Philos #3

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Philos PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 3 abril 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 3 abril 2016 REPOSTER

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Philos #3 - Revista de Literatura, um publicação da casa editorial independente Camará Cartonera.

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PhilosPORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂ

REVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 3 abril 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 3 abril 2016

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LUCRECIA WELTER LEONARDO RICHNER VICENTE DE MELO LUISA BENEVIDESANA WELTER RAFAEL VIANNA FRANCISCO CARVALHO

FLÁVIO COSTA MUNIQUE DUARTE IVANILSON SANTANA LETÍCIA DOGENSKI

Philos

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PORTUGUÊS CATALÀ ESPAÑOL FRANÇAIS ITALIANO ROMÂNĂREVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINA 3 abril 2016 · REVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA 3 abril 2016

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EXPEDIENTEREVISTA DE LITERATURA DA UNIÃO LATINAREVISTA DE LITERATURA DE LA UNIÓN LATINA

Souza PereiraEDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

Sylvia de MontarroyosCOMITÊ EDITORIAL | COMITÉ EDITORIAL

Lucrecia WelterREVISÃO DE TEXTOS | SUPERVISIÓN DE TEXTOS

Maus HábitosDESENHO E DIAGRAMAÇÃO | DISEGÑO Y DIAGRAMACIÓN

Maysa LouzadaILUSTRADOR | DIBUJANTE

SOBRE A OBRA DESTA EDIÇÃO | SOBRE LA OBRA DE ESTA EDICIÓNPublicado originalmente em abril de 2016 com o título Philos, Revista de literatura da União latina. Os textos desta edição são copyright © de seus respectivos autores. As opiniões expressas e o conteúdo dos textos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os esforços foram realizados para a obtenção das autorizações dos autores das citações ou fotografias reproduzidas nesta revista. Entretanto, não foi possível obter informações que levassem a encontrar alguns titulares. Mas os direitos lhes foram reservados. Philos, Revista de Literatura da União Latina é registrada sob o número SNIIC AG-20883 no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com Certificado de Reserva outorgado pelo Instituto Nacional de Direitos do Autor sob o registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN em trâmite. Revista Philos © 2017 Todos os direitos reservados. | Publicado originalmente em abril de 2016 con el título Philos, Revista de literatura de la Unión latina. Los textos de esta edición son copyright © de sus respectivos autores. Todos los esfuerzos fueron hechos para la obtención de las autorizaciones de los autores de las citaciones o fotografías reproducidas en esta revista. Sin embargo, no fue posible obtener informaciones que llevaran a encontrar algunos titulares. Pero los derechos les fueron reservados. Philos, Revista de Literatura de la Unión Latina es registrada bajo el número SNIIC AG-20883 en el Sistema Nacional de Informaciones e Indicadores Culturales con Certificado de Reserva otorgado por el Instituto Nacional de Derechos del Autor bajo el registro: 10-2015-032213473700-121. ISSN en trámite. Revista Philos © 2017 Todos los derechos reservados.

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A Philos de outono vem menos colorida, deixando de lado os tons amarelados e as folhas caídas, reinventando-se. Nossa voz ergueu-se consciente e agora caminha entre vos para fazer-se presente. Estamos na terceira edição, escrevendo sobre as notas riscadas, na sombra dos discursos, nos horizontes desviados, nas memórias esparsas aqui e acolá. As nossas obras são, muito honradamente, acompanhadas das ilustrações da artista Maysa Louzada. Não nos preocupamos com as próximas palavras, queremos degustar a literatura dos novos autores, pouco a pouco, dando espaço em nossas almas para conjugar de diversas maneiras o verbo sentir. Nas palavras de Zeh Gustavo: «O futuro todo ainda pode desacontecer».Os nossos autores rabiscam com o coração, com os olhos saltando ao infinito ante o desejo incontido de escrever. E a partir do verso, da simples métrica, da rima, da conversação das palavras, dos contos, dos experimentos linguísticos; é que a vida vale grandemente a pena.Esta publicação é parte do Philos Reposter, um projeto de republicação de todo o material lançado pela editora Camará Cartonera em novo formato gráfico, com colaborações de novos ilustradores, fotógrafos e artistas visuais.

Desejamos uma ótima leitura,

Souza PereiraEDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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La Philos de otoño viene menos coloreada, dejando de lado los tonos amarelados y las hojas caídas, si reinventando. Nuestra voz se levanta consciente y ahora camina entre vos para hacerse presente. Estamos en la tercera edición, escribiendo sobre las notas riscadas, en la sombra de los discursos, en los horizontes, en las memorias dejadas aquí y allí.Nuestras obras son acompañadas de las ilustraciones de la artista Maysa Louzada. No nos preocupamos con las próximas palabras, queremos degustar la literatura de los nuevos autores, poco a poco, dando espacio en nuestras almas para conjugar de diversas maneras el verbo sentir. En las palabras de Zeh Gustavo: «El futuro todo aún puede desacontecer».Nuestros autores rabiscam con el corazón, con los ojos saltando al infinito ante el deseo incontido de escribir. Y a partir del verso, de la simple métrica, de la rima, de la conversación de las palabras, de los cuentos, de los experimentos lingüísticos; es que la vida vale grandemente la pena.Esta publicación es parte del Philos Reposter, un proyecto de republicación de todo el material lanzado por la editora Camará Cartonera en nuevo formato gráfico, con colaboraciones de nuevos ilustradores, fotógrafos y artistas visuales.

Deseamos una óptima lectura,

Souza PereiraEDITOR CHEFE | EDITOR EN JEFE

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SUMÁRIO | SUMARIOCONTOS | COLUNAS | ARTIGOSCUENTOS | COLUMNAS | ARTÍCULOS

8 Abelhinhas elétricas, por

LUCRECIA WELTER

22 A poesia das roupas, por LUISA

BENEVIDES

38 O Louva-Deus e a

Borboleta, por IVANILSON SANTANA

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11 A história de um homem comum, por

LEONARDO RICHNER

15 Balas, chicletes e

salgadinhos, por PÂMELA CÔRTES

18 Vidas perdidas em

chamas, por VICENTE DE MELO

24 Minha mãe modista, por ANA

WELTER

32 Benedito, por FLÁVIO VINICIUS MOREIRA

COSTA

26 O caos, por RAFAEL VIANNA

29 Dasdores, por FRANCISCO CARVALHO

35 O ano novo de Adélia, por MUNIQUE DUARTE

41 Longe dos olhares de

Amélia, por LETÍCIA DOGENSKI

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Maysa Louzada

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ABELHINHAS ELÉTRICAS por Lucrecia Welter1

Sei de gente miúda que, quando colore o papel, lembra as asas do beija-flor desenhando

um arco-íris no jardim. Quando brinca, os cãezinhos rolando no pátio gramado. Quando se agita, o canto dos galos da madrugada no quintal da vovó. Quando chora, um bando de gansos rasgando o céu. Quando solta a voz, um exército se preparando para o combate. Quando a suaviza, o piado dos pintinhos em busca de alimento. Quando sorri, o brilho da alvorada silenciosa. Quando dorme, os anjinhos mais comportados que o céu já conheceu. Sei de gente miúda que brinca grande. Que sonha gigante. Que viaja para dentro dos livros num piscar de olhos. Que vira príncipe ou princesa, Cinderela ou Bela Adormecida sem precisar de condão mágico. Que se comporta como se fosse a Elza ou a Anne do Frozen, o Super Man ou o Homem Aranha. Que vive e respira a Cinderela, a Bela e a Fera, o Lobo Mau e os Três Porquinhos, o Chapeuzinho Vermelho e a Branca de Neve em meio à floresta. Que me deu a conhecer o Pintinho Amarelinho, a Galinha Pintadinha, o Galo Cocoricó, o Patati e Patatá, o Bob Esponja, o Ben 10, a Pepa Pig, o Max Steel e a Patrulha Canina. Sei de gente miúda que possui imã a atrair qualquer olhar e atenção, sem o menor esforço. Que, eu podendo ou não, me encaixa nas brincadeiras e me devolve cansada, sem energia para mais nada. Que tem fogo percorrendo as veias, com ânimo de explosões repetidas. Que pede e dá carinho inocente, com mãozinhas encardidas. Que fica feliz quando se machuca, pois corre até a casa da vovó e volta com um “colativo” colorido sobre o dodói. Que gosta de assistir à missa somente na igreja que oferece docinhos para os pequeninos comportados, ao final da cerimônia. Que se empenha em amar os animais e salvar os que estão em perigo, ainda que sejam simples insetos. E que, aos gritos, caçam “joaninhas” e se encantam com a beleza de suas asinhas petit-pois.Sei de gente miúda que, ao se justificar pela morte da borboletinha pisoteada, afirma não ter matado a mamãe borboleta, nem o papai, nem o irmãozinho e nem a irmãzinha. Com voz acanhada, esclarece: Vovó, eu matei a “pima”. Sei de gente miúda que se diz “colajoso”, mas tem medo da bicada da choca no ninho, do grunhido dos porquinhos no chiqueiro, do bezerrinho guacho que toma o leite na gigantesca mamadeira, da boiada do sítio, a ponto de se esconder no carro por conta disso e, com boquinha de choro e olhinhos arregalados, dizer: “eu quelo molêi pala sempe”.Sei de gente miúda que prefere guloseimas a um prato de comida, e tomar água com gás ou refrigerante, escondida da mamãe, só pra arrotar um “roto normal”. Que prefere pão com mel a “pão pulo” (pão puro). Junto dela, a gente fica da cor da terra e com cheiro de suor, iogurte, tereré, sorvete, chicletes, pirulito, suco de uva, bolacha e açaí. Assim, as manhãs ficam com jeito de sol brincando com as estrelas, ainda que chova. As tardes, de colônia de férias. As noites, de bailado de vagalumes iluminando a orquestra dos grilos. As madrugadas, de lua cheia espalhando prata sobre a terra e o mar.

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CONTOS

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1Lucrecia Welter (Paraná, 1953). Escritora multipremiada e presidente da Academia de Letras de Toledo, Paraná. É Revisora de textos da Revista Philos e Curadora de Literatura lusófona da mesma Revista. Tem diversos livros lançados e publicações em coletâneas poéticas.

Sei de gente miúda, feito abelhinhas graúdas, que se tornam imensas em meu coração e eternas em meu pensamento, sempre que ouço suas vozinhas estridentes a me chamar de “vovojinha”, “vôva”, vovó, vó. São elas a bonequinha Lara, a princesinha Eleonora e o príncipe Octávio, os três encantos da vovó, que se apoderaram de todos os meus sentimentos incondicionais. Como não amá-los?

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A HISTÓRIA DE UM HOMEM COMUM OU A HISTÓRIA DE UM HOMEM NORMAL OU A HISTÓRIA DO NOME DA TORRE DE CHOPEpor Leonardo Richner1

Hoje, tem a marca dos quarenta.

Perdido entre canais de filmes, séries e variedades, procura qualquer coisa incansavelmente pelos botões do controle remoto. Ana está atravessada por algum outro pensamento que não a falta de programação na televisão. Com a cabeça apoiada pela mão direita, os olhos piscam pesados e sôfregos por causa das duas cervejas que tomou enquanto fazia o jantar. O barulho das crianças diminuiu gradativamente. Agora, só um chiado, que provavelmente vem do filme que estavam assistindo. A rua segue quieta e até o cão parou de latir. Um carro passa e alguém entra no prédio. Ana levanta. Pisando quase de lado, vai, tropicando, fechar as cortinas. Ajeita o pijama, prende o cabelo para trás enquanto diz “boa noite” junto com um longo e rouco bocejo. A vida familiar e doméstica corre sem abalos. O trabalho, ruim de novo. Não adianta estender o horário pela terceira vez na semana. O jeito é fechar tudo e ir para casa. Sexta, dia de pizza, e finalmente poder tomar uma, duas ou três cervejas e dormir um pouco mais tarde, sempre no sofá, vendo algum filme ou esperando começar o programa de reforma de casas ou até ouvir o barulho da troca de porteiros. Antes de desligar o computador, alguém bate à porta. Instintivamente, fecha o notebook, guarda os papéis na gaveta e se levanta, segurando o celular em uma mão e a carteira na outra. O novo assistente, Mario, entra com um sorriso estranho e vulgar, dizendo: “Lipe, quero tirar uma dúvida com você”. Mas, vendo o movimento contrário do colega, desiste. Pela terceira vez na semana, sente uma pontada no estômago. Na testa, duas linhas grossas se aproximam, prontas para sentenciar pela boca o “por favor, chame-me de Sr. Felipe”. Faz com as duas mãos o sinal de quem já encerrou o dia. Mario abre caminho e pede para descerem juntos. Com o terno pendurado no gancho feito pelo dedo, se despede antes de passar na catraca, com um simpático, porém ainda vulgar, “bom final de semana, Lipe”! Parado na porta da estação, mexe nos bolsos. Há tempos não sente vontade de fumar. Sobe as escadas, cutucando a pele do dedo. Rói as unhas. Rói a pele. E as linhas da testa continuam segurando uma certa inquietação ou curiosidade ou, talvez, um desconforto. Chega a casa, dá um beijo na testa de Ana, larga o paletó na cadeira da mesa de jantar, vai para o quarto e volta com a roupa de sexta-feira. As crianças estão na casa da vó. Abre a cerveja e senta no sofá. Com o panfleto da pizzaria na mão, decide por soltar os quarenta da testa. Levanta o pescoço, vira a cabeça, carrega o peito de fôlego e pergunta:- Você acha que eu tenho apelido de criança?

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CONTOS

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Da cozinha, ouve Ana rindo para baixo, abafando e estagnando uma possível gargalhada. Sábado à tarde, houve futebol. Suou debaixo de um sol sem brisa. Voltou para casa seguindo o traço cinza de um toró que se arrumava no céu. Não ia demorar muito, a água ia arriar feio. Um pouco antes de chegar à porta do prédio, Felipe é subitamente puxado. Um encontro casual, “mas que merda!” Baixa a cabeça tentando desguiar a possibilidade de novamente as linhas da testa se unirem num código que ainda não decifrou. Mas não há jeito:- Eita, que coincidência, Lipe! A conversa dura um pouco mais do que gostaria. Desvia de assuntos que possam se estender, temas corporativos e logo se vê salvo por um grosso e pesado pingo desprendido de uma nuvem que só pode considerar ser um gongo. Despede-se apressado com um aperto de mão mole, seguido por um “Até mais, nos vemos segunda”, mas não sem antes receber a tacada final e derradeira:- Bom finde, Lipe!Ao entrar em casa, molhado de suor ou de chuva, ou dos dois, esfuziado de um calor que se espalhava em manchas vermelhas pelo pescoço e no rosto, com os olhos raiados de sangue, tira as chuteiras sem se preocupar com o lugar indevido delas, abre a geladeira e rompe com sua própria testa bradando: - Puta merda! Que puta merda!Passado o toró, o sol volta a bater e rebater num clarão entusiasmado.Felipe e Ana levam as crianças ao shopping para ver um filme. Resolvem esperar na praça de alimentação e aproveitam para comer um lanche. Na mesa ao lado, um casal se entretém com o que parecem ser piadas internas. Ana se distrai com o rapaz que é alto, um pouco forte, um pouco bonito. Olha com o canto dos olhos, dando garfadas demoradas e cheias. Felipe olha para o outro lado e vê um casal comum, como ele costuma classificar os casais que se sentam nas praças de alimentação de shopping para tomar torre de chope enquanto riem despreocupadamente. Desiste da cena e observa a menina no caixa do restaurante por quilo, que vende a torre de chope e porções de frango a passarinho. Talvez solteira, tem jeito de solteira. Não chega a ser bonita, mas também não é feia. Pela cor do batom, é discreta. É simpática com os clientes, mas não em excesso de sorrisos. Tem um ar curioso. Como ele, está atenta ao trânsito das pessoas que se levantam, sentam, passam, olham o cardápio, digitam no celular e desistem de comer. Por um breve momento, encontram-se em um corredor de espaço vazio, mas logo perdem-se pelo muro de gente que passa no mesmo instante em que Felipe iria sorrir um sorriso de canto ou fazer um sinal com a cabeça, tentando concordar qualquer coisa que os deixassem cúmplices da multidão. Baixa a cabeça para dar uma garfada e sente a boca amargar a lembrança do sabor do cigarro.À noite, Ana e Felipe trepam escondidos no silêncio. Ela goza na memória do rapaz da mesa ao lado, e ele mecanicamente. Minado pela insistência de Mario em diminuir seu nome, e pelo que essa revelação se entrelaçou numa espécie de epifania, dessas típicas de se ter sentado de frente para um terapeuta, conseguiu que Mario fosse transferido para outro departamento. No dia em que ele foi se despedir, Felipe fingiu falar ao telefone, mas, sem sucesso, pode ler nos lábios um “a gente se vê, Lipe”! Chega a casa, sexta à noite, cheio de atitude e cheiro de cigarro. Em vez de pizza, resolve só tomar cerveja. Conta da transferência de Mario, mas é recebido por um longo silêncio. Decide, quase heroico, revelar para Ana o verdadeiro motivo da rixa com o assistente. Há

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1Leonardo Richner (São Paulo, 1981). Trabalha com educação corporativa e faz parte do coletivo literário 9s/Fora.

erro nessa atitude desesperada, pois as manchas vermelhas aparecem novamente ou é aquele calor repentino que sobe pelas costas ou uma simples ansiedade pela resposta. E com o pano de prato pendurado no ombro, Ana contrai os lábios e responde enviesada:- Se você quer mesmo saber, você tem sim apelido de criança, Lipe! Felipe empaca na cozinha. A dor no estômago dá lugar à azia. O calor das costas se transforma em memória: lá pelos seus dezoito, quando decidiu virar adulto e a vida pareceu ficar tarde demais para um menino e cedo demais para um adulto. Entre arrepiado e estarrecido, decide furiosamente mudar de nome:Alberto.Carlos.Francisco.Nelson.Nos sábados seguintes, não houve futebol. Comprou um maço de cigarro e fumou sentado na praça perto de casa, aninhado no miserê feio de moleques que andavam de skate e fumavam bek sem preocupação. Arriscaria pedir um trago, mas disfarçar o gosto e o cheiro da nicotina já parecia o bastante para os quarenta e um anos.

***Ana voltou a fazer natação, em finais de semana alternados, para ficar com as crianças. Quando estavam com ele, pediam para ir ao shopping. E, cada vez mais frequente, passou a sentar-se sempre na mesma mesa. Pedia uma torre de chope e uma porção de polenta frita com queijo esparramado por cima, enquanto os meninos demoravam a entrar e sair da sessão. Passou a contar o tempo em que ele ficaria livre do papel de pai pela torre de chope. Três litros equivaliam, mais ou menos, a três horas de folga ou três horas em que ele concatenava e murmurava baixinho ensaios de como pedir o telefone da moça do caixa, depois de descobrir que se chamava Andreia. No mesmo dia em que Ana decidiu que pediria o divórcio, depois de gozar meses e meses pensando no rapaz da mesa ao lado e encontrá-lo na academia do bairro, dando aulas de natação. Pouco tempo depois, os três litros de chope passaram a diminuir mais rápido do que as três horas de folga. Sozinho na mesa da praça de alimentação, observava a moça do caixa através do vidro da torre de chope e ela retribuía o olhar com gestos atrapalhados. E assim, seguiram-se os meses.

***Olham pela janela a faixa longa e grossa de mar aparecendo na paisagem. Andreia se desvencilha do cinto de segurança para dar um beijo no seu rosto e logo após o estalo diz em tom de confissão que “foi uma ótima ideia descer pra praia, Carlos”. Ele sorri despreocupado ou experimenta um contentamento enquanto encara a estrada vazia à frente ou é só um jeito de concordar com Andreia. Hoje, a marca tem a marca dos quarenta e cinco.

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Maysa Louzada

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BALAS, CHICLETES E SALGADINHOSpor Pâmela Côrtes1

“Moça, me dá um salgadinho desses” - passa ele trôpego e maltrapilho, um trapo

humano que ainda vagueia. Embora seu olhar não acompanhe o movimento, ele passa e pede um salgadinho. “Não dou não” - diz ela aflita, com as mãos nervosas e suadas, passando-as pelos salgadinhos do carrinho e protegendo suas moedinhas de todo dia. “Não dou não” - foi o que ela disse com a boca crispada e sem olhar nos olhos dele. Outra consumidora, com salgadinhos nas mãos, oferece-lhe um. Já havia sujado o suficiente os dedos com farelo amarelo e com o excesso de sal dos salgadinhos baratos, que mais pareciam isopor com corante. “Pode ficar com um meu” - disse ela. Ele sai... Pernas bambas sob a força do álcool, sob a força do mundo, das responsabilidades, desabando sob a força da solidão. Ele e o salgadinho vão embora trôpegos. Ele mantendo-se em pé por um equilíbrio quase sobrenatural e o salgadinho ficando pelo caminho a cada bambeada.“Se ele tem dinheiro para cheirar e para beber, ele tem dinheiro para comprar um salgadinho” - diz a senhora sem muita convicção. E olhando ainda do chão para o carrinho de balas, angustiada e pesarosa por não ter podido oferecer o salgadinho, diz, já um pouco mais resoluta, com voz de quem se convence com o argumento: “fica aí gastando o dinheiro com porqueira, pode comprar comida da minha mão”. O ponto de ônibus está cheio, há muita gente, e é preciso vender as balas, chicletes, pirulitos, salgadinhos, biscoitos... Ela não diz, mas pensa, justificando sua recusa. “É preciso ganhar a vida. Olha, minha filha, tenho 63 anos e já vivi muita coisa. Eu mesma empurro meu carrinho, ando quase uma hora com ele para poder vender minhas coisas neste ponto. Se ele quisesse, faria como eu: compraria umas coisas e as venderia e teria dinheiro, né?” - ela conversa com a moça sentada no ponto de ônibus, a do salgadinho, embora no fundo ela tenha começado um diálogo com o passado. “Eu sou da época em que se valorizava o trabalho. Minha mãe e meu pai trabalharam duro. Não era como hoje em dia que esses marginais acham que podem viver assim, não”. A moça que aguardava o ônibus rende o assunto, essas conversas que se tem ao longo da vida, mas que quase nunca se dá importância. Embora muito provavelmente seja importante para uma das partes, decerto não o é para a moça que só aguarda seu ônibus passar, doida para chegar a casa no domingo à tarde, ver a família, talvez ainda dê tempo de assistir um pouco de televisão, mas ela diz: “é, minha mãe fala mesmo que era muito diferente, né?”. “Ô minha filha, eu ainda me lembro de quando eu tinha 15 anos. Era mamãe quem penteava meu cabelo. Tinha muito cuidado a mamãe.” Esse tópico não tem nenhuma re-

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CRÔNICAS

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1Pâmela Côrtes (São Paulo, 1989). Mestranda em Direito e escritora de qualquer coisa nas horas vagas, ou mestranda nas horas vagas e escritora de qualquer coisa em tempo integral.

lação com o salgadinho, mas é preciso compreender que o diálogo é com o passado, e não com o ponto de ônibus. “Na minha época, a gente usava um vestido rodadinho assim” - ela mostra na cintura o pregueado do vestido – “era de uma chita bonita, de flores, não tinha isso de usar calça não, só calça de pijama” - ela diz, e repete o gesto do vestido como se pudesse vesti-los naquele momento, o vestido e o passado. “Mamãe sempre dava um jeito de comprar uns vestidos bonitos, ou então ela mesma os fazia”.O ponto de ônibus é um espaço rotativo. A essa hora, quem acompanha já não é mais a moça do salgadinho, mas a que estava sentada logo ao lado, com a filha de uns 8 anos, também sentada, com os pés balançando sem alcançar o chão, tentando entender o vestido de chita e o mundo do trabalho de antes. “Não havia essas coisas de colocar no cabelo, não, a gente usava laço de fita” - ela tenta explicar para a mocinha como era o outro lado da conversa, o muito tempo atrás que a espreitava ali e agora. “Você acredita, hoje em dia, a minha filha quer sair para uma festinha e quer usar salto alto, veja só, a infância não é mais como antigamente” - faz o seu papel a mãe que aguarda o ônibus. Quem sabe a situação não lhe permita o momento de educação e repreensão da filha... Boas mães não perdem a oportunidade de se fazerem entender. “Ela quer usar salto alto e maquiagem, veja só”.Mas a senhora não quer ver, não quer entender, ela ainda está tentando ajustar o vestido e o laço de fita. Ela ainda quer percorrer todos os quilômetros rodados com aquele carrinho para vender suas balas. Ela quer fazer o trajeto de novo. Desta vez, com os cabelos penteados pela mãe e com um lindo laço de fita que os segura no lugar, já não sei mais se o cabelo e o passado. Nesse momento, a veste é do corpo e da alma, é como se calçasse a dor da solidão com os tamancos baixinhos que ela usava quando criança, e não com salto alto. Ela queria apenas que a mãe voltasse a penteá-la. Quem sabe quisesse afugentar esses perigos da venda a que está submetida, como ter de negar comida a um bêbado ou suportar a rotatividade do ponto de ônibus, onde insiste em se levantar e se ausentar, e se sentar e soltar meia dúzia de palavras sobre o clima e o passado idealizado, antes de se assentar numa poltrona e seguir viagem. Ela queria usar seu vestido de chita que era rodadinho assim, e ficar sentada, com os pés balançando sem alcançar o chão, pedir bala para a mãe e ouvir a mãe negar dinheiro. Ela leva o mundo naquele carrinho, embora só venda as balas, os chicletes, pirulitos e salgadinhos. Ela anda quase uma hora com o mundo inteiro ali, naquela caixa de isopor, que também leva refrigerante e água mineral. Ela recarrega a bateria do mundo todos os dias ao reabastecer com a bala preferida do ponto de ônibus, provavelmente aquela que se paga com o troco da passagem. Ela reabastece o mundo inteiro todos os dias. Ela encara o mundo de frente a cada vez que diz não a um pedinte. Ela carrega 63 anos de história, de solidões, de decepções, de dores na lombar. Mas ela queria mesmo era passear com o vestidinho de chita, com o mundo todo à sua frente. Sem carrinho, sem pedintes, sem ouvintes desatentos. Ela, o passado, o vestido, o tamanco baixinho e o laço, servindo de veste para o ponto de ônibus, deixando um pedacinho de solidão com cada um dos viajantes, muito além das balas, chicletes, pirulitos, salgadinhos. Muito além.

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Maysa Louzada

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VIDAS PERDIDAS EM CHAMASpor Vicente de Melo1

Logo de manhã, o sol escaldante já ardia sobre o pasto, maltratando as últimas mudas de

milho e feijão ressecadas, totalmente sem vidas. A seca impetuosa, avassaladora e vingativa, castigava mais uma vez toda a região dos rincões do nordeste. Isso tudo, mesmo diante dos apelos dos bravos sertanejos, que gastavam seus últimos trocados em velas e suas últimas esperanças em preces e promessas para todos os santos.Meu pai, assim que acordou, me chamou para acompanhá-lo em visita à roça. Enquanto isso, minha mãe tentava tirar um pouco de leite de seu peito para amamentar meu irmão mais novo. Tudo em vão, pois seus seios há muito tempo ficaram secos e flácidos. Minha irmã de 11 anos, ainda dormia, tentando enganar a fome o maior tempo possível.Seguimos, eu, meu pai e o nosso cachorro, Vulcão, debaixo do fogo do sol que queimava nossas cabeças. Coloquei esse nome no cachorro, devido à sua cor meio avermelhada, depois que vi uma foto das lavas de um vulcão em erupção, numa revista da escola em que frequentei somente até a 4ª série primária. Ao apear do jumento, meu pai passou a olhar as plantações totalmente perdidas. O solo seco e rachado, de tão quente, queimava os meus pés descalços, pois eu caminhava atrás, junto com Vulcão, seguindo os passos lentos do jumento. No céu claro e límpido, sem nenhuma nuvem, destacavam-se apenas resquícios de fumaças negras, engendradas pelas queimadas que se espalhavam por todos os cantos, com suas labaredas destruindo tudo, como uma serpente voraz. Meu pai balançou a cabeça negativamente, coçando uma das sobrancelhas. Imediatamente, ao olhar para ele, percebi uma fisionomia de tristeza que se desenhava em seu rosto queimado e sulcado pelas rugas. Então adivinhei que as coisas não estavam nada boas. Tudo estava de mal a pior, numa situação desesperadora. Vulcão roçava nos pés de meu pai, sentindo também o seu desânimo, enquanto gania baixinho. No meio do caminho, deparávamos com urubus e carcarás que faziam festa nas carcaças dos animais mortos.Uma semana antes, a tristeza já rondava nossa casa, pois minha avó, mãe de meu pai, morrera. Não tivemos nem tempo para chamar o médico. Aliás, acredito que nunca houve médico por esses cantos, pois eu jamais vi ou conheci algum. O máximo que se vê são alguns curandeiros e suas ervas milagrosas. Pelo pouco que eu entendo, acho que a minha querida avó, que gostava muito de mim, morreu de desnutrição ou fome, apesar de todos os dias ela ser atacada por uma tosse crônica, que muitas vezes acabava em cusparadas de sangue. Ao retornar dos pastos e das plantações, passamos pelo curral para olhar os últimos animais que ainda nos restavam. A tristeza tornou-se maior, pois as duas vacas e um bezerro morreram de fome e de sede, um ao lado do outro. Aliás, uma das vacas foi um presente para Maria, a minha irmã mais nova, no dia de seu nascimento, oferecida pelo seu

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CONTOS

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padrinho, que tinha algumas terras na vizinhança. Esse padrinho, que agora mora na capital, nunca mais voltou lá em casa, pois meu pai o tocara depois de o haver pegado com minhas duas irmãs mais velhas sentadas em seu colo, uma em cada perna. Enquanto beijava o pescoço delas, ele lhes mostrava algumas moedas. Meu pai só não matou o homem, seu compadre, porque minha avó, que agora está morta, não deixara. Ele perdoou as filhas, achando que elas estavam só brincando, na flor de suas inocências.No entanto, tempos depois, estando uma com quinze e outra com dezesseis anos, minhas irmãs passaram a fugir de casa à noite, e voltar com o dia clareando, ou, às vezes, passar dois ou três dias fora. Meu pai explicava para mim e para Maria que elas faziam isso porque estavam trabalhando. Eu não compreendia direito a conversa, mas, no âmago, sentia que algo estava errado.Na cidade, minhas irmãs começaram a andar com os homens e mulheres da pior espécie. Depois de aguentar por muito tempo as andanças delas, ouvindo chacotas por todos os lugares em que passava, meu pai, numa raiva súbita, expulsou-as de casa. Elas fizeram muita falta, pois, de qualquer maneira, sempre traziam algum dinheiro ou alguma comida para nós. Agora tudo se acabou. Elas foram para a capital, onde viraram putas num bordel da periferia. Enquanto fazíamos um buraco para enterrar pelo menos o bezerro, os urubus já voavam em círculos, de olho nas carniças. Ao chegar a casa, meu pai se entristeceu ainda mais. Maria, que gostava muito da vaca e a batizara de Margarida, chegou correndo para o seu lado, perguntando por ela. Ao saber de sua morte, agarrou-se à boneca sem cabeça com que estava brincando, passando a falar com ela com os olhos cheios de lágrimas, encostada no canto da parede de adobe.Meu pai saiu de perto de sua filha. O seu maior medo era de que Maria acabasse como minhas outras irmãs, também virasse puta. Volta e meia eu ouvia meu pai conversando com minha mãe sobre as filhas rebeldes. Minha mãe sempre repetia que só podia ter sido castigo de Deus por ter parido duas filhas assim, já que na nossa família as pessoas sempre foram corretas, honestas e trabalhadoras, apesar da pobreza. Ao mesmo tempo, minha mãe comentava que não conseguia entender e nem enxergar nenhum mal que fizera a alguém para receber um castigo desse tamanho. Sempre depois das conversas, já com meu pai bem longe do quarto, minha mãe começava a chorar baixinho, com o coração dilacerado, pedindo a Deus para abençoar as minhas duas irmãs putas. Ali eu começava a entender que todas as mães têm o coração bom.Enquanto Maria ainda chorava no canto, abraçada à sua boneca decepada, notei o quanto ela crescera rápido. Mulher tem dessas coisas, elas crescem e se desenvolvem primeiro que os homens, tornando-se mais adultas, mais responsáveis. Enquanto seu coração palpitava, nos movimentos que ela fazia durante o choro, observei seus pequenos seios brotando debaixo do vestido gasto, de tecido barato, como dois limões verdes.Meu irmão mais novo, também morrera de desnutrição, sendo enterrado no próprio quintal de casa, sem ao menos ter sido batizado, já que o padre nunca aparecia por esses rincões, até porque ninguém tinha condições de oferecer a ele algum óbolo. Morrera enquanto tentava, em vão, sugar algum resto de leite dos peitos secos de minha mãe. Triste, numa letargia inexplicável, minha mãe só percebera a morte dele pouco mais de meia hora depois. Sua boca ficara presa no bico de seu seio esquerdo, com ela achando que ele dormia. Certo dia, com a seca castigando cada vez mais o sertão da caatinga, queimando e ceifando vidas, como se tudo estivesse em chamas, meu pai chegou para minha mãe

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1Vicente de Melo (Minas Gerais, 1960). Romancista e Contista, foi vencedor do “Prêmio SESC de Contos Machados de Assis”, do SESC-DF, edição 2005. Publicou o romance “A saga de um Candango”, em 2013 e as coletâneas “Contos Federais”, em 2007 e Vidas Vazias em 2014.

anunciando que iria para Brasília em busca de um emprego melhor. Depois, ele voltaria para buscar minha mãe, eu e Maria. No dia da partida, minha mãe olhou triste, porém sem nenhuma lágrima nos olhos, para a figura esquálida de meu pai montado no jumento. Somente com a roupa do corpo, sua silhueta desaparecera no horizonte, entre as nuvens de poeira deixadas para trás. Maria chorou novamente com a partida do meu pai. Eu me escondi no curral vazio para não me despedir dele. Sentindo raiva por ele nos abandonar, chorei baixinho sentado no capim seco. O Vulcão seguiu meu pai, mesmo correndo o perigo de virar alimento de algum faminto pelo meio do caminho.Meu pai jamais voltou e nem ao menos deu notícias. Depois da morte de meu irmão mais novo e da partida de meu pai, minha mãe nunca mais rezou. Estava sempre com um olhar triste e vazio, à procura de algo que nem ela mesma sabia. Passados mais de seis meses, sem dizer uma palavra, ela morreu de tristeza, deitada no catre duro. Sua morte acelerou-se a partir do dia em que ela vira minha irmã Maria, a mais nova, com o corpo já formado, as pernas torneadas e os seios intumescidos, entrar num caminhão de saltimbancos que passava pela estrada, depois de um espetáculo na cidade próxima. Ela fugia, literalmente, da tristeza e da miséria, mesmo sem saber para onde. Eu não pude fazer nada, pois fora assim a sua vontade. O líder do grupo, um homem de quase cinquenta anos, havia prometido à minha mãe que cuidaria bem de minha irmã mais nova. Porém, o medo de minha mãe era de que Maria também virasse puta.Fiquei sozinho em casa. Peguei meu velho facão, saindo sem rumo pelo mundo afora. Eu me envolvi com bandos de arruaceiros, que saqueavam retirantes pelas estradas e assaltavam fazendas pelo interior, escondendo-se na caatinga inóspita. Fui preso algumas vezes nas cidades em que passava, devido às noites de bebedeiras, brigas e quebradeiras em bares e bordeis. Depois de várias prisões, cansado de tudo, resolvi viajar para a capital em busca de uma vida melhor.Já no cais, observando algumas mulheres que esperavam avidamente por algumas horas de amor com marinheiros e estivadores, lembrei-me de minhas irmãs. O navio, ancorado no porto, balançava suavemente. As nuvens estavam carregadas, prometendo uma forte tempestade. As gaivotas, num barulho ensurdecedor, grasnavam em busca de restos de vísceras de peixes, jogadas pelos pescadores. Ao ver a figura imponente de Jesus Cristo com os braços abertos para a cidade, algumas lágrimas de emoção banharam meu rosto queimado pelo sol.

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A POESIA DAS ROUPAS por Luisa Benevides1

Há um tempo, fui à Chapada Diamantina descalçar os pés. Voltei com a câmera

abarrotada de fotos e a mala encrostada de lama. Lavei blusas, shorts e cangas. Deixei roupa de molho e descobri o poder do Vanish.Um short, porém, teimava em sua cor de trilha. Lavei-o uma, duas, três vezes, mas o danado era tinhoso: “Por que ser branco se posso ser da cor da Bahia?”. Enfim, dei-me por vencida e o deixei num canto do armário… “Depois-vejo-o-que-faço-com-você”.Meses depois, numa limpa de roupas, deparei-me com ele: “Ainda com esperança de me ver com cara de loja?”, desafiou-me com um risinho de vencedor. Num derradeiro cala boca para seu nariz em pé, coloquei-o no Vanish. Esfrega daqui, esfrega dali – o short chorava lágrimas de lama. No campo de batalha, o barro pingava e escorria pelos braços. Até que… Tcharam! Ei-lo branco outra vez!Eu devia ficar feliz com a vitória. Mas, olhei “praquela” água cor-de-burro-quando-foge e ah! Veio-me um sentimento de “balão estourado, de filme que acaba, uma tristeza de gol contra”… As palavras de Vargas Llosa, que me acompanharam na viagem, vestiram certinho minha nostalgia da Bahia.Aquela lama era meio mágica: escavada por escravos à procura de diamantes, esfregada no rosto em banhos medicinais, fotografada por turistas e pisoteada por guias em seu ganha-pão. Eu possuía um tiquinho dela, e agora um pedaço de Bahia escorria pelo ralo.Aprendemos desde cedo que roupa não é importante – importa o que vestimos por dentro. Enjoou? Doe. Encardiu? Jogue fora. Perdeu? Compre outra – e outra. Filosofia hippie na embalagem – por dentro, consumista até dizer chega.“O que fizemos com as coisas para devotar-lhes tal desprezo?”, Peter Stallybrass se pergunta, em seu ensaio O casaco de Marx, roupas, memória, dor. De onde tiramos a noção de que somos formados pela pureza das ideias, e não pelo despudor das coisas?Antigamente, chamavam o puído das roupas de “memória”. Bonito, não? É como dizer que roupa tem poesia – e não tem? Panos se casam no corpo: a calça pega o formato do quadril, a saia gasta ao se esfregar na bolsa, a blusa amarela debaixo do braço. Em silêncio, o armário conta pedaços de uma vida. Quem mais, afinal, tem as mesmas roupas que você?O pensamento ia longe enquanto pendurava o short no varal. Coloquei-o sobre a face – cheirava à loja e a sabão. Cheio de malícia, porém, sussurrou: “me vira do avesso”. Devagar, obedeci. Junto à etiqueta cortada, o short exibia um restinho de triunfo: encardida, a borda de dentro sorriu para mim.

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1Luisa Benevides (Rio de Janeiro, 1986). Escritora e psicóloga. Está entre os autores da antologia Mapas literários: o Rio em histórias, da editora Ninfa Parreiras.

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MINHA MÃE MODISTApor Ana Welter1

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1Ana Welter (Paraná, 1960). Integrante do Clube da Poesia e fundadora da cadeira número 13 da Academia de Letras de Toledo (PR).

Era nos finais de tarde que minha mãe se sentava para costurar. Lá de fora, enquanto eu

brincava faceira, ouvia o barulho da máquina “Leonam” que hoje descansa sobre o gabinete de madeira marfim. Atraída pelo som, logo me despertava a curiosidade de querer saber se ganharia um vestido novo.Deparava-me com minha mãe costurando no quarto da bagunça, onde guardávamos os brinquedos e passávamos o maior tempo curtindo nossa memorável infância. Lá estava ela, cortando e costurando barras de lençóis, toalhas, roupas do dia a dia; fazendo remendos, bainhas, trocas de elásticos. Porém, as roupas de festa eram modeladas por uma profissional contratada de papai que passava vários dias entre nós, anotando as medidas, provando os modelos que saíam da mesma peça de tecido, que chamávamos de fazenda, com pequenos detalhes que diferenciavam um traje do outro: golinha redonda, grega na barra da saia, mangas princesa, lapelas com botões.Perguntei à minha mãe, quem a havia ensinado a costurar. Disse-me ela que fora a nona. E que se sentira insegura ao lidar com a primeira camisa e o primeiro bolso. Sabiamente a nona a confortava, dizendo que não se importasse com as falhas, pois na próxima tentativa faria melhor.As mesmas mãos que alinhavavam ajudaram-nos a ajustar nosso caráter e nossos ideais. No traço dos moldes, ela delineava o composto da família, sua união, encontros e desencontros e a visão de um futuro atraente. Nos remendos, os laços afetivos eram fortalecidos e as mágoas compensadas. Nas casinhas de botões, a medida exata das correções aplicadas às nossas travessuras e o limite a nós impostos. Na reposição dos elásticos, a lição de flexibilidade diante dos contratempos era visível. Soube nos mostrar que o alinhavo da fé, da sabedoria, do discernimento são pontos e pespontos perfeitos para nos adaptarmos às circunstâncias. Nos bordados, as cores expressavam a alegria da alma, as qualidades e as atitudes benfazejas que teciam o belo da peça terminada.Assim, pela composição da costura, sigo sabendo que seus ensinamentos estão estampados nos mais belos retalhos, perfeitamente alinhavados no tecido que me veste a índole. Sei que a honestidade, a justiça, o respeito, são bainhas fundamentais para qualquer ser humano. E essa costura trago perfeita em meu coração.Na vitrine das minhas lembranças, ainda desfila a fineza da educação que nasceu da modista que me vestiu com o bom gosto da polidez. E as marcas de suas faces e mãos não poupadas pelo sofrimento me cobram gratidão pelo que sou.Quando a tampa da máquina se fechava e o som da costura não mais se ouvia, as mãos postas de minha mãe rogavam bênçãos para os filhos e esposo que, com ela, se uniam em oração. E adormecíamos em paz.

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O CAOSpor Rafael Vianna1

O caos habitava a cidade, com crimes indecifráveis, violações, mortes, violências banais

e impunidade. A poeira se espalhava por tudo, o cheiro de carniça e podridão dominava o ambiente. As moças não mais podiam sair às ruas. O lixo se acumulava. Poucos arriscavam andar pelas ruas. Nem mesmo policiais transitavam sozinhos pela cidade. Saíam sempre em grupo, fortemente armados, muito atentos, não permitindo que ninguém se aproximasse das viaturas.Toda profissão era perigosa. Faltavam alimentos nos poucos mercados que se mantinham abertos. As ruas lembravam as de uma cidade fantasma, abandonada por seus moradores. Sabia-se que não era. Um novo corpo logo surgia jogado em algum canto, um novo veículo queimado, uma nova lixeira que transbordava lixo fétido.E naquela sala subterrânea, um “bunker” escondido que só se chegava após cinco mudanças sucessivas de escolta e múltiplos trajetos – o protocolo mandava que a saída ocorresse do palácio do governo. Da primeira parte do itinerário, apenas o Inspetor Chefe da Polícia local tinha conhecimento. Era ele o responsável por designar os vinte e cinco policiais envolvidos na operação de escolta e segurança. A segunda parte do trajeto ficava a cargo do Serviço Secreto do Gabinete de Proteção a Chefes de Poder, órgão classificado como ultrassecreto e criado para proteger os dignitários sobreviventes. O procedimento operacional padrão adotado naquela situação era rígido. E todos os cuidados foram tomados para que nenhuma falha prejudicasse a segurança dos envolvidos ou a tranquilidade do local onde a reunião ocorria – os três discutiam e refletiam sobre o que fazer.Há dias, eles estavam ali, isolados do mundo, tentando pensar ou achar o que fosse uma saída para a situação em que a sociedade se encontrava. O bunker tinha estoque de alimento e água para até 10 pessoas, por aproximadamente 300 dias. Mas os três sabiam da urgência da decisão. Tinham que fazer! E não lhes fora permitido levar seus familiares, os quais continuavam desprotegidos e em perigo lá fora.O mais novo era o mais resistente à proposta, mas nada melhor lhe vinha à mente. Temia por seus filhos, que sequer existiam no mundo ainda. À época, os filhos já eram poucos na humanidade, mas foram décadas de reprodução descontrolada que deixaram a cidade daquele jeito. Contudo, ele sonhava com um mundo melhor, com algo possível, com uma retomada da bondade. Princípios cristãos ainda lhe comoviam, mas passavam a ser vistos apenas em aulas de história, via ensino a distância. Poucos colégios resistiram aos ataques dos grupos de arruaceiros que depredavam e incendiavam tudo. Sua alma era boa por natureza, tinha aversão ao mal e o mundo como se encontrava lhe provoca enjoo. Mas ele não conseguia encontrar qualquer novo caminho para a cidade.O mais velho dos três também guardava muitas dúvidas em seu espírito, mas, sob uma

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perspectiva pragmática, defendia firmemente a necessidade de a medida ser implementada. Não era o caminho que desejava, não era o que tinha sonhado para sua vida, não gostaria de tomar aquela decisão como governante. No entanto, outro caminho não lhe restava. A sociedade daquele lugar chegou à borda do precipício. Sua experiência lhe ensinou que, nesses momentos, apenas medidas enérgicas e contundentes podem mudar o rumo das coisas e impedir a queda. Não restavam alternativas. Precisavam decidir. Muitos dias já tinham se passado.As conversas duravam horas, entravam noite adentro. As discussões já se arrastavam demasiadamente. Toda população esperava a decisão daqueles três homens. Protestos de grupos organizados e de pessoas solitárias dominavam as redes sociais. Todos acompanhavam o desenrolar dos trágicos acontecimentos.O terceiro dos homens era o mais sóbrio dos três. Para ele, o que precisava ser feito deveria ser feito. Não existia qualquer sentimentalismo possível naquela situação. Situações extremas exigem medidas extremas. Era só.“A sombra do vale da morte já nos cobriu. Já não enxergamos por um instante sequer a luz do sol. A bondade já não existe neste mundo. Resta-nos apenas um mal menor para nos salvar do mal completo, profundo e irrestrito” – costumava dizer o terceiro dos governantes.Então decidiram. O Código Penal continuaria o mesmo em todos os lugares, mas seriam incluídos dois novos artigos em seu início:Artigo Supremo – Todo cidadão de bem deverá portar uma arma de fogo fornecida pelo Estado, 24 horas por dia, 07 dias por semana.Artigo Supremo Corolário- O cidadão de bem que presenciar um crime e não justiçar o delinquente imediatamente será ele punido com a pena de morte sumária, decretada pelo oficial da força de segurança mais próxima.Estava feito. A decisão possível foi tomada. Eles seriam reeleitos pelos ricos que conseguiam ir votar. Os desejos foram todos atendidos. A população encontraria paz. Almas foram retomadas e conquistadas.

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1Rafael F. Vianna (Curitiba, 1990). É Delegado de Polícia, formado em Direito pela Universidade Federal do Paraná, mestre e doutorando em Ciências Jurídico Criminais pela Universidade de Lisboa. Possui quatro livros publicados.

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DASDORESpor Francisco Carvalho1

Era um dos dias mais importantes na história da pequena cidade de Ponteiras,

Pernambuco. Finalmente chegara o dia do casamento da filha do prefeito com o filho do delegado. Para uma cidade pobre, onde casais só juntavam os trapos, um casamento era um espetáculo e tanto. As moças da cidade se arrumavam no único salão de beleza da região. Os homens bebiam nas calçadas dos bares enquanto esperavam a tão comentada festa começar. A noiva fazia os últimos ajustes no vestido. O noivo, no outro canto da cidade para não ver a noiva e evitar o azar, parecia desconfortável no terno que seu pai lhe emprestara. A filha do prefeito e o filho do delegado finalmente se uniriam em sagrada celebração perante Deus e os homens.Quando o relógio marcou dezessete horas, a igreja – que cheirava a rosas – estava lotada. Homens, mulheres e meninos se amontoavam entre as quatro paredes daquela igreja que, como tudo na cidade, era a única. O padre, de batina branca e azul, no púlpito, folheava a Bíblia, tentando não fazer feio diante de tal evento. Talvez isso o ajudasse a construir a casa paroquial que tanto queria. Os pais dos noivos conversavam entre si e recebiam os convidados que não paravam de chegar. Quem parecia não ter pressa era a noiva que, como dizem em Ponteiras, “embrulhava-se toda para ser desembrulhada na noite de núpcias.” O noivo não parecia o mais calmo dos sujeitos. Caminhava de um lado a outro, seguindo sobre uma linha imaginária que não levava a lugar algum. Quando todos já se interrogavam se a noiva teria desistido do casório, eis que um moleque, desses que só querem saber do bolo e salgadinhos, gritou na porta da igreja: “A noiva chegou”!Do altar, onde o noivo caminhava inquieto, era possível ver o Opala vermelho do prefeito. Aquele era o carro mais bonito da região. Conclusão que não era difícil tirar, considerando o fato de haver apenas três carros na região. E aquele era o mais bonito entre os três. A noiva desceu elegantemente do carro, com seu vestido branco, buquê de rosas vermelhas e colar de pérolas que ganhara da sua avó para a data especial. Enquanto entrava na igreja lentamente, se exibindo para as outras moças, o noivo continuava sua agoniante peregrinação de uma ponta a outra do altar, em linha reta.Quando finalmente ela se pôs à frente dele, estendendo-lhe a mão para se posicionarem diante do padre, e serem apresentados a Deus e ao povo em união sagrada, o noivo recuou um passo. “Não posso.” – Falou em voz baixa. O padre, temendo ter ouvido o que achava ter ouvido, retrucou: “O que disse?”. “Disse que não posso.” – respondeu o noivo em alta voz e continuou: “Eu não a amo, Padre”! O padre, olhando a igreja incrédula com o que acontecia, tentou chamar o rapaz pela razão: “O amor é superestimado meu jovem.” O jovem explicou: “Não posso, seu Padre. Eu amo a Dasdores”. “A puta?” – perguntou a noiva quase chorando. “Sim, ela mesma. Ela é a minha puta, isso é mais do que posso falar de você que nunca foi minha. Você é só um capricho do meu pai”. O pai do noivo, agoni-

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ado, sacou de sua pistola e foi logo dizendo: “Pois bem, agora você vai ter que seguir esse capricho. Ou casa com a filha do prefeito ou esqueço que é meu filho e lhe mando ver Deus mais cedo”. O noivo não recuou de sua decisão: “Não posso, meu pai. Prefiro morrer antes do tempo que ficar sem Dasdores. Viver sem ela é morrer em vida”.Dasdores que até então ninguém tinha visto, saiu docemente dos últimos lugares da igreja, onde se escondia atrás das “pessoas de bem”, e se dirigiu apressadamente até o altar. “Tu quer mesmo ficar comigo?” – perguntou. “Quero sim. Tu aceita ser minha?” – perguntou o filho do delegado. “Desde que te conheci eu sou tua. Se teu pai te matar, eu morro junto. No além, ele não pode separar a gente”- respondeu Dasdores enxugando a lágrima que lhe escorria pelo rosto.Os dois se aproximaram em pequenas passadas e se abraçaram forte, como se o mundo fosse acabar num abraço só. O delegado, vendo que perdera, apontou a pistola em direção ao casal e sentenciou: “Ou desabraça a puta ou mando os dois para o céu abraçado do jeito que estão”. O abraço não afrouxou um centímetro sequer. O pai da noiva, aproximando-se do delegado, lhe falou baixo ao pé do ouvido: “Abaixa essa arma, porra! Casamento é fácil arrumar, reeleição é só uma vez na vida.” Sob tal ordem, o delegado baixou a pistola e saiu contrariado da igreja. A noiva, chorando e esbravejando com Deus e com o mundo, saiu apoiada pelo pai. O padre, fechando a Bíblia, saiu expulsando as carolas que reclamavam do “sacrilégio”. As moças queriam ter a coragem de Dasdores. Os homens queriam ter a coragem do filho do delegado.A igreja agora se fazia vazia. O casal de amantes, levantando a cabeça, buscou alguma viva alma que o julgasse, mas ninguém sobrara nos bancos de madeira. Os dois então se beijaram entre risos e soluços de felicidade. Benzeram-se diante da imagem de Cristo crucificado e saíram porta afora, rua afora, mundo afora. Cristo crucificado era agora a única testemunha do amor entre a puta e o filho do delegado.

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1Francisco Carvalho (Maceió, 1988). Poeta e contista, é também professor de história, graduando-se pela Universidade Federal de Alagoas.

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BENEDITOpor Flávio Vinicius Moreira Costa1

Benedito sentia vergonha das mãos, retornadas à maciez da primeira infância porque

estava aposentado. Esfregava as palmas contra o ralador da cozinha e, sob qualquer pretexto, feria o quintal com uma enxada velha. Os olhos pretos e pequeninos visualizavam uma rua de canos de esgoto à mostra; não, não essa em que vivia triste desde a volta. Naquela outra rua tão feia e tão mais suja, vivia feliz e tinha bem menos do que tem. Suspirava por toda uma cidade cada vez mais distante, onde aprendera aquele jogo esquisito e sua força era requisitada. Os calos encaixavam nos bastões lisos e ele rebatia mais forte do que qualquer um. Aqui ninguém entendia como é que se jogava, aqui ninguém entendia a necessidade e o prazer do combate, aqui as missões acabaram, pensava Benedito. – Não faça nada. Já volto. Não mexa em nada. Não saia do lugar.A mulher saiu para comprar os ingredientes do cozido. Benedito gostava de mastigar um pedaço de carne de sertão, lambuzado no caldinho, ao mesmo tempo em que a língua dissolvia uma batata macia. Salivava. Mal as pernas tatuadas pelas varizes saíram de seu campo de visão, Benedito levantou-se, deu dois petelecos na gaiola do bem-te-vi derrotado pela canícula; o silêncio do pássaro o irritava. Saiu da varanda em direção ao quintal, nos fundos da casa. Pegou um porrete repleto de calombos ao pé de carambola. Era o cabo sem a lâmina da enxada. Deslizou-o por entre as mãos. A ausência dos calos o impedia de segurá-lo com firmeza. A puída bermuda de algodão ameaçava escorregar pelas pernas finas. Puxou-a até a ponta da barriga oval e endurecida. Quando finalmente ajeitou-a, fez aquele movimento pendular. O porrete criou uma fenda no ar e ele recordou que o céu de Havana, em julho, era tão límpido como o de Salvador, em janeiro.As mãos estavam menores, disso ele tinha certeza. O rim direito acusou uma pontada; olhou com desgosto para o caramboleiro. Nem tudo que se tem veio de coisa errada e nada pode ser dado. Ele aprendeu quando voltou. É preciso ensinar essas coisas. Decidiu se esconder atrás do tanquinho, no fim do quintal. Poucos minutos depois, Cotinho surgiu trotando sem camisa. Usava um short preto curto e manchado de lama. O peito afundado estava coalhado pelo pano branco. Ligeiro posicionou o corpo em perfil, o cotovelo direito servia como mira, e a brita zuniu feito bala até alvejar uma carambola. A munição estava aos pés descalços. Cotinho agachou-se rapidamente, pegou outra brita, cuspiu nela, estancou de perfil, mirou e… acertou outra carambola. A mão esquerda catou as duas carambolas. Cravou os dentes amarelados nas amarelas hélices agridoces. O sumo banhava o peito do menino. Só era gostoso comer muito rápido. Só era seguro comer muito rápido.– Pivete! As carambolas são minhas!Benedito surgiu por detrás do tanquinho com o porrete em riste. – Só comi duas.– É tudo meu, filho da desgraça!

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– O senhor nem come. Nem gosta… O senhor é gente ruim!As mãos de dedos longamente tortos deslizaram pelo porrete. Em Havana, dizia-se que ele era capaz de rebater uma bola até bem depois do Malecón tão distante. Benedito ajeitou os braços como um pêndulo. Abriu a boca de gengivas enegrecidas sugando o ar. Cotinho agachou; uma brita na única mão. Uma hora depois, a mulher encontrou Benedito esparramado de costas, sob o resguardo da sombra do caramboleiro.

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1Flávio VM Costa (Salvador, 1983). Poeta e escritor.

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O ANO NOVO DE ADÉLIA por Munique Duarte1

Há quem frite pedaços de fígado. Há quem frite coraçõezinhos. Há quem frite a pele.

Adélia frita um ovo na tarde de verão. Meio-dia já se foi no relógio e muita coisa ficará em sua memória nos próximos dias. Neste fim de ano, ela torce para que o próximo ano seja melhor. É o que afirma todo mês de dezembro desde que entrara na fase adulta. Tem sensações de estar fazendo as coisas de forma errada o tempo todo. O telefone nunca toca com notícias de fogos de artifício. Seus dias andam com sabor de soro fisiológico de geladeira. Não admite que seu sabor seja o mesmo das lágrimas. Mas também não lembra o mar. Os oceanos foram feitos de lágrimas de Deus.Em janeiro, usará as mesmas roupas e comerá mamão de fim de feira toda vez que der as três da tarde. Isso se ficar em casa e não arrumar um emprego. Para o próximo ano, ela promete aceitar oportunidades que antes não imaginara, por respeito aos diplomas conquistados até então. Bobagem. A grana é necessária e necessidades são sempre urgentes. Adélia parou de se olhar no espelho para buscar o reflexo de fracassada. Fracasso é quando não se sabe lavar bem um copo de vidro até o fundo. Sabe lavar louças muito bem desde o fim da infância. Isso não se consta em diplomas. E é um grande mérito. O queijo derretido das lasanhas sempre gruda na borda do prato. É preciso passar a unha do polegar para ajeitar o serviço. Todos já fizeram isso um dia. Talvez no próximo ano lave pratos no restaurante chinês da esquina. Adélia quer novos ares.Desistiu de estudar no próximo ano. Todo curso é caro, mesmo aquele que ensina a decorar bolos ou fazer arranjos de flores artificiais. Certificados ou diplomas não valem nada no fim das contas. Pendurar em paredes é ultrapassado e guardar em gavetas ocupa espaços. Adélia tem poucos móveis, portanto, poucas gavetas em casa. Pensa em continuar assim no próximo ano. Menos coisa para limpar. Não gosta de vassoura, nem de pano de chão. Nem de formigas ou bolo de laranja, porque o último bolo de laranja que comprou se encheu de formigas com suas patas sujas de fezes e corpos de baratas.Adélia termina de comer a gema mole do ovo com os grãos de arroz que restam no prato. A poucos dias do fim do ano, pensa nas mesmas promessas que faz todos os anos, como se a mudança da folha do calendário trouxesse automaticamente algum brilho novo à carcaça dos dias vindouros. Há quem frite batatas. Adélia frita miolos. Diariamente, Constantemente. Incessantemente. Até não ter mais jornais para forrar ao redor do fogão. É preciso se precaver. A gordura pode fazer qualquer um escorregar e fraturar o fêmur bem antes de ter as artérias entupidas, anunciando cirurgias terríveis. Largou o cigarro não como promessa de fim de ano. Nem pelos pigarros intermináveis que descolavam quando dava suas poucas risadas. Foi pelo preço do maço. A padaria da esquina, que fica do lado do restaurante chinês, suspendeu a venda do cigarro a varejo. Um impropério. Adélia ca-

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lou o vício. Por grana. Por falta dela. De repente, pensou: e se eu voltar a fumar quando tiver emprego no ano que vem? Mas no restaurante chinês não se vendem cigarros. Mas na padaria sim. Um maço inteirinho com aquele papel azul que brilha ao sol. Com aquelas fotos de gente podre do lado de trás do maço. Com aquele cheiro doce que sai de dentro quando se rasga a abertura do pacote. Delícia que é fumar um deles depois de um café bem quente. Os cafés de Adélia andam fracos. Economia no pó. Meio quilo de café está pela hora da morte. Pensou nos mortos que já não tomam mais café. Esqueceu-se dos cigarros. A tarde era livre. E não precisaria passar a unha na borda do prato para tirar o queijo das lasanhas que gruda. Usava detergente de quinta com cheiro de maçã.A tarde é livre. A tarde é livre. A vida de Adélia não. Precisa arrumar um emprego no próximo ano. Talvez lavando louças no restaurante chinês e levando à noite para casa alguns potes de comidas que sobraram. Brotos sem gosto e frangos com mel. Sopinhas aguadas com legumes boiando. Era bom demais não ter que mexer no fogão à noite. Não ter que lutar com o resto de gás do isqueiro até acender a porcaria da chama. O pano de prato sempre se encharcava antes de terminar a janta. Comida sempre curta e uma cozinha inteira para limpar.É sábado e Adélia não sairá à noite. Não tem grana para uma cerveja que seja, nem mesmo daquelas aguadas. Seus poucos amigos já não sabem quase nada dela. Não imaginam que lavará pratos no ano que vem e que desistiu de estudar porque diplomas ou certificados não compram um maço de cigarro com papel azul brilhante. Não é má vontade de Adélia. É a vida mesmo. À noite ela sonhará com dragões e ano novo que acontece depois do nosso. Será o ano do cavalo. Ano de galopar forte. De deixar de ser mula. De lavar pratos e ganhar no fim do mês uma grana decente que pague as contas. Talvez consiga arrumar outro emprego paralelamente ao de limpar os pratos com mel grudado nas bordas. Mas não será queijo de lasanha. Talvez se case com um chinês e vá morar em Pequim. Ah, os planos de Adélia...Que seu ano novo seja azul brilhante, como o dos maços de cigarros.

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1Munique Duarte (Santos Dumont, Minas Gerais, 1979). Jornalista e escritora, autora dos livros “O salto do guepardo” e “Espelho oxidado”.

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Maysa Louzada

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O LOUVA-DEUS E A BORBOLETA por Ivanilson Santana1

Todos que passavam pelo jardim da casa de número 112 da tranquila Alameda São Rafael

se encantavam com a beleza do lugar. O baixo muro de pedra mostrava uma vista com odor sonoro e colorido, que preenchia de paz a mais singela alma humana.Havia, no lugar, duas grandes craibeiras povoadas por pardais, rouxinóis e bem-te-vis; além de rosas, margaridas, girassóis, e tantas outras flores entapetadas no chão, que nos deixavam embriagados em meio à música e ao colorido daquela natureza. Que natureza! As cores, o cheiro, o som e a brisa do lugar geravam uma verdadeira fusão de sentidos e sentimentos, que nos faziam viajar para um recanto de sonhos, do mais puro equilíbrio e perfeição do universo, um lugar onde o que imperava era a vontade de sentir-se vivo, de aprisionar-se ali, tornando-se parte de um mundo maravilhoso.Em meio a esse cenário paradisíaco, moroso e calmo como a brisa que o cercava, um louva-deus, com seu belo verde, lentamente saciava sua fome com um pedaço de grama verdinha e brilhante, uma constante naquele lugar. Seus gestos desengonçados, sua cor e suas longas patas não se deixavam perceber em meio a tanta beleza do espaço que ocupava.Ao passo que se alimentava, ele devaneava sobre a vida solitária que levava; os pouquíssimos amigos que tinha, quase nenhum, e que aos poucos eram devorados por seus predadores (é a ordem natural da vida!); o tempo em que voava aos bandos ceifando lavouras e se divertindo eram momentos que as lembranças não consentiam autorização ao esquecimento.Repentinamente, ouviu um pequeno barulho e olhou para o lado; viu uma ala enfileirada de formigas desfilando com pequenos pedaços de sementes e folhas, entrando direto no minúsculo orifício, chamado formigueiro, e daí pensou consigo: – Tanto trabalho e ordem, e, no fim, a vida se vai num flash sem o prazer de ser vivida!Sua jornada no jardim se esvaía a passos de minhoca – se é que minhoca dá passos. Quando percebeu um click… outro click… e mais outro click. Era o romper de um pequeno casulo, pendurado como trapezista no tronco de uma bela margarida. Aos poucos, o casulo ia se rompendo, e ele, estático e curioso por descobrir o que estava por vir, parava de se alimentar. Seus olhos, congelados, eram presenteados com o surgimento de uma bela borboleta.As cores de suas asas o deixavam imóvel, hipnotizado com as formas, círculos e curvas que preenchiam o pequeno manto negro usado para que a mesma alçasse voo. Suas longas asas e antenas tentavam, aos poucos, coordenar seus primeiros movimentos. Ora pendia para a direita, ora pendia para a esquerda, e aquele vai e vem aprisionava toda atenção do nosso louva-deus.Após relutar por alguns minutos consigo mesma em meio à falta de equilíbrio, ela finalmente consegue dominar seu voo, fazendo círculos em torno de si mesma e das colo-

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ridas flores do jardim. Tanto a beleza de sua forma como a de seus movimentos não a faziam cultivar a vaidade – sentimento que envenena a mais nobre alma presente entre os habitantes do nosso belo planeta azul.Ela velejava ao vento, sorrindo para todos os bichinhos que ali estavam, menos para o louva-deus, que se camuflava em meio à grama. Sua vergonha e timidez o impedia de se aproximar daquele ser apaixonante e belo. Sua vergonha era pela sua aparência, uma vez que achava que Deus teria sido injusto ao dar-lhe pernas gigantes, desproporcionais ao seu franzino corpo, e por tê-lo pintado de forma monocromática.Mesmo assim, seus verdes olhos insistiam em perseguir o bailar da borboleta: ele a viu lançar-se entre as bromélias, rodopiar entre as rosas e seus verdes espinhos, girar em torno de um imenso girassol, até pousar suavemente de volta ao tronco da bela margarida, onde os escombros de seu casulo ainda estavam presos.Logo, seus olhos fitaram o olhar de nosso verde amigo. Ela, parada, olhava para ele, enquanto ele tentava disfarçar, escondendo sua face atrás de suas finas patas. A borboleta resolve então lançar-lhe um sorriso, e aquela bela imagem faz reluzir em sua imaginação a graça do dia mais ensolarado; sua mente e coração sentem o prazer semelhante ao de ver o mais doce orvalho que desce de uma pétala e beija a grama após uma fina chuva de primavera. Toda essa fluidez de sentimentos, aos poucos, vai transformando vergonha em orgulho, e timidez em coragem.Lentamente, ele começa a tirar as patas da frente dos seus olhos, e um sorriso ainda tímido começa a se desenhar em seu rosto. Então, ele enche seus pulmões de ar, ergue a cabeça, e, inesperadamente, sente o bico de um rouxinol faminto atravessar-lhe o peito, quase o partindo ao meio. Ele ainda vê uma lágrima descer dos olhos da platônica borboleta, enquanto rapidamente é levado para o ninho no alto da craibeira, servindo de alimento para dois filhotes da ave predadora.É a ordem natural da vida…

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1Ivanilson Santana (Maceió, 1971). Contista, finalista do Festival da Palavra, 2012.

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Maysa Louzada

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LONGE DOS OLHARES DE AMÉLIA

por Letícia Dogenski1

A multidão se reunia em frente à casinha ilhada pelo grande jardim, destinado à

depravação pelo pisoteio dos presentes. As palmas rosadas se esticavam em seus caules como se temerosas de seu iminente e triste fim, enquanto os filhos da velha tentavam conter, de toda forma, a massa de gente que se aglomerava gritona, resmungava, reinava pela falta de notícias. Distinguiam-se, em meio aos gritos, aqueles desesperados, que a velha lhes havia salvado a vida, diziam, milagreira que era. Porém, mais alto bradavam os descrentes, clamando pela verdade e pela morte, que a velha os enganara a todos o tempo inteiro. Para tanto, chacoalhavam o portão de ferro que, por pouco, não cedia a tais investidas zangadas. O filho mais velho da moribunda, que pendia sua força contra as grades, encolerizava-se com a afluência, desgostoso ao pensar na pobre mãe acamada, enquanto ouvia tantos desagrados. “Mas que falta de compaixão” – ele gritava acima de todas as vozes, arranhando mãos e coiceando pés que teimavam em ultrapassar os limites que impunha. Sua irmã pranteava pela situação e pela mulher que, a cada minuto, definhava em seu pequeno quarto, como se escorrendo vagarosa para a urgência da morte. Corria para todos os lados, ora auxiliando o irmão em sua penosa tarefa, ora segurando a mão da velha, de modo a impedi-la de escoar ainda mais.A anciã era dita milagreira na cidadela, curando chagas para não restar nem cicatriz, revivendo rebentos natimortos de imediato após a paridela, curando de bebedeira a ciúme, mas, para tanto, deixando se esvaírem suas lágrimas prodigiosas. Há tempos que corriam pelas ruas as prosas de seus feitos aguados de lágrimas, e muitos do gentio tinham parte em propagar a conversa, enquanto tantos outros a procuravam para comprovar a teoria. Deveras, a sala em que a velha atendia seus pacientes era adornada de prateleiras na gestação de pequenos frascos de conteúdo aguado. Após análises, rezas e bênçãos, um dos numerosos frascos era designado ao enfermo, fadado ao ritual de banhar suas chagas ou seu estômago com o fluido. Mas era unânime a sentença: “uma vez aberto o vidro, o odor exalado era como o da flor mais bela e perfumada do mundo, ao desabrochar-se enrolando em seus sentidos”. E muitos bradavam, nos colóquios, que aquelas eram as lágrimas mais poderosas do mundo, enquanto outros desgostosos se incomodavam e diziam, solenes como esses sempre são, que os primeiros estavam tragando nada mais do que uma qualquer água de flor. E, por muito tempo, a cidade se dividiu entre “crentes e descrentes da velha Amélia”, fomentando as inimizades que mantinham para se socorrerem da aura densa de tédio que caía sobre eles, empurrando-os contra o chão, obrigando-os a acorcundar. Quando a velha então caiu de cama naquela manhã, a notícia correu furiosa e os portões da casinha atraíram, como ímãs, seus opostos que se aglomeraram aos brados, seguidos pelos crentes que cantavam serenos. Já parecendo sob os deslumbres de seus últimos momentos, tremia na cama à mercê do berreiro que se instalara logo além da janela

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do quarto, e se aborrecia com o azar de não ser deixada para morrer em paz. Diante de suas senhorinhas companheiras, reclamava que nenhuma alma deveria partir diante de tanto tumulto, nem ouvindo os choramingos de medo de seus filhos. Amélia mantinha sua voz forte e calma e seus olhos cristalinos, a despeito do corpo que parecia murchar sobre o colchão. Por fim, encontrou forças para se levantar uma última vez, zelar suas pupilas sobre as pessoas que se aglomeravam na rua, separadas de seu grande jardim pelo portão rangedor. Deixou-se olhar para cada um dos rostos, e muitos se calaram diante de sua face que parecia tão feroz naquele momento. Na iminência de sua última bênção ou da confissão de sua fraude, não disse palavra nenhuma, e só voltou para se deitar quando o silêncio, obrigado pela sua figura, já era quase completo. Ao mirar os seus, dentro do quarto, deu a sentença: “a morte às vezes é mesmo uma cretina” – e voltou para se espalhar tranquila sobre sua mortalha.Os ânimos se exaltaram na pequena casinha quando entendido que aquele piscar tão demorado dos olhos de Amélia era senão o derradeiro. Iolanda, sua filha, chegou das correrias a tempo de presenciar sua última olhadela ao esmo, antes de se esvair para sempre. Tentou impedi-la de findar, correndo para abrir novamente seus olhos curandeiros, e viu que, apesar de sua alma já ter se esticado para a eternidade, seus olhos permaneciam vivos, brilhantes e videntes. No reflexo da íris apagada da idade, viu passar sua vida e algumas imagens a despeito de sua sabedoria sobre o tempo. Estava como pasma observando os olhos da mãe morta, vendo seu futuro que claramente se desfiava através de sua existência determinada, o que, somado com a recente perda, a fazia prantear baixinho. Diante da notícia, a multidão em frente à casa se acalmava: faziam silêncio os adoradores da velha e amenizavam suas cóleras os descrentes. Iolanda só então foi afastada do corpo que jazia em seus muitos anos e dores, para ser consolada noutro cômodo por Camilo, seu irmão, que enfim tinha a chance de largar os portões. “A morte é uma cretina, ela anunciou” – comentando o momento que apenas passara, dando vazão ao olhar quente que todos receberam da velha que, nem um pouco como uma despedida, parecia mais o olhar de alguém que se contenta com a enfim chegada. Iolanda permanecia em seu assento ainda visualizando na mente as imagens passadas dos olhos da mãe para os seus. Para explicar sua perplexidade tão insistente declarou a descoberta: “Vi minha vida nos olhos dela, vi o futuro”. As senhorinhas ali presentes, que já preparavam o corpo da defunta para o velório, se sobressaltaram. Não queriam abrir as pálpebras da defunta, que diziam dar má sorte para quem o fizesse, mas, no antro do afinco de Iolanda e da própria curiosidade, olvidaram suas superstições. Uma a uma fizeram o movimento que lhes mostrou aquilo que entendiam ser o futuro iminente, correndo depois para a janela anunciar o primeiro e tão recente milagre póstumo de Amélia. “Tem nos olhos os destinos” – gritavam – “Tem nos olhos as determinações de Deus”. O povo, que já desintegrava seu êmbolo, empacou nos passos, muitos já distantes, para ouvir as senhorinhas que proclamavam o acontecido. Aos poucos, o tumulto voltou a empurrar os portões da casa, ameaçando sua integridade, para amenizar os brios curiosos. As palmas rosadas do jardim foram colhidas para adornarem o corpo murcho e sem vida que ainda pesava sobre a cama, destinado a ter seus olhos abertos até onde suas pálpebras suportassem.Através da noite que já descera, os visitantes duravam suas presenças, esperando dar uma última olhadela na mulher, e acendiam candelabros para acalentar sua alma e confortar seus próprios olhos da escuridão da rua. Eram deixados para entrarem sozinhos, porém sob a vigília das senhorinhas, para ver o que as íris da velha lhes mostrariam. Muitos saíam perplexos e não diziam palavra sobre os seus futuros agora conhecidos, prometendo nunca Philos Revista de Literatura da União Latina | Revista de Literatura de la Unión Latina. 42

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mais chegar nem mesmo perto do casebre da velha. Outros saíam aliviados, mas nem por isso diziam o motivo para tal. A notícia da morte da curandeira e de suas vidências póstumas fez aumentar a afluência que se acumulava na porta, de modo que se passaram três dias até o povo enfim dispersar. E ainda assim, a cada hora, chegavam mais examinadores de olhos para ver seus destinos refletidos abaixo daquelas pupilas. O corpo de Amélia, porém, como temiam seus filhos, começava a se decompor enquanto ainda duravam as visitas dos curiosos, e as flores que lhe adornavam definharam, e mesmo as do jardim se fizeram acabar. Porém, o odor das enfloras continuava a se alastrar pela residência, até que encontrada sua fonte: o próprio corpo da velha. Apodrecia cheirando a flores, como as ditas lágrimas que observavam das prateleiras. E como as conversas que sempre correm, a de agora dizia que Amélia tinha mel no lugar de sangue, e por isso não fora surpresa quando certo dia a casa amanheceu infestada de abelhas e borboletas discutindo por um espaço sobre o corpo sem vida.Por fim, e para desespero de muitos crentes, Iolanda e Camilo deram a sentença de que o corpo deveria ser sepultado. Na mesma tarde, um enorme cortejo acompanhou o cadáver salpicado de insetos, calmamente carregado até o cemitério posto sobre uma beirada da cidadezinha. Para Amélia, fora destinado o pico do morro que abrigava a mortalha coletiva, para que, de longe, pousasse seus olhos sobre seus crentes. Mas os olhos da velha, na verdade, foram deixados em casa para serem conservados nos frascos de suas lágrimas, o que estranhamente aconteceu através dos anos que desde então se passaram. Ainda recebem muitas visitas de quem por acaso se vê no caminho da cidade de Amélia e ouve a história incomum. Para tanto, os interessados hão de seguir o odor de flores que se faz forte do nada para, subitamente, ir em frente até ver uma colina cheia de palmas rosadas que apontam para todos os lados. Abaixo dela, tem uma casinha bonita protegida por portões de ferro, que abriga um par de olhos azuis apagados, mostrando futuros enquanto nadam em suas próprias lágrimas para sempre.

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1Letícia Copatti Dogenski (Sananduva, 1994). Autora da novelaOnde as Nuvens Fazem Sombra (Autografia, 2015).

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