O Problema na Modelagem Matemática: determinação e ... · (2004), Biembengut e Hein (2007) e...
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ISSN 1980-4415
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1980-4415v33n64a15
Bolema, Rio Claro (SP), v. 33, n. 64, p. 748-767, ago. 2019 748
O Problema na Modelagem Matemática: determinação e
transformação
The Problem in Mathematical Modeling: determination and transformation
Rodrigo Dalla Vecchia*
ORCID iD 0000-0002-5914-985X
Marcus Vinicius Maltempi**
ORCID iD 0000-0001-5201-0348
Resumo
Este artigo tem por objetivo discutir o conceito de problema em Modelagem Matemática no contexto abrangido
pela Educação Matemática. Trata-se de resultado de uma pesquisa, norteada pela metodologia qualitativa, em
que realizamos um curso envolvendo a construção de jogos eletrônicos. A pergunta diretriz assumida é: como se
mostra o problema no processo de Modelagem Matemática envolvido na construção de jogos eletrônicos por
alunos de um curso de Licenciatura em Matemática? Como principal referencial teórico trazemos a visão
deleuziana de problema, que não associa o problema à dúvida nem à pergunta, colocando-o em um estado não
atual. A análise de dados, aliada a um aprofundamento teórico-filosófico, apresenta possíveis consonâncias entre
essa visão e as atividades de Modelagem Matemática desenvolvidas. Como resultado, apresentamos que o modo
como o problema é determinado condiciona os encaminhamentos das situações desenvolvidas e,
consequentemente, o próprio processo de Modelagem Matemática.
Palavras-chave: Educação Matemática. Mundo Cibernético. Realidade. Scratch.
Abstract
In this paper, we discuss the problem concept in Mathematical Modeling in the context of Mathematics
Education. It is the result of a research guided by a qualitative methodology, where we set a course involving the
construction of electronic games. As the main theoretical reference, we bring Deleuze’s problem vision, that is
not associated with doubt or question, but with a non-actual state. Data analysis combined with a theoretical and
philosophical depth, led to the construction of a problem concept aligned with the mathematical modeling
activities we developed. As a result, we show that the way the problem is determined conditions the developed
situations and, therefore, the process of Mathematical Modeling.
Keywords: Mathematics Education. Cyber World. Reality. Scratch.
* Doutor Universidade Estadual Julio de Mesquista Filho (UNESP). Professor do Programa de Pós Grduação em
Ensino de Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do
Sul, Brasil. Endereço para correspondência: Av. Bento Gonçalves, 9500 Prédio 43-111. Bairro Agronomia Porto
Alegre, RS, Brasil CEP: 91509-900. E-mail: [email protected]. ** Livre Docente em Educacao Matematica pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro/SP.
Professor do Programa de Pos-Graduacao em Educacao Matematica e do Departamento de Estatistica,
Matematica Aplicada e Computacao da UNESP, Rio Claro/SP. Endereco: Avenida 24A, 1515, Bela Vista, Rio
Claro, Sao Paulo, Brasil, CEP 13506-900. E-mail: [email protected].
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1 Introdução
Nosso objetivo principal neste artigo é discutir o conceito de problema no contexto da
Modelagem Matematica (MM) sob o viés da Educacao Matematica. Tanto na literatura
nacional (BARBOSA, 2001; ARAÚJO, 2002; BASSANEZI, 2004; BIEMBENGUT, HEIN,
2007; JAVARONI, 2007; MALHEIROS, 2008; KLÜBER, 2012; WEINGARTEN, 2015),
quanto na literatura internacional (POLLAK, H., 2007; BORROMEO FERRI, R.; BLUM,
2010; KAISER, G.; SCHWARZ, B.; TIEDEMANN, S, 2010) é possivel perceber que as
discussões acerca de MM envolvem também a ideia de problema.
Conforme Dalla Vecchia (2009, 2012), a ideia de problema (e também de realidade)
parece ser um aspecto que perpassa, de modo direto e indireto, distintas concepcões de MM.
Esse aspecto pode ser reforcado em trabalhos com vasta pesquisa bibliografica como as de
Klüber (2012), que buscam compreensao acerca da Modelagem Matematica no âmbito da
Educacao Matematica, apontando o problema como sendo um dos aspectos que se mostra.
Como forma de contextualizar o modo como o problema se relaciona com a MM,
trazemos uma visao classica e comumente aceita no cenario investigativo nacional e
internacional, dada por Borromeo Ferri e Blum (2010). Na perspectiva desses autores, o
processo de MM é visto como um ciclo e denotado por ciclo de modelagem (Figura 1), que
parte de uma situacao real problematica.
Nessa forma de conceber a MM, ha um conjunto de passos que sao seguidos e iniciam
apos a tarefa ser dada. O primeiro passo é, segundo os autores, imaginar a situacao
construindo um modelo para ela. Essa situacao é simplificada, estruturada e idealizada,
criando-se associacões entre a situacao investigada e a Matematica. Apos essa idealizacao, a
estrutura é vista sob o ponto de vista da Matematica e trabalhada matematicamente até
encontrar resultados, também matematicos. Esses resultados sao interpretados na situacao
real, sendo validados ou nao. Se nao forem validados, o ciclo recomeca, caso contrario o
processo se encerra com a exposicao do resultado obtido.
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Figura 1 – Ciclo de modelagem
Fonte: Borromeo Ferri; Blum (2010, p. 426).
Com pequenas variacões dessa visao, podemos ainda citar autores como Bassanezi
(2004), Biembengut e Hein (2007) e Kaiser, Schwarz e Tiedemann (2010) que, de modo geral,
mostram o aspecto apontado por Araújo (2002), iniciando o processo de MM a partir de uma
situacao problematica e culminando com uma solucao por meio de um modelo matematico.
Consideramos que o fato do problema ser parte fundamental do processo de MM, ja
justifica um aprofundamento em seu entendimento, ainda mais que, em nossa revisao de
literatura, praticamente nao encontramos artigos e pesquisas que focam nesse aspecto.
Entretanto, o principal motivador para investirmos em um aprofundamento no conceito esteve
relacionado à necessidade que sentimos ao buscarmos compreensões acerca dos
desdobramentos que o problema sofria ao longo do processo de MM em uma investigacao na
qual estudantes de um curso de Licenciatura em Matematica eram convidados a construir
jogos eletrônicos por meio da linguagem de programacao Scratch1. Nesse caso, entendemos
que a literatura existente nao dava sustentacao para explicar aquilo que vivenciavamos
naquela investigacao.
Com base nessa necessidade, levantamos como pergunta diretriz para o escopo desse
artigo o seguinte questionamento: como se mostra o problema no processo de Modelagem
Matematica envolvido na construcao de jogos eletrônicos por alunos de um curso de
Licenciatura em Matematica? Consideramos que, para buscar indicios de respostas, era
necessario contrastar os dados obtidos junto aos alunos com referências que trouxessem uma
visao nao superficial de problema.
Dentre as visões que encontramos, nos inspiramos na trazida por Deleuze (1988), que
afirma que o problema nao pode ser confundido com a dúvida, nem com a pergunta e nao se
1 Esse recurso será discutido na seção de metodologia.
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subordina a nenhuma proposicao que a ele se refere. Nesse contexto, a forma como o
problema é descrito, mostra apenas uma das potenciais interpretacões para ele, subordinada ao
contexto historico-social e à linguagem usada para sua determinacao. Neste artigo,
aprofundaremos essa visao entrelacando-a com o processo de MM.
Enfatizamos que buscaremos fazer associacões que devem ficar no âmbito de uma
inspiracao no conceito de problema trazido. Desse modo, nao se trata de considerar o
problema em MM como uma trama de tendências que abrange todos os aspectos identificados
por Deleuze (1988). Queremos apenas nos servir de suas ideias para buscar pontos de vista
que nos permitam criar linhas de fuga distintas das comumente consideradas na area
investigativa especifica da MM no âmbito da Educacao Matematica. O que buscamos é
consolidar um modo de compreender o problema que apresente aspectos consonantes com o
processo de construcao de modelos na MM encontrados em nossa producao de dados.
Visando alcancar nosso objetivo, apresentaremos o aporte teorico-filosofico que
embasa a visao de problema que assumimos. Em seguida, traremos os elementos
metodologicos da investigacao, orientada pelos pressupostos da pesquisa qualitativa. Com o
intuito de dar indicios à pergunta diretriz, traremos os dados buscando um entrelacamento
com o referencial, mostrando o surgimento de dúvidas e de perguntas que foram responsaveis
pela determinacao de todo o processo de modelagem. Por fim, faremos uma reflexao que
associa o problema ao processo de MM.
2 Problema: aspectos teóricos
Segundo o dicionario de filosofia Abbagnano (2007), o termo problema foi elaborado
inicialmente pela Matematica antiga e usado para designar uma classe de situacões que se
diferenciavam da nocao de teorema. Enquanto o teorema era concebido pelos matematicos
como qualquer proposicao demonstravel, o problema era visto como qualquer proposicao que
partia de certas condicões conhecidas (e assumidas como verdadeiras), para buscar alguma
coisa desconhecida. Essa perspectiva é trazida desde a Grécia antiga e ganhou forca nas ideias
de Kant, que entende que “[...] problemas sao proposicões demonstraveis que exigem provas
ou expressam uma acao cujo modo de execucao nao é imediatamente certo” (ABBAGNANO,
2007, p. 934).
Essa visao é criticada por Deleuze (1988), que entende que compreender o problema
desse modo remete a uma subordinacao dele ao contexto abrangido pela Matematica e,
consequentemente, pelas ciências. Segundo esse autor, ao assumir essa visao, todo problema
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sera considerado como tal somente se puder ser decalcado em “[...] proposicões que se
supõem preexistentes, opiniões logicas, teoremas geométricos, equacões algébricas, hipoteses
fisicas” (DELEUZE, 1988, p. 264). Por conseguinte, ha automaticamente uma reducao dos
problemas somente às formas de proposicao que sao capazes de lhes servir como casos de
solucao, fazendo com que o problema seja avaliado, segundo sua possibilidade de receber
uma resposta no contexto cientifico.
A critica levantada por Deleuze (1988) se potencializa no presente artigo,
principalmente se levarmos em consideracao a relacao entre ciência e realidade e o papel da
Modelagem Matematica nesse entrelacamento. Segundo Granger (1994), a ciência se refere
ao real, mas apresenta uma visao particular dele, dada segundo suas perspectivas e segundo
seus métodos. Tal visao, conforme Bicudo e Rosa (2010), nao abrange a experiência vivida no
âmbito do particular. Sendo assim, nos parece valido buscar uma compreensao de problema
que extrapole o contexto da ciência e se diferencie da apresentada em Abbagnano (2007).
No contexto que abrange a Educacao Matematica – em particular na Resolucao de
Problemas – a perspectiva de compreender problemas num campo que envolve somente a
ciência é atenuada. De fato, autores como Echeverria e Pozo (1998, p. 15) entendem o
problema como sendo “uma situacao que um individuo ou grupo quer ou precisa resolver e
para a qual nao dispõe de um caminho rapido e direto que o leve à solucao”. Similarmente
estao autores como Onuchic e Allevato (2005, p. 221), que entendem problema como “[...]
tudo aquilo que nao sabemos fazer, mas que estamos interessados em fazer”.
O que observamos dessas citacões é que ha distincões frente à perspectiva de
considerar o problema como sendo uma proposicao demonstravel e que exige provas,
apresentada em Abbagnano (2007). Embora em comum com essa ideia exista a consideracao
de nao uniformidade de encaminhamentos, parece haver implicito às consideracões dadas nas
duas últimas citacões uma abordagem subjetiva e intersubjetiva, que leva em consideracao os
envolvidos no processo. Em outras palavras, os problemas abrangem uma dimensao particular
que se distingue de outras situacões que se apresentam ao individuo (ou grupo) pelo fato de
nao conhecer caminhos que levam à solucao.
Com uma visao que também considera aspectos subjetivos na MM esta a perspectiva
defendida por Borba, Malheiros e Zullato (2007, p. 99-100), que entendem que o problema
pode ser visto como “[...] algo com uma parte subjetiva e outra objetiva, sendo a primeira
relacionada a um interesse pessoal e a segunda ligada a um obstaculo que de fato se apresenta
na existência da experiência de uma pessoa ou grupo”. Para elaborar essa visao, os autores se
basearam em Saviani (1996), que afirma que um problema nao pode ser reduzido apenas a
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uma questao, mas deve, necessariamente, estar associado a uma necessidade.
Entretanto, para compreender o conceito de problema, Saviani (1996) salienta que nao
basta focar a palavra necessidade, uma vez que ela pode fazer com que o conceito de
problema oscile em funcao da diversidade de cada individuo e da multiplicidade de situacões
que fazem parte do cotidiano diario de cada individuo. Sendo assim, destaca o problema como
tendo um lado subjetivo, baseado na conscientizacao de uma situacao de necessidade e outro
objetivo, relacionado à propria situacao que concretizou a necessidade. De forma mais
especifica, tem-se que:
A verdadeira compreensao do conceito de problema supõe [...] a necessidade. Esta
so pode existir se ascender ao plano consciente, ou seja, se for sentida pelo homem
como tal (aspecto subjetivo); ha, porém, circunstâncias concretas que objetivizam a
necessidade sentida, tornando possivel, de um lado, avaliar o seu carater real ou
suposto (ficticio) e, de outro, prover os meios de satisfazê-la. Diriamos, pois, que o
conceito de problema implica tanto a conscientizacao de uma situacao de
necessidade (aspecto subjetivo) como uma situacao conscientizadora da necessidade
(aspecto objetivo) (SAVIANI, 1996, p. 14-15).
Sendo assim, esse autor se preocupa em assumir uma visao abrangente, entendendo
que os aspectos subjetivos relacionados ao problema se configuram numa amplitude
abrangida pela necessidade, enquanto os aspectos objetivos tratam da propria situacao que
gerou a necessidade. Em particular, consideramos que, embora haja uma ampliacao da
compreensao, estas ideias se mostram consonantes com as defendidas por Echeverria e Pozo
(1998) e Onuchic e Allevato (2005), principalmente levando em consideracao a seguinte
afirmacao de Saviani (1996, p. 14): “[...] uma questao, em si, nao caracteriza o problema, nem
mesmo aquela cuja resposta é desconhecida; mas uma questao cuja resposta se desconhece e
se necessita conhecer; eis ai um problema”.
Apesar de concordarmos com algumas das ideias defendidas por este autor, ao nos
depararmos com situacões encontradas quando a MM tem como referência a realidade do
mundo cibernético2, tivemos necessidade de buscar uma visao distinta e que, além de
considerar os aspectos subjetivos e objetivos, acolhesse, principalmente, uma perspectiva de
transformacao do problema. É neste sentido que apresentamos uma visao de problema que se
baseia principalmente nas ideias apresentadas por Deleuze (1988). Essa perspectiva difere da
anterior por atentar para a relacao entre o problema e a proposicao que a ele se associa e
busca, de algum modo, descrevê-lo. Nesse sentido, o autor defende que o problema nao pode
ser confundido com a proposicao que o representa, tampouco deve ser reduzido à dúvida.
2 Consideramos, embasados em autores como Bicudo e Rosa (2010) e Lévy (1996), que o universo criado pelas
tecnologias digitais é uma dimensão da realidade e a adjetivamos como realidade do mundo cibernético.
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Em termos gerais a dúvida pode ser entendida como “[...] um estado subjetivo de
incerteza, ou seja, uma crenca ou opiniao nao suficientemente determinada, ou a hesitacao em
escolher entre a assercao da afirmacao e a assercao da negacao” (ABBAGNANO, 2007, p.
935). Tendo sua base na incerteza, a dúvida ja se constitui em uma espécie de vetor que
aponta na direcao de possiveis respostas.
Entretanto, nem todo problema pode ser reduzido à dúvida. A natureza deles difere no
sentido de que o problema nao é substituido pela resposta ou deixa de ocorrer quando é
resolvido. Como exemplo, Abbagnano (2007) traz que, ao encontrar a vacina de uma doenca,
tem-se a possibilidade de solucao para o problema. Porém, essa possibilidade nao elimina o
problema, uma vez que nao garante que a doenca nao ocorrera mais. Ja a dúvida, “[...] uma
vez resolvida, esta eliminada e é substituida pela crenca” (ABBAGNANO, 2007, p. 935).
Também, seguindo nosso referencial, consideramos que o problema e a proposicao que
a ele se refere assumem uma distincao de natureza. Nesse sentido, Deleuze (1988) afirma que
os problemas sao “extra-proposicionais”. A analogia que fazemos para esclarecer essa
afirmacao é a mesma da relacao entre uma paisagem, vista pelo pintor, e o quadro desenhado
por ele. Assim como a tela pintada nao é a situacao vista, mas sim uma representacao dela, a
proposicao nao é o problema, mas uma forma de representa-lo. Nisso devem ser levados em
consideracao os aspectos da linguagem usada para a representacao, os aspectos que dizem
respeito ao problema em si e o modo como o problema é interpretado pelos sujeitos que
buscam sua determinacao, isto é, a proposicao que a ele se refere.
Essa proposicao, ou o modo como o problema é expresso, é considerada uma forma de
conduzir o problema, ja indicando possiveis respostas e o caminho pelo qual o problema vai
se desvelar. Nesse sentido, Deleuze (1988, p. 265) afirma:
Por si mesma, uma proposicao é particular e representa uma resposta determinada.
Um conjunto de proposicões pode distribuir-se de tal maneira que as respostas que
elas representem formem os casos de uma solucao geral (assim, os valores de uma
equacao algébrica). Mas, precisamente, gerais ou particulares, as proposicões so
encontram sentido no problema subjacente que as inspira.
Com essa afirmacao, o autor mostra uma visao de problema anterior à proposicao que
o representa. Porém, cabe salientar que, a nosso ver, a nocao de “resposta” que a proposicao
assume, esta diretamente associada à ideia que esse filosofo traz de pergunta. De modo geral,
aponta que nao considera existir uma biunivocidade entre problemas e questões, mas ressalva
a importância da pergunta como orientadora, como uma espécie de condutor na direcao da
solucao. Em outras palavras, a pergunta
[...] exprime, portanto, a maneira pela qual um problema é desmembrado, cunhado,
traido na experiência e pela consciência, de acordo com seus casos de solucao
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apreendidos como diversos. Embora nos dê uma ideia insuficiente, ela nos inspira,
assim, o pressentimento do que ela desmembra (DELEUZE, 1988, p. 257).
Esse papel que a pergunta assume, conforme Deleuze (1988), esta sempre atrelado ao
quadro social de onde parte a inquietacao, trazendo pontos de vista, considerando a
experiência vivida e os possiveis interlocutores, levando em consideracao as respostas
passiveis de serem dadas.
Deleuze (1988), em suas argumentacões, nao apenas distingue o problema no modo
como é representado, mas também analisa a relacao existente entre este e sua solucao, pois
afirma que um “[...] problema se determina ao mesmo tempo em que é resolvido; mas sua
determinacao nao se confunde com a solucao: os elementos diferem por natureza, e a
determinacao é como a gênese da solucao concomitante” (p. 267).
Para compreender essa afirmacao, é importante salientar que, em suma, o problema é
considerado por esse autor como uma estrutura potencial ou nao atual, nao se deixando
apreender por nenhuma proposicao que a ele se refere. À medida que ha uma imersao do
sujeito ou dos sujeitos no problema, ha uma busca por sua determinacao, que pode ser
entendida, grosso modo, como uma espécie de atualizacao do problema, em termos de
linguagem, sob a forma de proposicões (interrogativas, afirmativas, descritivas, etc.).
Entretanto, o modo como é expresso ja influencia e conduz a busca por solucões, isto
é, a determinacao do problema é o inicio, é a gênese que norteia a busca por uma solucao.
Mas essa determinacao é apenas um caso particular do problema, podendo haver outras
formas de interpretar e conceber a situacao que esta sendo investigada. Desse modo, distintas
formas de conceber a situacao podem levar a distintos encaminhamentos, podendo gerar
distintas solucões.
Inspirado nessa perspectiva, consideramos que é possivel compreender problema
como um conjunto de condicões nao atuais e indeterminadas que dizem respeito a uma dada
situacao e que gera um campo de conflitos que vai assumindo um carater mais ou menos
estavel, à medida que vai sendo determinado. É essa a perspectiva de problema que
assumimos para o presente artigo.
3 Metodologia e procedimentos de pesquisa
O presente artigo visa encontrar indicios para a pergunta: como se mostra o problema
no processo de Modelagem Matematica envolvido na construcao de jogos eletrônicos por
alunos de um curso de Licenciatura em Matematica? A metodologia utilizada para realizar
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essa investigacao foi a qualitativa, cujo proposito fundamental, conforme Santos Filho e
Gamboa (2000) e Bogdan e Biklen (1994), é a compreensao, a explanacao e a interpretacao
do fenômeno estudado, o que entendemos estar em consonância com a pergunta que
propusemos.
Para buscar respostas ao questionamento norteador, ministramos um curso intitulado
“Construcao de Jogos Eletrônicos”. Participaram do curso oito alunos de graduacao de um
curso de Licenciatura em Matematica. As atividades ocorreram ao longo de oito sabados, de
maio a julho de 2009, no Laboratorio de Ensino e Aprendizagem com Tecnologias, das 8h às
12h, somando um total de 4 encontros.
O principal programa usado na construcao dos jogos foi o Scratch, que é um software
livre desenvolvido no MIT (Massachusetts Institute of Technology). Constitui-se como uma
linguagem de programacao visual e permite ao usuario construir interativamente suas proprias
historias, animacões, jogos, simuladores, ambientes visuais de aprendizagem, músicas e arte.
Os comandos sao visualizados por meio de blocos que sao arrastados para uma area especifica
e conectados, formando a programacao do ambiente (Figura 2).
Figura 2 – Programação no Scratch.
Fonte: Dados da pesquisa (2012).
O conjunto de informações provenientes das falas, interações entre os participantes,
interações com os software e outras mídias e gestos, constituíram parte fundamental do acervo
de dados que foram utilizados na busca por respostas à questão norteadora. Tais dados foram
capturados por filmagens em câmeras e, principalmente, por meio do software Camtasia. Este
último permitiu que, em um mesmo vídeo, fossem capturados a imagem da tela do
computador e imagem e som das discussões envolvendo os participantes. Durante a segunda
etapa do curso foram realizadas 16 gravações de 3,5 horas cada, em média, totalizando 56
horas de gravação.
Em termos metodológicos, a utilização de vídeos é defendida por Powell, Francisco e
Maher (2004) que afirmam existir pelo menos dois ganhos potenciais de registros ao utilizar
essa forma de armazenamento de dados como uma fonte de pesquisa: a densidade e a
permanência. Segundo eles, a densidade tem como vantagem sobre um observador a
capacidade de monitorar eventos simultâneos de forma detalhada, revelando diferentes
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comportamentos desenvolvidos bem como a vantagem de possibilitar áudio e vídeo
simultaneamente. Quanto à permanência, refere-se à possibilidade de rever várias vezes os
acontecimentos vivenciados, auxiliando na eficácia da análise:
Análises detalhadas de vídeos e de dados longitudinais, assim como os de curto
prazo, tornam-se mais eficazes a partir de múltiplas sessões de visualização. O vídeo
não apenas nos permite múltiplas visões, mas também possibilita visões sobre
múltiplos pontos de vista (POWELL, FRANCISCO, MAHER, 2004, p. 91).
A analise dos dados consistiu-se em um olhar atento e reflexivo frente aos
acontecimentos do processo de construcao dos modelos que compõem os jogos eletrônicos
elaborados pelos alunos. Norteados pela pergunta diretriz, os dados gravados no Camtasia
foram transcritos. Essa transcricao envolveu todas as falas dos participantes ao longo do
processo de construcao dos jogos. Posteriormente esses dados foram organizados, buscando
uma nova leitura, levando em consideracao as anotacões feitas durante o processo de
producao, a troca de ideias com os pares e as inquietacões levantadas ao longo, tanto da
transcricao, quanto da revisao de literatura.
As reflexões frente às primeiras impressões fizeram com que parte da sustentacao
teorica fosse repensada. Dentre os elementos revistos, a ideia de problema foi um dos que se
mostrou relevante a nos, apresentando caracteristicas que mostravam processos distintos do
que a literatura tratava. Desse modo, embora neste artigo tenhamos apresentado o referencial
de problema anterior aos dados, na sequencialidade temporal da investigacao ele foi feito a
posteriori, consequência da imersao nos dados.
Assumida uma visao de problema, foram criados episodios, entendidos como
“historias” que dizem respeito aos fatos ocorridos ao longo da producao de dados, que
mesclam transcricões literais e analises frente às acões e posicionamentos tomados pelos
envolvidos nas construcões dos jogos eletrônicos, trazendo luz à questao orientadora. Devido
à linguagem especifica dada pela propria natureza do Scratch, optamos por associar aos
episodios, sempre que necessario, imagens que se referem tanto aos modelos criados pelos
alunos, quanto à atualizacao deles no jogo.
Buscando atender aos critérios éticos, foi solicitado aos estudantes autorizacao para
utilizacao dos dados. Os nomes usados nas transcricões feitas foram ficticios, pretendendo
com isso preservar a identidade de cada participante. Com vistas a um melhor entendimento
do processo de analise e para uma melhor contextualizacao, apresentaremos na proxima secao
recortes do episodio que gerou as discussões apresentadas nesse artigo.
4 O problema e a Modelagem Matemática: o que mostram os dados?
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Apresentaremos o episodio que nomeamos por “Movimento do Carro”, que trata do
processo de construcao de um modelo, escrito na linguagem Scratch, que condiciona o
movimento de um objeto representado graficamente pela imagem de um automovel.
Destacamos que, para o escopo abrangido por este artigo, compreenderemos as construcões
feitas por meio do Scratch, como modelos matematico-tecnologicos. Esses modelos, por
terem sua base dada pela tecnologia, podem incorporar em sua estrutura aspectos sonoros e
estético-visuais, abrangendo também elementos da lingua falada, configurando assim um tipo
de modelo que se diferencia daqueles que comumente sao utilizados em uma linguagem
matematica formal.
Buscando ainda reforcar as associacões com a Modelagem Matematica, salientamos
que entendemos a construcao de um jogo eletrônico como a reuniao de pequenos modelos
especificos, que tratam das particularidades e problematicas encontradas em cada aspecto que
constitui o proprio jogo. Assim, aspectos como movimentacao de objetos, entrelacamentos
entre diferentes objetos e fluxos condicionais sao analisados como problemas especificos e
possuem construcões (modelos) especificas que os determinam e conduzem.
Na especificidade deste artigo apresentamos o problema que envolve a movimentacao
de um objeto buscando fazer com que sua atualizacao na tela do computador permaneca em
uma regiao visual especifica. Esse problema envolve as discussões e construcões feitas pela
dupla de estudantes Ana e Laura (nomes ficticios), no dia 17 de julho de 2009. Também
participaram dos dialogos o professor/pesquisador (P) e o monitor (V) que estavam presentes
nesse dia. Nesse encontro, a participante Ana nao compareceu, portanto os dialogos sao
compostos, em sua maioria, pelas falas da estudante Laura e do professor/pesquisador.
O objetivo da dupla era criar um objeto carro que desviaria de outros objetos que
seriam tomados como obstaculos colocados em uma pista. Com esse intuito, partiram para a
construcao do cenario e dos elementos que constituiriam o jogo. Apos encontrarem uma
figura para o cenario do jogo, dedicaram seu tempo a modelar a interacao dos obstaculos,
observando posicao, velocidade, deslocamento e aspecto visual. Iniciaram, ainda, a
construcao do modelo que estava associado ao movimento do carro. Criaram uma estrutura
que envolvia o objeto carro e um conjunto de comandos relativos a esse que pode ser
visualizado3 na Figura 3.
3 Ao longo da apresentação dos dados a qualidade das figuras poderá variar. Tal fato ocorre, pois parte das
imagens foram coletadas diretamente do vídeo, enquanto outras puderam ser acessadas diretamente do arquivo
do jogo feito nessa data, o que, nesse último caso, garante uma qualidade melhor.
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Figura 3 – Comandos que se referem ao movimento do carro
Fonte: Dados da pesquisa (2012).
Como em alguns jogos eletrônicos, as participantes optaram por manter o objeto carro
em um posicionamento horizontal constante no lado esquerdo da tela, limitando seus
movimentos no sentido vertical apenas. É justamente esse movimento que a Figura 5
apresenta, na qual podem ser observadas três linhas de comando. A primeira (de cima para
baixo) refere-se ao inicio do jogo. Quando a bandeira verde4 é clicada, inicia-se determinada
sequência de comandos (no caso, nao ha comando associado a esse controle). O segundo e o
terceiro blocos de comando referem-se aos movimentos programados para as setas do teclado.
Quando a tecla “seta acima” é clicada, o objeto que se refere a esse comando (no caso, o
carro) se movimentara 10 passos na direcao vertical (eixo cartesiano y), no sentido para cima.
De forma similar, quando a tecla (seta abaixo) for clicada, o objeto se movimentara -10 passos
na direcao vertical, isto é, se movimentara 10 passos para baixo.
Como nao ha limitacões para a altura atingida, o objeto se movimentara por todo
espaco destinado ao jogo (que possui uma amplitude eixos cartesianos que varia de -230 a 230
espacos). Para dar a sensacao de movimento (uma vez que o objeto carro fica imovel
horizontalmente), as alunas optaram por movimentar o obstaculo na direcao do carro. O
aspecto visual do jogo (aquilo que aparece na area denotada por estagio) pode ser visto na
Figura 4.
4 Para iniciar qualquer jogo no Scratch é necessário dar um comando inicial. Esse comando inicial consiste na
bandeira verde.
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Figura 4 – Área de estagio do jogo.
Fonte: Dados da pesquisa (2012).
A seguir fazemos uma explanacao que envolve as modificacões ocorridas no modelo
apresentado na Figura 3, que possibilita o movimento do objeto carro, iniciando com a
apresentacao do Excerto 1, no qual a estudante Laura chama P no inicio do encontro.
Excerto 1: O carro voador
Laura: Uma coisa que ficou da última aula. Vai começar o jogo, mas então vai lá em cima.
[mostra, mexendo a posição do carro com as setas do teclado, que ele vai até o topo da tela,
extrapolando o espaço delimitado para a estrada (Figura 6)]
P: Aham! É um carro voador, não é? [risos]
Laura: Isso! [risos] Fonte: Gravacao de video, 17/07/2009
Laura encaminhou outros questionamentos que são discutidos com o professor e
depois de alguns minutos retoma a situação do movimento do carro.
Excerto 2: E para ele não flutuar?
Laura: E para ele não flutuar?
P: Para o quê?
Laura: Para ele não flutuar!
P: Ah, tá! Vamos ver.
P: Tem que colocar alguns condicionadores também. Ele vai ficar parado aí, não é?
[Referindo-se à movimentação no sentido horizontal].
Laura: Ele para.
P: Ele para ou ... “mova” zero passos.
P: Ou... não mova mais. Então pode colocar, mude X por Y, tu pode colocar um “se”. Um “se
senão”...
Laura: No meio disso aqui [dos comandos] bota um “se senão”, então?
P: É. Não sei se “se senão” ou “se”. Teria que testar para ver o que vai funcionar. Mas acho
que é isso. Fonte: Gravacao de video, 17/07/2009
Por meio desse excerto é possivel observar que o modelo construido (Figura 3)
permite que o carro se movimente em um padrao que extrapola as limitacões dadas pela
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estrada. Influenciada pelas sugestões do professor, Laura inicialmente tentou usar o comando
“se senao”. Sua dificuldade inicial consistiu em considerar situacões distintas em um mesmo
modelo, isto é, além do carro nao se mover dentro do espaco vertical desejado (na “estrada”),
havia a necessidade de desviar de obstaculos que surgiam na pista (Figura 5).
Figura 5 – Objetos carro e obstaculo
Fonte: Dados da pesquisa (2012).
O objeto carro, ao sobrepor (“encostar”) o (no) objeto obstaculo, nao sofria nenhuma
alteracao em seu movimento, mantendo posicao e “velocidade”, sem qualquer interferência. O
desejo de mudar esse aspecto, isto é, de fazer com que algo acontecesse quando houvesse
sobreposicao dos objetos fez com que Laura modificasse os comandos até entao construidos.
Nosso olhar atento ao problema “bater/encostar” revelou um entrelacamento de múltiplos
acontecimentos envolvendo outros problemas, argumentacões e inquietacões que, por sua vez,
orientaram acões que implicaram em solucões ou novos problemas ou discussões, criando
assim uma trama cuja complexidade nao se mostrou de modo linear, no sentido temporal. Na
Figura 6 é possivel acompanhar o fluxo de desdobramentos que envolveu esse problema,
desde sua determinacao inicial até encontrar uma solucao especifica.
Figura 6 – Fluxograma relacionado ao problema
Fonte: Dados da pesquisa (2012).
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Avaliamos esse problema a partir da pergunta apresentada pela estudante Laura,
quando diz: E para ele não flutuar? (Excerto 2) mostrando com isso sua preocupacao com o
movimento do objeto carro, que extrapola a regiao de movimentacao (estrada) estipulada pela
estudante.
Embora na visao de Deleuze (1988) o problema nao possa ser confundido com
pergunta, esse autor revela que um dos modos de o problema se determinar é pelo modo
interrogativo. Essa enunciacao, segundo Deleuze (2011), leva em consideracao tanto as
experiências daquele que enuncia quanto dos envolvidos na conversa. No caso especifico da
pergunta enunciada por Laura, esta é dirigida ao professor pesquisador, que supostamente
poderia auxiliar na busca por respostas. É justamente essa busca por possibilidades de
respostas que a estudante encontra na continuacao da conversa no Excerto 2, quando P
apresenta, como um possivel encaminhamento, o uso de condicionadores: “Tem que colocar
alguns condicionadores também. Ele vai ficar parado aí, não é?”.
Assim, a pergunta apresentada pela estudante se desmembra, por meio da interlocucao
com o professor, em possibilidades de solucões, o que esta em consonância com as ideias de
Deleuze (1988, p. 267), quando diz que a pergunta “[...] exprime [...] a maneira como o
problema é desmembrado”, podendo influenciar de modo direto na busca por uma solucao.
Apesar de influenciar de modo decisivo a busca por uma solucao, a fala de P nao se
mostra somente neste aspecto, uma vez que pode ser considerada também como uma forma
distinta de apresentar o problema. O que observamos com isso é que ha nela um aspecto dual
que, de um lado responde à determinacao inicial do problema (no sentido de ser conduzido
por ela) e, de outro, a altera apresentando outro enfoque (uma nova atualizacao do problema),
relacionado ao uso de condicionadores.
Assim, o modo como o problema é compreendido passa de “flutuar” para
“condicionadores” havendo uma determinacao que busca uma adaptacao à linguagem usada
na construcao do jogo eletrônico. Nesse sentido, o que observamos é que o processo de
solucao do problema também esta associado à propria determinacao do problema, ou, nas
palavras de Deleuze (1988, p. 267), o “[...] problema se determina ao mesmo tempo em que é
resolvido”.
Outro aspecto que consideramos importante é o significado da dúvida, entendida como
sendo “[...] um estado subjetivo de incerteza, ou seja, uma crenca ou opiniao nao
suficientemente determinada, ou a hesitacao em escolher entre a assercao da afirmacao e a
assercao da negacao” (ABBAGNANO, 2007, p. 348). Deleuze (1988) afirma que, assim
como a pergunta, a dúvida nao pode ser colocada em biunivocidade com problema.
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Porém, essa pode assumir um papel, tanto do processo de delimitacao das solucões,
quanto na determinacao do problema. Um exemplo disso pode ser observado na continuacao
da fala de P quando sugere o uso de condicionadores. Apesar de encaminhar uma solucao, o
pesquisador se mostra em dúvida quanto ao que fazer, expressando isso nas seguintes falas:
“É, não sei se um ‘se senão’ ou um ‘se’” (Excerto 2). Nesse momento, P indica dois
encaminhamentos possiveis, por meio do uso do comando condicional “se” e por meio do uso
do comando condicional “se senao”.
Ao observar novamente o Fluxograma apresentado na Figura 6, é possivel ver que a
determinacao do problema, quando associada ao uso de condicionadores, se bifurca em dois
grandes eixos (que se entrelacam), um conduzido pelo uso do comando “se” e outro pelo uso
do “se senao”. Assim, ha na dúvida apresentada, nao somente um avanco na determinacao do
problema, conforme defende Deleuze (1988), mas também ha uma delimitacao no conjunto
de condicionadores que abrange somente dois casos, implicando de modo direto nas
construcões feitas pela estudante.
5 Reflexões sobre os dados e considerações finais
Para o escopo do presente artigo, nos propusemos a nos orientar pela pergunta: como
se mostra o problema no processo de Modelagem Matematica envolvido na construcao de
jogos eletrônicos por alunos de um curso de Licenciatura em Matematica? Ao analisarmos os
dados e argumentacões expostas, é possivel observar que, ao longo do processo de MM, a
imersao no problema vai desmembrando-o em determinacões mais especificas, as quais sao
inspiradas por dúvidas, perguntas, afirmacões que, por sua vez, conduzem a solucões para o
problema.
Isso apresenta o problema como um fluxo que se desenvolve e se mostra somente no
proprio caminho percorrido, ou, conforme Deleuze (1988) defende, determina-se ao longo do
proprio processo que envolve a busca por uma solucao. A cada nova determinacao, novas
possibilidades sao consideradas, direcionando o campo problematico que tem como
consequência final acões transformadoras da organizacao do jogo eletrônico (no caso). Este
aspecto pode ser observado no fluxograma apresentado pela Figura 6, no qual o “flutuar” se
desdobra no uso de “condicionadores” que, por sua vez se bifurcam, formando dois fluxos a
entrelacar-se de modo nao necessariamente linear e conduzem a constantes transformacões
nos modelos construidos.
Destacamos que essa nao linearidade nao esta relacionada especificamente à
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sequencialidade temporal que é enumerada na Figura 6, mas sim em comparacao a aspectos
trazidos pela literatura da MM, que, algumas vezes, tratam o problema como algo estatico e
que, uma vez determinado, impulsiona o processo de modo ciclico e sequencial. Assim,
consideramos que o problema analisado nao pode ser visto como algo estatico, pré-definido,
mas sim de modo fluido.
Consideramos que essa mudanca, que ocorre ao longo dos fluxos apresentados, mostra
que o problema vai se (trans)formando com a imersao dos envolvidos nele e, a cada nova
proposicao que, de alguma forma, determina o problema, o fluxo se renova, como, por
exemplo, o uso da expressao “É, não sei se um se senão ou um se”, por P, que influenciou o
aparecimento de dois fluxos dados pelo “se” e pelo “se senão” na Figura 6.
Dessa forma, a proposicao que se refere ao problema nao deve ser confundida com o
proprio problema, mas como uma determinacao que conduz a acões que buscam resolver o
problema e, portanto, estao relacionadas à solucao. Por outro lado, é importante salientar que
essas variacões que o fluxo sofre, apresentadas em termos proposicionais, nao assumem um
caminho que é independente do problema da qual derivam (DALLA VECCHIA;
MALTEMPI, 2012). Assim é o caso apresentado no episodio analisado nesse artigo, que,
apesar de assumir particularidades em cada ramo do fluxo, nao esta dissociado do problema
inicial, que diz respeito ao posicionamento do objeto carro. Esse aspecto é apresentado por
Deleuze (1988, p. 265), quando diz que, “[...] gerais ou particulares, as proposicões so
encontram sentido no problema subjacente que as inspira”.
Ainda, consideramos que podemos inferir que nao somente o modo como o problema
é compreendido pelos participantes condiciona a busca por uma solucao, mas ha também
outros aspectos que devem ser considerados como a producao do jogo em si, a perspectiva de
que os modelos construidos foram feitos para serem atualizados na realidade do mundo
cibernético, os objetivos dos participantes e do pesquisador e, principalmente, o referencial
usado (linguagem de programacao Scratch). Assim, ha condicões inicias que também
conduzem o processo de resolucao da situacao envolvida.
Destacamos que, apesar dos aspectos apresentados neste artigo partirem de situacões
particulares, tratadas na construcao de jogos eletrônicos que encontram na realidade do
mundo cibernético um espaco para atualizacao, entendemos que a associacao ao referencial
teorico nao se restrinja somente a esse contexto.
De fato, em nossas investigacões temos nos inspirado nas discussões acerca de
problema para abranger contextos classicos da Modelagem Matematica, como é o caso de
aplicacões de otimizacao linear com restricões. Esse aspecto pode ser observado em
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Weingarten e Dalla Vecchia (2017), que tratam também do processo de determinacao do
problema, porém focando trabalhos aplicados e desenvolvidos por estudantes do curso de
Engenharia de Producao de uma universidade do sul do Brasil. Desse modo, entendemos que
a abrangência das associacões teoricas apresentadas nao se limitam somente ao trabalho com
o Scratch e com o uso de tecnologias digitais.
Para finalizar, consideramos que as ideias discutidas neste artigo estao ajudando a
ampliar discussões acerca da MM, principalmente quando associada às tecnologias digitais.
Em particular, colocar aspectos em suspensao, como a sequencialidade do processo de MM
apresentada na literatura, contribui para a compreensao da conducao e do entendimento do
proprio processo de MM. O que se evidencia na investigacao feita é um processo de continua
transformacao, mostrando que a determinacao do problema nao é algo que se apresenta a
priori, mas que faz parte de um entrelacamento que se confunde com o proprio fazer. Além
desse aspecto, ha outros que tangenciam a proposta investigativa apresentada e que estao
relacionados à MM, como a discussao de modelo, realidade e objetivos pedagogicos.
Entrelacar esses aspectos de modo consistente e nao superficial faz parte de nossas
investigacões atuais e futuras.
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