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REFLEXÕES SOBRE A TEORIA DA NORMA E SUAS IMPLICAÇÕES NA
ESTRUTURA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
REFLECTIONS ON NORM THEORY AND ITS IMPLICATIONS IN THE
STRUCTURE OF THE DEMOCRATIC STATE OF LAW
Afonso de Paula Pinheiro Rocha ∗
Emanuel de Abreu Pessoa ∗∗
RESUMO
A fórmula do Estado de direito é uma fórmula jurídica, que se assenta na supremacia de
uma norma, a Constituição, que por sua vez constitui o Estado de direito mediante um
conjunto de normas, tais quais as que consubstanciam entre outros elementos a
separação de poderes e a sujeição à lei. Percebe-se claramente que o moderno Estado é
uma construção jurídica, um conjunto dinâmico de normas, de modo que o mesmo deve
ser analisado dentro de uma perspectiva da teoria geral do direito e em particular, da
teoria da norma jurídica. O estudo pretende tecer algumas reflexões sobre a teoria da
norma jurídica através de uma nova perspectiva orientada pelas contribuições da
filosofia analítica e da teoria da linguagem e como esta nova percepção da norma trás
severas implicações quanto à forma e a própria existência do Estado Democrático de
Direito. Apresenta-se uma análise de como a concepção clássica de norma e
normatividade orientou a construção dos modelos clássicos de organização do Estado -
Estado oriental, o Estado helênico, o Estado romano e o Estado da Idade Média. Após,
apresentam-se considerações sobre uma nova concepção de normatividade e da própria
norma jurídica como realidade interdependente da atitude do interprete. Tecem-se
alguns comentários sobre a distinção norma-texto e sobre a relação entre o dispositivo
normativo – texto da norma – e a norma construída pelo intérprete. Dentro dessa,
sugere-se algumas aplicações da filosofia de John Searle que sugerem uma forma de
fundamentar de forma comum tanto a construção de uma nova concepção de norma e
como uma nova filosofia política. Por fim, o estudo encerra fazendo um contraste entre
o modelo de concepção tradicional de Estado e democracia e essa nova perspectiva de
norma jurídica. Analisa-se a veracidade e possibilidade das pretensões do modelo atual
de Estado de Direito.
∗ Mestrando em Direito pela UFC. Bolsista CAPES. ∗∗ Mestrando em Direito pela UFC. Bolsista CNPQ.
PALAVRAS-CHAVE: ESTADO DE DIREITO - NORMA JURÍDICA - FILOSOFIA
ANALÍTICA.
ABSTRACTS
The State of Law formula is juridical, lying on the supremacy of a norm, the
Constitution, which contributes for it through a gather of norms, such as those that made
within others the separation of powers and the Rule of Law. It is clearly noted the
modern State is a juridical construction, an dynamic assemble of norms, in such way it
must be analyzed on a perspective of the general theory of right and particularly, of the
juridical norm theory. The study intend to make some reflections on the theory of the
juridical norm through a new perspective orientated by the contributions of the
analytical philosophy and the language theory and how that new perception of the norm
brings tenacious implications on the kind and the existence itself of the Democratic
State of Law. It is presented an analysis of how the classic conception of norm and
normativity oriented the construction of classic models of State’s organization – oriental
State, Helenic State, Roman State and Middle Age State. After that, it is showed
consideration on the new conception of normativity and of the juridical norm itself as
reality \interdependent of the interpret attitude. It is made some comments on the
distinction norm-text and the relation among normative disposition – norm text – and
the interpret-built norm. Into that, it is suggested some appliances of John Searle’s
philosophy that suggest a way to fundament in a common basis the construction such of
a new conception of the norm as a new political philosophy. At least, the study is closed
by doing a contrast between the model of the traditional conception of State and
democracy and the new perspective of juridical norm. It is analyzes the veracity and
possibility of the current model of State of Law pretensions.
KEYWORDS: STATE OF LAW - JURIDICAL NORM - ANALYTICAL
PHILOSOPHY.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo fornecer uma nova perspectiva sobre a
relação entre Estado Democrático de Direito e a teoria geral do direito. O enfoque que
será apresentado envolver a valorização da linguagem como elemento constitutivo da
realidade institucional humana.
As instituições políticas serão analisadas em seus fundamentos constitutivos.
Antes de se perguntar como funciona uma sociedade democrática o trabalho pretende
tecer algumas considerações sob o que primeiramente é uma sociedade e como esta
pode criar uma realidade político institucional, bem como qual o papel das normas
jurídicas nessa criação.
Na primeira parte do trabalho será efetuado um apanhado das doutrinas e
teorias da tradição sobre o Estado democrático e a Separação de Poderes. Tal apanhado
é essencial, pois serve de horizonte de pré-compreensão no qual se inserem as crenças,
expectativas e desejos da sociedade que posteriormente irão moldar a realidade social.
Na segunda parte, há o enfoque sob uma nova perspectiva filosófica sobre as
condições de existência de uma realidade política e de uma realidade institucional
linguisticamente constituída. Verifica-se a dinâmica de constituição de uma realidade
política e de como se pode chegar a um conteúdo do que vem a ser Democracia.
Analisa-se ainda como se opera a harmonia e independência entre os poderes, bem
como as condições de sua existência através de normas constitutivas.
O paradigma adotado foi em grande parte a perspectiva de John Searle. A
teoria de Searle é interessante ao propósito do trabalho, pois o filósofo adota uma
postura de profundo respeito e valorização do papel da linguagem na constituição da
realidade política. Com o instrumental teórico preconizado por este filósofo, é possível
vislumbrar a relação entre as normas e a realidade institucional.
Nas palavras do próprio Searle, a este parece que todas as concepções de
sociedade, desde Aristóteles até Habermas, conceberam erroneamente o papel da
linguagem. A linguagem é tomada por auto-evidente e daí partem na investigação de
como a sociedade funciona e como é constituída. Ao contrário, deveria-se perguntar o
que é linguagem tendo em vista que é através dela que se constrói a realidade social.
Para Searle, é desnecessário pensar em termos de um contrato social de
moldes iluministas, tendo em vista que, se uma determinada sociedade possui uma
linguagem comum, já possui um contrato social. 1
1 SEARLE. John R. What is Language: Some Preliminary Remarks. Texto da Conferência de Berlim em 2005. Disponível em: <http://www.berkeley.edu>. No texto original: “However, it seems to me that the accounts of society that I am familiar with, ranging all the way from Aristotle to Habermas, radically misconceive the role of language in that, in an important sense, they take the existence of language for granted and then ask: How does society work, how is it constructed?, and so on. When I say that they take language for granted, I mean that in accounting for the nature of society they do not ask, What is language? Rather, they simply assume the existence of language and go on from there. Perhaps the worst offenders in this regard are the Social Contract theorists, who presuppose beings like us, who have
Desta forma, este trabalho se propõe ser um meio de se levantar
questionamentos e propiciar uma reflexão sobre as possíveis implicações de uma teoria
da norma jurídica sobre a concepção do Estado Democrático de Direito.
1 TIPOS HISTÓRICOS DE ESTADOS E AS NORMAS JURÍDICAS
Os tipos históricos fundamentais de Estado elencados por Georg Jellinek2 –
o antigo Estado oriental, o Estado helênico, o Estado romano, o Estado da Idade Média
e o Estado moderno – são construções de natureza jurídica, e como tal, diante da
necessidade de segurança jurídica em tal tipo de estrutura política, são construções
normativas.
À época do Estado oriental, monárquico e teocrático, vigia a norma como
revelação dos deuses, que era traduzida pela figura, por exemplo, do faraó, sendo sua
imperatividade do mais elevado grau possível. Daí que a desobediência ao imperador,
por menor que fosse, era passível de morte, por ser desobediência aos deuses. A norma
jurídica, dentro dessa perspectiva, se constituía como uma regra divina, como uma
realidade ontologicamente independente.
A principal característica do Estado grego era sua onipotência. Diante desse
quadro, as normas não eram apenas imperativas, mas também todas de ordem pública,
cogentes, havendo a liberdade apenas para os assuntos públicos, mas não para a tomada
de decisões na esfera particular, do que se nota o papel secundário do indivíduo. Não é
para menos que na Grécia antiga floresceram as idéias acerca da concepção organicista
do homem, sendo nele que a idéia socialista de valor do homem como membro da
comunidade teve sua mais alta expressão.
Aí reside a contradição suscitada por Benjamin Constant3 acerca da
liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos – aquela para os assuntos públicos,
quando o homem era soberano -, e esta para os assuntos privados, inexistente na Grécia
antiga, mas de grande força a partir do impulso dado pelo Iluminismo europeu no século
XVIII.
Quanto à organização do Estado grego, ele era bastante reduzido em
dimensões, o que permitira justamente toda essa liberdade pública, pois a todos os que
não fossem impedidos, como os estrangeiros e os escravos, e tivessem tempo, era dado
language, and then ask how these beings could form society on the basis of a social contract. The point I will be making is that once a society has a common language, it already has a social contract”. 2 In Teoría general del Estado. México: FCE, 2000.
participar do processo de formação das leis, que não obstante cogentes e opressivas da
autonomia individual, eram democráticas, dentro desses balizamentos.
Com o Estado romano, também consubstanciando como o grego na
formação de Cidades-Estado, o Direito alcança grande desenvolvimento, surgindo as
normas de Direito Privado em separado do Direito Público, não cogentes e aquelas
referentes ao direito internacional privado (ius gentium).
Com o advento da Idade Moderna e a formação dos Estados nacionais
europeus, a autoridade se concentra nas mãos do Rei, de quem emana a soberania, e
assim o poder final sobre as normas jurídicas, servindo isso para a própria unidade
nacional. Paulatinamente, a burguesia, já detentora do poder econômico e aliada de
primeira hora dos reis contra a nobreza, passa a almejar o poder político que ainda não
conquistara, e seus valores, como que gerados do ressentimento contra a nobreza,
encontram eco nos anseios populares, levando às Revoluções Liberais que
implementam o Estado de Direito.
Essa expressão em si, Estado de direito, surgiu na Alemanha, ao final do
século XIX, embora resultante da revolução da liberdade, como lembra Paulo
Bonavides4, pela qual tanto se emprenharam as “as correntes filosóficas do
contratualismo, do individualismo e do iluminismo”5, destacando-se aí, por exemplo,
Locke e Montesquieu.
O Estado de direito representa a submissão do poder político ao império da
lei6, visando à eliminação das arbitrariedades, à limitação do poder absoluto dos reis,
enfim, à destruição do Ancien Régimen, tendo surgido como Estado liberal, o que não
poderia ser diferente diante de suas origens burguesas.
Esse tipo de Estado também é denominado de Estado constitucional,
assinalando-se como seu marco principal a Revolução Francesa, não obstante as
Revolução Americana7 e Revolução Gloriosa inglesa, protegendo ao máximo a
propriedade e a liberdade.
Das principais características do Estado de Direito, destacam-se a existência
de uma Constituição, o império da Lei, os direitos de primeira geração (de liberdade) e a
divisão dos poderes. Aqui as normas jurídicas adquirem um caráter mais importante do
3 Vide MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 26 4 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 29. 5 MIRANDA, Jorge. Op. cit. p. 44. 6 A própria ordem das expressões que compõe o enunciado ‘Estado de direito’ levam a essa consideração. A propósito, SEGADO, Francisco Fernandez. Ob. cit. p. 110 7 A primeira Constituição, em sua moderna acepção, foi a dos Estados Unidos da América, que data de 1787.
que jamais tiveram, pois agora pressupõe um processo legislativo adequado, e seu
respeito é para todos, de forma igual, ainda que muitas vezes o excesso de igualdade
possa conduzir à injustiças, requerendo a aplicação da eqüidade.
Canotilho8 explicita outras manifestações do Estado de direito, não apenas
aquela da Alemanha que difundiu a terminologia, a saber: (1) da Inglaterra vem o rule
of law, regra da organização política ocidental: devido processo legal; na prevalência
das leis e costumes nacionais sobre a discricionariedade real; sujeição dos atos do
Executivo ao Parlamento; e direito e igualdade de acesso aos tribunais para a defesa de
direitos perante qualquer entidade; (2) dos Estados Unidos tem-se a exigência do Estado
constitucional, i.e., o poder constituinte do povo, com um governo justificado pelo
consentimento deste em ser governado sob certas condições, explicitadas na
Constituição, exercendo os juizes a justiça em nome dele, inclusive podendo acessar à
Constituição afastando ou tendo por nulas as más leis; (3) da França vem o Estado de
legalidade: não há Estado de direito sem uma Constituição feita pela nação, que tem de
contar com uma declaração de direitos e organização do poder político segundo o
princípio da separação de poderes, elementos que serão núcleo do Estado constitucional.
Percebe-se, em todas essas manifestações, o caráter impositivo da norma, e sua
prevalência como fonte superior do Direito.
Dentre as características do Estado de Direito, cumpre detalhar a questão da
separação de poderes, que em essência é uma questão normativa, pois cuida, a grosso e
genérico modo, de se estabelecer quem tem a competência para estatuir as normas, para
executá-las e para decidir questões concretas com base na existência ou não das
mesmas.
Esse argumento se reforça diante da constatação de que a organização das
funções do Estado a fim de evitar abusos e ineficiência do poder é questão comum a
todos os regimes políticos9. Percebe-se que a teoria da norma definitivamente assume
relevante função para a própria organização do Estado.
Aristóteles já tratava da separação de poderes, mas é à Montesquieu que se
deve sua sistematização moderna, propugnando o poder se refrear por si mesmo, através
do sistema de freios e contrapesos, em que os Poderes, por meio de normas bem
definidas, exercem recíprocos controles entre si.
Desenvolve Montesquieu sua teoria da separação de poderes na sua obra Do
Espírito das Leis, dizendo que “há em cada Estado três espécies de poder: o poder
8 In Estado de direito. Lisboa: Cadernos democráticos, [s.d.].
legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o poder
executivo daquelas que dependem do direito civil”10.
O poder legislativo seria aquele que disporia sobre as leis; o executivo
cuidaria das relações externas e da segurança – o que deve se ater, observe-se, às leis -;
e o judiciário julgaria os litígios – o que também deve ser feito segundo as normas
jurídicas. A separação dos Poderes é necessária à liberdade dos homens, para que não
haja um poder tirânico que os possa oprimir: a norma jurídica .
Montesquieu criou dois critérios supra-legais para assegurar o equilíbrio
entre os Poderes, “distinguindo a faculdade de estatuir (faculté de statuer) da faculdade
de impedir (faculté d´empêcher)”11.
O Estado de Direito não pode ser meramente um Estado que possua uma
Constituição na qual se estabeleça a sua organização, com sua limitação e garantia de
direitos fundamentais. Faz-se necessário dar um passo além, no sentido de legitimidade,
chegando-se ao Estado Democrático de Direito.
Esse tipo de Estado conjuga ao Estado de Direito a idéia democrática,
melhor formulada por Lincoln no cemitério de Gettysburg, em 1863 – that government
of the people, by the people, and for the people shall not perish from the earth.
As normas jurídicas, já necessariamente elaboradas como prescrições
deônticas por meio do devido processo legislativo no Estado de Direito agora passam a
requerer também o componente de legitimidade, e esta não se confunde com a mera
legalidade, por se cuidar de critério político, não obstante defenda Paulo Bonavides que
a legitimidade é a legalidade acrescida de sua valoração.
2 TEORIA DA NORMA E ENTIDADES INSTITUCIONAIS
É interessante notar que em toda a doutrina clássica sobre a organização
estatal, o próprio ente estado é tomado como auto-evidente. Propaga-se a idéia
Aristotélica de que o homem é um animal político e por natureza já existiria alguma
forma de governo, organização ou poder social capaz de emanar normas prescritivas
para as condutas individuais.
9 Conforme leciona Fábio Konder Comparato in Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das letras, 2006. p. 670 10 MONSTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 165. 11 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 140.
O perigo de se tomar como auto-evidentes as instituições ou organizações
institucionais reside em desperceber o largo conjunto de pressuposições que estão
imanentes em todo tipo de norma jurídica.
Por mais simples que seja, uma norma jurídica inferida de uma lei, por
exemplo, pressupõe que esta lei foi aprovada de acordo com outras tantas regras que
regulam quais os procedimentos e condutas humanas contam como “criar uma norma
jurídica”. Essas outras tantas regras, por sua vez, pressupõe estarem inseridas dentro de
um contexto de uma entidade institucional, como o Estado.
Aparenta a este estudo que, na maioria das investigações sobre a teoria do
direito e sobre a teoria da norma, há uma pressuposição de existência de um aparato
estatal.
Entretanto, verificamos que este problema não é de todo desconhecido. Hart
detêm o mérito de apontar para a existência de outras normas diferentes das tradicionais
normas de natureza prescritiva ou regulativa. A investigação sobre normas
“secundárias” já é uma forma de se imaginar que devem existir outras normas que não
sejam destinadas a disciplinar alguma conduta, mas a possibilitar a existência do próprio
ato de disciplinar.
Nesse sentido, é interessante consignar a lição de Riccardo Guastini,
“Legislar” não seria legislar na ausência daquelas normas que conferem a um certo comportamento humano o sentido (o valor) de “legislação”. Sem essas normas, talvez, o próprio vocábulo ‘legislar’ não tivesse sentido algum. O mesmo se pode dizer quanto a ‘julgar (em sede jurisdicional)’, ‘prometer’, ou ‘jogar xadrez’. [...] Pode-se falar de um “comando” sem fazer menção a uma norma jurídica, mas não se pode falar de “legislação” fazendo abstração daquelas normas constitucionais que conferem a certas pessoas o poder (a competência) de pronunciar comandos com o valor de “leis”.12
Exemplificando, devemos perceber que a regra que determina que o cavalo
no jogo de xadrez se movimenta em “L” não somente prescreve uma conduta, como cria
a própria possibilidade da existência de um cavalo de xadrez. Essa peculiaridade de
normas que criam a própria existência das condutas que prescrevem é essencial para
tanto para a teoria do direito como para a compreensão do Estado.
12 GUASTINI, Riccardo. Das Fontes às Normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 66.
No direito, estas normas desafiam as noções tradicionais de normas como
juízos imperativos, juízos disjuntivos e até mesmo a própria estrutura da sanção. Como,
por exemplo, imaginar uma sanção às normas veiculadas no caput do artigo primeiro e
no artigo segundo da Constituição Federal de 1988, ou ainda, como descumprir que a
República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel de Estados,
Municípios e do Distrito Federal.
Estas normas estão intimamente ligadas com a existência de entidades que
não possuem existência concreta, porém são objetivamente identificáveis, como o
próprio estado, e outros entes institucionais, como universidades, empresas, fundações,
etc. Estas normas peculiares são investigadas sob várias nomenclaturas: normas
secundárias, normas de autorização, normas de competência e, particularmente, normas
constitutivas
Essas normas peculiares são investigadas sob várias nomenclaturas: normas
secundárias, normas de autorização, normas de competência e, particularmente, normas
constitutivas.
Essa última denominação é afeita a teoria do filósofo da Universidade de
Berkeley, John R. Searle, que dedicou extensa pesquisa à questão de como é constituída
a realidade social e institucional. Dentro de sua pesquisa, este filósofo chegou a
conclusão de que a realidade institucional tem sua gênese através da intencionalidade
coletiva e as normas constitutivas. Apresentamos assim a perspectiva de como as
normas podem ser constitutivas da realidade institucional na filosofia de John R. Searle.
3 A PERSPECTIVA DA FILOSOFIA DE JOHN R. SEARLE
Em sua teoria, Searle faz a distinção entre os aspectos da realidade que
seriam dependentes do observador e os que seriam independentes do observador. O
filósofo define os aspectos dependentes do observador como todos aqueles que sua
própria existência depende de pensamentos, atitudes, crenças (intencionalidade13) dos
agentes sociais.14
13 A intencionalidade na concepção de Searle é um aspecto de estados mentais direcionados a algo. Não se limita a intenção, posto que engloba muito mais, envolvendo crenças, medos, expectativas, desejos, etc. Estados Intensionais normalmente normalmente apresentam uma estrutura similar aos atos de fala, envolvendo um conteúdo proposicional e um modo psicológico. Nesse sentido temos o trabalho de Searle: Intentionality: Na Essey on the Philosophy of the Mind. Cambridge: Cambridge University Press 1983. 14 SEARLE. John R.. Social Ontology and Political Power, in FF Schmitt (org.) “Socializing Metaphysics: The Nature of Social Reality”. Rowman & Littlefield Pub Inc. 2003. pp. 195–210.
Nesse sentido, podemos dizer que a realidade política é dependente do
observador. Algo só é uma eleição, um parlamento, uma suprema corte, uma
presidência se os indivíduos tiverem um determinado grupo de crenças, pensamentos e
atitudes para com o fenômeno em questão.
Essa dependência do observador vai levar a uma subjetividade ontológica,
que tem sido despercebida através dos séculos no que toca a filosofia política. Cada
teoria é vista como se possuidora de uma ontologia objetiva e absoluta, quando na
verdade, não passam de propostas condicionadas pelo horizonte lingüístico do
proponente.
Parte desse engano sobre a ontologia humana decorre de tomar por base o
aspecto de que somos animais sociais para derivar daí direitamente implicações
políticas e de organização estatal.
A existência de animais sociais é de certo modo independente do
observador, pois diversos animais caçam em conjunto, utilizam de cooperação para
separar as presas mais fracas da manada, por exemplo. Essa sociabilidade animal pode
ser considerada um fato social e tem por base a intencionalidade coletiva.
Na visão de Searle, essa intencionalidade coletiva é suficiente para a
construção dos aspectos mais simples de realidade social e fatos sociais. Esta
intencionalidade acontece sempre que dois indivíduos ou animais compartilham
desejos, intenções, crenças, etc.
Trata-se talvez da Pedra de Roseta da linguagem. Nessa perspectiva,
constatamos que a realidade política é constituída por regras constitutivas e por sua vez
pela própria linguagem.
Fatos institucionais são dependentes da linguagem, até porque só podem
existir enquanto representados como tal. Desta forma, só é possível a existência de um
Estado e, por conseguinte de um Estado Democrático, se houver um determinado
conjunto de atitudes e crenças dos agentes sociais sobre o fenômeno em questão.
Sem essa forma de aceitação a própria existência institucional é
insustentável. Faz-se necessário abandonar a postura ontológico-metafísica do Estado
como um ente no éter que faz parte da natureza humana. O Estado não é uma realidade
na qual os indivíduos se inserem é uma realidade institucional linguisticamente
constituída e dependente dos indivíduos.
Agora, dentro da constituição da realidade política, o que pressupõe esta
aceitação coletiva? Que tipos de atitude e crenças são necessárias para que se possa
haver uma realidade institucional?
Na visão de Searle, parece despontar que a aceitação coletiva e a
intencionalidade coletiva são constitutivas de algo que pode ser identificado como
poderes deônticos.
Esta forma de poder deôntico encapsula direitos, obrigações, promessas,
autorizações, permissões, etc. Essa forma de poder decorre exatamente da aceitação de
determinada situação valendo como tal dentro de um contexto específico.
Essa forma de poder não é arbitrária ou irracional, é exatamente uma
decorrência lógica da aceitação de uma norma constitutiva. Tendo a norma constitutiva
sido aceita, há uma existência deôntica envolvida, pois se “X vale como Y no contexto
C”, “X deve valer como Y no contexto C”.
Assim, direitos, obrigações, aceitações dentre outros são formas desse poder
deôntico. Se a realidade política nasce de normas constitutivas da imposição de funções
de status a procedimentos, textos ou pessoas, e estas por sua vez só são enquanto tal se
derivadas da aceitação e intencionalidade coletivas, temos que todas as formas de poder
político são na verdade formas de poder deôntico dentro da realidade social, da
comunidade lingüística.
O estudo procura identificar como esse instrumental teórico e formas de
poder deôntico, relacionados com normas constitutivas vão implicar numa nova visão
da estrutura do estado.
4 REALIDADE POLÍTICA COMO REALIDADE INSTITUCIONAL
A questão verdadeira que envolve a realidade política é a passagem de fatos
sociais, para fatos institucionais. Há um grande passo que separa esta realidade social da
realidade política. A pergunta a se fazer agora é a seguinte: quais os elementos
específicos que devem ser associados a esta intencionalidade coletiva para a criação de
fatos institucionais?
Searle responde a questão indicando dois elementos: 1) a necessidade de
imposição de função (status function) e 2) a necessidade de regras constitutivas.
Quanto a imposição de função, vemos que diversos animais conseguem
utilizar ferramentas, como os macacos que utilizam gravetos para retirar formigas ou
cupins da terra. Porém, os animais conseguem utilizar tais materiais em virtude das
propriedades físicas que eles apresentam.
Os humanos conseguem, através de uma aceitação coletiva, impor a
determinados objetos um determinado status que independe de suas características
físicas. Com este status deriva uma função que só existe em virtude das atitudes dos
indivíduos para com o objeto e da aceitação coletiva desta “função de status”.
Exemplo claro é o dinheiro. Os pedaços de papel que chamamos cédulas só
o são e só funcionam como tal em virtude da aceitação coletiva de que aquele pedaço de
papel, que passou por determinado processo, ou seja, dentro de um contexto, vale como
dinheiro.
O segundo requisito apresentado por Searle, são as normas constitutivas.
Este requisito por sua vez é necessário para constituir o primeiro.
Searle diferencia dois tipos de normas, as normas regulativas e as normas
constitutivas. As normas regulativas disciplinam uma forma anterior de comportamento
e usualmente são referentes a uma representação objetiva da realidade. Exemplos
seriam: “Não fumar dentro do restaurante”, “Utilizar capacete dentro da obra”. São, por
exemplo, normas que usualmente evocam uma imagem mental de comportamento.
As normas constitutivas não somente regulam, porém criam a própria
existência de uma realidade. O exemplo tradicional é o jogo de xadrez. As regras do
xadrez não só regulam a forma de jogar, mas condicionam a própria existência do jogo e
do ato de jogar xadrez.
Essas regras podem ser reduzidas ao enunciado de que “X vale como Y no
contexto C”.15 Esta é a base que permite a imposição de funções de status e a
transformação de fatos sociais em fatos institucionais. Assim, as normas constitutivas
são a expressão da passagem de uma realidade social para uma realidade política.
A pessoa que satisfaz estas ou aquelas condições vale como presidente, o
texto que satisfaz esse procedimento vale como lei, a pessoa que satisfaz determinados
requisitos vale como alguém que pode decidir um conflito. De uma forma ainda mais
elaborada: a decisão que satisfaz uma série de requisitos dentre os quais ser proferida
por uma pessoa que satisfaz outros requisitos, vale como decisão judicial.
5 PODERES DEÔNTICOS NA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA:
Até este ponto, verificamos que a contribuição da teoria da linguagem e da
filosofia analítica serviram para indicar que a existência de instituições políticas é
dependente de uma estrutura dependente da linguagem.
15 SEARLE. John R. Mind, Language and Society. New York: Basic Books. 1999.
A existência dos fatos institucionais e da realidade política depende de regras
constitutivas identificadas com a fórmula “X vale como Y no contexto C”. A
comunidade lingüística concreta é muito complexa para que cada agente possa
racionalizar, por exemplo, que o Luis Inácio Lula da Silva é o presidente porque é uma
regra constitutiva aceita de que ele (X) por reunir todos os requisitos necessários
mediante e perante outras normas constitutivas, além satisfazer todo o processo e
procedimento eleitoral (contexto C), vale como, é visto como presidente (Y).
Os agentes sociais, entretanto, simplesmente, em virtude do contexto, o
observam como presidente e direcionam a ele um conjunto de atitudes e de
intencionalidade no sentido de efetivamente “ele valer como” presidente.
Ao ser reconhecido como presidente, ou porque não dizer, linguisticamente
constituído como presidente há uma carga de poderes deônticos envolvidos. Há
exatamente a imposição de diversas funções de status, em virtude da razão de ele ser
considerado como presidente e haver uma miríade de expectativas, crenças,
pensamentos (intencionalidade e aceitação coletivas) em torno do que pode um
presidente fazer. A comunidade lingüística está exatamente constituído a própria
existência do que é um presidente, muito similar a constituição de um jogo de xadrez.
Searle ressalta ainda que o funcionamento do vasto sistema de funções de
status que são o estado e o governo decorre em grande parte do reconhecimento dos
diversos agentes sociais da validade da constituição de determinado status. É nesse
ponto que o reconhecimento de uma regra constitutiva gera para o indivíduo razões
independentes de interesse para pautar sua conduta.
Um exemplo simples dessa realidade é o simples fato de que ao prometer
encontrar alguém às 5:00 horas da manhã, eu faço surgir uma obrigação para a
realização de tal conduta, mesmo que ainda esteja com sono no horário combinado e
não haja qualquer sanção imediata. O que ocorre é uma espécie de concessão de poder
deôntico à pessoa a quem prometo que culmina com uma expectativa de ação e conduta.
O meu ato de fala de prometer, dentro do contexto de comunicação vale como uma
promessa, como uma representação do encontro futuro. Logo há uma expectativa
validamente constituída no interlocutor, independente do poder deste me obrigar ou não
a comparecer ao encontro.
Há, contudo, um interesse mediato, independente de razões físicas. Há o
interesse de que promessas e obrigações sejam cumpridas para que haja um mínimo de
efetividade e operacionalidade das mesmas, haja vista que são o veículo para a
organização social. Assim, o simples reconhecimento de um conjunto de fatos
institucionais como validos gera um conjunto de obrigações independentes do interesse
imediato do indivíduo.
Essa mesma linha de raciocínio pode ser ampliada para toda a realidade
institucional criada pela comunidade lingüística.
Searle adota um posicionamento interessante. Sob sua perspectiva a
organização política somente pode funcionar se houver um mínimo de reconhecimento
como valido o sistema das diversas funções de status relativas aos fatos institucionais
por um grupo suficientemente grande de indivíduos que compartilham uma aceitação do
sistema (intencionalidade coletiva em aceitar como validas as funções de status).
Há uma fundamentação, por parte do autor, que expressamente indica que o
monopólio da violência armada é uma pressuposição essencial do governo. Há uma
passagem literal no trabalho de Searle que diz, numa tradução livre: “A razão pela qual
o governo pode se manter como o sistema último de funções de status é por este manter
uma constante ameaça de força física”.16
Em seguida Searle fala que o “milagre” nas sociedades democráticas seria a
efetividade do controle e funcionalidade social baseada nos poderes deônticos atribuídos
às instituições em superação à ameaça de constrição física.
Acredito que Searle cometeu um engano quanto à questão. Ao supor que a
ameaça militar ou policial é essencial para efetividade do sistema político, há uma
inversão. Esta ameaça funciona como mecanismo de promoção da efetividade do
sistema e de aceitação pelos indivíduos sociais da validade do sistema.
Esse monopólio da violência armada seria como o “contexto C” na qual
determinados grupos de indivíduos ou práticas (X) são validos como instituições
governamentais (Y).
Searle esquece-se que o sistema pode ter outras razões para manter a coesão.
Mesmo sem o monopólio da violência, podem existir outras razões que funcionem
como focos de interesse dos indivíduos que venham a conferir poderes deônticos
suficientes a existência e funcionalidade efetiva do governo.
Uma dessas formas de influência sobre os indivíduos é a ideologia, muito da
aceitação coletiva é decorrente de posicionamentos ideológicos ou de pura e simples
doutrinação.
16 SEARLE. John R.. Social Ontology and Political Power, in FF Schmitt (org.) “Socializing Metaphysics: The Nature of Social Reality”. Rowman & Littlefield Pub Inc. 2003. pp. 195–210. No original: “The reason that the government can sustain itself as the ultimate system of status functions is that it maintains a constant threat of physical force”.
Um exemplo é o próprio constitucionalismo atual. O Estado Democrático de
Direito ganha na filosofia ocidental um status quase divinizante. Apesar de imprecisão
terminológica e das diversas concepções procedimentais envolvidas, há uma aceitação
de sua legitimidade e sua validade, tornando-se um locus retorico de consenso.
Sobre a Separação de Poderes pode ser dito o mesmo. Existem diversas
concepções e formas de organização mas parece haver um consenso no sentido de que é
necessária.
Porem esta forma de validação doutrinária é mais intensa aos estudiosos do
assunto, para a população geral, há uma forte razão de validação e aceitação do sistema
político, por razões de inércia, comodidade e interesse.
O milagre a que Searle se refere é exatamente a organização democrática,
que se torna um sistema onde os indivíduos detêm uma esfera relativamente ampla de
liberdade em relação a outros regimes e há uma estrutura de direitos e segurança nas
relações sociais e comerciais.
Em uma possível síntese, enquanto há uma funcionalidade das relações
sociais, com um mínimo necessário de respeito aos interesses de cada indivíduo, os
próprios indivíduos irão validar a ordem social, atribuindo às instituições sociais
quantidade suficiente de poder deôntico para a manutenção do governo.
O Legislativo produz textos, atos lingüísticos que contem um sentido. Num
mundo idealizado, a identificação entre o eleitor e o eleito seria suficiente para que o
parlamentar ao “performar” os atos de produção legislativa mantivesse o mesmo sentido
que o eleitor haveria de interpretar.
O que acontece é que o legislativo performa atos lingüísticos que valem
como lei porque a comunidade lingüística apresenta uma série de atitudes para com tais
atos. Dentro dessa função de atos normativos o Legislativo condensa parte da
intencionalidade da sociedade, tendo em vista que foi esta intencionalidade que
selecionou os membros do parlamento. Porém, esta intencionalidade social também
selecionou os administradores que nada mais são do que indivíduos com poderes
deônticos especiais. Logo, a intencionalidade coletiva é tanto limite de atuação seja para
o legislativo como para o executivo.
Nesse momento o papel de cada função vai ser o que comunidade lingüística
constituir como sendo e aceitar como sendo o papel de cada ente.
Finalmente podemos observar a verdadeira importância de toda a parte
introdutória do trabalho. As diversas teorias formuladas sobre o Estado são exatamente
exemplos da intencionalidade coletiva da sociedade (crenças, pensamentos, desejos).
Essas diversas teorias possuem seguidores bem como se estruturam num conjunto de
crenças socialmente aceitas e se aceitas e tomadas como validas são efetivamente
constituídas.
Sendo o fundamento de toda a existência de uma realidade política essa
intencionalidade coletiva difusa, derivamos daí a formatação ideal da separação de
poderes.
A atuação dos poderes será valida somente se ocorrer de acordo com o que a
comunidade lingüística tomaria como válida. Nesse ponto, a concepção de norma
jurídica concreta enuncia pelo judiciário se faz clara, bem como o papel do legislador no
processo.
Uma atuação harmônica é aquela onde o legislador produz o texto, que não
passa de um conjunto de expressões lingüísticas, com a pretensão de que aquele texto
possua um sentido (X) que seja tomado pelos destinatários e pela comunidade
lingüística como uma lei, e não somente uma lei, como uma lei válida e legitima (Y)
dentro dos moldes e procedimentos tidos previamente como válidos por outras normas
constitutivas (contexto C).
Por sua vez, em harmonia com a intencionalidade difusa na sociedade, o
judiciário ao interpretar o texto legislativo estará a constituir a norma. A norma
constituída deve ser tal que seja esteja em concordância com o sentido pretendido pelo
legislador, que, por sua vez, teria sido o tradutor da intencionalidade difusa da sociedade
que o constituiu.
Logo, existe dentre as possibilidades de sentido de um texto, ou seja dentro
da possibilidade de normas possíveis existe aquela que seria a que a intencionalidade
difusa haveria de constituir como sendo a mais legítima e adequada.
O papel do legislador seria fornecer as expressões lingüísticas (textos
legislativos) da qual pudesse surgir o sentido (norma) que consubstancia a
intencionalidade social e é o papel do judiciário proferir essa norma. Por fim, o
executivo deve tomar medidas e políticas públicas que consubstanciem a
intencionalidade difusa.
6 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Da perspectiva Searleana temos que o Estado é uma realidade institucional,
composta de diversos fatos institucionais. Tais fatos institucionais são constituídos
mediante a intencionalidade coletiva moldada em de normas constitutivas de
formulação “X vale como Y num contexto C”.
Essa intencionalidade coletiva que constitui fatos institucionais sempre
envolvem direitos, deveres, obrigações, permissões, etc. Esse tipo de poder, tal qual o
poder do estado, o poder de um padre que pode efetuar o matrimônio de um casal, o
poder de um juiz de futebol ao marcar um pênalti ou o poder de um juiz em declarar
aberta uma audiência, somente são existentes enquanto tal se foram reconhecidos,
validados, aceitos. São esses tipos de poderes que Searle chama de poderes deônticos.
Então, se toda a estrutura de atuação do Estado e do Governo é uma questão
de poderes deônticos, que implicações esta constatação traz para a construção de um
Estado Democrático de Direito?
Preliminarmente devemos perceber que o termo Democracia, como dito, é
um locus retorico, possui um sentido fluido de acordo com o horizonte de pré-
compreensão do falante.
Na verdade, ao dizer que a República Federativa do Brasil é um Estado
Democrático de Direito, devemos verificar que esta realidade política é constituída de
acordo com a comunidade lingüística, ou seja, de acordo com o que é validamente
aceito, através de uma norma constitutiva, pela sociedade como sendo um Estado
Democrático de Direito.
Verifica-se, outrossim, que o parágrafo único está em sintonia com a
concepção de que somente existe uma República Federativa do Brasil e esta se
configura num Estado Democrático pela aceitação coletiva dos indivíduos. Logo, o
poder que emana do povo é exatamente a intencionalidade coletiva que vira a constituir
a realidade institucional e política e o poder deôntico decorrente desta realidade criada.
Assim, chegamos também a conclusão de que um dado sistema político
tenderá ao colapso quanto menor for a aceitação por parte dos indivíduos e esta não
aceitação decorre da inadequação entre as práticas governamentais e representação da
realidade institucional criada pelos indivíduos.
Podemos apontar como exemplo as ditaduras. As ditaduras históricas
somente mantiveram a sua organização e funcionamento político enquanto mantiveram
a opressão militar e a violência. Essa ameaça constante funcionava como o “contexto C”
onde as práticas abusivas e autoritárias (X) valiam como atuações legais e juridicamente
validas (Y). A opressão pela força gerou um contexto onde os indivíduos reconheciam
como válidas (possivelmente ilegítimas ou imorais) as instituições assim criadas.
Dentro do contexto de uma ordem que se pretende democrática, devemos
estruturar a validação ou o “contexto C” em outras premissas que não a força. É nesse
ponto que entra a moderna pesquisa na legitimação do Estado e do direito.
Sob uma perspectiva lingüística, onde é o ninho de onde saem as construções
lingüísticas que constituem a realidade institucional e política?
Nesse momento é interessante dialogar com as teorias de Habermas. Na
visão deste autor, este espaço de construção comunicativa é a esfera pública. Numa
tradução livre,
Por esferas públicas, Habermas está se referindo a uma rede de comunicação que dá suporte a discursos públicos, os mais óbvios fóruns são a imprensa e a mídia eletrônica e mais recentemente a Internet. (...) Habermas vê o sistema político e a sociedade civil como distintos, porém ligados pela esfera pública. As questões surgem e saem da vida privada através da sociedade civil, sendo discutidas na esfera pública onde opiniões são formadas e terminam se tornando codificações legais que passam a fundamentar programas administrativos.17
Conjugando a visão de Habermas com a de Searle, temos que a esfera
pública habermasiana é exatamente a comunidade lingüística que em discussão acaba
por construir via normas constitutivas novas realidades sociais, bem como reformular as
anteriores. É nessa esfera que a aceitação e intencionalidade coletivas são formadas e
onde a realidade política é construída.
Assim, o conteúdo da Democracia ou do Estado Democrático é exatamente o
que for constituído pela sociedade dentro de um processo comunicativo.
Toda a produção intelectual existente constitui-se num conjunto de possíveis
intencionalidades (crenças, pensamentos, desejos) passiveis de se tornarem traduzidos
em uma realidade institucional através de normas constitutivas.
O próprio Habermas parece fazer uma referência ainda a normas
constitutivas como fundamentos do direito e da ordem política,
HABERMAS começa a sua busca de um fundamento para o direito moderno observando que, só no momento em que surge uma moral convencional (em que as normas jurídicas são prévias, independentes da situação e vinculantes para todos), torna-se possível o surgimento de um poder político organizado por meio de um direito coercitivo. Isso porque, sustenta HABERMAS, só no momento em que o poder de fato recebe
17 DARBAS, Toni. Democracy, Consultation and Socio Environmental Degradation. Doctorate of Philosophy Thesis. School of Science and Technology Studies. University of New Wales. 2002.
uma autoridade normativa conferida por uma norma jurídica e que tenha este caráter moral e convencional (e é neste momento que passa a ser legítimo) pode impor politicamente normas jurídicas.18
Essa moral convencional indicada por Habermas, através da qual surge um
poder político nada mais é do que o conjunto de normas constitutivas searleanas, dentro
do qual a comunidade lingüística representa determinado comportamento como
desejado ou objetivado dentro de um contexto específico.
Outro momento de aproximação das duas teorias é quando o poder de fato
recebe uma autoridade normativa. Esse passo é exatamente o passo da realidade social
para a realidade política, é a transição entre os fatos sociais e os fatos institucionais
através de normas constitutivas e da aceitação coletiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
O estudo apresentou argumentos que sugerem a necessidade de uma nova
percepção da teoria da norma. As relações entre norma jurídicas e a constituição da
realidade institucional da qual o direito é expressão ainda pode oferecer importantes
contribuições tanto para a teoria do direito como para a ciência política.
Assim, a Construção de um Estado democrático vai depender da constituição
lingüística da comunidade onde um conjunto de práticas sociais e instituições (X) que
valem como um Estado Democrático (Y) dentro de um ambiente de pluralidade social e
composição de diversos interesses (contexto C). O Estado Democrático de Direito
existe através de uma norma constitutiva.
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18 CELLA, José Renato Graziero. A Teoria da Argumentação Jurídica como Proposta de uma Racionalidade Possível Frente à Postura Cética do Positivismo Jurídico Contemporâneo. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito. Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2001.
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