O SELFIE COMO EXPRESSÃO DE MODA E NARCISISMO ... · No contexto pós-moderno, a comunicação...

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015 ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015 O SELFIE COMO EXPRESSÃO DE MODA E NARCISISMO CONTEMPORÂNEOS * The selfie as expression of contemporary fashion and narcissism Cláudia Cyléia de Lima ** (Centro Universitário UNINOVAFAPI-Teresina-PI) (Universidade Federal do Piauí - UFPI – Teresina-PI) [email protected] Resumo: Este artigo busca relacionar o selfie – autorretrato compartilhado via mídias sociais – à moda e ao narcisismo contemporâneos. Para tanto, fez-se uma revisão bibliográfica que liga este tipo de imagem aos pilares da moda contemporânea (LIPOVETSKY, 1989) e ao narcisismo descrito por Lasch (1983). A observação de selfies postados identifica aspectos objetivos e subjetivos que desencadeiam ou exacerbam o narcisismo: necessidade de aclamação pública, ilusão de celebridade, constante menção à moda, supervalorização do novo, e desejo de sucesso como um fim em si mesmo, entre outros. Palavras-chave: Selfie. Narcisismo. Moda contemporânea. Abstract: This paper aims to relate the selfie - self-portrait shared on social media - with contemporary fashion and narcisism. Therefore, we carried out a literature review that connects this type of image to the pillars of contemporary fashion (Lipovetsky, 1989) and narcisism described by Lasch (1983). The observation selfies posted identifies objective and subjective aspects that trigger or exacerbate narcissism: the need for public acclaim, celebrity illusion, constant fashion mention, new overvaluation, and desire to succeed as an end in itself, among others. Keywords: Selfie. Narcisism. Contemporary fashion. Introdução A sociedade de consumo impõe aos sujeitos contemporâneos a comunicação e a criação de estilos de vida muitas vezes imediatistas e efêmeros, marcados pela lógica do individualismo (MESQUITA, 2010, p.93) e pela valorização estética da vida cotidiana. * Trabalho desenvolvido sob a orientação do Professor Doutor Gustavo Fortes Said durante a disciplina Tópicos Especiais em Processos de Subjetivação I, ofertada em caráter especial/optativo no Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Federal do Piauí - UFPI, no período 2014.1 ** Designer de Moda, especialista em Gestão de Negócios da Moda pelo Centro Universitário UNINOVAFAPI; especialista em Direito Civil e Processual Civil pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina-CEUT; professora do curso de Design de Moda do Centro Universitário UNINOVAFAPI e professora substituta do Curso de Moda, Design e Estilismo da Universidade Federal do Piauí - UFPI.

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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015

ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015

O SELFIE COMO EXPRESSÃO DE MODA E NARCISISMO CONTEMPORÂNEOS* The selfie as expression of contemporary fashion and narcissism

Cláudia Cyléia de Lima** (Centro Universitário UNINOVAFAPI-Teresina-PI)

(Universidade Federal do Piauí - UFPI – Teresina-PI) [email protected]

Resumo: Este artigo busca relacionar o selfie – autorretrato compartilhado via mídias sociais – à moda e ao narcisismo contemporâneos. Para tanto, fez-se uma revisão bibliográfica que liga este tipo de imagem aos pilares da moda contemporânea (LIPOVETSKY, 1989) e ao narcisismo descrito por Lasch (1983). A observação de selfies postados identifica aspectos objetivos e subjetivos que desencadeiam ou exacerbam o narcisismo: necessidade de aclamação pública, ilusão de celebridade, constante menção à moda, supervalorização do novo, e desejo de sucesso como um fim em si mesmo, entre outros. Palavras-chave: Selfie. Narcisismo. Moda contemporânea. Abstract: This paper aims to relate the selfie - self-portrait shared on social media - with contemporary fashion and narcisism. Therefore, we carried out a literature review that connects this type of image to the pillars of contemporary fashion (Lipovetsky, 1989) and narcisism described by Lasch (1983). The observation selfies posted identifies objective and subjective aspects that trigger or exacerbate narcissism: the need for public acclaim, celebrity illusion, constant fashion mention, new overvaluation, and desire to succeed as an end in itself, among others. Keywords: Selfie. Narcisism. Contemporary fashion.

Introdução

A sociedade de consumo impõe aos sujeitos contemporâneos a comunicação e a criação de

estilos de vida muitas vezes imediatistas e efêmeros, marcados pela lógica do individualismo

(MESQUITA, 2010, p.93) e pela valorização estética da vida cotidiana.

* Trabalho desenvolvido sob a orientação do Professor Doutor Gustavo Fortes Said durante a disciplina Tópicos Especiais

em Processos de Subjetivação I, ofertada em caráter especial/optativo no Programa de Mestrado em Comunicação da

Universidade Federal do Piauí - UFPI, no período 2014.1

** Designer de Moda, especialista em Gestão de Negócios da Moda pelo Centro Universitário UNINOVAFAPI; especialista

em Direito Civil e Processual Civil pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina-CEUT; professora do curso de Design de

Moda do Centro Universitário UNINOVAFAPI e professora substituta do Curso de Moda, Design e Estilismo da Universidade

Federal do Piauí - UFPI.

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No contexto pós-moderno, a comunicação exerce poder de organização e mediação social,

promovendo trocas simbólicas e estabelecendo valores, dentre os quais podemos citar a liberdade, a

felicidade, o individualismo, o prazer, a “autopreservação” e a “sobrevivência psíquica” – cuja

incorporação, durante o século XX, caracterizam o que Lasch (1983) denominou de cultura do

narcisismo.

Nesta cultura, entre outras facetas, identifica-se a tênue separação entre vida pública e vida

privada, bem como o esvaziamento do sentido de sucesso, onde este aparece como fim em si mesmo,

no qual a aparência de vitória conta mais que a concretização do feito vitorioso – ao contrário do que

ocorria no século XIX, quando o progresso relacionava-se ao ideal de autodesenvolvimento, disciplina

e abnegação.

O sucesso esvaziado é “pessoal e intransferível”, depende da aclamação pública, do desejo de

admiração e da aprovação de atributos pessoais. Estando cada vez mais ligada à aparência e a

vaidade – e à supervalorização do “eu” – a cultura narcisista passa a ser ratificada não somente pela

mídia, mas pela publicidade e pela moda, a qual costuma refletir as transformações socioeconômicas,

culturais e tecnológicas ao longo dos tempos, sempre permeada pela subjetividade. Para Mesquita

(2010, p.15):

Os modos de se vestir, se adornar, de interferir sobre os corpos, são elementos que se compõem com os outros vetores, os quais produzem modos de ser, os modos de relação a si: as subjetividades. A subjetividade varia seus modelos dominantes, a partir da oscilação das forças que estão compondo e recompondo seus contornos. A Moda estetiza e apresenta muitos desses elementos interligados: moral, tecnologia, arte, religião, cultura, ciência, economia, natureza etc.

O momento atual da moda, conceituado por Lipovetsky (1989) como moda consumada, traz

como seus pilares a efemeridade, o esteticismo e o individualismo - fluxos intensamente presentes na

sociedade contemporânea.

A efemeridade relaciona-se à aceleração do tempo, também percebida nos discursos

midiáticos da internet, da moda e da publicidade. O esteticismo privilegia e amplifica a era da imagem,

enquanto o individualismo coaduna-se com o surgimento das tecnologias individualizantes, entre os

quais podemos elencar desde os serviços personal até os perfis pessoais nas mídias sociais.

Diante do paradigma da visibilidade, os acontecimentos legitimam-se ao serem

compartilhados/visualizados por intermédio dos meios de comunicação. E os sujeitos, por sua vez,

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frequentemente acabam adentrando a ordem discursiva midiática, criando “mitos pessoais” e dando-se

a ver a partir das tecnologias da mídia.

Atualmente, as mídias sociais mediam a criação desses mitos, onde não há só a simulação de

um personagem, mas a edição deste, em busca de aceitação e reconhecimento. Entendidas como

espaços para troca de informações, estas mídias também constituem “locais” de subjetividade, nos

quais os sujeitos reinventam-se, mostrando-se da forma que desejam ser vistos (Sobrinho, 2014).

Além disso, apresentam-se como meio de exibição/exaltação pessoal, em uma espécie de

culto à própria imagem que traz particularidades análogas às propostas por Lasch em seu conceito de

narcisismo contemporâneo, tais como o desejo de admiração e aprovação. Um dos exemplos mais

representativos desta realidade corresponde ao selfie (autorretrato), que se tornou um verdadeiro

fenômeno, tanto nas mídias como na vida cotidiana.

Selfie, segundo o registro eletrônico do dicionário Oxford (2013), é uma fotografia de uma

pessoa tirada por ela mesma, normalmente com um smartphone ou uma webcam, e compartilhada em

alguma mídia social. A prática do autorretrato não é uma novidade, havendo registros na Pintura e até

mesmo na Fotografia, estes a partir do início do século XX.

Contudo, a palavra selfie só teria sido utilizada pela primeira vez em um fórum online

australiano em 2002. Oito anos depois, segundo informações divulgadas pela mídia social Instagram,

houve a primeira utilização de uma tag1 com o termo. Na fotografia, feita por meio de um IPhone, a

escritora Jennifer Lee exibe o próprio rosto e, junto à imagem, posta o comentário de que “ama o seu

novo suéter”.

1 “Etiquetas” que referem-se a palavras relevantes; associadas ao símbolo # (cerquilha ou jogo-da-velha) dos teclados

tornam-se as hashtags, que são amplamente utilizadas nas mídias sociais.

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Figura 1 – A escritora Jennifer Lee na primeira imagem com tag selfie. Fonte: http://www.techtudo.com.br

Trata-se, assim, de uma “transformação tecnológica do autorretrato praticada por pessoas que

pertencem a uma cultura visual e que praticam uma cultura visual” (SAITO; SOUZA, 2014, p.12).

Constata-se, também, que até nas fotos mais antigas, há outro elemento a ser ponderado, além da

exibição da própria imagem – a moda.

A moda surge nas fotografias e nos oferece informações visuais sobre a subjetividade dos seus

protagonistas, especialmente no último exemplo, em que a escritora externa o desejo de mostrar às

pessoas de sua rede social a peça de roupa, associada à satisfação pessoal, ao bem-estar e até

mesmo a uma relação de amor com o objeto.

Esta relação é uma característica da sociedade de consumo, onde a moda é um componente

simbólico através do qual são assumidas identidades e subjetividades, em um processo de

ressignificação dos objetos.

Além disso, de acordo com Lipovetsky (1989, p.39):

A moda não foi somente um palco de apreciação do espetáculo dos outros; desencadeou, ao mesmo tempo, um investimento de si, uma auto-observação estética sem nenhum precedente. A moda tem ligação com o prazer de ver, mas também com o prazer de ser visto, de exibir-se ao olhar do outro. Se a moda, evidentemente, não cria de alto abaixo o narcisismo, o reproduz de maneira notável, faz dele uma estrutura construtiva e permanente dos mundanos, encorajando-os a ocupar-se mais de sua representação-apresentação.

Em se tratando de mídias sociais, observações empíricas denotam que os selfies podem ser

considerados instrumentos de ratificação do narcisismo contemporâneo e, nesse contexto, os

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objetos/produtos de moda oferecem ao narcisista várias possibilidades para edição e apresentação da

própria imagem.

Igualmente é possível afirmar que o selfie relaciona-se às características da própria moda

contemporânea, bem como do narcisismo expressado nos dias de hoje. Essas e outras relações

pretendem ser estudadas, de forma resumida, no decorrer deste trabalho.

Selfie, moda e narcisismo contemporâneos

De acordo com o que foi mencionado anteriormente, a prática do selfie conforme a

conhecemos hoje começou a ganhar espaço a partir de publicações em mídias sociais, ocorridas em

um contexto pós-moderno marcado pela cibercultura, definida por Lévy (1999, p.17) como “o conjunto

de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores

que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço”.

As tecnologias midiáticas têm permitido a um grande número de pessoas a projeção de suas

imagens – tanto no ciberespaço como na comunicação entre dois ou mais dispositivos móveis – da

maneira que lhes parecer mais conveniente. Com frequência são criados (e divulgados pela

publicidade) novos aparelhos e aplicativos que possibilitam a troca rápida de informações visuais.

A presença dos dispositivos móveis e das mídias na vida cotidiana alcançou grandes

proporções; o tempo e a linguagem da internet passaram a ditar comportamentos, a criar identidades e

subjetividades diversas, e a fazer com que os sujeitos apresentem-se do modo através do qual querem

ser vistos pelos demais.

Nesse sentido faz-se pertinente afirmar que muitos aspectos da cibercultura tornaram-se moda,

partindo do conceito de moda como estrutura social centrada no presente. Tal estrutura, contudo,

“recicla” elementos do passado, não se limitando só às roupas, mas com uma lógica que anexa objetos

e territórios variados, coincidindo com o desenvolvimento da sociedade de consumo e de comunicação

de massa2.

2 Lipovetsky, o filósofo da moda. Entrevista concedida por Gilles Lipovetsky a Tarcísio D´Almeida. Disponível em:

http://www2.uol.com.br/modabrasil/biblioteca/arquivo/gilles/index.htm Acesso em 30.12.14.

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Os exemplos de autorretratos do passado elencados na introdução deste artigo demonstram

como antigas fórmulas podem ser reinterpretadas pela moda de cada período histórico. A moda na

atualidade, em sua condição de fato social total, “abrange todas as dimensões da sociedade –

econômica, social, cultural – e todos os indivíduos, independentemente da raça, da crença, da classe

social, do gênero, da idade” (PEREIRA, 2004, p. 63). Desse modo, também relaciona-se à mídia na

produção de imagens, divulgação de ideias e estímulo ao consumo.

Os pilares da moda contemporânea permeiam o universo das mídias sociais pelo simples fato

de serem características da própria época em que vivemos, e por igualmente incentivarem o ato de

consumir imagens, ideias e produtos. No referido universo tudo é “novo”, efêmero e passível de

substituição; as imagens e ideais estéticos inalcançáveis pela maioria dos usuários são perseguidos; e

o individualismo é cultuado como um verdadeiro estilo de vida.

As redes sociais online representam as relações entre as pessoas na contemporaneidade, e,

de acordo com Bauman (2001) estas relações são feitas e mantidas vivas por duas atividades

diferentes: conectar e desconectar. No entanto, “o compartilhamento constitui uma das bases da

cultura visual contemporânea” (SAITO; SOUZA, 2014, p.12), na qual existe a disseminação instantânea

de múltiplas imagens, que se incorporam à vida cotidiana e passam a fazer parte dela.

Conforme descreveu Debord (2011), encenamos o nosso próprio espetáculo, e as nossas

relações sociais passam a ser mediadas pelas imagens que visualizamos/compartilhamos, e hoje estão

entre elas os selfies. Seria razoável afirmar, portanto, que a experiência de mundo passaria a ser

vivenciada por meio das inúmeras interações realizadas e, no caso, as fotografias publicadas

constituiriam uma forma de apreender a realidade. E melhor: compartilharíamos estas experiências

com maior número possível de pessoas, presentes em nossas redes de “amigos”.

Contudo, fazer um autorretrato e oferecê-lo a um número indeterminado de pessoas subverte

não somente a estética envolvida na questão, mas a própria experiência da fotografia. Primeiro porque

perdemos o controle sobre a nossa própria imagem e aquele retrato, ao se multiplicar em

computadores, tablets e telefones celulares, passa a não ser mais nosso, abrindo a possibilidade para

manipulação e usos diversos por quem tiver acesso a ele.

Segundo porque, em consonância com o pensamento de Baudrillard (2011), a transformação

da comunicação em espetáculo nos tornou incapazes de vivenciar experiências reais, pois tudo é vivido

anteriormente de forma virtual. E já não podemos imaginar quanta virtualidade existe em nossas

representações do mundo.

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É certo que o selfie realmente traz consigo a citada ideia de compartilhamento. Todavia, trata-

se de um compartilhar que tem o objetivo de causar no outro um sentimento de adesão. Por

conseguinte, começa a desaparecer o elemento comunicacional de interação com o outro, que é

necessário apenas para dizer algo que já se suspeita sobre si mesmo. Na linguagem das mídias

sociais, para “curtir” o que está sendo divulgado.

Embora dividido com demais usuários das redes online, o selfie possui esse poder de

transformar o sujeito em objeto “apagando” o contexto e a figura do outro, positivada para “autorizar” o

que está sendo mostrado em determinada imagem. A contradição reside no fato de que a presença do

outro no processo de comunicação reduz-se à legitimidade que aquele pode dar às mensagens

postadas, quase uma “autorização da felicidade” exposta na tela e/ou display.

E nem é necessário ir muito longe para identificar esta realidade. Basta que observemos os

selfies publicados nas mídias sociais a que temos acesso. Muitos dos retratos são tirados em frente a

espelhos, “como um reflexo de si mesmo que, por sua vez, é refletido pela fotografia” produzida.3

Outras fotos não possuem um cenário ou plano de fundo, simplesmente o rosto da pessoa que

se fotografa toma todo o espaço visível, com um único e exclusivo protagonista: a figura que se mostra

e que, certamente, buscou o ângulo ideal para ser vista e “curtida” pelo maior número possível de

seguidores.

Muitos destes protagonistas aproximam-se do narcisista laschiano, que busca a aparência de

sucesso dissociada da experiência e do trabalho, como se houvesse resultados sem que fosse preciso

haver um processo. O selfie que recebe “curtidas” e comentários positivos supre o desejo de admiração

do narcisista, o qual prefere ser invejado a ser respeitado (Lasch, 1983).

Dados que podem comprovar este fenômeno vêm de uma pesquisa realizada em 2012 pela

Universidade Homboldt de Berlim, que apontou o Instagram como a mídia que mais causava

depressão. Segundo a pesquisa, o sofrimento origina-se nas comparações entre os perfis, afetando a

autoestima dos usuários. Além do chamado “efeito espiral”: ao invejar a foto de alguém, o usuário

procura tirar uma foto na qual pareça mais feliz. Outro dado afirma que as pessoas gastam muito

tempo montando uma imagem bonita e escolhendo o melhor filtro e não percebem o tempo investido

na rede”4.

3 SAID, Gustavo. Tópicos Especiais em Processos de Subjetivação I. Universidade Federal do Piauí – Programa de Mestrado em Comunicação. Disciplina optativa – período 2014.1. Notas de aula.

4 Instagram é apontado como rede social que mais causa depressão. Disponível em: http://olhardigital.uol.com.br/noticia/instagram-e-apontado-como-rede-social-que-mais-causa-depressao/36364 Acesso em: 31.12.14.

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A imagem ideal é uma nuance muito explorada no fenômeno selfie. Com a popularização do

Instagram, pessoas “comuns” passaram a acompanhar o cotidiano e o estilo de vida dos famosos

nacionais e internacionais, tendo a possibilidade de parecer “mais próximos” dos seus ídolos, até

mesmo enviando mensagens a eles.

Figura 2 – Selfie da atriz brasileira Ísis Valverde em seu perfil no Instagram Fonte: http://www.instagram.com/isisvalverde

Da mesma forma, celebridades procuram usar as mídias para ganhar popularidade e ficar mais

próximas dos fãs. Essa aproximação pode provocar a inveja mencionada no estudo citado, mas

também aumenta autoestima do narcisista, o qual liga-se a pessoas admiradas, cuja aceitação almeja

e cuja imagem quer imitar.

Na imagem da atriz brasileira Isis Valverde na mídia social Instagram (Fig.2), comentários

giram em torno de manifestações sobre a sua forma física, merecendo destaque a garota que diz

“quero ser assim” e ter “essa barriga”. Para Nascimento:

Signos de beleza e juventude fazem do narcisismo um fenômeno social, e gerando uma nova forma de indivíduo que, não obstante possa estar inserido na “normalidade”, ou seja, no tipo psicológico médio e comum de nossa sociedade, sofre de ansiedades típicas do narcisismo patológico. [...] O investimento do “narcisista contemporâneo” volta-se para uma imagem constituída a partir de referenciais externos determinados pela indústria cultural e pelo espetáculo (2011, p.100).

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A indústria das celebridades, vinculada aos interesses mercadológicos da mídia de massa,

alia-se a outras indústrias e produtos culturais dos quais depende (Campbell; Twenge,2009): moda,

cosméticos e quaisquer produtos/procedimentos que auxiliem a busca do corpo perfeito. Dentro da

cultura corporificada, o corpo é midiatizado e submetido à visibilidade obrigatória 5 . Discursos

publicitários de elevação dos indivíduos transformam os sujeitos em mídias e objetos de consumo.

Figura 3 – Selfie da atriz brasileira Bruna Marquezine em seu perfil no Instagram Fonte: http://www.instagram.com/brumarquezine

Na figura 3, a também atriz Bruna Marquezine compartilha, via Instagram, um selfie feito em

frente ao espelho do hotel no qual estava hospedada na cidade de Belém-PA, com a seguinte legenda:

“Prontinha!!! E com esmalte lindo da minha coleção #EsmaltesBrunaMarquezine #Ludurana #Belém”,

fazendo a divulgação dos produtos que acabara de lançar em parceria com uma marca de esmaltes.

Enquanto isso, nos comentários, uma seguidora quer saber de onde é o vestido usado pela

atriz. Este é um exemplo de como o autorretrato compartilhado na Internet pode ter afinidade com a

indústria da moda, e como provocam no público em geral a identificação com os sujeitos midiáticos.

Para Lasch, a mídia intensifica os sonhos narcisistas de fama e glória, encoraja o homem

comum a identificar-se com as estrelas e a odiar o ‘rebanho’, e torna cada vez mais difícil para ele

aceitar a banalidade da existência cotidiana” (p.43). Além disso, as relações parassociais são uma das 5 SAID, Gustavo. Tópicos Especiais em Processos de Subjetivação I. Universidade Federal do Piauí – Programa de Mestrado em Comunicação. Disciplina optativa – período 2014.1. Notas de aula.

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peculiaridades do narcisista contemporâneo. Em face da sua dificuldade em manter relacionamentos

reais, prefere forjar ligações com quem irradia celebridade.

Individualistas ao extremo, os narcisistas contemporâneos praticam a “ética da

autopreservação” e da “sobrevivência psíquica”, conceitos também mencionados por Lasch. Desse

modo, possuem uma relação com o tempo em que o agora é o momento mais importante. Desparecem

os questionamentos relativos aos feitos do passado e projetos para o futuro, sobrando apenas a

necessidade de aceitação pelo outro, mas sem que este ganhe um papel importante na vida do

narcisista.

O envolvimento com outras pessoas é, antes de tudo, uma ameaça a uma visão de mundo

“maquiada” e à superficialidade dos relacionamentos. O outro, imprescindível para o exercício da

comunicação e da subjetividade, aparece esvaziado. Até nos selfies feitos em grupo, a ideia parece ser

a de demonstrar pertencimento a uma confraria restrita, onde todos compartilham da mesma alegria

forjada, do mesmo estilo de vida e da mesma subjetividade, como se fossem um só rosto em um selfie

tirado em frente ao espelho.

Nesta conjuntura de supervalorização do “eu”, da profusão de imagens e da cultura de

consumo, a moda ganha ainda mais efemeridade, oferecendo produtos que se adaptam ao que se

quer ter ou apresentar como personagens imagéticos (Mello, 2014), que podem facilmente figurar em

inúmeros selfies, tornando-se também uma forma de expressão do narcisismo.

Considerações finais

Durante esse estudo, buscou-se analisar, a partir de uma breve revisão bibliográfica, a

proposição de que o compartilhamento dos autorretratos conhecidos como selfies por meio de mídias

sociais pode ser encarado como uma das formas de expressão da moda e do narcisismo

contemporâneos.

Partindo do paradigma da visibilidade, constatou-se que a comunicação atualmente ocupa um

espaço distinto, organizando as relações sociais. A sociedade organizada a partir das trocas simbólicas

elevou a vida cotidiana ao patamar de espetáculo, no qual os limites entre público e privado estão cada

vez mais confusos.

Igualmente ocorreu, ao longo dos anos, uma mudança no sentido de tempo, transformando

pensamentos, hábitos de trabalho e a definição de sucesso. Estas transformações culminaram, entre

outras implicações, no individualismo exagerado, no culto às aparências e na preocupação extrema

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com o momento vivido. Levaram, ainda, à ascensão de valores dentre os quais se destacam a

liberdade, o prazer, o “bom humor”, a juventude, a “paz de espírito” – todos apontando para o que

Lasch chamaria de “ética da autopreservação e sobrevivência psíquica” (1983).

Com a consolidação da cibercultura, inserida na cultura de consumo, a Internet passou a ser

um campo de criação e expressão de subjetividades. Mais recentemente, as mídias sociais tornaram-

se palco da “espetacularização” da vida cotidiana, em uma profusão de imagens compartilhadas

instantaneamente via computadores e dispositivos móveis. A visibilidade contemporânea, desse modo,

passa a legitimar os fatos e eventos através de publicação/visualização destes.

Este processo de transformação do dia a dia em espetáculo afeta um grande número de

pessoas e, de certa forma, “pressiona” os indivíduos a possuir redes sociais online. Não ter um perfil na

Internet, não compartilhar sua intimidade na rede pode até mesmo limitar a importância da pessoa em

outros espaços sociais ou fazer com que ela pareça ultrapassada, “parada no tempo”.

Nestes perfis, pode-se não só publicar ideias, interesses em comum com a rede, mas “editar” a

própria imagem, fazer detalhada seleção autobiográfica, escolher a melhor foto, mostrar apenas o

conveniente a ser mostrado, enfim, trata-se de um verdadeiro exercício de individualismo, no qual as

imagens de si mesmo – que esperam “curtidas” e comentários positivos – ocupam espaço privilegiado.

Em 2010, a primeira fotografia com a tag selfie é postada na mídia social Instagram. Esta foto,

compartilhada pela escritora Jennifer Lee, trazia uma legenda que fazia menção ao “amor” que esta

usuária nutria por uma nova peça de roupa. A partir de então os selfies, em sua maioria feitos por meio

de webcam e smartphones, se multiplicaram, surgindo em diversas situações e publicados cada vez

mais rápido.

A efemeridade faz parte das características da sociedade de consumo, que é mantida pela

insatisfação e pela ressignificação dos objetos. Assim, não demorou muito para que o selfie adquirisse

o caráter de moda, uma vez que esta não se limita apenas à roupa, mas a todo um contexto social que

anexa territórios variados, onde estão os meios de comunicação de massa e as tecnologias.

Percebeu-se, portanto, que os pilares da moda contemporânea citados por Gilles Lipovetsky

em seu conceito de moda consumada, quais sejam: a efemeridade, o individualismo e o esteticismo

(1989), relacionam-se à própria natureza do ato de produzir e compartilhar selfies. Além disso, a cada

momento vão surgindo novidades que podem incrementar este ato, como os bastões denominados

monopods, acionados via tecnologia Bluetooth, e que servem para capturar um ângulo maior de

paisagem, e mais pessoas possam aparecer no quadro do selfie.

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A indústria da moda, da estética, do turismo, entre outras, também vêm lucrando com os

autorretratos, especialmente quando estes são feitos por celebridades, que utilizam as mídias sociais

como espaço de autopromoção e divulgação publicitária dos produtos que “assinam”.

Nesse sentido, utilizando as ideias de Christopher Lasch (1983), verificou-se que o fenômeno

selfie constitui uma das formas de expressão do narcisismo contemporâneo. A partir da revisão

bibliográfica e observação de fotografias compartilhadas em mídias sociais, identificaram-se

peculiaridades que levam às considerações mencionadas a seguir.

O narcisista contemporâneo pretende superar suas inseguranças com a visão do seu eu

refletido na atenção alheia. Tal atenção é medida a partir dos comentários positivos e da quantidade de

pessoas que “curtem” as imagens, ou seja, que “validam” a felicidade exposta na fotografia. No entanto,

conforme discorrido no corpo deste trabalho, o outro é uma figura apagada no contexto do selfie.

Com a transformação do sujeito em objeto, depende-se da figura do outro apenas para a

validação da própria autoestima. Esvazia-se, portanto, o processo comunicacional e o exercício das

subjetividades. O compartilhamento é uma das bases do selfie, mas a obsessão do indivíduo consigo

mesmo denota a fragilidade do “eu” e abre espaço para que o narcisismo se instale (SOBRINHO, 2014),

tornando o indivíduo dependente da aprovação alheia apenas até certo ponto – uma vez que a

presença do outro pode interferir na sobrevivência psíquica do narcisista.

Necessidade de aclamação pública e de aprovação dos atributos pessoais, desejo de

admiração, ilusão de celebridade, supervalorização do novo e da juventude, e a vontade de obter o

sucesso como um fim em si mesmo são particularidades narcísicas que podem ser identificadas nos

selfies. A perseguição de um ideal do corpo perfeito – ou tido como perfeito pelos padrões vigentes – e

o culto às aparências também integram este rol.

É quando surge novamente a “última moda”, que precisa ser retratada pelo narcisista e nos

leva à recordação do primeiro selfie compartilhado no Instagram, uma referência ao “amor” que a

usuária da mídia sentia pelo seu novo suéter. Ou aos perfis de celebridades, repletos de selfies no

espelho que mostram o “look do dia”, que a própria moda já convencionou mudar a denominação para

“outfit of the day” ou, na linguagem das hashtags, #ootd.

Em face das observações realizadas, infere-se que as mídias sociais são o cenário ideal para a

criação de mitos pessoais e amplificação de personalidades narcísicas. Na cultura pós-moderna,

marcada pelo consumo e pelo individualismo exacerbado, identificam-se aspectos mercadológicos nas

próprias relações entre as pessoas, transformando os sujeitos em mídias.

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Torna-se possível afirmar, portanto, que os autorretratos compartilhados contribuem para a

proliferação da cultura narcisista, e guardam estreitas relações com outros aspectos da sociedade

contemporânea, como a moda e a publicidade, por exemplo. Desse modo, o narcisismo

contemporâneo passa a contar com condições subjetivas e objetivas que o desencadeiam ou

exacerbam, entre os quais figuram as próprias mídias sociais, o selfie e a moda.

Referências

Livros:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo.Lisboa-Portugal: Edições 70 Arte & Comunicação, 2011.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011.

LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

_________________. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri: Manole, 2006.

MESQUITA, Cristiane. Moda contemporânea: quatro ou cinco conexões possíveis. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2010.

TWENGE, J.M; CAMPBELL, W.K. The narcisism epidemic living in the age of entitlement. New York: Free Press, 2009.

Notas de aula:

SAID, Gustavo. Tópicos Especiais em Processos de Subjetivação I. Universidade Federal do Piauí – Programa de Mestrado em Comunicação. Disciplina optativa – período 2014.1. Notas de aula. Anotações.

Revistas ou periódicos:

PEREIRA, Cláudia da Silva. Fabricando Sonhos: ascensão social no mercado da moda. Revista Interdisciplinar de Marketing. V.3, n.1. Rio de Janeiro, RJ, 2004 (p. 58-64)

Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015

ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015

SOBRINHO, Patrícia Jerônimo. “Meu selfie”: a representação do corpo na rede social Facebook. Artefactum - revista de estudos em Linguagens e Tecnologias. V.1, n.1. Rio de Janeiro, RJ, 2014 (p.120-133).

SOUZA, Marco André Vinhas de; SAITO, Cecília Norito Iko. O indivíduo como mídia: as tecnologias cotidianas e a personalização midiática. Revista Temática – Universidade Federal da Paraíba – NAMID/UFPB. V. 10. João Pessoa-PB, 2014 (p. 01-17).

Dissertação:

NASCIMENTO, Mérly Luane Vargas do. O narcisismo contemporâneo: da barbárie social à tirania íntima. 2011.147 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – PPI - Universidade Federal de Maringá, Maringá-PR, 2011.

Sites:

Fotografia de 1926 mostra casal usando o primeiro 'pau de selfie'. Disponível em: <http://www.tribunadabahia.com.br/2014/12/25/fotografia-de-1926-mostra-casal-usando-primeiro-pau-de-selfie>. Acesso em 30.12.14.

Instagram é apontado como rede social que mais causa depressão. Disponível em:

<http://olhardigital.uol.com.br/noticia/instagram-e-apontado-como-rede-social-que-mais-causa-

depressao/36364>. Acesso em: 31.12.14.

Is this the world's first amateur selfie? Woman captured her own image in 1900 with Kodak Box

Brownie camera. Disponível em: <http://www.dailymail.co.uk/femail/article-2509952/Black-white-

selfies-dating-1800s-shed-light-history-self-portrait.html#ixzz3Tby4OoWl>. Acesso em 30.12.14.

Registros Curiosos #1: Uma "selfie" tirada em 1920. Disponível em: <http://www.historiailustrada.com.br/2014/04/registros-curiosos-1-uma-selfie-tirada.html#.VPmrnuEYE8U>. Acesso em 30.12.14.

Saiba quem fez o primeiro post autorretrato com a tag 'selfie' no Instagram. Disponível em: <http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2013/11/saiba-quem-fez-o-primeiro-post-autorretrato-com-tag-selfie-no-instagram.html>. Acesso em:.

SANTOS, Marco. Selfie-service: breve história dos selfies. Disponível em:

<http://www.bitaites.org/internet/selfie-service>. Acesso em 30.12.14.

Trabalho apresentado em evento:

MELLO, Nádia. Moda e narcisismo na cultura contemporânea. In: 10º Colóquio de Moda – 7ª

Edição Internacional; 1º Congresso Brasileiro de Iniciação Cientifica em Design e Moda. Anais. Caxias

do Sul-RS: Colóquio de Moda, 2014.