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ANAIS XII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL 675 OS LIMITES E GARANTIAS DO DIREITO PENAL: UMA ANÁLISE EPISTEMOLÓGICA DO MODELO GARANTISTA 782 . The limits and guarantees of Criminal Law: An epistemological analysis of the guarantee-based model Itací Alves Marinho Junior 783 João Pedro Omena dos Santos 784 José Roberto Martinez Sader 785 Resumo O intuito deste artigo é apresentar o modelo garantista na realidade penal, sua relação ao Estado Democrático de Direito e analisar o dimensionamento de tutela e proteção ao indivíduo que esse modelo traz. O trabalho realizado nesse artigo passa por uma análise histórica de escolas de pensamento de direito penal, os limites do direito penal e a diminuição do poder punitivo do Estado, princípios de Direito Penal, âmbito internacional do modelo garantista, aplicações e consequências do mesmo. Ao retratar estes diversos aspectos, constata-se a importância e abrangência do garantismo no modelo do Estado Democrático de Direito e na evolução de conceitos no Direito Penal e das garantias do cidadão. Palavras-chave: garantismo; direito penal; tutela; limites. 782 Artigo submetido em 04/04/2016, pareceres de aprovação em 13/05/2016, aprovação comunicada em 17/05/2016. 783 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: itacimarinho@gmail. com 784 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected] 785 Graduando em Direito Pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: betomartinez1312@ gmail.com

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OS LIMITES E GARANTIAS DO DIREITO PENAL: UMA ANÁLISE EPISTEMOLÓGICA DO MODELO GARANTISTA782.

The limits and guarantees of Criminal Law: An epistemological analysis of the guarantee-based model

Itací Alves Marinho Junior783

João Pedro Omena dos Santos784

José Roberto Martinez Sader785

Resumo

O intuito deste artigo é apresentar o modelo garantista na realidade penal, sua relação ao Estado Democrático de Direito e analisar o dimensionamento de tutela e proteção ao indivíduo que esse modelo traz. O trabalho realizado nesse artigo passa por uma análise histórica de escolas de pensamento de direito penal, os limites do direito penal e a diminuição do poder punitivo do Estado, princípios de Direito Penal, âmbito internacional do modelo garantista, aplicações e consequências do mesmo. Ao retratar estes diversos aspectos, constata-se a importância e abrangência do garantismo no modelo do Estado Democrático de Direito e na evolução de conceitos no Direito Penal e das garantias do cidadão.

Palavras-chave: garantismo; direito penal; tutela; limites.

782 Artigo submetido em 04/04/2016, pareceres de aprovação em 13/05/2016, aprovação comunicada em 17/05/2016.

783 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected]

784 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected] Graduando em Direito Pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: betomartinez1312@

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Abstract

The purpose of this paper is to present the guarantee-based model in criminal law, its relationship with the Democratic State ruled by Law and analyze the degree of guardianship and protection provided to individuals by this model. The paper makes a historical analysis of the schools of thought in criminal law, the limits of criminal law and the diminishing punitive power of the State, principles of criminal law, the international scope of the guarantee-based model, its applications and consequences. By discussing these several aspects, we see the importance and reach of “guaranteeism” in the model of the Democratic State ruled by Law and in the evolution of concepts in criminal law and citizens’ guarantees.

Keywords: “guaranteeism”; criminal law, protection, limits.

Sumário

Introdução; 1- Modelo Penal Garantista; 2- Limites do Direito Penal; 2.1- Esgotamento do Poder Punitivo; 3- Princípios axiológicos limitadores do Direito Penal; 4- Retrospecção epistemológica dos limites do Direito Penal; 4.1- Positivismo e Direito; 4.2- Neokantismo; 4.3- Finalismo; 4.4- Normativismo; 4.4.1- Normativismo funcional-teleológico; 4.4.2- Normativismo funcional sistêmico; 5- Os limites do Direito Penal na Sociedade Global de Risco; 5.1- Limites territoriais do Direito Penal na Sociedade Global de Risco; 5.2- Limites funcionais do Direito Penal e suas causas; 5.2.1- Causas técnicas; 5.2.2- Causas econômicas; 5.2.3- Causas políticas; 5.3- Limites funcionais do Direito Penal; 6- Conclusão; Referências.

Introdução

Sobre a realidade penal, é valido discernir que o sistema garantista, atrelado ao Estado Democrático de Direito, trouxe ao indivíduo uma vasta dimensão de tutela e proteção. Essa proteção tutelada será a importância máxima a ser retratada neste artigo.

Segundo o argentino Zaffaroni786, o garantismo pode ser visto também como um sistema sociocultural, devido o instrumento jurídico garantista que age em defesa dos direitos fundamentais em geral e, consequentemente, agindo em defesa aos bens essenciais da vida dos individuais e coletivos. Apesar de olharem para Zafarroni como grande defensor do garantismo, o foco estará voltado para Luigi Ferrajoli787, cujo qual, defende fielmente o garantismo penal.

786 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Enrique. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

787 FERRAJOLI, luigi Direito e razão : Teoria do garantismo penal / Luigi FerrajolI - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2002.

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O artigo se pauta em analisar meticulosamente a importante corrente do garantismo, e uma delas está destrinchada no livro Direito e Razão - Teoria do Garantismo Penal de Ferrajoli, onde ele afirma que a grande importância do garantismo penal para os penalistas, é seu exercício perante aos indivíduos, cujo qual se ramifica por todo o sistema de direitos fundamentais.

Desta forma, ao transitar pela história do Direito, pode-se enxergar os passos limitadores do Direito Penal, que foram moldando o poder punitivo do Estado. O plausível é entender que esses passos deram origem ao esgotamento punitivo, que, por conseguinte, proporcionou uma reforma criminal.

Sendo assim, após uma longa trajetória epistemológica dos limites do Direito penal, cujos quais, permearam pelas ideias positivistas e naturalistas, neokantistas, finalistas, e também pelas ideias normativistas. Aqui, não é significativo se atentar em qual dessas ideias os limites penais tiveram um maior desenvolvimento, pois objetivo é analisar o garantismo penal e seu processo com o advento do Estado Democrático de Direito, cujo qual, trouxe princípios limitadores do poder punitivo do Estado, dando um foco singular e especial sobre os limites do direito penal na sociedade global de risco, tentando identificar e discernir os limites territoriais, funcionais e suas causas contemporâneas.

1 Modelo Penal Garantista

O jusfilósofo Luigi Ferrajoli, em seu livro Direito e Razão Teoria do Garantismo Penal, afirma que o garantismo é entendido no sentido do Estado Constitucional de Direito788, isto é, aquele conjunto de vínculos e de regras racionais impostos a todos os poderes na tutela dos direitos de todos, representa o único remédio para os poderes selvagens. Para isso, a constituição deve ser interpretada como uma lei superior onde jamais deverá ser mitigada por uma norma inferior, pois dentro de uma visão garantista, a constituição seria uma mãe pronta a dar os seus remédios constitucionais a todos os seus filhos, onde legislador fica impedido de impor ou proibir determinadas condutas, sob ameaça de sanções penais, se a própria constituição não impedir ou permitir a pratica do ato.

No entanto, apesar do termo garantista trazer em si um significado de proteção naquilo que está positivado, isto é, escrito no ordenamento jurídico, onde se trata de privilégios, proibições, permissões, diretos e deveres que a constituição concede aos indivíduos, é valido discernir que garantismo não é apenas legalismo, pois sua base estrutural não é alicerçada somente na lei e sim na essência de um Estado Democrático de Direito, onde o individuo se encontrará protegido pelos garantismos constitucional e penal.

788 FERRAJOLI, Luigi Direito e razão: Teoria do garantismo penal - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2002

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O garantismo é uma teoria com raízes fixadas no iluminismo do século XVIII,789 cujo qual, possui três sentidos diferentes, porém atreladas entre si. O primeiro é denominado como um modelo normativo de Direito imposto ao poder estatal em garantia dos direitos humanos normatizado na constituição de um Estado. O segundo sentindo é compreendido como uma teoria critica jurídica da efetividade e da validade do Direito, isto é, uma relação de distinção entre realidade (o ser do Direito) e normatividade (o dever ser do Direito), efetuando a identificação e sua critica nessas divergências e contraposições de ideias. O terceiro e último sentido, define o garantismo como uma filosofia política, onde não basta apenas uma justificação jurídica e sim uma justificativa ético-politica ao Estado e ao Direito790.

Diante disso, alguns juristas brasileiros defendem que o primeiro sentido teria mais relevância diante do processo garantista. Porém, isso não quer dizer que os outros sentidos não são importantes, pois aqui se fala de relevância garantista dada ao individuo.

Esse novo léxico jurídico foi introduzido na Itália, em 1970, de início teve suas forças exercidas no âmbito do Direito Penal. No entanto, Ferrajoli afirma que o garantismo pode ser ramificado a todo sistema de garantias dos direitos fundamentais. Sendo assim, independente dos três sentidos teóricos, o garantismo se torna um sinônimo do Estado Constitucional de Direito. Essa comparação é realizada devido ao fundamento de o Estado de Direito estar voltado para tutela das liberdades do indivíduo frente às variadas formas de condutas arbitrárias dos poderes selvagens, assim como o garantismo que consiste na tutela de todos os direitos fundamentais gozando da total liberdade, cuja qual, deverá ser compatível com a igual liberdade de todos os demais indivíduos.

Norberto Bobbio, ao escrever o prefácio do livro Direito e Razão de Ferrajoli, se depara com a ramificação do garantismo para todo o sistema de garantias dos direitos fundamentais, o melhor é dar importância aos diversos graus de garantismo, pois não pode ser medido apenas por um referencial. Sendo assim, para um país como o Brasil, o grau de garantismo se agiganta perante as normas estáticas vigentes sobre direitos sociais.

Desta forma, o garantismo é um modelo ideal, do qual pode se aproximar, pois no âmbito do Direito Penal, onde todo o tipo de sanção deverá ser legitimado perante o ato democrático de respeito aos Direitos Fundamentais791.

789 TRINDADE, André Karam. Raízes do garantismo e o pensamento de Luigi Ferrajoli. Revista Consultor Jurídico, 8 de junho de 2013. Acesso em 12 de outubro de 2013.

790 CADEMARTORI, Sergio. Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, pp. 74 e 75

791 BINDER, Alberto M. Iniciación al Proceso Penal Acusatorio. Campomanes: Buenos Aires, 2000, p. 70:

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2 Limites do direito penal

Tomando a definição de direito penal792, temos que este é o conjunto de normas de caráter jurídico que visam estabelecer limites ao poder de punir (jus puniendi) do Estado. Por outro viés, alguns autores afirmam que o direito penal é dividido em objetivo e subjetivo, assumindo duas facetas nitidamente distintas uma da outra, sendo que a primeira (direito penal objetivo) revolveria em torno da norma e do sistema jurídico, ao passo que a segunda (direito penal subjetivo) trata do poder estatal de punir:

Assim como no Direito Penal objetivo o estudo se concentra nas normas jurídico-penais e sua sistematização, no Direito Penal subjetivo o estudo se centra no poder punitivo do Estado, no chamado jus puniendi.793 (tradução livre).

Percebe-se em comum a íntima relação entre o jus puniendi (direito de punir) do Estado e o direito penal. Com efeito, os mesmos autores794, afirmam se encontrar em duas instâncias os limitadores do Direito Penal: na criação e produção da norma, bem como na aplicação e execução da norma (seja ela processual ou não).

2.1 Esgotamento do poder punitivo.

Ao analisar o contexto histórico evolutivo do poder punitivo, sabe-se que o direito de punir apesar de já ter pertencido à entidade privada, tem como exclusivamente monopólio da prevenção e da execução da prática do delito o Estado, sendo de sua titularidade e competência, pois só ele é o único agente julgador daqueles que venham a violar o ordenamento jurídico estatal. A constituição de 1988, em seu art. 144, afirma que “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e do patrimônio”795. Logo, o Estado também tem legitimidade para o exercício do poder de punir, mas não se trata apenas de um direito, trata-se também de um dever, lembrando que ele deverá delimitar certas intervenções que não violem o ordenamento constitucional vigente, sobretudo agindo dentro do processo legal. Ou seja, o Estado ainda pode punir, no entanto, este punir deverá está dentro das conformidades garantistas constitucionais.

Com o esgotamento do modelo punitivo, houve uma reforma no direito criminal em busca de uma nova economia de poder de punir. Os suplícios796, por

792 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 77.793 BUSTOS RAMÍREZ, Juan J.; HORMAZABAL MALARÉE, Hernán. Lecciones de derecho penal,

volumen 1. Madrid: Trotta, 1997, p. 63.794 Idem795 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF,

Senado, 1998.796 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 31.

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exemplo, não cabem mais numa sociedade democrática de direito797, cujos quais, são caracterizados pela sua crueldade onde o objetivo é provocar um grande sofrimento moral, castigo corporais como a tortura aplicada de forma prolongada e intensa798. O advento do esgotamento punitivo do Estado é oriundo do surgimento dos princípios penais limitadores, dando garantia ao individuo uma forma de proteção contra a forma máxima do estado. No entanto, dentro de uma analise ampla do sistema penitenciário brasileiro, é visível e sensato de se afirmar, que sua política de controle é marcada pela presença do Estado punitivo em virtude de suas ações severas, cruéis e repressivas.

Decerto ao logo da linha histórica percebe-se o que poder punitivo possuiu pensamentos filosóficos diferentes799, eventualmente cada época trazia um conceito distinto de finalidade da pena das outras. Os conceitos passaram pelas penas como castigo, finalidade da pena oriunda da provisão divina, da retribuição punitiva, passou-se também por desenvolver e estabelecer a prevenção geral e específica e por fim uma finalidade penal fundamentada no garantismo penal800.

Essa última finalidade tomou forçar com o advento do Estado Democrático de Direito, cujo qual, trouxe princípios limitadores do poder punitivo do Estado. Tais princípios foram norteados pelo o principio da dignidade da pessoa humana, elevando e valorizando de forma intensa o cidadão. Aliás, sabendo que os princípios possuem o trabalho árduo em comum de limitar o uso punitivo do poder do Estado, é plausível lembrar outra característica que unem esses princípios como a observância dos anseios e valores sociais no nascimento da lei estatal. Por conseguinte, com a eficácia da atuação desses princípios a ação punitiva será reduzida, mas não eliminada. Pois se ação punitiva estiver dentro da proporcionalidade das penas junto com o discernimento do indivíduo, o papel do Estado será realizado com sucesso.

3 Princípios axiológicos limitadores do direito penal

Os axiomas são denominados como verdades inquestionáveis, e também como princípios axiológicos fundamentais de uma teoria, ou de uma base argumentativa. Ferrajoli afirma que os axiomas do garantismo penal tendem por expressar uma proposição prescritiva, isto é, o garantismo penal tem por objetivo claro de prescrever as possíveis condições que poderão ocorrer no sistema penal, cujo qual, deverá satisfazer suas ações conforme os princípios normativos internos801.

797 MIR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoría del delito en el Estado Democrático de Derecho. Barcelona : Bosch, 1982. p. 19-22.

798 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. ed. 12. Petrópolis: Vozes: 2009, 36-43.

799 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.26-27

800 FERRAJOLI, Luigi Direito e razão: Teoria do garantismo penal - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 29-33.

801 Ibidem.

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Sendo assim, os axiomas são os pilares que sustentam o Direito Penal, pois são inteiramente ligados aos princípios bases do ordenamento jurídico802.

Segundo Luigi, são dez axiomas inquestionáveis que não derivam entre si.

O primeiro axioma é o Nulla poena sine crimine, que corresponde ao princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito. Esse princípio é visto como uma das finalidades da pena onde a justiça deve possuir um caráter retributivo ao delinquente803. Jakobs preceitua que:

Um ordenamento jurídico deve manter dentro do Direito também o criminoso, e isso por uma dupla razão: por um lado, o delinquente tem direito a voltar a ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, de cidadão, em todo o caso: sua situação dentro do Direito. Por outro, o delinquente tem o dever de proceder à reparação e também os deveres tem como pressuposto a existência de personalidade, dito de outro modo, o delinquente não pode despedir-se arbitrariamente da sociedade através de seu ato.804.

O segundo axioma é o Nullum Crimen Sine Lege que é refletido no princípio da legalidade, a sua representatividade pode ser tanto no sentido lato, como também no sentido estrito. Trata-se também de um pressuposto básico do Estado Democrático de Direito. Este postulado garante que,

Por mais que uma conduta seja altamente nociva e revaladora de necessidade de pena, o Estado só poderá toma-la como motivo de sanção jurídico-penal se antes a tiver tipificado expressamente na lei.805 (tradução livre).

O terceiro axioma é o Nulla Lex Sine Necessitate que corresponde ao princípio da necessidade ou até mesmo da economia do Direito Penal. Porém pode ser também chamado de princípio da intervenção mínima, onde não existirá lei penal sem necessidade.

O quarto axioma é o Nulla Necessitas Sine Injuria, cujo qual, aparece no princípio da lesividade ou da ofensividade, onde o Direito Penal só pode proibir a conduta do agente que venha colocar em risco bens jurídicos de terceiro. Para Von Liszt:

Bem jurídico é o interesse juridicamente protegido. Todos os bens jurídicos são interesses vitais do individuo ou da comunidade. A ordem jurídica não

802 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. (tradução de Maria Celeste C. J. Santos). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

803 JAKOBS, Gunther; MÉLIA, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. 804 Ibidem, p. 26-27. 805 ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general, tomo 1. Madrid: Civitas, 1997, p. 137

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cria o interesse, ele é criado pela vida: mas a proteção do Direito eleva o interesse vital à categoria de bem jurídico806

O quinto axioma é o Nulla Injuria Sine Actione que está totalmente atrelado ao princípio da materialidade ou da exterioridade da ação, que proíbem sanções penais que punam o modo de pensar do individuo.

O sexto axioma é o Nulla Actio Sine Culpa que é ligado ao principio da culpabilidade ou da responsabilidade. Os penalistas afirmam que se deve apurar o grau de dolo ou culpa em strictu sensu, para que aconteça a punição com base no artigo 59 do código penal.

O sétimo axioma é o Nulla Culpa Sine Judicio, cujo qual, tem sua repercussão no âmbito processual, pois está diretamente ligado ao princípio

da jurisdicionariedade. Esse princípio parte do pressuposto que não há conhecimento de culpa sem que o órgão jurisdicional reconheça.

O oitavo axioma é o Nullum Judicium Sine Accusatione, cujo qual, é apresentado como principio da acusatória ou da separação entre juiz e acusação. Esse princípio deixa bem claro que o judiciário não poderá afirmar o direito de ofício, pois em consonância com o princípio da inércia é preciso que aconteça uma provocação.

O nono axioma é o Nulla Accusatio Sine Probatione que se liga ao princípio do ônus ou da verificação. Isso quer dizer que de forma alguma existirá acusações sem existência de prova suficiente.

O décimo e último axioma é o Nulla Probatio Sine Defensione é denominado como princípio do contraditório ou da ampla defesa, ou da falseabilidade, talvez esse axioma possa ser considerado o mais importante devido o processo legal. Esse axioma pode ser visto dentro da constituição federal no Art. 5°807, ao qual o indivíduo pode se defender, através dos inúmeros meios de defesa amparados pela constituição.

Esses são os princípios basilares de suma importância para que um determinado sistema penal possa ser considerado garantista. Além disso, o modelo desenvolvido por Ferrajoli808 explica que esses pilares devem ser utilizados no processo de minimização do poder institucional. Esse processo seria a própria limitação do poder estatal, que daria uma base estrutural para o Direito Penal mínimo. No entanto, perante esses princípios existe uma divisão classificatória entre eles. Por exemplo, ao olhar para os três primeiros axiomas elencados anteriormente, pode-se discernir que

806 VON LIZST, Franz. Tratado de derecho penal. V. 2. Madrid: Reus, [s.d.]. 807 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF,

Senado, 1998.808 FERRAJOLI, Luigi Direito e razão: Teoria do garantismo penal - São Paulo : Editora Revista

dos Tribunais, 2002.

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os três correspondem às garantias em relação à pena. Diante de uma outra análise, poder-se-á enxergar que o próximo trio, Nulla Necessitas Sine Injuria, Nulla injuria sine actione, Nulla Actio Sine Culpa, pode estar classificado dentro das garantias relativas ao delito.

E por fim, os quatro últimos axiomas são visto como garantias relacionadas ao processo, cujos quais, são amparados pela constituição. Sendo assim, no olhar da jurista brasileira Ada Pellegrini Grinover, esses axiomas podem ser uma forma de alcançar a justiça. Ela afirma que:

As garantias constitucionais se introduzem no processo e seus procedimentos, esses no sentido de instrumentos públicos de realização da vontade do cidadão, do Estado e da justiça. Observando que o processo é uma das formas de concretização da justiça, todos os atos estatais (judiciais e administrativos) deverão estar sintonizados com as garantias constitucionais positivadas. Assim, a análise da Constituição brasileira em vigor aponta vários dispositivos a caracterizar a tutela constitucional da ação e o processo809.

Ferrajoli também define os axiomas como proibições e limites, ou implicações deônticas, cujos quais, atribui uma imensa sustentação de proteção ao indivíduo. Além disso, todas essas definições ou sinônimos que compõem o modelo do Direito Penal enuncia uma condição sine qua non, ou seja, Ferrajoli afirma que:

Uma garantia jurídica para a afirmação da responsabilidade penal e para a aplicação da pena. Tenha-se em conta de que aqui não se trata de uma condição suficiente, na presença da qual esteja permitido ou obrigatório punir, mas sim de uma condição necessária, na ausência da qual não está permitido ou está proibido punir.810

Logo é valido afirmar que esse modelo garantista de Ferrajoli, não é composto por meros axiomas, e sim por princípios limitadores do direito penal, que será melhor compreendida após uma explanação de seus preceitos a partir das diferentes visões de conhecimento ao longo da história.

4 Retrospecção epistemológica dos limites do direito penalFaremos agora uma breve retrospectiva das várias teorias epistemológicas

adotadas pelos diversos autores do Direito, relacionando-as com a temática dos limites do direito penal, nos valendo, para tal, das diferenciações feitas por Luiz Régis Prado na obra Curso de Direito Penal Brasileiro.811

809 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; Cândido R. Dinamarco. Teoria Geral do Processo. 13 ed., São Paulo : Malheiros, 1997.

810 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão : teoria do garantismo penal / Luigi Ferrajoli. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 74.

811 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

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4.1 Positivismo e direitoSurgido no final do século XIX, o movimento positivista de pensar o Direito

pode ser explicado na objetivação máxima deste. Por ser uma ciência essencialmente não-empírica, o positivismo jurídico se configura na rejeição de todo ideal metafísico ou axiomas abstratos estranhos ao Direito, ou seja, na pureza do método, haja vista que

O objeto da ciência do Direito positivista é tão somente o Direito positivo, estabelecido, formado pelos códigos e leis, e depurado de condições políticas, éticas, filosóficas ou sociais, ficando evidente sua anteposição a qualquer referência de índole jusnaturalista.812

Segundo a visão positivista, o método positivo seria o único caminho válido para se alcançar a verdade, o verdadeiro conhecimento. Transladando-se isto ao campo das ciências jurídicas o positivismo científico torna-se positivismo jurídico.813 Bem se verifica este translado nos escritos de Hans Kelsen, em especial sua magnum opus, Teoria Pura do Direito. Ao adotar a visão positivista da ciência jurídica, Hans Kelsen “pensa [...] o Direito como objeto ideal (Teoria Pura do Direito), reivindicando para a ciência jurídica uma pureza metódica”814. Esta pureza metódica reflete-se tanto no objeto, quanto na forma de se analisar o objeto. O positivismo toma o direito a partir de si mesmo, exponenciado em Kelsen, ignorando ou renegando todo conceito que lhe seja estranho.

Para esta escola do pensamento jurídico, os limites do direito penal, por se tratarem, em última instância, de princípios com bases valorativas, são relegados à condição de não científicos. Isto é obviamente consequência do caráter por demais normativista do positivismo jurídico815. Ou seja, os limites do direito penal seriam as próprias normas.

4.2 Neokantismo

O neokantismo trata-se de uma escola de pensar surgida na Alemanha na década de 1860. Apesar de introduzir no campo das ciências jurídicas bases valorativas norteadoras, o neokantismo não rompe com a avaliação ontológica do direito positivista do direito pelo próprio direito. Desta forma o neokantismo aparece não como negação, mas como superação do positivismo816.

812 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012., p. 111.

813 Idem.814 Idem.815 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 111.816 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 112.

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Embasado fortemente nos escritos do filósofo prussiano Immanuel Kant, em especial em seus escritos acerca do método crítico, o neokantismo afirmava “que o Direito não pode ser tratado pelo prisma da causalidade, visto que não integra o mundo natural em que o passado determina o futuro, mas sim o mundo teleológico, da finalidade, do querer”817. Para o neokantismo, o Direito deveria então ser visto como uma ciência finalista, dotada de uma maneira de se pensar diferenciada das demais.

Ao contrário de seu predecessor temporal (positivismo), o neokantismo não relegava todo e qualquer objeto axiológico estranho ao campo de estudo pretendido à condição de não-científico. Desta forma, o neokantismo assumia a existência, bem como a relevância de entes como a Justiça, sendo colocado como uma forma pura de pensamento, ao contrário da matéria, que assumia a função de substância contingente818. Os aspectos valorativos da ciência jurídica saem do espectro de não ciência para assumirem o papel de base norteadora da mesma.

Sendo assim, os limites do direito penal retomam seu caráter no campo jurídico, que dessa vez é entendido uma ciência com referência a valores com fins determinados (aspecto teleológico). Com efeito, segundo o autor, para Stammer o grande diferencial da ciência jurídica reside tanto no seu aspecto teleológico, em contraste ao aspecto casualista das ciências naturais, tanto como no “fato de a essência do jurídico residir em ‘dirigir e ordenar a massa de fins possíveis, sempre limitados e muitas vezes entre si contraditórios, segundo um critério superior, que é a ideia de Direito’”.819

4.3 Finalismo

Apesar de iniciar o processo de superação do positivismo, o neokantismo mostrou-se incapaz de realizar a superação de facto do positivismo. Mesmo trazendo novamente ao bojo da ciência jurídica questões concernentes à realidade ontológica do Direito, o neokantismo ainda trata do mesmo objeto, em essência, do positivismo, o Direito positivo.

Fundamentando na obra Fundamentos da Psicologia do Pensamento, escrito pelo filósofo Richard Hönigswald, bem como nos trabalhos de Bühler, Erismann, Jaensch, Peters, Finke e Pfänder, o finalismo traz à luz da ciência jurídica “o reflexo na dogmática jurídico-penal de uma atitude epistemológica”820

Devido a esse caráter ontológico, bem como axiológico, a teoria finalista dá especial atenção à teoria da adequação social (“segundo esta teoria, as condutas

817 Ibidem p. 113.818 Ibidem p. 112.819 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º

a 120. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012,, p. 114.820 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 118.

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que se consideram ‘socialmente adequadas’ não se revestem de tipicidade e, por isso, não podem constituir delitos”821) e ao princípio da humanidade. O princípio da humanidade, por suposto, compõe o elemento basilar da teoria finalista, decorrente da concepção do homem como pessoa. Isto se deve ao fato de que, segunda tal teoria, o homem, como ente capaz de expressar vontade, sempre faz determinada ação visando determinado fim. Também é digno de nota o conceito finalista de ação que segundo Welzel, na obra O novo sistema jurídico-penal, aplicando tal conceito ao direito penal, afirma que “as normas só podem mandar ou proibir uma conduta final”822, trazendo à luz do Direito temas como vontade, tipo objetivo e tipo subjetivo, haja vista que o desvalor da ação introduzido presume a relevância da vontade, ipso facto, do tipo objetivo e subjetivo.

4.4 Normativismo

4.4.1 Normativismo Funcional Teleológico

Tendo suas primeiras bases lançadas na década de 50 do século passado, essa linha de pensamento busca “permear o sistema penal-jurídico de aspectos teleológicos e axiológicos”823. Esta teoria tem como forte característica a preocupação com os fins do Direito, bem como a substituição da vaga base norteadora valorativa neokantiana por um fundamento de sistematização jurídica. O sistema em si, seria então, intermédio entre a ciência jurídica e as bases puramente valorativas.

O normativismo pode ser entendido como o sistema de pensar o direito em que “as finalidades político-criminais se transformam em módulos de vigência jurídica”824. Dessa forma, por suposto, a necessidade da pena é abstrata e apresenta um caráter geral preventivo muito fortemente acentuado.

Na temática dos limites do direito penal, é digna de nota a função da culpabilidade nesta teoria, haja vista que essa assume a função de limitadora da pena. São postos à apreciação do campo jurídico então princípios tais como os da responsabilidade e o da culpabilidade.

4.4.2 Normativismo funcional sistêmico

Esta teoria, que tem como um de seus principais expoentes Günther Jakobs, jurista alemão do século passado, afirma que o sistema jurídico nada mais é do que um subsistema social que se caracteriza, primordialmente, por um código binário

821 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 76

822 WELZEL apud PRADO, op. cit., p. 118.823 PRADO, op. cit., p. 120.824 Ibidem, p. 122.

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típico da área (lícito/ilícito). Isso desenvolve uma particularidade do Direito, que é o normativismo responsável pelo isolamento do campo em si mesmo. Essa teoria é pauta na racionalidade comunicativa, a interação simbólica que lança bases para determinado padrão de conduta.

Essa teoria, à revelia de seu par temporal, na verdade acaba por promover uma recessão nos limites do direito penal, tirando a finalidade de exclusiva proteção dos bens jurídicos, colocando-o em substituição como responsável pela reafirmação da vigência da norma825. Esta é a base para a controversa obra de Jakobs, Direito Penal do Inimigo, na qual ele coloca o indivíduo que comete delitos como inimigos do Estado Democrático de Direito.

5 Os limites do direito penal na sociedade global de risco

Ulrich Beck, em seu livro La Sociedad del Riesgo Goblal, divide a modernidade em dois momentos, sendo o posterior o que será objeto de inter-relação com a temática deste estudo. A sociedade global de risco é essa segunda etapa da modernidade. Na sociedade global de risco é caracterizada pela amplificação exacerbada dos riscos típicos dá sociedade moderna, que acabam por se tornar centrais na definição dela mesma. Segundo o autor, “os riscos se converteram nas principais forças de mobilização política, substituindo muitas vezes, por exemplo, as referências às desigualdades associada à classe, à raça e ao gênero”826. (Tradução livre).

Esta nova modernidade, mais do que superar, ela tende a eludir os elementos bases da primeira modernidade (modernidade industrial) – antagonismo de classe, família e casamento, controle linear – ou, como melhor diz o autor consultado, anula-os827. Ao invés de partir da análise da sociedade através de conceitos ecológicos, naturais ou relacionados ao meio ambiente, o autor parte para uma análise da sociedade por seus conceitos mais interiorizados, dentre eles, os riscos.

Os riscos, de que trata o autor, sempre existiram. Não são uma invenção da modernidade. O grande diferencial que representa essa nova modernidade é que estes riscos se tornam globais, escapando aos limites do indivíduo e, por vezes escapam inclusive às agências de controle que seriam responsáveis por eles.

Esta nova faceta da sociedade traz, à contemplação do direito penal, temáticas como a territorialidade do crime, legitimidade e validade espacial da norma, haja vista que os riscos não mais se tratam de problemas nacionais, evadindo as barreiras dos

825 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012., p. 125.

826 BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo global. Madrid: Siglo XXI de España Editores, 2002, p. 6.

827 Ibidem, p. 29.

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Estados. É possível, a partir delas, abordar ainda a própria questão diminuição dos limites do direito penal.

Atualmente nota-se que essa “transnacionalização” do crime questiona os limites do direito penal em duas frentes. O processo de globalização que pelo qual passa o mundo confronta o direito penal com seus limites territoriais, ao passo que o progressivo da “‘sociedade de informação e da sociedade de risco’ gera novos riscos e uma criminalidade complexa”828, afrontando o direito penal com seus limites funcionais, em especial no tocante à proteção aos direitos à segurança ou à liberdade.

5.1 Limites territoriais do direito penal na sociedade global de riscoOs limites territoriais do direito penal recaem em dois aspectos relevantes ao

tema: o primeiro aspecto remete aos limites físicos do território de um país (fronteiras), abordando, portanto, a questão da soberania de um Estado dentro de seu próprio território. O segundo aspecto diz respeito até que ponto pode-se conceber um direito penal transnacional ou ainda, supranacional.

O direito penal, classicamente, tem como base uma soberania territorial pressuposta pelo Estado que o aplica. Entretanto, devido a razões, técnicas, políticas e econômicas, os efeitos do crime cada vez mais evadem as fronteiras nacionais. O direito penal, por ter, como já dito, em última instância uma aplicabilidade limitada pelo território do Estado que faz valer, não consegue perpassar o nível global que o caráter do risco atingiu. Para sanar este conflito, é necessário que o próprio direito penal adquira um caráter global829, seja através de cooperações interestatais (direito penal transnacional) ou através da criação de um direito penal supranacional.

Ainda segundo o autor, “os melhores exemplos desse direito penal “transnacional” apresentam-se no direito penal europeu, no direito penal internacional, nas Nações Unidas, assim como em Estados federativos830. A evolução do caráter do crime na atual sociedade, levou à coincidência de diversos ordenamentos jurídico-penais, com propostas para enfrentamento dos diferentes tipos penais de maneira muitas vezes distintas. Isto gera, como bem diz o autor “‘sistemas com diversos níveis’ e uma ‘fragmentação’ do direito, que se torna ainda mais complexa por meio de sistemas de controle social e intervenções de atores privados, assim como de public private partnerships”831. Ou seja, atualmente, o caráter global do risco leva à colisão

828 SIEBER, Ulrich. Limites do Direito Penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa em Direito Penal no Instituto Max-Planck de Direito Penal Estrangeiro e Internacional. Revista Direito GV, São Paulo 4(1) | Jan-Jun2008, p. 271.

829 SIEBER, Ulrich. Limites do Direito Penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa em Direito Penal no Instituto Max-Planck de Direito Penal Estrangeiro e Internacional. Revista Direito GV, São Paulo 4(1) | Jan-Jun2008,, p. 274.

830 Idem.831 Ibidem, p. 275.

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de diversos ordenamentos jurídicos distintos, sendo necessária por vezes inclusive a intervenção do setor privado para a resolução de problemas inerentes ao direito penal (é o caso por exemplo de quando um ordenamento jurídico, por meio do uso do poder estatal, se vale de uma empresa privada para a obtenção de empresas privadas para obtenção de dados).

Isto evidencia conflitos sérios entre o choque jurídico interestatal, como por exemplo: a efetiva aplicação da transnacionalização do direito penal visando a efetividade do mesmo frente à sociedade global de risco indo de encontro à devida proteção estatal do cidadão contra aplicação abusiva de direito penal estrangeiro. Ou seja, até que ponto cabe a cooperação interestatal na resolução destes dilemas? A solução transnacional, já toma berço em meio a problemas de difícil resolução.

O direito penal supranacional, por sua vez levanta questões acerca do direito do Estado. O mesmo autor discorre que essas questões podem ser enunciadas em quatro momentos distintos:

(I) A possibilidade de transferência de elementos do monopólio nacional da força para um contexto supranacional; (II) relacionado a isso, a legitimação democrática de um direito penal supra estatal; (III) a transparência de seu surgimento; e (IV) um controle dos órgãos executivos responsáveis.832

Ao se colocar em pauta as problemáticas citadas, vêm à tona temas como soberania, a legitimidade que valida a aplicação do direito penal e, até mesmo, o próprio conceito de direito penal. Pois ora, se já na clássica resolução transnacional de conflitos penais interestatais evidencia-se o conflito entre os diferentes ordenamentos jurídicos, isto fica ainda mais evidente na resolução supranacional, onde órgãos como a Organização das Nações Unidas (ONU), citando um exemplo utilizado pelo autor consultado, propõem sistemas jurídicos que contradizem o ordenamento interno de determinado país. Fenômeno semelhante acontece entre a União Europeia (UE) e seus países membros.

Entretanto, esses conflitos tornam-se particularmente evidentes em sistemas jurídicos com fins diversos, como no caso em que o direito das Nações Unidas (voltado a assegurar a paz) visa impor o congelamento de bens territoriais em potencial, contradizendo as garantias processuais nacionais e internacionais (voltadas à proteção dos direitos humanos).833

Desta forma, o autor afirma ser necessária a criação de uma metanorma que, mesmo em caso de colisões, possa descrever quais são os requisitos necessários a dada norma internacional para que esta possa atuar em direito nacionais ou regionais.

832 SIEBER, Ulrich. Limites do Direito Penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa em Direito Penal no Instituto Max-Planck de Direito Penal Estrangeiro e Internacional. Revista Direito GV, São Paulo 4(1) | Jan-Jun 2008, p. 275.

833 Idem.

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De qualquer forma, em última ordem, as duas propostas de solução apresentadas na obra consultada apresentam empecilhos à sua execução. A solução para a harmonização transnacional do direito penal pressupõe um consenso valorativo entre os Estados, ao passo que a solução supranacional pressupõe uma renúncia parcial à soberania estatal.

Para se contornar os problemas supracitados, atualmente, alguns países, se valem de um modelo de “direito penal comparado”, ou de “dupla incriminação”. Ou seja, para que se aplique determinada norma em caso de transgressão normativa internacional, é necessário o “reconhecimento mútuo de decisões, sem atenção às diferenças jurídicas834”.

Entretanto, o mesmo autor afirma que modelo da “dupla incriminação” cada vez mais é abandonado pelos Estados Democráticos de Direito, sob a prerrogativa de que o direito penal transnacional cumpre mais do que somente a função de efetivar a eficácia do direito penal, ele também serve à função de proteção do cidadão perante o direito penal estrangeiro835.

5.2 Limites funcionais do Direito Penal e suas causas

O segundo aspecto de desenvolvimento da criminalidade nessa sociedade global de risco é referente aos novos riscos e à complexidade da delinquência. Essa nova característica, aliada à problemática da globalização em âmbito jurídico-penal, limita o direito penal, muitas vezes, à sua função simbólica836. Essa afronta coloca em xeque a própria eficácia do direito penal, impondo a ele uma escolha: ou ele se adapta às novas necessidades ou terá seu papel relegado a outros ramos do direito (direito de polícia, o direito do serviço secreto ou o direito de guerra)837.

Os novos riscos citados têm como explicação, como já citado anteriormente, as profundas modificações políticas, técnicas e econômicas que atingiram o mundo nesta segunda etapa da modernidade. São nítidas essas modificações, e suas relações com o campo da criminalidade, quando observamos a criminalidade na internet (questões territoriais e funcionais, crimes contra a ordem econômica, o crime organizado e o terrorismo838). Explicaremos essas causas na parte que se segue.

5.2.1 Causas técnicas

834 SIEBER, Ulrich. Limites do Direito Penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa em Direito Penal no Instituto Max-Planck de Direito Penal Estrangeiro e Internacional. Revista Direito GV, São Paulo 4(1) | Jan-Jun 2008, p. 277.

835 Ibidem.836 Ibidem, p. 278.837 Idem.838 Idem.

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As causas técnicas dos novos riscos da modernidade podem ser sintetizadas no exponencial avanço tecnológico ocorrido nos últimos cinquenta anos, bem como na crescente dependência social de tais tecnologias. Atualmente os computadores são responsáveis por elementos centrais a uma modernidade industrial (de risco), por exemplo: condução do fluxo de dinheiro em âmbito global, armazenamento de dados e segredos de negócios e empresas, vigilância aérea, distribuição de energia elétrica, tratamento de informações militares, setores de saúde, bem como a condução da produtividade de fábricas839.

Estes fatores causam uma dificuldade notável na elucidação dos delitos cometidos, bem como uma massificação dos mesmos, levando o direito penal tanto aos seus limites funcionais quanto aos seus limites quantitativos.

Ademais, os novos riscos técnicos se refletem também no crescimento de uso de tecnologias tais como energia nuclear, biotecnologia, avanços químicos, todas estas trazendo uma nova faceta aos já antigos riscos da sociedade.840 Isto gera na sociedade global de risco não apenas novos riscos, mas também uma nova percepção dos riscos e da criminalidade.

5.2.2 Causas econômicas

A primeira reflexão que se pode fazer acerca das causas econômicas dos novos riscos da sociedade (de risco) remete à questão embates econômicos e suas consequências. Tais embates reforçam os efeitos negativos para determinado grupo de pessoas (os perdedores), viabilizando aumento nos índices de violência, bem como o surgimento de fluxos migratórios, tornando o controle da imigração legal um problema concernente em especial às sociedades desenvolvidas841.

A segunda reflexão que se pode fazer trata de crimes econômicos per se. A presença de grandes grupos econômicos, multinacionais, com vastos recursos financeiros e poder, à primeira ordem não apresentam riscos à sociedade. Entretanto, esta vasta quantidade de poder, aliada a um numeroso montante financeiro, viabiliza abusos, que se manifestam por meio de corrupção, falsidades contábeis, crimes contra o meio ambiente, e crimes econômicos em geral842. Estes efeitos perpassam o caráter do local, podendo, em tempos de um mercado de ações globais, desestabilizar economias de múltiplos países.

839 SIEBER, Ulrich. Limites do Direito Penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa em Direito Penal no Instituto Max-Planck de Direito Penal Estrangeiro e Internacional. Revista Direito GV, São Paulo 4(1) | Jan-Jun2008, p. 279.

840 Ibidem, p. 277.841 SIEBER, Ulrich. Limites do Direito Penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa

em Direito Penal no Instituto Max-Planck de Direito Penal Estrangeiro e Internacional. Revista Direito GV, São Paulo 4(1) | Jan-Jun2008,, p. 280.

842 Idem.

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Não obstante, cada vez mais se nota uma transferência de poder do setor público para o setor privado, que pode ser percebida na recorrente privatização de diversas funções públicas. Os setores de segurança, por exemplo, são ótima demonstração. O crescente número de empresas de segurança privada para atuação em conflitos armados é representação clara deste problema.843

No âmbito do direito penal, isto mais uma vez traz uma dificuldade de elucidação de delitos, bem como na aplicação da lei, que diminuem a eficácia do poder simbólico que representa o Estado, fazendo com que a punibilidade em empresas desta ordem seja de especial importância para a manutenção da segurança jurídica e eficácia do jus puniendi estatal.

5.2.3 Causas políticas

As causas políticas dizem especial respeito às motivações para o terrorismo. O terrorismo motivado pela religião, em especial, representa especial risco ao campo jurídico. Ao aplicarem um desvalor à própria vida, os terroristas não são mais influenciáveis pelo direito penal, gerando uma ameaça grave ao poder simbólico do mesmo844. Ademais, o terrorismo muitas vezes provoca reações estatais que podem aniquilar alguns valores das democracias ocidentais, gerando um contraproducente efeito de novos simpatizantes ao terrorismo, bem como também combatentes ao mesmo.

Desta forma, é evidente a maneira como a criminalidade leva à riscos políticos. O terrorismo, com caráter semi-bélico, atinge alvos estratégicos, ameaçando a integridade estatal. É caso semelhante à atuação do narcotráfico organizado na América Latina, onde os líderes do crime organizado efetivamente neutralizam o monopólio estatal da força. Também de maneira análoga, percebe-se na África movimento semelhante, mas que se revolve em torno da mineração de recursos naturais do solo845.

Estes riscos começam a perpassar a condição de riscos globais à medida que os Estados que os enfrentam são incapazes de efetivamente lidar com eles, seja por decorrência da falha em sua função de proteção (failed states), ou ainda uma falha normativa (um “Estado de não-direito”)846, transformando-se em “paraísos do crime”.

Estes riscos políticos, pela grave qualidade da lesão ao Estado Democrático de Direito, levam à relativização da distinção clássica entre a segurança interna e

843 Idem.844 SIEBER, Ulrich. Limites do Direito Penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa

em Direito Penal no Instituto Max-Planck de Direito Penal Estrangeiro e Internacional. Revista Direito GV, São Paulo 4(1) | Jan-Jun 2008, p. 281.

845 Idem.846 Ibidem, p. 282.

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externa da nação, ipso facto, do direito penal e do direito de guerra. Desta forma, o direito de polícia, o direito de guerra, o direito do serviço secreto e o direito penal acabam por se coincidir em um novo “direito de segurança”847.

5.3 Limites funcionais do direito penal

Frente aos desafios expostos acima, fica claro a necessidade de adaptação do direito penal clássico. Desta forma, para o autor consultado848, encontram-se

duas respostas para as atuais políticas criminais frente a sociedade global de risco:

a) A proposta de solução prevalecente, especialmente defendida pelos Estados alvos do terrorismo, prevê uma desfronteirização do direito penal, assim como a adoção do previamente citado direito de segurança.

b) A segunda proposta trata do desenvolvimento de medidas fora do direito penal (e preferivelmente, fora do direito) de prevenção.

O item a é especialmente voltado para um viés restritivo de liberdades, à maneira do direito penal do inimigo, propondo a (I) antecipação da punibilidade no direito material; (II) ampliação de conceitos preventivos de observação, redução de garantias e criação de competências especiais no direito processual penal; (III) fortalecimento dos deveres de colaboração de particulares na fase anterior e fora do processo penal; (IV) a criação de task forces interinstitucionais e internacionais em uma nova “arquitetura de segurança”; (V) além da dissolução de categorias jurídicas clássicas e da criação de um novo direito de segurança849.

O subitem I seria aplicado em casos de reação à riscos de autoria complexa, com divisão de tarefas, como por exemplo em caso de organizações criminosas com organização em rede, ou células. Este subitem se realizaria através da criação de delitos de organização, tipos penais de conspiração e figuras especiais de imputação850.

O subitem II prevê a criação de sistemas globais de vigilância de “suspeitos” ou pessoas “perigosas”, que seriam fundamentadas em perfis de risco. É notável neste subitem o frágil limiar que há entre prevenção e repressão, ocorrendo além disso uma redução significativa nas garantias e proteções individuais. Em suma, este item prevê uma aplicação mais abrangente do direito de guerra, através do tratamento de pessoas “perigosas” como enemy combatants.847 Idem.848 SIEBER, Ulrich. Limites do Direito Penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa

em Direito Penal no Instituto Max-Planck de Direito Penal Estrangeiro e Internacional. Revista Direito GV, São Paulo 4(1) | Jan-Jun2008, p. 284.

849 Idem.850 Idem.

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O subitem III em muitos países já é posto em prática. Ele consiste na criação, divulgação e avaliação de bases de dados privadas para persecução e precaução penal. Nos Estados Unidos da América (EUA), recentemente houve a revelação de que o Estado se valia de informações obtidas por grandes empresas privadas como Google e Facebook para a persecução de dados indivíduos851, sem a autorização prévia destes.

Os subitens IV e V são típicos das ações “antiterror”. Eles criam uma arquitetura de segurança com típica falta de transparência e controle. Este déficit de controle e transparência se dá pela própria maneira organizacional dessa arquitetura, por serem administrados supranacionalmente por meio de cooperação intergovernamental dos Poderes Executivos (uma vez que tipicamente nesse campo há maior déficit democrático e de transparência)852. Desta maneira, diluir-se-ão direito penal, de guerra, de polícia e do serviço secreto em um direito de segurança, que ampliaria o direito de intervenção do Estado.

Por outro lado, o item b propõe não a desfronteirização do direito penal, mas sim soluções alternativas para a prevenção criminal e o controle social informal, de preferência em caráter extrajurídico853. Em primeira ordem, tem-se que essa prevenção se daria pelo uso de “medidas de prevenção alternativa de efeito proativo”, como é o caso da eliminação dos problemas sociais visando a diminuição do terrorismo, ou em controles por meio da técnica (como no caso dos cybercrimes)854. Uma segunda ordem de medidas alternativas englobaria a mediação, a autorregularão e co-regulação entre Estado e particulares (notadamente internet e imprensa).

Desta forma, nota-se as mudanças que sofrem os limites do direito penal nesta segunda modernidade. Estas mudanças englobam conceitos chaves do direito penal clássico, como por exemplo a dignidade humana, o princípio da culpa, o princípio do estado de direito, o princípio da separação de poderes e o próprio princípio da democracia855. E, se as previsões de Beck continuarem certas, esta sociedade de risco global não ruma a seu fim. Os riscos cada vez mais tendem a perpassar o caráter global da modernidade, enfatizando esta relativização dos princípios e limites do direito penal.

6 Conclusão 851 SIEBER, Ulrich. Limites do Direito Penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa

em Direito Penal no Instituto Max-Planck de Direito Penal Estrangeiro e Internacional. Revista Direito GV, São Paulo 4(1) | Jan-Jun2008, p. 286.

852 Idem.853 SIEBER, op. cit., p. 291.854 Idem.855 SIEBER, Ulrich. Limites do Direito Penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa

em Direito Penal no Instituto Max-Planck de Direito Penal Estrangeiro e Internacional. Revista Direito GV, São Paulo 4(1) | Jan-Jun 2008, p. 293.

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Pode-se concluir, após vasta análise histórica, principiológica e conceitual, que o modelo garantista no Direito Penal provém uma tutela claramente relevante e importante ao cidadão contra o poder punitivo do Estado e possíveis abusos, inclusive diminuindo tal poder punitivo.

Com isso, dispõe-se de um novo panorama epistemológico e social pro Direito Penal e os fins da pena, valorizando e protegendo princípios constitucionais e Direitos Fundamentais estabelecidos o longo da história e se inserindo na Sociedade Global de Risco, abrindo novas questões e discussões no âmbito do Direito Internacional.

Por fim, o garantismo no Direito Penal mostra a clara evolução da proteção do indivíduo e se fixa na concepção moderna de Estado e de tutela do indivíduo sujeito ao Direito Penal, evitando abusos punitivos e garantia do princípio da humanidade.

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