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REFLEXÕES SOBRE A TEORIA DA NORMA E SUAS IMPLICAÇÕES NA ESTRUTURA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO REFLECTIONS ON NORM THEORY AND ITS IMPLICATIONS IN THE STRUCTURE OF THE DEMOCRATIC STATE OF LAW Afonso de Paula Pinheiro Rocha Emanuel de Abreu Pessoa ∗∗ RESUMO A fórmula do Estado de direito é uma fórmula jurídica, que se assenta na supremacia de uma norma, a Constituição, que por sua vez constitui o Estado de direito mediante um conjunto de normas, tais quais as que consubstanciam entre outros elementos a separação de poderes e a sujeição à lei. Percebe-se claramente que o moderno Estado é uma construção jurídica, um conjunto dinâmico de normas, de modo que o mesmo deve ser analisado dentro de uma perspectiva da teoria geral do direito e em particular, da teoria da norma jurídica. O estudo pretende tecer algumas reflexões sobre a teoria da norma jurídica através de uma nova perspectiva orientada pelas contribuições da filosofia analítica e da teoria da linguagem e como esta nova percepção da norma trás severas implicações quanto à forma e a própria existência do Estado Democrático de Direito. Apresenta-se uma análise de como a concepção clássica de norma e normatividade orientou a construção dos modelos clássicos de organização do Estado - Estado oriental, o Estado helênico, o Estado romano e o Estado da Idade Média. Após, apresentam-se considerações sobre uma nova concepção de normatividade e da própria norma jurídica como realidade interdependente da atitude do interprete. Tecem-se alguns comentários sobre a distinção norma-texto e sobre a relação entre o dispositivo normativo – texto da norma – e a norma construída pelo intérprete. Dentro dessa, sugere-se algumas aplicações da filosofia de John Searle que sugerem uma forma de fundamentar de forma comum tanto a construção de uma nova concepção de norma e como uma nova filosofia política. Por fim, o estudo encerra fazendo um contraste entre o modelo de concepção tradicional de Estado e democracia e essa nova perspectiva de norma jurídica. Analisa-se a veracidade e possibilidade das pretensões do modelo atual de Estado de Direito. Mestrando em Direito pela UFC. Bolsista CAPES. ∗∗ Mestrando em Direito pela UFC. Bolsista CNPQ.

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REFLEXÕES SOBRE A TEORIA DA NORMA E SUAS IMPLICAÇÕES NA

ESTRUTURA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

REFLECTIONS ON NORM THEORY AND ITS IMPLICATIONS IN THE

STRUCTURE OF THE DEMOCRATIC STATE OF LAW

Afonso de Paula Pinheiro Rocha ∗

Emanuel de Abreu Pessoa ∗∗

RESUMO

A fórmula do Estado de direito é uma fórmula jurídica, que se assenta na supremacia de

uma norma, a Constituição, que por sua vez constitui o Estado de direito mediante um

conjunto de normas, tais quais as que consubstanciam entre outros elementos a

separação de poderes e a sujeição à lei. Percebe-se claramente que o moderno Estado é

uma construção jurídica, um conjunto dinâmico de normas, de modo que o mesmo deve

ser analisado dentro de uma perspectiva da teoria geral do direito e em particular, da

teoria da norma jurídica. O estudo pretende tecer algumas reflexões sobre a teoria da

norma jurídica através de uma nova perspectiva orientada pelas contribuições da

filosofia analítica e da teoria da linguagem e como esta nova percepção da norma trás

severas implicações quanto à forma e a própria existência do Estado Democrático de

Direito. Apresenta-se uma análise de como a concepção clássica de norma e

normatividade orientou a construção dos modelos clássicos de organização do Estado -

Estado oriental, o Estado helênico, o Estado romano e o Estado da Idade Média. Após,

apresentam-se considerações sobre uma nova concepção de normatividade e da própria

norma jurídica como realidade interdependente da atitude do interprete. Tecem-se

alguns comentários sobre a distinção norma-texto e sobre a relação entre o dispositivo

normativo – texto da norma – e a norma construída pelo intérprete. Dentro dessa,

sugere-se algumas aplicações da filosofia de John Searle que sugerem uma forma de

fundamentar de forma comum tanto a construção de uma nova concepção de norma e

como uma nova filosofia política. Por fim, o estudo encerra fazendo um contraste entre

o modelo de concepção tradicional de Estado e democracia e essa nova perspectiva de

norma jurídica. Analisa-se a veracidade e possibilidade das pretensões do modelo atual

de Estado de Direito.

∗ Mestrando em Direito pela UFC. Bolsista CAPES. ∗∗ Mestrando em Direito pela UFC. Bolsista CNPQ.

PALAVRAS-CHAVE: ESTADO DE DIREITO - NORMA JURÍDICA - FILOSOFIA

ANALÍTICA.

ABSTRACTS

The State of Law formula is juridical, lying on the supremacy of a norm, the

Constitution, which contributes for it through a gather of norms, such as those that made

within others the separation of powers and the Rule of Law. It is clearly noted the

modern State is a juridical construction, an dynamic assemble of norms, in such way it

must be analyzed on a perspective of the general theory of right and particularly, of the

juridical norm theory. The study intend to make some reflections on the theory of the

juridical norm through a new perspective orientated by the contributions of the

analytical philosophy and the language theory and how that new perception of the norm

brings tenacious implications on the kind and the existence itself of the Democratic

State of Law. It is presented an analysis of how the classic conception of norm and

normativity oriented the construction of classic models of State’s organization – oriental

State, Helenic State, Roman State and Middle Age State. After that, it is showed

consideration on the new conception of normativity and of the juridical norm itself as

reality \interdependent of the interpret attitude. It is made some comments on the

distinction norm-text and the relation among normative disposition – norm text – and

the interpret-built norm. Into that, it is suggested some appliances of John Searle’s

philosophy that suggest a way to fundament in a common basis the construction such of

a new conception of the norm as a new political philosophy. At least, the study is closed

by doing a contrast between the model of the traditional conception of State and

democracy and the new perspective of juridical norm. It is analyzes the veracity and

possibility of the current model of State of Law pretensions.

KEYWORDS: STATE OF LAW - JURIDICAL NORM - ANALYTICAL

PHILOSOPHY.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo fornecer uma nova perspectiva sobre a

relação entre Estado Democrático de Direito e a teoria geral do direito. O enfoque que

será apresentado envolver a valorização da linguagem como elemento constitutivo da

realidade institucional humana.

As instituições políticas serão analisadas em seus fundamentos constitutivos.

Antes de se perguntar como funciona uma sociedade democrática o trabalho pretende

tecer algumas considerações sob o que primeiramente é uma sociedade e como esta

pode criar uma realidade político institucional, bem como qual o papel das normas

jurídicas nessa criação.

Na primeira parte do trabalho será efetuado um apanhado das doutrinas e

teorias da tradição sobre o Estado democrático e a Separação de Poderes. Tal apanhado

é essencial, pois serve de horizonte de pré-compreensão no qual se inserem as crenças,

expectativas e desejos da sociedade que posteriormente irão moldar a realidade social.

Na segunda parte, há o enfoque sob uma nova perspectiva filosófica sobre as

condições de existência de uma realidade política e de uma realidade institucional

linguisticamente constituída. Verifica-se a dinâmica de constituição de uma realidade

política e de como se pode chegar a um conteúdo do que vem a ser Democracia.

Analisa-se ainda como se opera a harmonia e independência entre os poderes, bem

como as condições de sua existência através de normas constitutivas.

O paradigma adotado foi em grande parte a perspectiva de John Searle. A

teoria de Searle é interessante ao propósito do trabalho, pois o filósofo adota uma

postura de profundo respeito e valorização do papel da linguagem na constituição da

realidade política. Com o instrumental teórico preconizado por este filósofo, é possível

vislumbrar a relação entre as normas e a realidade institucional.

Nas palavras do próprio Searle, a este parece que todas as concepções de

sociedade, desde Aristóteles até Habermas, conceberam erroneamente o papel da

linguagem. A linguagem é tomada por auto-evidente e daí partem na investigação de

como a sociedade funciona e como é constituída. Ao contrário, deveria-se perguntar o

que é linguagem tendo em vista que é através dela que se constrói a realidade social.

Para Searle, é desnecessário pensar em termos de um contrato social de

moldes iluministas, tendo em vista que, se uma determinada sociedade possui uma

linguagem comum, já possui um contrato social. 1

1 SEARLE. John R. What is Language: Some Preliminary Remarks. Texto da Conferência de Berlim em 2005. Disponível em: <http://www.berkeley.edu>. No texto original: “However, it seems to me that the accounts of society that I am familiar with, ranging all the way from Aristotle to Habermas, radically misconceive the role of language in that, in an important sense, they take the existence of language for granted and then ask: How does society work, how is it constructed?, and so on. When I say that they take language for granted, I mean that in accounting for the nature of society they do not ask, What is language? Rather, they simply assume the existence of language and go on from there. Perhaps the worst offenders in this regard are the Social Contract theorists, who presuppose beings like us, who have

Desta forma, este trabalho se propõe ser um meio de se levantar

questionamentos e propiciar uma reflexão sobre as possíveis implicações de uma teoria

da norma jurídica sobre a concepção do Estado Democrático de Direito.

1 TIPOS HISTÓRICOS DE ESTADOS E AS NORMAS JURÍDICAS

Os tipos históricos fundamentais de Estado elencados por Georg Jellinek2 –

o antigo Estado oriental, o Estado helênico, o Estado romano, o Estado da Idade Média

e o Estado moderno – são construções de natureza jurídica, e como tal, diante da

necessidade de segurança jurídica em tal tipo de estrutura política, são construções

normativas.

À época do Estado oriental, monárquico e teocrático, vigia a norma como

revelação dos deuses, que era traduzida pela figura, por exemplo, do faraó, sendo sua

imperatividade do mais elevado grau possível. Daí que a desobediência ao imperador,

por menor que fosse, era passível de morte, por ser desobediência aos deuses. A norma

jurídica, dentro dessa perspectiva, se constituía como uma regra divina, como uma

realidade ontologicamente independente.

A principal característica do Estado grego era sua onipotência. Diante desse

quadro, as normas não eram apenas imperativas, mas também todas de ordem pública,

cogentes, havendo a liberdade apenas para os assuntos públicos, mas não para a tomada

de decisões na esfera particular, do que se nota o papel secundário do indivíduo. Não é

para menos que na Grécia antiga floresceram as idéias acerca da concepção organicista

do homem, sendo nele que a idéia socialista de valor do homem como membro da

comunidade teve sua mais alta expressão.

Aí reside a contradição suscitada por Benjamin Constant3 acerca da

liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos – aquela para os assuntos públicos,

quando o homem era soberano -, e esta para os assuntos privados, inexistente na Grécia

antiga, mas de grande força a partir do impulso dado pelo Iluminismo europeu no século

XVIII.

Quanto à organização do Estado grego, ele era bastante reduzido em

dimensões, o que permitira justamente toda essa liberdade pública, pois a todos os que

não fossem impedidos, como os estrangeiros e os escravos, e tivessem tempo, era dado

language, and then ask how these beings could form society on the basis of a social contract. The point I will be making is that once a society has a common language, it already has a social contract”. 2 In Teoría general del Estado. México: FCE, 2000.

participar do processo de formação das leis, que não obstante cogentes e opressivas da

autonomia individual, eram democráticas, dentro desses balizamentos.

Com o Estado romano, também consubstanciando como o grego na

formação de Cidades-Estado, o Direito alcança grande desenvolvimento, surgindo as

normas de Direito Privado em separado do Direito Público, não cogentes e aquelas

referentes ao direito internacional privado (ius gentium).

Com o advento da Idade Moderna e a formação dos Estados nacionais

europeus, a autoridade se concentra nas mãos do Rei, de quem emana a soberania, e

assim o poder final sobre as normas jurídicas, servindo isso para a própria unidade

nacional. Paulatinamente, a burguesia, já detentora do poder econômico e aliada de

primeira hora dos reis contra a nobreza, passa a almejar o poder político que ainda não

conquistara, e seus valores, como que gerados do ressentimento contra a nobreza,

encontram eco nos anseios populares, levando às Revoluções Liberais que

implementam o Estado de Direito.

Essa expressão em si, Estado de direito, surgiu na Alemanha, ao final do

século XIX, embora resultante da revolução da liberdade, como lembra Paulo

Bonavides4, pela qual tanto se emprenharam as “as correntes filosóficas do

contratualismo, do individualismo e do iluminismo”5, destacando-se aí, por exemplo,

Locke e Montesquieu.

O Estado de direito representa a submissão do poder político ao império da

lei6, visando à eliminação das arbitrariedades, à limitação do poder absoluto dos reis,

enfim, à destruição do Ancien Régimen, tendo surgido como Estado liberal, o que não

poderia ser diferente diante de suas origens burguesas.

Esse tipo de Estado também é denominado de Estado constitucional,

assinalando-se como seu marco principal a Revolução Francesa, não obstante as

Revolução Americana7 e Revolução Gloriosa inglesa, protegendo ao máximo a

propriedade e a liberdade.

Das principais características do Estado de Direito, destacam-se a existência

de uma Constituição, o império da Lei, os direitos de primeira geração (de liberdade) e a

divisão dos poderes. Aqui as normas jurídicas adquirem um caráter mais importante do

3 Vide MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 26 4 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 29. 5 MIRANDA, Jorge. Op. cit. p. 44. 6 A própria ordem das expressões que compõe o enunciado ‘Estado de direito’ levam a essa consideração. A propósito, SEGADO, Francisco Fernandez. Ob. cit. p. 110 7 A primeira Constituição, em sua moderna acepção, foi a dos Estados Unidos da América, que data de 1787.

que jamais tiveram, pois agora pressupõe um processo legislativo adequado, e seu

respeito é para todos, de forma igual, ainda que muitas vezes o excesso de igualdade

possa conduzir à injustiças, requerendo a aplicação da eqüidade.

Canotilho8 explicita outras manifestações do Estado de direito, não apenas

aquela da Alemanha que difundiu a terminologia, a saber: (1) da Inglaterra vem o rule

of law, regra da organização política ocidental: devido processo legal; na prevalência

das leis e costumes nacionais sobre a discricionariedade real; sujeição dos atos do

Executivo ao Parlamento; e direito e igualdade de acesso aos tribunais para a defesa de

direitos perante qualquer entidade; (2) dos Estados Unidos tem-se a exigência do Estado

constitucional, i.e., o poder constituinte do povo, com um governo justificado pelo

consentimento deste em ser governado sob certas condições, explicitadas na

Constituição, exercendo os juizes a justiça em nome dele, inclusive podendo acessar à

Constituição afastando ou tendo por nulas as más leis; (3) da França vem o Estado de

legalidade: não há Estado de direito sem uma Constituição feita pela nação, que tem de

contar com uma declaração de direitos e organização do poder político segundo o

princípio da separação de poderes, elementos que serão núcleo do Estado constitucional.

Percebe-se, em todas essas manifestações, o caráter impositivo da norma, e sua

prevalência como fonte superior do Direito.

Dentre as características do Estado de Direito, cumpre detalhar a questão da

separação de poderes, que em essência é uma questão normativa, pois cuida, a grosso e

genérico modo, de se estabelecer quem tem a competência para estatuir as normas, para

executá-las e para decidir questões concretas com base na existência ou não das

mesmas.

Esse argumento se reforça diante da constatação de que a organização das

funções do Estado a fim de evitar abusos e ineficiência do poder é questão comum a

todos os regimes políticos9. Percebe-se que a teoria da norma definitivamente assume

relevante função para a própria organização do Estado.

Aristóteles já tratava da separação de poderes, mas é à Montesquieu que se

deve sua sistematização moderna, propugnando o poder se refrear por si mesmo, através

do sistema de freios e contrapesos, em que os Poderes, por meio de normas bem

definidas, exercem recíprocos controles entre si.

Desenvolve Montesquieu sua teoria da separação de poderes na sua obra Do

Espírito das Leis, dizendo que “há em cada Estado três espécies de poder: o poder

8 In Estado de direito. Lisboa: Cadernos democráticos, [s.d.].

legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o poder

executivo daquelas que dependem do direito civil”10.

O poder legislativo seria aquele que disporia sobre as leis; o executivo

cuidaria das relações externas e da segurança – o que deve se ater, observe-se, às leis -;

e o judiciário julgaria os litígios – o que também deve ser feito segundo as normas

jurídicas. A separação dos Poderes é necessária à liberdade dos homens, para que não

haja um poder tirânico que os possa oprimir: a norma jurídica .

Montesquieu criou dois critérios supra-legais para assegurar o equilíbrio

entre os Poderes, “distinguindo a faculdade de estatuir (faculté de statuer) da faculdade

de impedir (faculté d´empêcher)”11.

O Estado de Direito não pode ser meramente um Estado que possua uma

Constituição na qual se estabeleça a sua organização, com sua limitação e garantia de

direitos fundamentais. Faz-se necessário dar um passo além, no sentido de legitimidade,

chegando-se ao Estado Democrático de Direito.

Esse tipo de Estado conjuga ao Estado de Direito a idéia democrática,

melhor formulada por Lincoln no cemitério de Gettysburg, em 1863 – that government

of the people, by the people, and for the people shall not perish from the earth.

As normas jurídicas, já necessariamente elaboradas como prescrições

deônticas por meio do devido processo legislativo no Estado de Direito agora passam a

requerer também o componente de legitimidade, e esta não se confunde com a mera

legalidade, por se cuidar de critério político, não obstante defenda Paulo Bonavides que

a legitimidade é a legalidade acrescida de sua valoração.

2 TEORIA DA NORMA E ENTIDADES INSTITUCIONAIS

É interessante notar que em toda a doutrina clássica sobre a organização

estatal, o próprio ente estado é tomado como auto-evidente. Propaga-se a idéia

Aristotélica de que o homem é um animal político e por natureza já existiria alguma

forma de governo, organização ou poder social capaz de emanar normas prescritivas

para as condutas individuais.

9 Conforme leciona Fábio Konder Comparato in Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das letras, 2006. p. 670 10 MONSTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 165. 11 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 140.

O perigo de se tomar como auto-evidentes as instituições ou organizações

institucionais reside em desperceber o largo conjunto de pressuposições que estão

imanentes em todo tipo de norma jurídica.

Por mais simples que seja, uma norma jurídica inferida de uma lei, por

exemplo, pressupõe que esta lei foi aprovada de acordo com outras tantas regras que

regulam quais os procedimentos e condutas humanas contam como “criar uma norma

jurídica”. Essas outras tantas regras, por sua vez, pressupõe estarem inseridas dentro de

um contexto de uma entidade institucional, como o Estado.

Aparenta a este estudo que, na maioria das investigações sobre a teoria do

direito e sobre a teoria da norma, há uma pressuposição de existência de um aparato

estatal.

Entretanto, verificamos que este problema não é de todo desconhecido. Hart

detêm o mérito de apontar para a existência de outras normas diferentes das tradicionais

normas de natureza prescritiva ou regulativa. A investigação sobre normas

“secundárias” já é uma forma de se imaginar que devem existir outras normas que não

sejam destinadas a disciplinar alguma conduta, mas a possibilitar a existência do próprio

ato de disciplinar.

Nesse sentido, é interessante consignar a lição de Riccardo Guastini,

“Legislar” não seria legislar na ausência daquelas normas que conferem a um certo comportamento humano o sentido (o valor) de “legislação”. Sem essas normas, talvez, o próprio vocábulo ‘legislar’ não tivesse sentido algum. O mesmo se pode dizer quanto a ‘julgar (em sede jurisdicional)’, ‘prometer’, ou ‘jogar xadrez’. [...] Pode-se falar de um “comando” sem fazer menção a uma norma jurídica, mas não se pode falar de “legislação” fazendo abstração daquelas normas constitucionais que conferem a certas pessoas o poder (a competência) de pronunciar comandos com o valor de “leis”.12

Exemplificando, devemos perceber que a regra que determina que o cavalo

no jogo de xadrez se movimenta em “L” não somente prescreve uma conduta, como cria

a própria possibilidade da existência de um cavalo de xadrez. Essa peculiaridade de

normas que criam a própria existência das condutas que prescrevem é essencial para

tanto para a teoria do direito como para a compreensão do Estado.

12 GUASTINI, Riccardo. Das Fontes às Normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 66.

No direito, estas normas desafiam as noções tradicionais de normas como

juízos imperativos, juízos disjuntivos e até mesmo a própria estrutura da sanção. Como,

por exemplo, imaginar uma sanção às normas veiculadas no caput do artigo primeiro e

no artigo segundo da Constituição Federal de 1988, ou ainda, como descumprir que a

República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel de Estados,

Municípios e do Distrito Federal.

Estas normas estão intimamente ligadas com a existência de entidades que

não possuem existência concreta, porém são objetivamente identificáveis, como o

próprio estado, e outros entes institucionais, como universidades, empresas, fundações,

etc. Estas normas peculiares são investigadas sob várias nomenclaturas: normas

secundárias, normas de autorização, normas de competência e, particularmente, normas

constitutivas

Essas normas peculiares são investigadas sob várias nomenclaturas: normas

secundárias, normas de autorização, normas de competência e, particularmente, normas

constitutivas.

Essa última denominação é afeita a teoria do filósofo da Universidade de

Berkeley, John R. Searle, que dedicou extensa pesquisa à questão de como é constituída

a realidade social e institucional. Dentro de sua pesquisa, este filósofo chegou a

conclusão de que a realidade institucional tem sua gênese através da intencionalidade

coletiva e as normas constitutivas. Apresentamos assim a perspectiva de como as

normas podem ser constitutivas da realidade institucional na filosofia de John R. Searle.

3 A PERSPECTIVA DA FILOSOFIA DE JOHN R. SEARLE

Em sua teoria, Searle faz a distinção entre os aspectos da realidade que

seriam dependentes do observador e os que seriam independentes do observador. O

filósofo define os aspectos dependentes do observador como todos aqueles que sua

própria existência depende de pensamentos, atitudes, crenças (intencionalidade13) dos

agentes sociais.14

13 A intencionalidade na concepção de Searle é um aspecto de estados mentais direcionados a algo. Não se limita a intenção, posto que engloba muito mais, envolvendo crenças, medos, expectativas, desejos, etc. Estados Intensionais normalmente normalmente apresentam uma estrutura similar aos atos de fala, envolvendo um conteúdo proposicional e um modo psicológico. Nesse sentido temos o trabalho de Searle: Intentionality: Na Essey on the Philosophy of the Mind. Cambridge: Cambridge University Press 1983. 14 SEARLE. John R.. Social Ontology and Political Power, in FF Schmitt (org.) “Socializing Metaphysics: The Nature of Social Reality”. Rowman & Littlefield Pub Inc. 2003. pp. 195–210.

Nesse sentido, podemos dizer que a realidade política é dependente do

observador. Algo só é uma eleição, um parlamento, uma suprema corte, uma

presidência se os indivíduos tiverem um determinado grupo de crenças, pensamentos e

atitudes para com o fenômeno em questão.

Essa dependência do observador vai levar a uma subjetividade ontológica,

que tem sido despercebida através dos séculos no que toca a filosofia política. Cada

teoria é vista como se possuidora de uma ontologia objetiva e absoluta, quando na

verdade, não passam de propostas condicionadas pelo horizonte lingüístico do

proponente.

Parte desse engano sobre a ontologia humana decorre de tomar por base o

aspecto de que somos animais sociais para derivar daí direitamente implicações

políticas e de organização estatal.

A existência de animais sociais é de certo modo independente do

observador, pois diversos animais caçam em conjunto, utilizam de cooperação para

separar as presas mais fracas da manada, por exemplo. Essa sociabilidade animal pode

ser considerada um fato social e tem por base a intencionalidade coletiva.

Na visão de Searle, essa intencionalidade coletiva é suficiente para a

construção dos aspectos mais simples de realidade social e fatos sociais. Esta

intencionalidade acontece sempre que dois indivíduos ou animais compartilham

desejos, intenções, crenças, etc.

Trata-se talvez da Pedra de Roseta da linguagem. Nessa perspectiva,

constatamos que a realidade política é constituída por regras constitutivas e por sua vez

pela própria linguagem.

Fatos institucionais são dependentes da linguagem, até porque só podem

existir enquanto representados como tal. Desta forma, só é possível a existência de um

Estado e, por conseguinte de um Estado Democrático, se houver um determinado

conjunto de atitudes e crenças dos agentes sociais sobre o fenômeno em questão.

Sem essa forma de aceitação a própria existência institucional é

insustentável. Faz-se necessário abandonar a postura ontológico-metafísica do Estado

como um ente no éter que faz parte da natureza humana. O Estado não é uma realidade

na qual os indivíduos se inserem é uma realidade institucional linguisticamente

constituída e dependente dos indivíduos.

Agora, dentro da constituição da realidade política, o que pressupõe esta

aceitação coletiva? Que tipos de atitude e crenças são necessárias para que se possa

haver uma realidade institucional?

Na visão de Searle, parece despontar que a aceitação coletiva e a

intencionalidade coletiva são constitutivas de algo que pode ser identificado como

poderes deônticos.

Esta forma de poder deôntico encapsula direitos, obrigações, promessas,

autorizações, permissões, etc. Essa forma de poder decorre exatamente da aceitação de

determinada situação valendo como tal dentro de um contexto específico.

Essa forma de poder não é arbitrária ou irracional, é exatamente uma

decorrência lógica da aceitação de uma norma constitutiva. Tendo a norma constitutiva

sido aceita, há uma existência deôntica envolvida, pois se “X vale como Y no contexto

C”, “X deve valer como Y no contexto C”.

Assim, direitos, obrigações, aceitações dentre outros são formas desse poder

deôntico. Se a realidade política nasce de normas constitutivas da imposição de funções

de status a procedimentos, textos ou pessoas, e estas por sua vez só são enquanto tal se

derivadas da aceitação e intencionalidade coletivas, temos que todas as formas de poder

político são na verdade formas de poder deôntico dentro da realidade social, da

comunidade lingüística.

O estudo procura identificar como esse instrumental teórico e formas de

poder deôntico, relacionados com normas constitutivas vão implicar numa nova visão

da estrutura do estado.

4 REALIDADE POLÍTICA COMO REALIDADE INSTITUCIONAL

A questão verdadeira que envolve a realidade política é a passagem de fatos

sociais, para fatos institucionais. Há um grande passo que separa esta realidade social da

realidade política. A pergunta a se fazer agora é a seguinte: quais os elementos

específicos que devem ser associados a esta intencionalidade coletiva para a criação de

fatos institucionais?

Searle responde a questão indicando dois elementos: 1) a necessidade de

imposição de função (status function) e 2) a necessidade de regras constitutivas.

Quanto a imposição de função, vemos que diversos animais conseguem

utilizar ferramentas, como os macacos que utilizam gravetos para retirar formigas ou

cupins da terra. Porém, os animais conseguem utilizar tais materiais em virtude das

propriedades físicas que eles apresentam.

Os humanos conseguem, através de uma aceitação coletiva, impor a

determinados objetos um determinado status que independe de suas características

físicas. Com este status deriva uma função que só existe em virtude das atitudes dos

indivíduos para com o objeto e da aceitação coletiva desta “função de status”.

Exemplo claro é o dinheiro. Os pedaços de papel que chamamos cédulas só

o são e só funcionam como tal em virtude da aceitação coletiva de que aquele pedaço de

papel, que passou por determinado processo, ou seja, dentro de um contexto, vale como

dinheiro.

O segundo requisito apresentado por Searle, são as normas constitutivas.

Este requisito por sua vez é necessário para constituir o primeiro.

Searle diferencia dois tipos de normas, as normas regulativas e as normas

constitutivas. As normas regulativas disciplinam uma forma anterior de comportamento

e usualmente são referentes a uma representação objetiva da realidade. Exemplos

seriam: “Não fumar dentro do restaurante”, “Utilizar capacete dentro da obra”. São, por

exemplo, normas que usualmente evocam uma imagem mental de comportamento.

As normas constitutivas não somente regulam, porém criam a própria

existência de uma realidade. O exemplo tradicional é o jogo de xadrez. As regras do

xadrez não só regulam a forma de jogar, mas condicionam a própria existência do jogo e

do ato de jogar xadrez.

Essas regras podem ser reduzidas ao enunciado de que “X vale como Y no

contexto C”.15 Esta é a base que permite a imposição de funções de status e a

transformação de fatos sociais em fatos institucionais. Assim, as normas constitutivas

são a expressão da passagem de uma realidade social para uma realidade política.

A pessoa que satisfaz estas ou aquelas condições vale como presidente, o

texto que satisfaz esse procedimento vale como lei, a pessoa que satisfaz determinados

requisitos vale como alguém que pode decidir um conflito. De uma forma ainda mais

elaborada: a decisão que satisfaz uma série de requisitos dentre os quais ser proferida

por uma pessoa que satisfaz outros requisitos, vale como decisão judicial.

5 PODERES DEÔNTICOS NA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA:

Até este ponto, verificamos que a contribuição da teoria da linguagem e da

filosofia analítica serviram para indicar que a existência de instituições políticas é

dependente de uma estrutura dependente da linguagem.

15 SEARLE. John R. Mind, Language and Society. New York: Basic Books. 1999.

A existência dos fatos institucionais e da realidade política depende de regras

constitutivas identificadas com a fórmula “X vale como Y no contexto C”. A

comunidade lingüística concreta é muito complexa para que cada agente possa

racionalizar, por exemplo, que o Luis Inácio Lula da Silva é o presidente porque é uma

regra constitutiva aceita de que ele (X) por reunir todos os requisitos necessários

mediante e perante outras normas constitutivas, além satisfazer todo o processo e

procedimento eleitoral (contexto C), vale como, é visto como presidente (Y).

Os agentes sociais, entretanto, simplesmente, em virtude do contexto, o

observam como presidente e direcionam a ele um conjunto de atitudes e de

intencionalidade no sentido de efetivamente “ele valer como” presidente.

Ao ser reconhecido como presidente, ou porque não dizer, linguisticamente

constituído como presidente há uma carga de poderes deônticos envolvidos. Há

exatamente a imposição de diversas funções de status, em virtude da razão de ele ser

considerado como presidente e haver uma miríade de expectativas, crenças,

pensamentos (intencionalidade e aceitação coletivas) em torno do que pode um

presidente fazer. A comunidade lingüística está exatamente constituído a própria

existência do que é um presidente, muito similar a constituição de um jogo de xadrez.

Searle ressalta ainda que o funcionamento do vasto sistema de funções de

status que são o estado e o governo decorre em grande parte do reconhecimento dos

diversos agentes sociais da validade da constituição de determinado status. É nesse

ponto que o reconhecimento de uma regra constitutiva gera para o indivíduo razões

independentes de interesse para pautar sua conduta.

Um exemplo simples dessa realidade é o simples fato de que ao prometer

encontrar alguém às 5:00 horas da manhã, eu faço surgir uma obrigação para a

realização de tal conduta, mesmo que ainda esteja com sono no horário combinado e

não haja qualquer sanção imediata. O que ocorre é uma espécie de concessão de poder

deôntico à pessoa a quem prometo que culmina com uma expectativa de ação e conduta.

O meu ato de fala de prometer, dentro do contexto de comunicação vale como uma

promessa, como uma representação do encontro futuro. Logo há uma expectativa

validamente constituída no interlocutor, independente do poder deste me obrigar ou não

a comparecer ao encontro.

Há, contudo, um interesse mediato, independente de razões físicas. Há o

interesse de que promessas e obrigações sejam cumpridas para que haja um mínimo de

efetividade e operacionalidade das mesmas, haja vista que são o veículo para a

organização social. Assim, o simples reconhecimento de um conjunto de fatos

institucionais como validos gera um conjunto de obrigações independentes do interesse

imediato do indivíduo.

Essa mesma linha de raciocínio pode ser ampliada para toda a realidade

institucional criada pela comunidade lingüística.

Searle adota um posicionamento interessante. Sob sua perspectiva a

organização política somente pode funcionar se houver um mínimo de reconhecimento

como valido o sistema das diversas funções de status relativas aos fatos institucionais

por um grupo suficientemente grande de indivíduos que compartilham uma aceitação do

sistema (intencionalidade coletiva em aceitar como validas as funções de status).

Há uma fundamentação, por parte do autor, que expressamente indica que o

monopólio da violência armada é uma pressuposição essencial do governo. Há uma

passagem literal no trabalho de Searle que diz, numa tradução livre: “A razão pela qual

o governo pode se manter como o sistema último de funções de status é por este manter

uma constante ameaça de força física”.16

Em seguida Searle fala que o “milagre” nas sociedades democráticas seria a

efetividade do controle e funcionalidade social baseada nos poderes deônticos atribuídos

às instituições em superação à ameaça de constrição física.

Acredito que Searle cometeu um engano quanto à questão. Ao supor que a

ameaça militar ou policial é essencial para efetividade do sistema político, há uma

inversão. Esta ameaça funciona como mecanismo de promoção da efetividade do

sistema e de aceitação pelos indivíduos sociais da validade do sistema.

Esse monopólio da violência armada seria como o “contexto C” na qual

determinados grupos de indivíduos ou práticas (X) são validos como instituições

governamentais (Y).

Searle esquece-se que o sistema pode ter outras razões para manter a coesão.

Mesmo sem o monopólio da violência, podem existir outras razões que funcionem

como focos de interesse dos indivíduos que venham a conferir poderes deônticos

suficientes a existência e funcionalidade efetiva do governo.

Uma dessas formas de influência sobre os indivíduos é a ideologia, muito da

aceitação coletiva é decorrente de posicionamentos ideológicos ou de pura e simples

doutrinação.

16 SEARLE. John R.. Social Ontology and Political Power, in FF Schmitt (org.) “Socializing Metaphysics: The Nature of Social Reality”. Rowman & Littlefield Pub Inc. 2003. pp. 195–210. No original: “The reason that the government can sustain itself as the ultimate system of status functions is that it maintains a constant threat of physical force”.

Um exemplo é o próprio constitucionalismo atual. O Estado Democrático de

Direito ganha na filosofia ocidental um status quase divinizante. Apesar de imprecisão

terminológica e das diversas concepções procedimentais envolvidas, há uma aceitação

de sua legitimidade e sua validade, tornando-se um locus retorico de consenso.

Sobre a Separação de Poderes pode ser dito o mesmo. Existem diversas

concepções e formas de organização mas parece haver um consenso no sentido de que é

necessária.

Porem esta forma de validação doutrinária é mais intensa aos estudiosos do

assunto, para a população geral, há uma forte razão de validação e aceitação do sistema

político, por razões de inércia, comodidade e interesse.

O milagre a que Searle se refere é exatamente a organização democrática,

que se torna um sistema onde os indivíduos detêm uma esfera relativamente ampla de

liberdade em relação a outros regimes e há uma estrutura de direitos e segurança nas

relações sociais e comerciais.

Em uma possível síntese, enquanto há uma funcionalidade das relações

sociais, com um mínimo necessário de respeito aos interesses de cada indivíduo, os

próprios indivíduos irão validar a ordem social, atribuindo às instituições sociais

quantidade suficiente de poder deôntico para a manutenção do governo.

O Legislativo produz textos, atos lingüísticos que contem um sentido. Num

mundo idealizado, a identificação entre o eleitor e o eleito seria suficiente para que o

parlamentar ao “performar” os atos de produção legislativa mantivesse o mesmo sentido

que o eleitor haveria de interpretar.

O que acontece é que o legislativo performa atos lingüísticos que valem

como lei porque a comunidade lingüística apresenta uma série de atitudes para com tais

atos. Dentro dessa função de atos normativos o Legislativo condensa parte da

intencionalidade da sociedade, tendo em vista que foi esta intencionalidade que

selecionou os membros do parlamento. Porém, esta intencionalidade social também

selecionou os administradores que nada mais são do que indivíduos com poderes

deônticos especiais. Logo, a intencionalidade coletiva é tanto limite de atuação seja para

o legislativo como para o executivo.

Nesse momento o papel de cada função vai ser o que comunidade lingüística

constituir como sendo e aceitar como sendo o papel de cada ente.

Finalmente podemos observar a verdadeira importância de toda a parte

introdutória do trabalho. As diversas teorias formuladas sobre o Estado são exatamente

exemplos da intencionalidade coletiva da sociedade (crenças, pensamentos, desejos).

Essas diversas teorias possuem seguidores bem como se estruturam num conjunto de

crenças socialmente aceitas e se aceitas e tomadas como validas são efetivamente

constituídas.

Sendo o fundamento de toda a existência de uma realidade política essa

intencionalidade coletiva difusa, derivamos daí a formatação ideal da separação de

poderes.

A atuação dos poderes será valida somente se ocorrer de acordo com o que a

comunidade lingüística tomaria como válida. Nesse ponto, a concepção de norma

jurídica concreta enuncia pelo judiciário se faz clara, bem como o papel do legislador no

processo.

Uma atuação harmônica é aquela onde o legislador produz o texto, que não

passa de um conjunto de expressões lingüísticas, com a pretensão de que aquele texto

possua um sentido (X) que seja tomado pelos destinatários e pela comunidade

lingüística como uma lei, e não somente uma lei, como uma lei válida e legitima (Y)

dentro dos moldes e procedimentos tidos previamente como válidos por outras normas

constitutivas (contexto C).

Por sua vez, em harmonia com a intencionalidade difusa na sociedade, o

judiciário ao interpretar o texto legislativo estará a constituir a norma. A norma

constituída deve ser tal que seja esteja em concordância com o sentido pretendido pelo

legislador, que, por sua vez, teria sido o tradutor da intencionalidade difusa da sociedade

que o constituiu.

Logo, existe dentre as possibilidades de sentido de um texto, ou seja dentro

da possibilidade de normas possíveis existe aquela que seria a que a intencionalidade

difusa haveria de constituir como sendo a mais legítima e adequada.

O papel do legislador seria fornecer as expressões lingüísticas (textos

legislativos) da qual pudesse surgir o sentido (norma) que consubstancia a

intencionalidade social e é o papel do judiciário proferir essa norma. Por fim, o

executivo deve tomar medidas e políticas públicas que consubstanciem a

intencionalidade difusa.

6 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Da perspectiva Searleana temos que o Estado é uma realidade institucional,

composta de diversos fatos institucionais. Tais fatos institucionais são constituídos

mediante a intencionalidade coletiva moldada em de normas constitutivas de

formulação “X vale como Y num contexto C”.

Essa intencionalidade coletiva que constitui fatos institucionais sempre

envolvem direitos, deveres, obrigações, permissões, etc. Esse tipo de poder, tal qual o

poder do estado, o poder de um padre que pode efetuar o matrimônio de um casal, o

poder de um juiz de futebol ao marcar um pênalti ou o poder de um juiz em declarar

aberta uma audiência, somente são existentes enquanto tal se foram reconhecidos,

validados, aceitos. São esses tipos de poderes que Searle chama de poderes deônticos.

Então, se toda a estrutura de atuação do Estado e do Governo é uma questão

de poderes deônticos, que implicações esta constatação traz para a construção de um

Estado Democrático de Direito?

Preliminarmente devemos perceber que o termo Democracia, como dito, é

um locus retorico, possui um sentido fluido de acordo com o horizonte de pré-

compreensão do falante.

Na verdade, ao dizer que a República Federativa do Brasil é um Estado

Democrático de Direito, devemos verificar que esta realidade política é constituída de

acordo com a comunidade lingüística, ou seja, de acordo com o que é validamente

aceito, através de uma norma constitutiva, pela sociedade como sendo um Estado

Democrático de Direito.

Verifica-se, outrossim, que o parágrafo único está em sintonia com a

concepção de que somente existe uma República Federativa do Brasil e esta se

configura num Estado Democrático pela aceitação coletiva dos indivíduos. Logo, o

poder que emana do povo é exatamente a intencionalidade coletiva que vira a constituir

a realidade institucional e política e o poder deôntico decorrente desta realidade criada.

Assim, chegamos também a conclusão de que um dado sistema político

tenderá ao colapso quanto menor for a aceitação por parte dos indivíduos e esta não

aceitação decorre da inadequação entre as práticas governamentais e representação da

realidade institucional criada pelos indivíduos.

Podemos apontar como exemplo as ditaduras. As ditaduras históricas

somente mantiveram a sua organização e funcionamento político enquanto mantiveram

a opressão militar e a violência. Essa ameaça constante funcionava como o “contexto C”

onde as práticas abusivas e autoritárias (X) valiam como atuações legais e juridicamente

validas (Y). A opressão pela força gerou um contexto onde os indivíduos reconheciam

como válidas (possivelmente ilegítimas ou imorais) as instituições assim criadas.

Dentro do contexto de uma ordem que se pretende democrática, devemos

estruturar a validação ou o “contexto C” em outras premissas que não a força. É nesse

ponto que entra a moderna pesquisa na legitimação do Estado e do direito.

Sob uma perspectiva lingüística, onde é o ninho de onde saem as construções

lingüísticas que constituem a realidade institucional e política?

Nesse momento é interessante dialogar com as teorias de Habermas. Na

visão deste autor, este espaço de construção comunicativa é a esfera pública. Numa

tradução livre,

Por esferas públicas, Habermas está se referindo a uma rede de comunicação que dá suporte a discursos públicos, os mais óbvios fóruns são a imprensa e a mídia eletrônica e mais recentemente a Internet. (...) Habermas vê o sistema político e a sociedade civil como distintos, porém ligados pela esfera pública. As questões surgem e saem da vida privada através da sociedade civil, sendo discutidas na esfera pública onde opiniões são formadas e terminam se tornando codificações legais que passam a fundamentar programas administrativos.17

Conjugando a visão de Habermas com a de Searle, temos que a esfera

pública habermasiana é exatamente a comunidade lingüística que em discussão acaba

por construir via normas constitutivas novas realidades sociais, bem como reformular as

anteriores. É nessa esfera que a aceitação e intencionalidade coletivas são formadas e

onde a realidade política é construída.

Assim, o conteúdo da Democracia ou do Estado Democrático é exatamente o

que for constituído pela sociedade dentro de um processo comunicativo.

Toda a produção intelectual existente constitui-se num conjunto de possíveis

intencionalidades (crenças, pensamentos, desejos) passiveis de se tornarem traduzidos

em uma realidade institucional através de normas constitutivas.

O próprio Habermas parece fazer uma referência ainda a normas

constitutivas como fundamentos do direito e da ordem política,

HABERMAS começa a sua busca de um fundamento para o direito moderno observando que, só no momento em que surge uma moral convencional (em que as normas jurídicas são prévias, independentes da situação e vinculantes para todos), torna-se possível o surgimento de um poder político organizado por meio de um direito coercitivo. Isso porque, sustenta HABERMAS, só no momento em que o poder de fato recebe

17 DARBAS, Toni. Democracy, Consultation and Socio Environmental Degradation. Doctorate of Philosophy Thesis. School of Science and Technology Studies. University of New Wales. 2002.

uma autoridade normativa conferida por uma norma jurídica e que tenha este caráter moral e convencional (e é neste momento que passa a ser legítimo) pode impor politicamente normas jurídicas.18

Essa moral convencional indicada por Habermas, através da qual surge um

poder político nada mais é do que o conjunto de normas constitutivas searleanas, dentro

do qual a comunidade lingüística representa determinado comportamento como

desejado ou objetivado dentro de um contexto específico.

Outro momento de aproximação das duas teorias é quando o poder de fato

recebe uma autoridade normativa. Esse passo é exatamente o passo da realidade social

para a realidade política, é a transição entre os fatos sociais e os fatos institucionais

através de normas constitutivas e da aceitação coletiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O estudo apresentou argumentos que sugerem a necessidade de uma nova

percepção da teoria da norma. As relações entre norma jurídicas e a constituição da

realidade institucional da qual o direito é expressão ainda pode oferecer importantes

contribuições tanto para a teoria do direito como para a ciência política.

Assim, a Construção de um Estado democrático vai depender da constituição

lingüística da comunidade onde um conjunto de práticas sociais e instituições (X) que

valem como um Estado Democrático (Y) dentro de um ambiente de pluralidade social e

composição de diversos interesses (contexto C). O Estado Democrático de Direito

existe através de uma norma constitutiva.

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18 CELLA, José Renato Graziero. A Teoria da Argumentação Jurídica como Proposta de uma Racionalidade Possível Frente à Postura Cética do Positivismo Jurídico Contemporâneo. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito. Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2001.

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