, XII-XIV, são significativos no relativo a

grandes transformações sociais. Este período é caracterizado como o tempo das catedrais,

termo cunhado por Duby, uma vez que a arte das catedrais na Europa é referente ao

renascimento das cidades, citados nos referidos séculos (XII-XIV), como também do

comércio e a transferência das residências dos senhores do campo para a cidade, que leva

consigo os seus produtos.

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Este período também é assinalado pelo surgimento do Humanismo, a exemplo

Giovanni Boccaccio, com sua obra Decamerão13 e Dante Alighieri com a Divina Comédia.

Neste período começa a apreciar os valores humanos, como a busca por retratar fielmente a

figura humana nas pinturas, que pouco a pouco invade os valores sacramentados do divino.

Isso domina também o campo da arte, uma vez que sentimentos tipicamente humanos, como a

aflição, a confiança, a alegria, ganham lugar nos sentimentos de sobriedade e placidez, ditos

como tipicamente divinos.

Na Capela Arena, em que se localiza a obra que abaixo é analisada, juntamente com a

literatura escrita, é um bom exemplo dessas transformações. Lembremos que Giotto, por essas

mudanças, é considerado por Giorgio Vasari, um pintor, arquiteto e historiador da arte no

século XVI, como o Pai do Renascimento, no campo das imagens. Opinião esta, sustentada

até os dias de hoje. Nos afrescos vemos retratadas cenas do cotidiano na vida de personagens

sagradas para o cristianismo, que se aproxima do cotidiano de seus expectadores.

Os afrescos da Capela Arena seguem a cronologia da vida de Jesus, e reserva um

destaque para a vida de Maria anterior ao nascimento de Jesus, algo que nos livros canônicos

não são citados. As cenas ilustradas na capela, que não constam nos livros canônicos,

remetem aos descritos em apócrifos e as tradições populares, pertencendo assim ao

imaginário medieval. Há alguns apócrifos que descrevem a maioria das cenas pré-canônicas

reproduzidas por Giotto, como é o caso do Protoevangelho de Santiago.

Análise do Nascimento da Virgem

Neste momento se dedica a análise o imaginário do medievo com base em leitura não-

canônicas, também conhecidas como apócrifas, e também imagética, representado no afresco

de Giotto intitulado O nascimento da Virgem, localizado na Capela Arena, em Pádua.

A Capela Arena, como já dito anteriormente, foi consagrada à Maria e seus afrescos

são dedicados a contar a história da salvação pelo ponto de vista cristão. Inicia com pequenos

adornos que representa algumas cenas do Primeiro Testamento, mas seu auge está nos fatos

que cercam a vida de Cristo. Os afrescos maiores começam narrando, de maneira cronológica

e dramática, a vida dos pais de Maria, passando pela vida de Maria e chegando à de Jesus,

com seus milagres, morte e ressurreição.

O afresco O nascimento da Virgem nos revela algo muito curioso. Nele temos

retratadas duas cenas em uma. A primeira é a parteira entregando Maria à sua mãe, e a

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segunda a bebê Maria sendo alimentada por meninas, nesta última, encontra-se evidenciada

no Protoevangelho de Santiago.

Figura 3 – O nascimento da Virgem, Giotto, Capela Arena. Fonte: Disponível em: <http://www.mystudios.com/gallery/giotto/07a.html>. Acessado em: 31 jan. 2010.

Em seguida, foi dada uma evidencia, separadamente, às duas cenas explicitas neste

afresco.

Figura 4 – Detalhe de O nascimento da Virgem, Giotto, Capela Arena. Fonte: Disponível em: <http://www.mystudios.com/gallery/giotto/07a.html>. Acessado em: 31 jan. 2010.

Figura 5 – Detalhe de O nascimento da Virgem, Giotto, Capela Arena. Fonte: Disponível em: <http://www.mystudios.com/gallery/giotto/07a.html>. Acessado em: 31 jan. 2010.

Dessa maneira, isolando as cenas, é melhor para compreender o sentido de cada uma,

que com as leituras apócrifas fica mais evidente.

A figura abaixo é datada de 1375 e encontra-se no Museu Metropolitano de Arte de

Nova Iorque. Nota-se nesta iluminura que na letra G revela a natividade mariana de modo

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parecido com a de Giotto. Mas nesta há somente uma cena, e Maria aparece sendo banhada,

enquanto na anterior está sendo alimentada. O curioso nesta imagem é a terceira personagem

com halo, poderá ser uma alusão a Maria já adulta.

Figura 6 – O nascimento da Virgem, Don Silvestro dei Gherarducci, Gradual de Santa Maria Degli Angeli - folio 148. Fonte: Disponível em: <http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/21.168>. Acessado em: 27 mar. 2011.

No Protoevangelho de Santiago segue a narrativa:

Assim, pois, cumpridos os meses de Ana, no nono deu à luz. E perguntou à parteira: “O que eu pari?” E ela disse: “Uma menina”. E Ana respondeu: “minha alma foi glorificada no dia de hoje.” E deitou a menina. Passados alguns dias, Ana lavou, deu o peito para a menina e a chamou de Maria. (Protoevangelho de Santiago V, 5)

Adiante, o escritor do Protoevangelho de Santiago, continua:

Cada dia a menina crescia mais, completou seis meses e sua mãe a colocou no chão para ver se ficava em pé. Deu sete passos e se atirou no colo da mãe. Esta a levantou dizendo: “Pelo Senhor meu Deus, que não pisarás mais neste chão até o dia que eu te leve ao templo do Senhor.” E colocou um santuário no berço da menina e não a deixou tomar como alimento nada que fosse vil ou impuro. E chamou as filhas dos hebreus, àquelas que não tinham pecados, para que brincassem com ela. (Protoevangelho de Santiago VI, 1).

Isto é posto pelo autor para ressaltar que Maria, desde seu nascimento, sempre foi

imaculada, algo que, pela devoção dos fiéis, no século XIX culminou num dogma intitulado

Imaculada Conceição pela Bula Pontifícia14 Ineffabilis Deus.

Na outra narrativa, a do Evangelho do Pseudo Mateus, nos revela da seguinte maneira

o nascimento de Maria:

Depois de cumpridos nove meses, Ana trouxe ao mundo uma menina e lhe chamou Maria. E quando a desmamou aos três anos, Joaquim e sua esposa Ana juntos ao templo do Senhor e ofereceram sacrifícios ao Senhor e

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apresentaram sua filhinha Maria para que vivesse com as virgens que se dedicavam dia e noite a adorar a Deus. (Evangelho do Pseudo Mateus IV)

Aqui, a natividade mariana é posta de maneira mais sucinta. Mas, como na leitura

anterior, ressalta a questão da pureza de Maria desde tua terna idade, porém no primeiro é

mais evidenciado que no último.

Ao compararem-se as duas leituras com a imagem, nota-se que a tradição a percorrer

na região de Giotto e da Capela Arena era mais voltada para do Protoevangelho de Santiago,

pois as duas cenas que se vê no mesmo afresco condizem mais com este do que com o

segundo. Portanto o imaginário recorrente ali era mais oriental, já que esta leitura foi mais

divulgada neste meio.

Com a visualização da cena e a comparação com o material escrito, percebemos

muitas semelhanças, sendo dessa forma, a baixa Idade Média, um período que está

mergulhado em uma tradição fundada em apócrifos. Os apócrifos analisados, Protoevangelho

de Santiago e Evangelho do Pseudo Mateus, são datados do século II, o primeiro e fins do

século III e começo do IV para o segundo, revelando um grande período enraizado nestas

devoções apócrifas, da qual incorporou na tradição e conseqüentemente no imaginário do

baixo medievo.

Conclusão

Analisar o afresco da Capela Arena, em Pádua, ajudou a compreender melhor o

imaginário medieval mariano. Juntamente com a imagem, os textos literários não-canônicos

ou apócrifos, que concebeu a cena, e o seu contexto histórico, auxiliaram a perceber as

transformações sociais, na qual influenciou sobre tal devoção e também a arte no período.

Portanto, este trabalho proporcionou uma maior abrangência a respeito do imaginário

medieval acerca de Maria, mãe de Jesus, baseando no relato da literatura, seja ela da

antiguidade, como é o caso dos textos canônicos e alguns não-canônicos, ou no período

medieval, como outros apócrifos e a tradição popular. Para tanto utilizou de fontes imagéticas,

um afresco da Capela Arena, do qual Giotto faz uma narração sobre a origem humana de

Jesus atrelada à divina, por espelhar na mãe de Jesus ao ideal de santidade.

A partir do momento que essas representações, tornam-se comuns em ser retratada nos

lugares de devoção pública, a exemplo a Capela Arena, os adeptos do cristianismo medieval

ficam mais familiarizados com tais fatos, como também com a tradição que estava se

consolidando. Assim a Igreja Cristã buscava torná-la como as únicas verdadeiras sobre os

personagens que cercam Jesus. Também temos que considerar que tais cenas emergem da

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devoção popular, mas de forma particular em cada grupo, sendo o diferencial na obra de

Giotto e dos livros não-canônicos analisados o fato de eles terem se tornado universal no

imaginário popular até os dias atuais.

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Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

WOLF, Nobert. Giotto. Lisboa: Taschen, 2007.

1 Graduada em História com habilitação em licenciatura pela Universidade Estadual de Londrina. Cursa a especialização em História Social e Ensino de História. 2 Em ECO, Humberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Record, 2010. Alegoria e simbolismo, na Idade Média, eram considerados sinônimos. A alegoria seria a personificação de sentimentos, como acontece nesta capela, em que a ira, um dos vícios, ou a temperança, uma das virtudes, são simbolizadas por pessoas. 3 Giotto os colocou assim: Virtudes – Prudência, Coragem, Temperança, Justiça, Fé, Caridade e Esperança. E os contrapondo, nesta mesma ordem: Vícios – Loucura, Inconstância, Ira, Injustiça, Idolatria, Inveja, Desespero. 4 Nascimento da Virgem; Apresentação da Virgem no Templo; Casamento da Virgem; Procissão dos noivos; Anunciação a Virgem. 5 Pretendentes da Virgem; Escolha do marido da Virgem. 6 Visitação a Isabel; Nascimento de Jesus; Adoração dos Magos; Apresentação de Jesus no Templo; Fuga para o Egito; Jesus no Templo ensinando os doutores da lei; Bodas de Caná. 7 Crucificação; Lamentação; Ascensão. 8 Palavra grega Theotokos (Θεοτόκος) significa aquela que deu a luz a Deus. (τόκος – parto; Θεος – Deus), em PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos – seu papel na história da cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 9 Consiste numa reunião de todos os bispos, de toda a Igreja Católica, a fim de refletir assuntos acerca das doutrinas, promulgarem dogmas, corrigir erros pastorais e condenar heresias. 10 Lucas 2,1-20

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11 João 2, 1-11 12 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. São Paulo: [s.n.], 1999. 13 Giotto, nesta obra de Boccaccio foi muitíssimo elogiado pelos seus dons artísticos. 14 A Bula Pontifícia é um documento lacrado com uma bola de cera ou metal, em geral chumbo, em que o Papa se manifesta em diversos assuntos relevantes à Igreja Católica Romana, a exemplo, instituição de dogmas.

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