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João Felinto Neto Poesia no lixo Poemas – 1ª Edição – Mossoró - 2007

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João Felinto Neto

Poesia

no lixo

Poemas – 1ª Edição – Mossoró - 2007

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Poesia no lixo - João Felinto Neto

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2007 © Copyright by João Felinto Neto F315p Felinto Neto, João. Poesia no lixo /João Felinto Neto – Mossoró, 2007. 121 p. (1ª Edição) ISBN: 978-85-60656-02-8

1. Literatura brasileira – Poesia 2. Poesia norte-rio-grandense. I. Título CDU: 82(813.1)-1 CDD: B867-1

João Felinto NetoJoão Felinto NetoJoão Felinto NetoJoão Felinto Neto Rua: Francisco de Assis Silva, 1001 Rua: Francisco de Assis Silva, 1001 Rua: Francisco de Assis Silva, 1001 Rua: Francisco de Assis Silva, 1001 ---- Santa Delmira I Santa Delmira I Santa Delmira I Santa Delmira I ––––

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O poeta inicia a sua prece... escrevendo seus novos mandamentos na fronteira de um mundo alucinado... e viajando com loucos pensamentos.

Zé Ramalho.

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Ao poeta, que até em seu lixo há excesso de sonhos, pelos versos que o mesmo contém, nos papéis amassados, jogados fora.

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Índice Prefácio 11 Poesia no lixo 13 O quadro mágico 14 Idem 15 Pronomes 17 Banco de praça 18 Olhos vendados 19 Velho farol 20 Heroína 22 Mutante 23 Livre arbítrio 24 Fogueira 25 Felinos 26 Sobras 27 Tristeza 28 Um acaso 29 Uma terra 30 Quase 31 Solidão de poeta 32 Suspeito 33 Fuga 34 Domingo 35 Pensar 36 Porta 37

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Prefiro 38 Garoto de programa 39 Quebra-cabeça 40 Avô 41 Aminigos 42 Relógio 43 Repetente 44 Além da curva 47 Cenas 49 Ninguém nos avisou 50 Mãos e bocas 52 Esquecidos no tempo 53 Espírita 54 Ditador 56 Quermesse 58 Quem dera 59 Papai Noel 60 Passos 61 Vaticínio 62 Velho amigo 63 Folhear 64 Pena 65 Poema em campo 67 Observador 68 Centelha 69 Espera 70 Estranha imagem 71

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Excelso 72 Destino 73 A última centelha 74 Experiência 75 Navegador 76 Choupana 77 Choveu 78 Ciclo 79 Consolar-se 80 Coma 81 Convivência 82 Dizer 83 Cadafalso 84 Tipóia 85 Urbano 86 Qual de nós 87 Religiões 88 Simplesmente viver 89 Seresta 90 Há muito mais 91 Coralina 92 Cânticos 93 Nômade eremita 94 Do lar 95 Aplausos e vaias 96 A dama e a flor 97 Afogado 98

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Vergonha 99 Expressões perdidas 101 Sorte 102 Congênito 103 Coleta 105 Expressivo olhar 106 Opinião 107 Enclausurado 108 Deserto 109 Aeroplano 110 A chegada 111 A sós 112 Procissão 113 Desdém 115 Bons olhos 116 Paciência 117 Antes 118 Ambos 119 Eleição 120 Olhar a si 121

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Prefácio Nutro uma grande admiração pelo estilo próprio do poeta, principalmente quando enceta com um título no qual mostra toda a sua criatividade. Poesia no lixo é mais que amassar esboços de poemas e arremessá-los fora, é toda uma composição poética que silencia em um cesto de lixo; mas que pode gritar nas mãos de uma criança que perambula à cata de lixo e a encontra. Ressaltei o título pela sua ênfase literária, o que parece abordar uma situação de descuido, ao contrário, há uma extrema preocupação com os versos que se encontram no lixo do poeta. O autor através de versos soltos modela poemas que sintetizam situações momentâneas, assim como o ato de arremessar um papel amassado em direção ao lixo. Quem sabe, num ato de arrependimento, o poeta se agacha, retira do lixo seus poemas e resolve lançá-los neste belo livro, sua Poesia no lixo.

André Tales

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Poesia no lixo Há o riso, o amor, a liberdade, uma prisão, a dor e a saudade; também há flores, um barco e até o mar; folhas, o vento, o tempo e um lugar. Há incertezas, suas razões, confirmação, o universo, um mundo inverso, indagação; há quase tudo, há todo um mundo, o mais profundo de um coração, dentro do lixo de um poeta.

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O quadro mágico Revi alguns amigos num quadro mágico: Henrique poderia ser oitavo; Jorge mataria um dragão; Ciro seu irmão, talvez romano; não há engano, Carlos, um ator em aflição; Mário poderia ser Andrade; Eudes desenharia saudade; Gladis seria um gladiador; Durval, um verdadeiro gigante; e Leonardo, um Da Vinci sonhador.

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Idem Olhos vivos que só vêem o que querem. Molho de chaves na mão, que abrem as mesmas portas. No calendário, um dia é igual ao outro. A boca sopra os mesmos verbos. Ações cotidianas, levantar, andar, sentar, deitar, são repetições humanas (adestramento coletivo de infância). Pernas que circundam num leva e traz sem destino, que se abrem dando a vida, que se juntam face à morte. Somos os mesmos, temos a mesma cabeça, e na busca dos desejos,

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nunca esqueça, quem fala mais alto é o nosso coração. Grita em repetição cada face, como louca: -Eu sou uma. Tu és outra. Somos a mesma expressão: Olhos, mãos e boca, pernas, cabeça e coração.

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Pronomes Sou eu o que você é. Ele é o que eles são. Tu és o que vós também sois. Assim somos nós, pessoas não tão retas como o caso.

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Banco de praça Estou sempre acolhendo a quem passa, simples banco de praça. Ouço pranto entre lágrimas derramadas, desencanto, gargalhadas, desunidos em reconciliação. Casais jovens e velhos abraçados. Entre planos que não são concretizados, vejo loucos disfarçados de sãos, diferenças que os tornam tão iguais. Entre gestos insanos, ninguém mais me parece humano.

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Olhos vendados Meus olhos copiosos de tristeza não vêem o que se passa aqui; enquanto vão chorando na vileza, acreditam que um dia irão sorrir. No viciado tinto da obediência, escravizados a aceitarem o fim, se perdem numa alheia consciência, sem questionar o não e o sim. Na devoção de uma vida em crença, temem na experiência, não distinguir o bom e o ruim. Quem sabe abrindo eu a minha mente, meus olhos de repente, possam ver?

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Velho farol Velho farol! A sua luz foi o sinal que me guiou em meio ao temporal, salvando-me do fatal naufrágio. Velho farol! Hoje, abriga meu infortúnio. Nada me resta, só olhar. Tudo afundou com minha nau. Minha tripulação leal, levou-a o mar. Velho farol! Talvez, tenha sido um presságio, por duas noites ter sonhado com a solidão de um farol. Velho farol! Que é simplesmente sombra ao dia, à noite acompanha a lua, e alumia a escuridão deixada pelo sol.

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Velho farol! Até que duramos demais. O tempo lhe deixou destroços e a mim, um punhado de ossos. Mostrou-nos que somos mortais.

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Heroína Das páginas relidas de um romance, lembro-me de uma pequena frase que falava de esperança e liberdade, de uma personagem sem nome. Sua vida atrás das grades era apenas uma via. Para ela, os seus dias seriam flores na janela, e suas noites, quem diria, um amante que partia. Desnortearam seu rumo, seus amores. Fortaleceram seu mundo, suas dores, madurando a menina. Não é preciso guerra, nem vilões, nem invasores na Terra, ou vulcões, para que haja uma heroína. A vida é feita de cenas. Basta a maturidade e duas palavras apenas: Esperança e liberdade.

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Mutante Que sejam longos seus braços, como tentáculos, para alcançar sua presa. Um dente saliente na boca, um hematófago que alcança o que deseja. Ficar a vida toda pendurado de cabeça para baixo no escuro de um quarto de hotel. Quem sabe um pouco de mel possa cessar esse zumbido de abelha, e que a cera produzida no ouvido, possa calar o uivo de um lobo enlouquecido? Andar pelas paredes numa teia, viúva negra de um morto que é comido. Ser parte homem e diversos animais é o que nos faz um ser mutante.

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Livre arbítrio Para Deus e o diabo eu vou falar, se alguém quer meu corpo para ocupar, disponível agora estou, como casa alheia para alugar. E minha alma, se acaso alguém quiser, que decidam na sorte, o que der. Se precisar, assino um papel. Tanto faz, o inferno ou o céu, só não queria deixar esse lugar. Dos castigos, a morte é o mais cruel.

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Fogueira Entre toras cruzadas na raiz do fogo, vê-se a fé do povo crepitar em brasas. Cabelos em tranças, feito palha de chapéu. Sob o escuro céu, tradição em danças. Dias de afã, santo em fogueira, queima a noite inteira, cinzas do amanhã.

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Felinos O som constante da agonia de quem deseja. A febre acesa no murmúrio penetrante. A dor no golpe de um carinho cortante sobre o telhado de uma cama tão coesa. Luz ofuscante abre os olhos na tristeza, depois de um último suspiro inebriante.

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Sobras A abertura do olfato, de fato, o mau cheiro a vedaria; se em meio ao lixo fosse encontrado o seu pão de cada dia, que não nos dá nem hoje, nem nunca. Se eu não vejo saída, essa é a única. Se eu não comer sua sobra, eu sobrarei. Se é para comer sua hóstia, eu rezarei. Na escadaria da vida, eu sei que somos iguais, porém, em degraus diferentes. Talvez eu sinta demais, por que você nada sente.

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Tristeza Dorme ao lado de sua criança, cheia de esperança que o amanhã seja melhor. Amanhece com uma osga na parede, próxima ao punho da rede, movimentando a cabeça sempre a lhe dizer que sim. Levanta-se e água o chão, acomoda-se num tamborete olhando o filho na rede enquanto a fome e a sede assolam seu coração. Olha pela janela, vê uma nuvem no céu, um novo fio de esperança ou uma nova ilusão. Fica indecisa entre desacreditar-se ou apenas entregar-se à tristeza e solidão.

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Um acaso Todos os sentimentos existem de fato. Podem ser vistos em atos. Para ver o amor, olhe uma mãe com o seu filho. Para ver o ódio, veja numa guerra, os feridos. Para ver a tristeza, olhe para alguém que perdeu um ente [querido. Para ver a pureza, olhe para a criança que dá um doce sorriso. A alegria pode ser vista quando uma menina ganha sua boneca [preferida. Para ver a devoção, olhe para alguém ajoelhado aos pés do altar. Há muito mais para se ver, basta olhar. E tudo isso se chama vida. A vida é uma dádiva da Natureza. A Natureza é obra do acaso. E o acaso, por acaso, não é Deus? Não, Deus é um acaso.

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Uma terra Casas demarcadas em respeito à terra anteriormente altercada por almas massacradas. Para descontentamento de seus olhos, corpos ali sepultados, famílias inteiras de assentados, seus pais, mulheres e filhas. Recordações de família, milhas e milhas distante. Terra agora verdejante, antes não se tinha nada, antes banhada de sangue, terra agora abençoada.

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Quase Quase me esqueci que ainda havia tempo de encontrar o que perdi; relembrar o que não lembro. Quase perdi o tempo que ainda havia. Não vi, naquele momento, que no tempo me perdia. Quase acreditei que ainda havia tempo de saber que nada havia.

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Solidão de poeta Não há diálogo, não há correspondência; sou o exílio de um poeta em essência. Falta-me o toque de uma opinião, uma crítica, um elogio, na intenção de iluminar minha poesia que é ilusão, desafio, uma chama sem escuridão para se notar. Sou poeta em solidão, não tenho par.

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Suspeito Assistia a tudo, calado. Apenas a observar. E todos sabiam que eu tinha razão. Um olhar perdido, cansado de se revelar. Quem diria, eu que nada dizia, parecia gritar o nome do verdadeiro culpado. No seu rosto estava estampado: -Fui eu. Era um dia quente, um verão cruel; não havia nuvem no céu. Um imenso sol a nos irradiar. O suor pingava do rosto por causa do esforço. Eram doze homens ao todo, a se permutarem. Quando o céu empalideceu, foi um alvoroço, um dos doze apareceu morto. Como explicar que o morto era eu?

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Fuga Encontrei, enfim, um lugar para me esconder, foi dentro de mim. Virei as costas para o mundo à volta. À minha frente, só uma saída, enganar-me com a doce ilusão que ausente eu mudaria. Vivi cada vez mais perto de meus medos, cada vez mais longe dos demais. Sofri em um transe, vendo minha imagem sem espelho. Perturbava-me ter que voltar atrás, ter que voltar a ver-me como sou, humano.

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Domingo As conversas de casa no almoço, discussão de família, alvoroço, um domingo qualquer. As cadeiras balançam no terraço, som de vozes dispersas, cansaço, gritos de mulher, choro de criança. Fim de tarde, despedida, bênçãos de fé.

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Pensar Cada minuto da vida, vale a pena pensar na vida que ainda há e em tudo que permanece. Na flor que um dia se abrirá, no olho que hoje não a percebe, na mão que a colherá e no lugar que ela floresce. Pense na vida que segue, não na sua, pense na lua que continua tão linda a brilhar. Pense na vida que há. Pensar na vida que finda, não vale a pena pensar.

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Porta Porta que se abre e fecha a cada um que passa. Maçaneta empunhada que escancara. Casa aberta, cama descoberta, pouca iluminada. Porta que quando se fecha, assiste calada. Porta agora empurrada, entreaberta. Porta sempre aberta, mesmo cerrada.

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Prefiro Se é para me espiar de rosto permanente, prefiro um olhar diferente a me espreitar. Se é para usar os versos de forma divergente, prefiro então rimar. Talvez no mar, encontre um par de olhos que enxergue na profunda escuridão de não enxergar.

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Garoto de programa Ao se vestir de mim, corpo indecente, me envaidece. Quando estou ausente, de mim se despe. Eu não devasso o meu colo para rogar por piedade, e sim, para saciar minha vontade. Enquanto estou nu, sou objeto, sou uso e abuso, sou curvo, sou reto. Sob a penumbra da luz sou cruz, credo!

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Quebra-cabeça Não existe tudo que existe. Parte de tudo que existe, não existe. Esta parte de tudo que existe, que não existe, existe como parte de tudo que não existe. E tudo que não existe também não existe. Por que de tudo que não existe, existe parte, como existe a parte de tudo que não existe, que não existe. Assim, tudo que existe, existe em parte e tudo que não existe, em parte existe.

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Avô O suor escorria pelos riscos de sua mão feito água nas frestas de um chão rachado. Olhos fechados feito o caixão onde havia um par de olhos velados. Tão longe podiam ver, tanto que o espiaram, sempre pra lhe proteger, quantos cuidados. Não consegue se conter, põe as mãos no rosto, suas lágrimas de dor são por causa do avô amado.

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Aminigos Aparente platéia sorridente nas angústias de um dia de trabalho. Nos calçados um par polivalente, o orgulho de haver-se suportado. Mãos nas costas, as mesmas falariam, sendo as mesmas as postas que comiam. Não se entendem e se entendem por demais. Sua frente é sábia e eloqüente. É grosseiro e indiferente se ausente, se presente, um a mais. Na tristeza a dor que contagia, a magia de logo se curar. Um afago, a cara de alegria, efusiva maneira de falar. Doces beijos, um travo em suas bocas; mentes loucas, amigas imortais. Mas, morrem quando deixadas soltas. Quando afastadas, são armas letais.

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Relógio Instrumento a corda movido por mãos alheias, que nos diz as horas de alegria e de tristeza. Pulsa sobre nossas veias, seu coração de bateria. E o pai da aviação no pulso o colocaria. Na parede da cozinha, por cima da geladeira, esquecido em suas horas, recoberto de poeira. Olhos me espiam, escusos, de cima da antiga cômoda. No vazio do quarto escuro, uma voz dentro me chama. Nada mais, enfim, espanta, sinais da modernidade. Marcaram o tempo no tempo, um tempo de pressa e de espera, de solidão e saudade.

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Repetente Alguém vestido de palhaço, um descontentamento permanente, e nessa brincadeira, de repente, um olho machucado. A inteligência está em repouso absoluto. Um sedimento de tristeza se deposita no fundo da alma. Alguém perdeu a calma. Com a imensa força do absurdo esqueceu de pensar, mais um osso fraturado. Para desgosto de seus pais em suas casas, um outro com o álcool se deflora. Com a preguiça da ressaca esquece a hora, e mais um dia, o procuram na escola. Um louco alucinado, tremenda inteligência ali perdida, a sua vida está entorpecida com o poder da droga.

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Os nossos filhos se dedicam à uma vida irracional, de perigos e conflitos. Torna-se natural, é nossa história. A velha roupa na gaveta, esquecida, agora é usada novamente. Aquele mesmo olhar no descendente, um vago olhar de crise existencial. Talvez, você tivesse esquecido, não é bonito, mas é a vida real. Mãos postas sob a fé incontestável. Os jovens dias perdidos na desordem cerebral. Livre dos vícios, mas não do fanatismo. Perde a razão na hora de falar, quer condenar sem ter condenação, quer salvação se é livre para pensar. Usar a cordura é raridade nessa idade. Agredir somente o medo. Viajar por entre páginas infindáveis

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e aceitar a vida e seus segredos. Adoração, somente à liberdade. Talvez, tanta energia acumulada implode sua própria consciência. Em vez de fazer versos ou ciência, entrega-se a uma vida desregrada. São camaradas no palco das idéias absurdas. Assim, se coadunam no desleixo. A mão no queixo não os faz pensar. Nos resta apenas esperar que ultrapassem todas as barreiras, com sua idiotia corriqueira consigam enfim chegar. Já que todos nós tivemos que passar por esse trecho da estrada, numa repetitiva caminhada, nos vemos regressar. Não há nada de diferente, é apenas um ato repetente em uma faixa etária de nossa existência.

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Além da curva Senhores que vejo agora, entre horas, donos de um mar de dúvidas. Com luvas, suas senhoras se isolam do frio. Arrepio, alma nua, carne crua salgada ao sol, dor no corte da ferida aberta. Na terra inundada, água evaporada em nuvens. A caatinga cheira a mato molhado. Um paredão de açude desabado. No badalo, um gado que perdeu seu rumo feito fumo na boca que sopra o fumado. Além da cerca, há uma estrada, uma curva acentuada, um acento de madeira, um bananal, lá fica a minha terra natal. Uma brincadeira junina, uma faca de cozinha enfiada

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sai com a lâmina manchada, não de sangue, mas com o nome da amada, bananeira esfaqueada. Um cachorro que acompanha a carroça. Uma prosa, candeeiro apagado com a rotina. O dono do cavalo selado, finado finda. Por luas, de luto ficamos. Moça, queira ser dona da roça, da nossa colheita. Um feixe de lenha, uma queixa, queixume de quem não se deita por excesso de sonhos. Pé na estrada, alpercatas levantam poeira, e o acúmulo de bosta de gado deixa o seu cheiro na chuva. Além da curva, molhado, deixo às costas, o adeus.

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Cenas Um velho amigo me acena, um carro usado à espera, à frente de uma antiga loja. Novas pessoas na cena que faz parte de um quadro emoldurado pela janela da sala que me aloja. Desço degraus recontados, paro diante da rua. Agora, eu faço parte daquela mesma figura. Mas nunca me vejo nela. Agora, vejo do quadro, a minha própria janela. Estou em cenas opostas, mas nunca ao mesmo tempo, ocupo um lugar no espaço. Em cada cena, um momento, deixo-as às minhas costas, hora um ou outro lado, qual moeda em movimento.

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Ninguém nos avisou Ninguém nos avisou que era utopia pensar que algum dia o mundo mudaria sua cor. Que no jardim da vida, ainda restaria uma flor. Ninguém nos avisou que tudo é ilusão, que cada coração é uma bomba que explode em nossas mãos, e que o nosso céu é apenas um engodo no papel. Quem tem percepção, sofre a decepção de ver sem mel, o favo do amor. Ninguém nos avisou, por que é um de nós. Perdemos o bom senso e a voz. Quem sabe se o vento não traz, em algum tempo,

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à razão, que não podemos ter compreensão do mundo? Ninguém nos avisou que nossa existência nem mesmo a ciência ou a religião a tira do vazio sem direção. Se vale a pena ou não, não é problema seu. Para a vida, não importa quem viveu. Se quer acreditar para aplacar a sua dor, acredite seja lá no que for. Ninguém nos avisou que temos que sonhar, pois só em sonho é possível explicar.

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Mãos e bocas A tua mão e a minha entrelaçadas numa perfeita harmonia. A tua, frases escritas. A minha, linhas traçadas. A tua boca, da minha não se separa. Não há uma boca sozinha, há duas bocas caladas. Mãos e bocas ocupadas.

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Esquecidos no tempo Nas muitas marcas do passado, não há pegadas do homem comum. Seus esforços, quase sempre explorados, estão em formas de belíssimas criações: templos, muralhas e complexas construções; um legado que custou as suas vidas. Os seus nomes, jamais foram registrados. Suas almas no tempo, esquecidas pelos deuses por eles adorados, Caminharam pelo tempo de encontro ao eterno esquecimento de suas vidas pessoais. Como esses ancestrais, caminhamos nós.

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Espírita Enquanto apreciava aquela vista na popa de um antigo barco, num súbito movimento se desvia, desequilibro-me e caio. Para minha surpresa,eu não nado, as minha mãos estão na direção de um velho caminhão na estrada, disparado. E de repente, numa curva não há tempo, ainda tento desviar o animal. Todavia, a carroceria em movimento arrasta-me para baixo da encosta. Escuto uma voz às minhas costas, alguém me diz: - Vamos para casa. E ao abrir os olhos, estou num trem que lança uma imensa nuvem de fumaça. Eu vejo então, o trem num túnel entrar. Mas na saída, estou de volta ao mar no mesmo barco que ainda me leva. Achei que fosse um sonho, mas não era.

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Segundo um médium amigo da casa, eram as minhas vidas já passadas, repassadas em uma regressão. Levanto-me da cadeira em que estava. Se era realidade ou ficção, depende de acreditar ou não.

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Ditador Não temo ser cruel. Não aspiro ao céu, sou um ditador. Conheço a falta de pudor e a dor de um conquistador. Não dei chance ao rei e nunca darei, serei o meu senhor. Agora sou um louco alucinado, e diante do espelho da vida, tento ver meu reflexo existencial. Sou tão mau quanto pareço. Subjugo a utopia, sou berço da tirania, sou amado e odiado e nunca esqueço de que sou o que sou. Imponho o medo e o terror. Sou contra a democracia, sou dono da burguesia. Onde piso não há flor, não há riso, só lembrança.

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Apaguei a esperança, a luz de cada sonhador. Mas, não consegui por a mão, até essa minha idade, no sonho de liberdade que há em cada coração.

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Quermesse Há um pároco que chama de novo, para falar de tudo que já havia dito. Chama o povo, dito por não dito. Em frente à igreja, na terra pisada, há barraquinhas improvisadas, há comidas típicas e bebidas, há prendas que são leiloadas, há cenas aborrecidas, há um homem bêbado, há uma mulher grávida, há um dom Juan e suas namoradas, há sempre um grupinho numa calçada falando da vida, quase sempre alheia, há alguém sorrindo escandalizado, há um outro sério e envergonhado, há um céu imenso, há uma lua cheia, há uma dispersão neste aglomerado.

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Quem dera Quimera de vida, a minha quem dera, fosse quem fosse. Quem era que se escondia da caixa de Pandora, para não ser alvo da ira mitológica de uma lança sem mira ou de uma flecha perdida vinda do arco de Eros? Quimera de vida, fui atingido na mesma ferida por uma flecha escolhida e uma lança sem rumo certo.

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Papai Noel A inocência é um grosso véu que nos tapa a visão. Eu fazia o meu papel de aceitar uma invenção. Uma vez, vi papai Noel viajando sem direção. Uma noite ele cai do céu numa estrela, rasga meu chão. A verdade é como fel amargando o coração. Porém, na boca, ainda sinto o mel dessa doce ilusão. Feito a sombra de um chapéu que me cobre a razão, uma parte de mim diz sim, outra parte de mim diz não.

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Passos Cada passo é um movimento de carne e osso na direção do acaso. É o meu, é o seu, é o nosso. Cada moço que se encoraja na vida, por uma breve ou incessante conquista, é um vencedor. Cada homem que acredita no caminhar comum, que somos todos por cada um, é um sonhador. Apesar do oposto caminhar, a humanidade mantém laços na esperança de um dia parar e rever os seus passos.

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Vaticínio Uma profecia que viajou no tempo, adormecida nos braços do vento, desperta em estilhaços. Explode a própria vida num vago olhar que vê nascer a lua. Sob as fagulhas de uma fogueira cósmica, sol e chuva em guerra, um caldo vivo repovoa a terra, o asteróide que mudou de cor.

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Velho amigo Uma pessoa comum, mais um, a tentar não se afogar nessa gigantesca praia da vida com suas marés altas e baixas e sua imensidão incompreensível. Porém, a sua lua parecia bem maior que a das outras (como tantas outras). Distanciava-se do burburinho que havia naquela noite vazia de sonhos, era um pequeno grupo que ali se encontrava. Em seu caminho, sentia um cheiro proibido de fumaça. E na distância, seu vulto percebia que quanto mais distante ia, mais de si, se aproximava. O que mais o fascinava no mundo, era não poder compreendê-lo, muito menos, explicá-lo. Calo-me para pensar em meu bom e velho amigo.

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Folhear Parei para folhear a minha vida, nela havia algumas páginas em branco, falhas de uma amnésia real. Em busca do meu ideal de vida, tristeza e alegria, encanto e desencanto, como um livro de poesia. Não tentarei reescrevê-la sem pranto, foi no desencanto que conheci a utopia, e mesmo em pranto nela sorria.

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Pena Aliviou sua gente ao gritar: -Inocente! Palavra ausente em muitos corações. A dor física na garganta, conseqüente, à sua leviana execução. Essa é a boca que prega a justiça. Essa é a mão que viola a ação. Pena de morte a quem morre de pena; ao que prega o ódio, absolvição. Essa é a “grande nação”, só entre aspas, por ser pequena e baixa em sua razão. Essa é a farsa, usar a farda e conter a podridão. Por na cadeia uma língua, uma cor,

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uma ideologia, uma religião, seja o que for. Caçando almas em meio à multidão, pregando o amor a uma pátria de estrelas, a qual seu brilho cegou sua visão.

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Poema em campo Não preciso de um poema, preciso de um verso apenas, para dar o pontapé inicial. Está aí, não é tão mau. Assim, começa o meu poema, o jogo. É meu o ataque, não há outro, assim não vou me defender. Pois ganho eu, não há você. Eu digo isso sem reserva. Sou o meu técnico, na certa. Agora, estou no meio campo, vou discorrer um outro tanto. Meu atacante é a caneta. O meu gramado é de letra, plantado numa folha em branco. Vou devagar, assim eu canso. Minha torcida, os leitores. Não tenho contusão, nem dores. Cada gol, um novo verso. A partida, um sucesso. Um jogo e tanto. O poema ficou pronto.

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Observador Preciso ver o sol antes de pôr-se atrás desse lençol gigante. O que aos olhos parece distante, à pele, fere com ardor. Parece até mudar de cor, visto no horizonte. E quando o gelo derrete em minhas mãos, ponho na boca o líquido transformado. À tarde, os raios de sol são retocados num colorido que o ar pintou. A emoção de ver tamanho quadro enche meus olhos, alivia minha dor.

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Centelha Os cabelos soltos, regados pela luz solar. Suas lembranças o acordam do letargo. Um pesadelo ainda resta a arpoar sua lustrosa testa e sua mísera vida. De repente, em lágrimas e suor, sua alma espelha o sol nascente como uma centelha na espera de um mundo melhor.

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Espera Estava eu confuso, alheio ao burburinho, tal passarinho sem ninho num vai e vem sem destino. Estava eu sozinho no meio de tanta gente, numa infinita demora, um tempo sem tempo, sem hora, um passear sem caminho, um caminhar diferente. Estava eu na espera sem mesmo saber quem eu era. Queria que não fosse agora.

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Estranha imagem Não sei o que me aconteceu diante do espelho; eu não acreditava, aquela minha imagem que ali estava, olhava mais a mim do que a olhava, eu. A sua curiosidade era latente, descobria-me tão profundamente que eu mesmo me desconhecia, é que dentro de minha agonia, nela via-me sorridente.

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Excelso Sob o chapéu, o delírio da mente. Um passo à frente na forma como se expressa. Um par de lentes, por trás, olhos docentes. Quem seria essa Pessoa, eternamente poeta?

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Destino Taça quebrada que se brinda a vida, agora, vira arma temida que provoca a morte. Disputa a sorte de quem vivo fica, de quem fica e sofre. Líquido vermelho que se esvazia na mão do caso que o acaso escolhe.

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A última centelha Talvez, não seja bom nos elegermos, pois nós, os ideais, corremos risco. Somos ainda o último lampejo; só tenho medo de nos apagarmos, e em nós, as cores do arco-íris. Sem ele, a tênue chama da utopia não será percebida por nossa íris. Enfim, a escuridão da desistência nos levará ao fundo do abismo.

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Experiência Sublime ser que nasce e cresce em suas mãos. Esporos de minha carne em contaminação pela maçã mordida, pela razão na vida. Uma experiência evolutiva mal sucedida; um fungo demente que se espalha lentamente em sua direção.

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Navegador Navego em mares que não vou em minha nau de pensamentos. Percorro o mundo no papel, guiado pelos sentimentos. Nunca ganhei um só troféu, mas fui ao céu, domei os ventos. O leme é minha emoção, a direção, os meus momentos. Sou sonhador, navegador de pensamentos.

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Choupana Entre paredes de barro cru, sento-me numa esteira de palha tal qual o telhado que atalha a chuva de meus pensamentos. Minhas promessas não são para o vento, mas quem sabe, ele alivia esse lençol de frieza? E à porta de meu abrigo de sonhos ilhados, olho à distância, esse pedaço de terra que encerra meu mundo nessa serra sem fim, limitando-me. Felicidade é conter-se de vontades.

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Choveu A chuva que cai não machuca a terra queimada de sol. Lençol de areia molhada, poeira assentada na mão do mormaço. Um brilho no chão. Cansaço. Sertão perfumado, sereno. À noite, fogueira apagada. Cancela de estrada, rangendo. Espera. Esperança mantida. Lembrança que um dia choveu.

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Ciclo De uma flor nasce um fruto, desse fruto nos servimos. As sementes desse fruto, no chão, introduzimos. Haverá germinação. Essas plântulas vão crescer, belas árvores serão. Novamente, um florescer numa próxima estação. Novos frutos pra colher, uma nova refeição. E as sementes fecham o ciclo, replantadas pela nova geração. De um amor, um ser que ao conhecer uma bela flor, vai reescrever com um novo ser, a lição do amor.

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Consolar-se Acalentei saudade, saudade que senti. Sem ti, acalentei a mim. Não consegui reconfortar a dor. Dor,que dor, é a dor do amor. Não é tão fácil assim, acalentar a si.

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Coma Quero voltar, talvez já seja tarde. Além do mais, não sou o único a partir, nem o primeiro a querer voltar. Querer voltar não é acovardar-se, é rever-se. Levei um susto, não por ser mortal, mas por vê-los tão mal sem mim. Quero voltar pra que não sofram mais assim. Só vejo flores, não vejo o jardim. Parece que estou longe demais, tarde demais para voltar a mim.

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Convivência De tanto ver o lado da sujeira, comer ao lado da lixeira, sinto-me lixo, negativo revelado na miséria. Sou mesmo, o lado avesso na história. Sou distinto, emoldurado na memória. Sou prolixo. Meu instinto mergulhado na amnésia. Meu caminho, um contínuo caminhar de ancestrais. Libertei-me do domínio dos demais. Sou agora, um a mais pela trilha da revolta. Uma volta que circunda o poder, evitando apodrecer o lixo.

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Dizer Às vezes, pensar é sofrer. Metade de mim, você. Um cheiro no ar, delirar. Um doce querer, reviver. Em nosso jardim, as flores não falam de mim, só lembram você. Razão para eu dizer, outra vez, você. Sou eu que lhe peço a mão. Você que me diz o sim. Sinal para eu sonhar; em vez de me acordar, acordo você em mim. Razão para meu viver, outra vez, você.

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Cadafalso No cadafalso, cada degrau é falso. Cada um que sobe, má sorte. Que desce, é morte. Bem mais forte que meu pescoço quebrado. Nas minhas mãos, as marcas são poucas. Troco meus pés pelas mãos, minhas mãos são outras. No cadafalso, sou outro falso. Sou falsa vítima, enquanto o culpado me assiste no palco do cadafalso. Em um sistema falso, constantemente falho, o cadafalso não falha. Eu piso em falso, e o cadafalso me cala.

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Tipóia Um par de punhos de cordão, feito a mão, a sustentar no ar o meu corpo. Dependurado em armadores numa extensão de tecido, a aliviar minhas dores de amores perdidos. Rede que pesca comigo, meus sonhos. Tipóia que me apóia na preguiça.

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Urbano Por trás do muro, ainda existe mato, e pelas grades da janela dá para ver a liberdade. De fato, é uma querela que não tem idade. Parecemos mudos, pois ninguém se escuta. Uma história longa, uma vida curta, infelizmente não veremos o final.

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Qual de nós Você me acorda cedo para me ver ir embora. Eu chego em casa tarde, encontro ela vazia. Pensei que fosse eu aquele que partia. Porém, mais tarde ainda, você está de volta. Mas quem começa, finda, o ciclo do adeus. Você perdeu a hora. Pergunto-me agora: -Qual de nós perdeu?

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Religiões No dobrar do sino, o povo vai sorrindo, mesmo desamparado. Dando louvor em hino, a multidão vai seguindo um louco alucinado. Sob o sol do deserto, morrendo a céu aberto, sentindo-se livre, mesmo escravizado. O povo é de certo, seu próprio carrasco.

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Simplesmente viver Viver, maravilhosamente incompreensível, todos os sentidos e não há sentido em si. Morrer, pavorosamente indizível, todas as opiniões e não há razões em si. Viver e morrer é preciso, viva e esqueça o castigo, que é simplesmente morrer.

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Seresta Goma de mascar faz bola. Bola de bilhar. Brilho de estrela à noite, seresta ao luar. Gole de bebida entoa conversa de bar. Passos entre mesas, beijos, casais a dançar. Fim de festa, desencanto, sol nascendo, chega o sono, hora de pagar.

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Há muito mais Dar ordens é muito mais fácil que obedecê-las. Contudo, para dar ordens é preciso sabedoria, e por não tê-la é que a história foi assim, escrita. Há muito a ser dito e mais ainda a ser lido. Se está no bico da caneta, no papel preso na prancheta, ou mesmo dentro da cabeça, talvez, no eco de uma consciência, no grito triste da ausência, ou no simples aceitar, onde está, não sei. Porém, sei que há, basta acreditar.

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Coralina Cora cara,de vergonha. Vergonha de não ler Coralina. Cora ainda, no meu entender. Corante, tinta que pinta, pinta versos de menina. Coral que ali se aninha e num bote poético me fascina. Agora, meu rosto cora ao ler uma linha de Coralina.

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Cânticos Cânticos, vibrações de cordas vocais, vozes em corais, em som uníssono. Cânticos, traduções de notas musicais, soma de sinais distintos. Cânticos, revelações de sentimentos reais, pulsos venais, um dom infinito.

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Nômade eremita Quem jamais parou, não ficaria, um lugar seria o fim. Caminhar sozinho, necessita. Sua vista, enfim, não se limita. Sempre a viajar pelo mundo, incerto, pela vida. Entre trilhas vazias, pelas vilas. Entre pás de ferro, pelas linhas de trem. Entre sonhos diversos, pelos versos de alguém.

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Do lar Dobrou a língua ao dobrar a roupa. Saiu de casa para não ficar louca. Usou meus lenços para enxugar as lágrimas. Pôs as idéias sobre o travesseiro. Surpreendeu-me em seus pensamentos. Deu-me um tempo ou deu a si mesma, a mesma chance que ela nunca teve de poder viver.

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Aplausos e vaias Os aplausos são para quem fez rir e fez chorar também. As vaias, de onde vem? Quem não gostou, sua vez. As luzes nos focalizam, nos destacam individualmente no palco da vida. Ao mesmo tempo, estamos na platéia aplaudindo ou vaiando a nós mesmos, atuando, sorrindo ou chorando. Aquele que vaiei, sou eu, eu atuo muito mal. Agora, quem me aplaude sou eu, sou meu próprio fã. Preciso de um divã, urgente.

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A dama e a flor Uma flor de senhora, toda noite, era minha eterna companheira. Bem cedinho, quando abria a janela e olhava passivo, o jardim, era ela numa flor que abria-se para mim, com as pétalas repletas de perfume, que eu tinha certeza, era ciúme. Exalava um cheiro sedutor, era o mesmo que vinha do vazio de minha cama. Uma dama que de dia, era flor. Uma flor que à noite, era dama.

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Afogado Atravessei a nado o lago da mentira, momento algum eu vi do que foi dito, algo. Diante da vaidade, tão perto do que é certo, na margem do regresso não havia verdade. Difícil travessia com tantos ao contrário, e a todos parecia que eu era o afogado.

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Vergonha Pelo desgosto do pai que vê seu filho guiado por mãos erradas. Pela mulher que chora diante de seu filho com as tripas de fora. Por seu amigo de infância, outra criança, filho do vizinho, que agora, sozinho, foge pela estrada. Pela menina que escova os dentes na porta da frente, com um copo de água na mão, esboçando um sorriso sem graça. Por seu irmão

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que não vai à escola por ter que pedir esmola na praça. Pelo bêbado veterano que vive jogado, mas insiste que é decente, só que a sua própria gente já não o ver assim. Pela senhora que ora, pedindo para Deus mudar aquelas cenas obscenas e ter a metade da piedade que ela tem. E por você também, que não enxerga um palmo à sua frente.

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Expressões perdidas A nação que escuta o próprio hino, movimenta a boca sem cantar. A bandeira, o mais forte símbolo, já não mais representa o lugar; suas cores não fazem mais sentido, hasteada se perde pelo ar. Expressões que ninguém dá mais ouvido. Pátria minha, derrotada sem lutar.

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Sorte Uma ave silenciosa, pousa nos braços de um jacarandá. Seu filhote pia à toa, quando a ver se aproximar. Solidão de ave que talvez prescinta um olho a mirar, com um pio frio de morte, anuncia ao seu filhote. Antes do som do serrote, uma dor vem arrancar dos braços da velha árvore, sua velha amiga ave. Sem poder lhe segurar, o velho jacarandá tomba com o profundo corte. Somos todos responsáveis pela sorte da árvore, da ave e do filhote.

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Congênito Quando nasci, em vez de chorar, sorri. Infeliz, por que és tão feliz? Talvez por viver em um mundo caótico e neurótico, feliz com sua infelicidade. Eu não consigo me conter de tanta felicidade. As vezes que choro é por não ser triste. O meu sorriso se desfaz, mas não desiste. Diante das misérias, as lágrimas limpam a alma; depois vem a calma trazendo de volta a euforia nas primeiras felizes horas do dia, continuando até ao anoitecer, quando enfim, minha felicidade dorme. Alguns sonhos tristes, fora da realidade de minha própria felicidade. Tendo ou não o que fazer, tenho vontade de correr e arrancar de minha raiz,

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a semente que me faz tão feliz. O que devo fazer, se o grito em mim contido, apesar da dor, é de prazer? Será que quando eu morrer, o meu último suspiro vai ser uma risada?

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Coleta Talvez eu tenha encontrado bem mais do que merecia. Colhi uma flor do mato que no jardim não florescia. Uma mão sentia o orvalho, a outra estava vazia. No peito foi redobrado, o aperto que havia em mim. A dor de não ter lembrado que amar seria o meu fim.

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Expressivo olhar Expressivo olhar de uma bela dama, a empalidecer minha alma, a corar minha face. Uma mão no queixo, um disfarce, onde expõe a boca para me beijar. Fica em seu lugar, a doce lembrança e a esperança de vê-la voltar. Todos os meus dias, fico a procurar pela face dela, em cada janela que vejo passar. Nunca mais a vi e fui infeliz. Pois em cada dama que encontrei na cama, eu pude notar que havia o mesmo expressivo olhar.

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Opinião O que seria de você sem discordar? uma marionete com voz em falsete, que acha feio, mas usa um bracelete que é para assim, a moda acompanhar. A hipocrisia vai um dia lhe dominar. Fazê-lo sorrir com boca alheia, de uma piada de mau gosto e feia, só para agradar. Sua opinião deve ser respeitada. Ninguém é obrigado a concordar. Uma competição pode ser empatada, não importa perder ou ganhar. Toda opinião pode ser mudada, certa ou errada, não faz diferença. É bem melhor dizer o que se pensa do que seguir uma opinião formada. Ser racional é poder questionar, dizer que não, que sim, talvez, que nunca ou está bem. Um indivíduo que pode pensar por si só, deve opinar também.

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Enclausurado Ao olhar a rua pelas grades do portão, aumenta a dúvida: dentro ou fora da prisão? Os cadeados, as fechaduras, toda uma vida em armadura. Ter medo de altura é pura ilusão, ao rés do chão é que o perigo se afigura. Quem é honesto ou ladrão, já não há mais distinção; isso é loucura, a vida virou ficção. Ninguém mais sabe o quanto custa. A lei ficou sem ação, com as próprias mãos, é injusta. Pelas grades da prisão aumenta a dúvida: dentro ou fora do portão? A culpa é sua.

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Deserto Já não escrevo, não porque tenha me faltado idéias, mas faltou tinta à caneta. No meio do mar de letras, forcei-a a nadar em busca de poesia. Porém, o sangue azul em suas veias, já não havia. No universo dos versos não sei se eu fiz o certo (É certo que eu sabia que a vida sem poesia é deserto, noite e dia. À noite não há estrelas. Sem estrelas não há guia. A direção a seguir, não tinha como sabê-la. Ao dia eu cegaria olhando o céu em fogueira), concluir esta poesia usando outra caneta.

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Aeroplano Passos incertos, olhos postos para o céu, um pequenino caminha sem direção. Ave gigante, é apenas um avião num vôo rasante. Vê o seu ventre de flandre que o assusta por um instante, mas recobra a emoção. De asas abertas, ele pousa à sua frente. Tão fascinado por vê portas e janelas, e por trás delas, por vê gente. O sol de antanho à fuselagem irradia, fazendo voltar ao dia, em que um aeroplano seu destino aterrissou.

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A chegada A fonte de esperança que brota do choro de nossa criança, transborda em lágrimas que inundam a sala, e em nós, a voz embarga. Nos olhamos, e em nossa lembrança, voltamos ao dia em que começamos. Aquele beijo que foi dado outrora, selava agora, o nosso destino.

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A sós Entregue ao sono está o nosso filho. Estás perdida, deixa-se levar. Encontro a paz nesse teu sorriso. Meu corpo tremido, teu doce gemido, ai que vontade de morrer de amar! Perco a voz, sussurro no ouvido. Um cheiro místico a alucinar. Tento calar a voz dos sentidos, minh'alma grita em busca de abrigo. Corpo estendido, sem poder lutar. Cumplicidade, somos mais que amigos. Juntos passamos por dor e sorrisos. Já não há nada que faça mudar. E a tudo, o nosso amor resiste. Entre nós não existe um só, somos par.

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Procissão Cabeças e pernas superam-se ao cansaço da longa caminhada por entre ruas e calçadas. A multidão vai rezando uma ladainha indefinida, no meio dela os pingos de vela alvejam as mãos da santa. A fé nas contas de seus terços, pressionados pelos dedos, a exorcizar todas as suas maldades e vícios. Cânticos de um coral afinado pela fé. Um fanatismo crônico disfarçado pela necessidade de crer. Concentrada e espremida, de volta a seu templo, a turba alcança o ápice de sua devoção, de mãos dadas e corações distantes, mentes unidas numa força inebriante de oração. Após a dispersão,

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cada um regressa às suas tarefas infindáveis, ao lamento de seu dia-a-dia, ao seu mundo de gloriosos e miseráveis, às suas tristezas e alegrias. Anônimos e famosos desejosos de sobressairem-se até mesmo onde deveriam ser humildes. Dia após dia, retiram os seus pedestais de santo, e mais uma vez no outro ano, voltam a construí-los com a participação de seu próximo, e seu próximo com a sua. De volta, a turba recomeça a procissão. Mais um ano, outro aniversário, superou a anterior, são os comentários. Serão sempre devotos, e de voto em voto não dão conta que as contas de seus terços não pagam suas dívidas, não saram suas feridas, não param com a dor da falta do amor comum.

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Desdém Cresci e me perdi com os pés arraigados na miséria. Revi-me num garoto que por um outro futuro, ainda espera. Um homem amargurado que fecha os olhos para a dor à sua volta. Já não há mais revolta, sou agora, um ancião solitário.

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Bons olhos Aos bons olhos de Javé, somos maus, matamos o seu filho. Animais! Aos bons olhos do animal, Deus é mau, condenou-o ao inferno. Satanás! Aos bons olhos de Lúcifer, o Homem é mau, por tê-lo dado o conhecimento, é inimigo mortal. Aos bons olhos, cada um tem sua razão. Aos meus olhos, foi uma grande invenção.

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Paciência Mesmo que o dia tenha acabado, mesmo que a lua tenha anunciado que a noite enfim chegou, não há motivo para ficar cismado, não há motivo para ficar zangado, o amanhã ainda não chegou. No despontar do sol que já raiou, um outro dia foi recomeçado, todo o seu tempo foi recompensado, o seu problema foi despedaçado, cada pedaço foi recolocado de uma forma que o solucionou. A paciência o livrou do fardo. O dia claro o iluminou. O céu de novo está ficando pardo, e desta vez você aproveitou. Cada momento, observou calado. Admirado, se emocionou por um instante ter até pensado em desistir de tudo que amou.

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Antes Antes de chegar, ela em mim já estava. Antes de adentrar, eu a senti. Mesmo antes de vê-la, eu já a conhecia. Quando a vi falar, reconheci sua voz. Antes de se apresentar, eu lhe falei sobre nós. Ela não me entendia, interrompia-me, eu me calava. Ela enfim, compreendera que antes, muito antes de fazer esta poesia, antes mesmo de nascer, um dia, eu já a amava.

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Ambos Encontrava-me perdido e você a procurar, sem sabermos que estávamos no mesmo lugar. Eu estava em seu sorriso e também em seu olhar. Não podia lhe ver sorrir ou chorar. Só podia lhe enxergar na imagem do espelho. Você ficava a se olhar, várias horas, pensativa. Você já não estava lá, era eu a admirar, em silêncio, minha diva.

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Eleição Não me entrego ao ator que fala. Não me submeto à profundidade da cara por parecer fiel à fiel vida de agora. Não sou um lapso de memória. Revejo a história. Não esqueço que sou um cidadão. Não acredito no abraço. Dou mais um passo antes de corresponder ao aceno de mão. No embaraço, para não ser mal educado, digo que sim, no não, digo que não, no sim. Assim, voto consciente.

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Olhar a si Às minhas costas, há um par de olhos fixos. Em uma volta fecho o círculo e fito-me sem negar-me, inspirando-me em mim. Sou parasita que persegue-se no inverso, sou apenas meu paradigma. Olho o belo ausente nas costas largamente opostas ao que há na frente, um par de olhos, os meus.

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ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA CIDADE DE MOSSORÓ EM

FEVEREIRO DE 2007 EM SISTEMA DIGITAL DE CAPA E MIOLO.