O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer...

27

Click here to load reader

Transcript of O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer...

Page 1: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

O poacutes-dramaacutetico em cena La Fura dels Baus

Fernando Pinheiro Villar

We can no longer teach or even study theatre as we have in the past [hellip] We will have to do more than clone ourselves in order to prepare those who can go beyond our limitations

Margaret Wilkerson (1991 240)

A teoria teatral contra-ataca novamente A defasagem teoacuterica e criacutetica de partes da jovem academia e da criacutetica de artes cecircnicas do planeta em acompanhar as transformaccedilotildees na linguagem teatral na segunda metade do seacuteculo XX vecircm sendo ambas atacadas pelo ferramental possibilitado por Hans Thies-Lehmann e sua investigaccedilatildeo sobre o teatro poacutes-dramaacutetico Com o termo o acadecircmico alematildeo busca ldquoum miacutenimo denominador comum entre uma seacuterie de formas dramaacuteticas muito diferenciadas mas que tecircm em comum uma uacutenica coisa que eacute terem atraacutes de si uma histoacuteria que eacute o teatro dramaacuteticordquo (2003 9)1

Markus Wessendorf celebra o termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo como lsquouma atualizaccedilatildeo terminoloacutegica do discurso esteacutetico teatralrsquo (2003 sp) O diretor teatral radicado na Universidade do Hawaii conterracircneo e ex-aluno de Lehmann aponta que termos continuamente utilizados para produccedilotildees contemporacircneas ndash como lsquoteatro experimentalrsquo poacutes-modernorsquo lsquoneo-vanguardarsquo eou lsquominimalistarsquo ndash soacute serviam para descrever a mais oacutebvia e superficial estrutura dessas produccedilotildees teatrais e muitas vezes com uma negatividade impliacutecita enquanto o trabalho de Lehmann segundo Wessendorf eacute

indicativo de uma mudanccedila paradigmaacutetica significativa nos estudos de teatro que vecircm sendo construiacuteda desde a deacutecada de 1960 provocada principalmente por praacuteticas teatrais transformadas mas tambeacutem pelo crescente impacto de estudos de performance na academia de teatro Lehmann credita a performatividade como o mais importante constituinte do teatro natildeo o enraizar-se no texto dramaacutetico (2003 sp) 2

Se o poacutes-dramaacutetico contradiz o convencional entendimento lsquodrama = teatrorsquo haacute uma histoacuteria do teatro poacutes-dramaacutetico ou natildeo sendo recontada

1 Segundo Lehmann seu livro Postdramatisches Theater (1999) trata de ldquoformas criadas a partir de diretores grupos e experimentos teatrais que natildeo se satisfaziam mais com esse modo tradicional de se contar a histoacuteria ou de se tratar o real a partir de uma dessas formas tradicionaisrdquo (2003 11-12) ou ldquoum teatro que natildeo estava na dinacircmica da histoacuteria e do personagemrdquo (2003 15)2 A comunicaccedilatildeo de Wessendorf (2003) na Conferecircncia da ATHE em Nova York pode ser lida na paacutegina www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm Assim como de todas as outras livres traduccedilotildees neste artigo sua traduccedilatildeo eacute minha

1

Haacute tambeacutem uma histoacuteria de teatros natildeo escritos nem motivados pelo dramaacutetico ou literaacuterio mas sim pelo teatral cecircnico e performaacutetico ou pelo visual cineacutetico tecnoloacutegico mediado ou coreograacutefico O artista cecircnico quebequense Robert Lepage por exemplo eacute representante de uma primeira geraccedilatildeo que cresce com a televisatildeo e isso natildeo pode ser ignorado na anaacutelise de obras que essa geraccedilatildeo produz vinte anos depois nem na anaacutelise da contemporaneidade a partir daiacute Em entrevista publicada com o diretor inglecircs Richard Eyre o ator diretor e encenador de teatro cinema circo muacutesica teatro e oacutepera afirma que

Nunca fui interessado em teatro como tal Na minha adolescecircncia eu era mais interessado em teatralidade Acho que o gosto para jovens criadores atores ou diretores no Quebec pelo menos nos setenta veio muito mais de assistir a shows de rock danccedila performance arte do que vendo teatro porque teatro natildeo eacute tatildeo acessiacutevel laacute como eacute aqui na [Gratilde-]Bretanha (1996 238)

Diversidade de formaccedilotildees e de influecircncias possiacuteveis se multiplicou em diversidades de poeacuteticas cecircnicas possiacuteveis armando um desafio agrave criacutetica atada a esquemas excludentes que legitimavam um uacutenico teatro ou uma poeacutetica que deveria ser ancorada em cacircnones dramaacuteticos e literaacuterios O acadecircmico brasileiro Jacoacute Guinsburg encara o desafio como estiacutemulo e sintetiza bem a questatildeo quando diz que

Natildeo haacute a menor duacutevida de que no teatro tudo eacute vaacutelido desde que a resultante dos esforccedilos criadores ofereccedila ao seu destinataacuterio a plateacuteia qualquer que seja ela uma obra convincente natildeo por qualquer lsquofidelidadersquo literaacuteria ou respeito por cacircnones previamente estabelecidos mas por suas virtudes cecircnicas pela poesia de imagem e palavra em maior ou menor proporccedilatildeo uma em relaccedilatildeo agrave outra e pela forccedila traacutegica cocircmica ou tragicocircmica da exposiccedilatildeo dramaacutetica (2001 87)

Triangulando a questatildeo entre praacutetica criacutetica e metodologia Brian Mazzumi em sua introduccedilatildeo de sua traduccedilatildeo inglesa dos Mil Plateaus de Gilles Deleuze e Feacutelix Guattari (1988) coloca que

A imagem de Deleuze para um conceito natildeo eacute a de um tijolo mas de uma lsquocaixa de ferramentasrsquo Ele chama esse tipo de filosofia lsquopragmaacuteticarsquo porque seu objetivo eacute a invenccedilatildeo de conceitos que natildeo adiram a um sistema de crenccedila ou uma arquitetura de proposiccedilotildees em que vocecirc ou entra ou natildeo mas sim conceitos que ao inveacutes disso

2

carreguem um potencial idecircntico ao de um peacute de cabra que em matildeos desejosas irradia uma energia de alavancar (1988 xv)

A manutenccedilatildeo da defasagem criacutetica e teoacuterica em relaccedilatildeo a diferentes poeacuteticas do teatro contemporacircneo nubla negativamente o diaacutelogo entre puacuteblico obra academia criacutetica criador ou criadora e obra com todas as perdas impliacutecitas nessa incomunicabilidade esterilizante E isso nos traz de volta agrave importacircncia da caixa de ferramentas de Lehmann que encorpa uma linhagem de artistas acadecircmicas e acadecircmicos e artistas acadecircmicos que investigam outros teatros ou outras articulaccedilotildees dos limites da linguagem teatral cecircnica eou performaacutetica3

Vale chamar atenccedilatildeo destacada para o subestimado The Theatre Event Modern Theories of Performance (1980) de Timothy Wiles e sua conceituaccedilatildeo de um lsquoTeatro Performancersquo Teatro Performance ou Performance Teatro circunscreveriam praacuteticas cecircnicas natildeo mais representadas por unidades aristoteacutelicas naturalismo ou teatro eacutepico Wiles desenvolve uma descriccedilatildeo e anaacutelise sistematizadas de outras formas de teatro que desafiavam as certezas e limites da criacutetica da eacutepoca Semelhante agrave Lehmann Wiles buscava um termo que incluiacutesse uma outra diversidade revelada por dramaturgias estilos interpretativos e inovaccedilotildees formais distintas que criaram ldquouma situaccedilatildeo desconfortaacutevel para todos os historiadores de esteacuteticardquo (1980 112) Natalie Crohn Smitt resenha o livro de Wiles e comenta que teatro performance ldquoembora de alguma forma redundante eacute consistente com o agora largamente aceito termo de lsquoperformance artersquo e o termo define o novo teatro em termos do que [] eacute o aspecto mais importante deste novo teatro sua ecircnfase consciente na primazia da performance [apresentaccedilatildeo acontecendo]rdquo (1982 589) Sem excluir um cacircnone de textos literaacuterios dentro do teatro performance Wiles

3 Aumenta o nuacutemero de pesquisadoras(es) que objetivam outras metodologias que consigam seguir as permanentes transformaccedilotildees esteacuteticas da linguagem teatral em sua permanente expansatildeo e retraccedilatildeo e em nutriccedilatildeo muacutetua com o cotidiano que molda o teatro assim como eacute moldado por ele Haacute de se frisar a contribuiccedilatildeo fundamental dos estudos de performance durante o seacuteculo XX de Nikolai Evreinov nas primeiras deacutecadas agrave Richard Schechner J L Austin RoseLee Goldberg Dick Higgins Victor Turner Erwin Goffman e seus atuais seguidores Na deacutecada de 1980 Schechner e Michael Kirby Timothy J Wiles Mathew Macguire Bonnie Marranca Bert O States Valentina Valentini Mercegrave Saumell e Esperanza Ferrer Jacoacute Guinsburg Herbert Blau Renato Cohen Elin Diamond e Marvin Carlson satildeo alguns nomes dos EUA Europa e Brasil que persistem na deacutecada seguinte buscando a anaacutelise de diversas formas de teatro ldquopara aleacutem do recitar de um textordquo (Lehmann 2003 16) Na mesma empreitada nos anos 1990 chegando aos nossos dias temos aleacutem de muitos dos citados acima Joseacute A Saacutenchez Christopher Innes Margaret Wilkerson Jill Dolan Johannes Birringer Peggy Phelan Lucia Sander Alan Read Maria Delgado Paul Heritage Erika Fischer-Lichte Oscar Bernal Philip Auslander Michel Vanden Heuvel Silvia Fernandes Bim Mason Janette Reinelt Silvia Davini Andreacute Carreira Joseacute Da Costa Luiz Fernando Ramos Bya Braga Ciane Fernandes Acircngela Materno Sonia Rangel Luacutecio Agra Nara Ciotti Renato Ferracini Sara Rojo Josette Feral Gecirc Orthof Bia Medeiros Joatildeo Gabriel Teixeira e Rita Gusmatildeo entre tantos outros e outras que tive e terei o prazer de encontrar Os cruzamentos da Nova Histoacuteria com a historiografia teatral e as pesquisas de Thomas Postlewait Bruce McConnachie Joseph R Roach e Dwight Conquergood satildeo igualmente uacuteteis

3

descreve um teatro que pode ldquoprescindir de palavras que natildeo tenham funccedilatildeo aleacutem da exposiccedilatildeordquo (1980 128) Seu interesse estava nas formas teatrais que apresentam inovaccedilotildees formais que questionam as limitaccedilotildees do teatro eacutepico e de ldquoAristoacuteteles (ou nossas suposiccedilotildees equivocadas sobre ele) para propor um conceito do evento teatral que encontra existecircncia e significado na performance natildeo no encapsulamento literaacuterio cujo preservar acionou tantos escritos de tantas mais poeacuteticasrdquo (1980 117)

Wiles cunha um termo conciliatoacuterio que reconhece e investiga o diaacutelogo entre teatro e performance se distanciando assim de tendecircncias que se dividiam e ainda se dividem em uma falsa dicotomia de teatro e performance como opostos Supostos opostos como esse cortam a possibilidade de uma discussatildeo necessaacuteria uacutetil e fundamental para a ontologia e epistemologia do teatro da performance e da arte Lehmann posiciona performance como uma das novas formas de teatro poacutes-dramaacutetico Schechner e os estudiosos da performance colocariam o poacutes-dramaacutetico como uma forma de teatro que por sua vez seria abrigado pelo guarda-chuva conceitual de performance Sabemos de uma corrente que define performance como forma teatral e outra que defende que o teatro natildeo eacute performance Correntes que se opotildeem entre performance ser teatro ou natildeo ser teatro se manteacutem no desconhecimento de um outro territoacuterio que se cria aleacutem das antigas fronteiras disciplinares Teatro danccedila butoh viacutedeo poesia performance arte performance teatro instalaccedilotildees animadas CAVEs ou arte na rede satildeo interdisciplinas ou interlinguagens4

Wessendorf nos lembra que o termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo jaacute havia sido utilizado por Schechner no final da deacutecada de 1970 para descrever Happenings (2003 sp) Sem dar as costas para a instacircncia artiacutestica da performance nem para a teatralidade que detonaram mudanccedilas radicais em todas as linguagens artiacutesticas no seacuteculo XX Wiles na deacutecada de 1980 jaacute parecia estudar o iniacutecio de um teatro poacutes-performance arte Se abrindo para um teatro performance ele se abre tambeacutem para a interlinguagem e os hibridismos que a linguagem cecircnica pocircde materializar em uma outra etapa das transformaccedilotildees de uma arte que como tal negocia com e interfere em seu tempo e se transforma continuamente por meio de processos interdisciplinares natildeo soacute entre as artes mas tambeacutem com a filosofia ciecircncias sociais e exatas novas miacutedias e tecnologias

No lusco-fusco dos seacuteculos XX e XXI Wessendorf frisa que um ponto fundamental na teoria do poacutes-dramaacutetico estaacute no fato que ldquoLehmann mapeia uma esteacutetica afirmativa do teatro poacutes-dramaacutetico e concretiza um cataacutelogo de ideacuteias que permitem descrever e analisar aquele tipo de teatro em termos positivosrdquo (2003 sp) Apoacutes tantos debates sobre tantas poacutes-4 lsquoIntermediarsquo foi o termo cunhado pelo artista do FLUXUS Dick Higgins que jaacute em 1967 definia o Happening ldquocomo um intermeio na terra natildeo mapeada entre a colagem muacutesica e teatrordquo uma outra expressatildeo artiacutestica hiacutebrida que se desenvolveu segundo Higgins ldquosimultaneamente nos EUA Europa Brasil e Japatildeordquo (1978 17)

4

modernidades e poacutes-modernismos o poacutes-dramaacutetico de Lehmann pode tambeacutem soar para muitos como mais uma lsquoafetaccedilatildeo poacutes-modernarsquo ou uma lsquopoacutes-modernicersquo Tal equiacutevoco de julgamento estaria mais uma vez subestimando um adendo crucial no ataque contra ideacuteias preconcebidas sobre poeacuteticas e linguagens artiacutesticas mui especialmente poeacuteticas contemporacircneas da linguagem teatral

Este artigo elege La Fura dels Baus5 para conectar o conceitual de Lehmann e um estudo de obra teatral contemporacircnea6 De forma alguma se pretende colocar a companhia catalatilde como modelo de teatro poacutes-dramaacutetico nem o poacutes-dramaacutetico de Lehmann como modelo para anaacutelise do La Fura O grupo eacute um dos ensembles e artistas que percorreram as deacutecadas de 1980 e 1990 e chegaram aos nossos dias Seja em Barcelona (La Cubana Secircmola Teatre Marcelliacute Antunez Roca Simona Levi) Montreal (Robert Lepage) Copenhaguen-Bruxelas-Amsterdam (Jan Fabre Alain Platell e Arne Sirens Michel Laub) Brasiacutelia (Hugo Rodas Udigrudi) Satildeo Paulo (Oacutepera Seca XPTO Cristiane Paoli Quito Joseacute Celso Antunes Filho Maacutercio Aureacutelio Antonio Noacutebrega Antonio Abujamra) Rio (Companhia dos Atores Armazeacutem) Paris (Royal de Luxe) Buenos Aires (Perifeacutericos de Objetos Organizacioacuten NegraDe la Guarda) Nova York (Wooster Group Karen Finley) Londres (DV8 Forced Entertainment) ou em Toacutequio (Shankai Juku Min Tanaka) essas poeacuteticas selecionadas em continentes distintos dividem em comum o fato de terem permanecido nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX e chegado aos nossos dias mantendo a possibilidade de ter muitas de suas obras agrupadas como teatro poacutes-dramaacutetico teatro performance eou dramaturgias de imagens

La Fura dels Baus foi criado em 1979 em Barcelona capital da Catalunya autonomia histoacuterica de Espantildea O grupo nasce entre o desbunde da transiccedilatildeo democraacutetica apoacutes a morte do ditador Franco em 1975 ndash e a ressaca do desencanto (EacutePOCA) com a lentidatildeo e ausecircncia de transformaccedilotildees fazendo parte do posterior vigor da movida madrilentildea e do investimento massivo em arte e cultura como vitrine para a ambicionada entrada na Comunidade Europeacuteia e do incremento de mudanccedilas estruturais no paiacutes com a eleiccedilatildeo de Felipe Gonzaacutelez do Partido Social Obrero Espantildeol (PSOE)

5 lsquoFurarsquo em catalatildeo significa furatildeo aquele animal aparentado com fuinhas lsquoEl Bausrsquo era um coacuterrego seco que virou um depoacutesito espontacircneo e anti-ecoloacutegico de lixo em Moiagrave Catalunha pequena cidade de 3000 habitantes a 60 km de Barcelona onde trecircs dos diretores fundadores do La Fura nasceram e cresceram (Carles Padrissa Marcelliacute Antuacutenez Roca e Pere Tantinyagrave)6 O livro editado por Mauri e Ollegrave La Fura dels Baus 1979-2004 (2004) apresenta um completo painel sobre a obra do grupo com artigos dos integrantes do grupo associados criacuteticos pesquisadoras e acadecircmicos aleacutem de um DVD com material editado de quase todas suas obras cecircnicas incluindo todos os trabalhos da linguagem furera nos 25 anos da companhia A paacutegina do grupo na internet (wwwlafuracom) tambeacutem apresenta vasto material teoacuterico e audiovisual sobre os trabalhos do grupo Para uma introduccedilatildeo sobre o trabalho do La Fura veja Villar (2001) ou Queiroz (1999)

5

Nesse solo histoacuterico sintetizado ao extremo La Fura passa por uma fase inicial de quatro anos de teatro em ruas praccedilas e poblets da naccedilatildeo catalatilde que por sua vez passa por intenso processo de normalizaccedilatildeo linguumliacutestica e de resgate da identidade catalatilde Neste primeiro periacuteodo firma-se uma composiccedilatildeo estaacutevel de nove homens7 que seratildeo responsaacuteveis pelo salto artisticamente interdisciplinar que o grupo realiza com Accions Alteraciograve Fiacutesica drsquoun Espai em 19831984 apresentado ateacute 1987 em diversos paiacuteses da Europa e na Argentina Accions mescla elementos esteacuteticos de concertos de rock e de performance arte com festas populares catalatildes e espanholas com um resultado artisticamente interdisciplinar realizado ndash de maneira claustrofoacutebica para muitos e muitas ndash em instalaccedilotildees fora de teatros convencionais onde atuantes espectadores palco plateacuteia obra recepccedilatildeo sujeito e objeto se misturam fisicamente e espacialmente em performances simultacircneas e cambiantes

Accions detona enorme visibilidade criacutetica e puacuteblica internacional que o grupo manteacutem na deacutecada de 1980 e a amplia planetariamente com a mega-performance Mar Mediterragravenia na cerimocircnia de abertura dos Jogos Oliacutempicos de Barcelona em 1992 O grupo deixa de ser tachado de punk anarquista eou enfant terribles para ser reverenciado como uma companhia profissional de competecircncia iacutempar para uns e uma famigerada marca multinacional para outros A poeacutetica interdisciplinar do La Fura continua a desdobrar-se em incursotildees em diferentes campos como publicidade cinema criaccedilotildees na internet oacutepera eventos puacuteblicos e interlinguagens seja em um navio cargueiro em cavernas preacute-histoacutericas ou desde 1996 tambeacutem em teatros convencionais com plateacuteia separada da accedilatildeo no palco

Antes do atual momento do grupo as apresentaccedilotildees em espaccedilos encontrados fora dos edifiacutecios construiacutedos e convencionalmente utilizados como teatros representavam uma das quatro caracteriacutesticas diferenciais do que a imprensa espanhola convencionou descrever como lenguaje furero Aleacutem das montagens fora de teatros convencionais a linguagem furera pode ser resumida em mais trecircs caracteriacutesticas principais A segunda caracteriacutestica eacute a de que os fureros eram os autores diretores encenadores produtores e interpretes de suas obras8 A terceira eacute composta pelo interesse e a troca artisticamente interdisciplinar com diferentes linguagens e miacutedias na composiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo dessas obras E a quarta caracteriacutestica da linguagem furera seria a falta da quarta parede ou de qualquer outra barreira entre espectadores atuantes e obra 7 O trio de Moiagrave mais Alex Ollegrave Hansel Cereza Jordi Aruacutes Jurgen Muumlller Miki Espuma e Pep Gatell Sobre este primeiro periacuteodo do La Fura veja Villar (2005)8 Esta caracteriacutestica deixa de existir apoacutes MTM (1994) quando o alematildeo Jurgen Muller foi o uacutenico dos diretores fundadores a atuar e a direccedilatildeo ainda era coletiva Os seis restantes diretores se uniriam atuando juntos novamente em um dos viacutedeos de Fust 30 (1996) dirigido por Aacutelex Ollegrave e Carles Padrissa Em Manes (1996) a direccedilatildeo foi assinada unicamente por Pere Tantinyagrave e em OslashBS (2000-02) por Pep Gatell e Muumlller com muacutesica de outro diretor fundador Miki Espuma O uacuteltimo trabalho com caracteriacutesticas da linguagem furera eacute OBIT (2005) dirigido por Tantinyagrave

6

Accions (1983-87) Suz-O-Suz (1985-92) Tier Mon (1988-90) Noun (1990-92) MTM (1994-96) Manes (1996-98) OslashBS (2000-02) e no tempo deste artigo OBIT (2005) tambeacutem tecircm suas apresentaccedilotildees em hangares faacutebricas locaccedilotildees industriais edifiacutecios abandonados espaccedilos polivalentes ginaacutesios subterracircneos funeraacuterias etc ou em teatros que possam tirar sua plateacuteia ou poltronas para promover espetaacuteculos em que atuantes e espectadores satildeo performadores ativos A caracteriacutestica relacional na opccedilatildeo do La Fura talvez seja a mais forte razatildeo do impacto do teatro do grupo em vaacuterias partes do planeta Tanto para espectadores(as) que voltam para uma outra apresentaccedilatildeo furera pelo sublime do imageacutetico do espetaacuteculo como para aqueles e aquelas que natildeo retornam pela violecircncia e risco do mesmo

Eacute por meio desta caracteriacutestica relacional da linguagem furera que me aproximo da teoria de Lehmann para sondar a aplicabilidade do termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo para o teatro do La Fura Apesar da linguagem furera se caracterizar pela interdependecircncia e dinacircmica de nexos entre as quatro caracteriacutesticas listadas acima seleciono esta uacuteltima pela fundamental importacircncia que ela tem natildeo soacute em definir o especiacutefico da poeacutetica do La Fura A ausecircncia de barreiras entre espectadores e atuantes nos trabalhos de linguagem furera eacute tambeacutem a ausecircncia ou variaccedilotildees intensas de distacircncia espacial eou fiacutesica entre eles entre palco e plateacuteia interpretaccedilatildeo e assistecircncia obra e recepccedilatildeo sujeito e objeto Isso significa um desafio agraves ontologias e epistemologias do teatro imutaacuteveis e impassiacuteveis ante as profundas alteraccedilotildees na linguagem teatral promovidos desde a deacutecada de 1960 e que continuam a reverberar na arte contemporacircnea Formas de relaccedilatildeo com a plateacuteia sempre impulsionaram estudos e poeacuteticas teatrais Mas em sua metodologia transdisciplinar o antropoacutelogo e acadecircmico estadunidense Edward L Schieffelin reclama uma posiccedilatildeo central em investigaccedilotildees etnograacuteficas para questotildees sobre o relacionamento entre performador e espectador pois para ele eacute dentro desse relacionamento ldquoque as relaccedilotildees ontoloacutegicas e epistemoloacutegicas fundamentais de qualquer sociedade poderatildeo mais possivelmente estar implicadas e ser solucionadasrdquo jaacute que esse relacionamento comporta ldquosuposiccedilotildees ocidentais fundamentais sobre a natureza da accedilatildeo em situaccedilotildees cotidianasrdquo (1998 204)

Schieffelin comenta que ldquopara a maioria dos acadecircmicos ocidentais com uma experiecircncia meacutedia como espectadores de apresentaccedilotildees teatrais a noccedilatildeo de apresentaccedilatildeo ao vivo conjura uma ideacuteia de atores no palcordquo (1998 200) Enquanto que o criacutetico e artista brasileiro Andreacute Lepecki coloca que em teatro e danccedila ldquonoacutes sentamos as luzes se apagam e noacutes testemunhamos ndash entatildeo vamos embora e esquecemos A plateacuteia tem aprendido uma higiene moacuterbida do fruirrdquo (1996 105) o antropoacutelogo estadunidense Victor Turner (tatildeo caro aos estudos de performance) especifica que ldquodiferentemente do teatro o ritual natildeo distingue entre plateacuteia

7

e performadores [] Teatro existe quando ocorre uma separaccedilatildeo entre a plateacuteia e os performadoresrdquo (1982 112)

Contradizendo noccedilotildees habituais as accedilotildees ou os rituais artiacutesticos da linguagem furera acontecem entre atraacutes acima abaixo transversal ao lado ou na frente mas sempre comno puacuteblico nos amplos espaccedilos sem arquibancadas poltronas ou cadeiras Esse fato pode apontar generalizaccedilotildees excludentes ingenuidade ou falta de informaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo entre agentes ou ainda um apego a convenccedilotildees que nem a histoacuteria do teatro manteacutem e nem o puacuteblico necessariamente segue No programa de Accions em 1987 o jornalista catalatildeo Albert de la Torre sugeria que ao inveacutes da violecircncia apontada por muitos La Fura promovia a violaccedilatildeo do espaccedilo que o teatro convencional reserva para o ldquoartista-rei-atorrdquo

O ensemble questiona tambeacutem o lugar reservado convencionalmente para a plateacuteia Talvez nenhuma outra companhia cecircnica ocidental durante o seacuteculo XX tenha investigado tanto essa caracteriacutestica relacional e o teatro ambientalista ou como definido e estudado por Schechner o environmental theatre (1973) Interferir na relaccedilatildeo com a plateacuteia jaacute fazia parte crucial do radical ataque agraves convenccedilotildees da linguagem da plateacuteia e dos proacuteprios artistas promovido por diferentes artistas e grupos de teatro de distintos continentes nas Vanguardas Histoacutericas das trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo passado A questatildeo volta nas deacutecadas de 1960 e 1970 quando segundo o diretor estadunidense Arthur Sainer grupos e artistas ldquoquestionavam tudordquo inclusive a eficaacutecia ldquoem nosso tempo da velha caixinha de joacuteias do proscecircnio assustadoramente representando a manipuladora relaccedilatildeo atuante-espectador com sua noccedilatildeo de atuante como doador e espectador como recipienterdquo (1975 53-4)

Essa manipulaccedilatildeo comum em praacuteticas convencionais de teatro eacute a mesma que Peggy Phelan vecirc como ldquoaparentemente tatildeo compatiacutevel com (as tradicionais descriccedilotildees do) desejo masculino [] Muito da praacutetica teatral ocidental evoca desejo baseado e estimulado pela falta de igualdade entre performador e espectadorrdquo (1993 163) Utilizando estudos de Michel Foucault sobre a confissatildeo na igreja catoacutelica a acadecircmica e autora estadunidense descreve o fulcro (o ponto de apoio da balanccedila) que equilibra poder e conhecimento como o sustentaacuteculo que manteacutem a agecircncia de dominaccedilatildeo no confessionaacuterio e tambeacutem no evento teatral o espectador eacute o confessor silencioso que nada fala mas que domina e controla a troca (1993 163)

Estaacute aleacutem dos limites deste artigo abordar as instigantes questotildees levantadas por Phelan Schieffelin Lepecki e Turner da maneira que as mesmas merecem Mas os pontos aqui rapidamente colocados podem nos ajudar a situar a proposta relacional do La Fura como uma accedilatildeo poliacutetica A poeacutetica da linguagem furera questiona replicaccedilotildees de comportamentos

8

hegemocircnicos impostos bem como conformismos cacircnones hierarquias e dogmas esteacuteticos O impacto alcanccedilado pela caracteriacutestica relacional da linguagem furera me parece tornar possiacutevel a associaccedilatildeo direta com uma busca por uma alteraccedilatildeo da percepccedilatildeo habitual ou uma mudanccedila de lsquofoacutermulas de percepccedilatildeorsquo jaacute dadas que Lehmann coloca como funccedilatildeo objetivo e necessidade para a contundecircncia de um teatro poliacutetico

A questatildeo jaacute era para Brecht para Heiner Muller e para todos os que trabalharam com teatro poliacutetico como vocecirc muda a forma de percepccedilatildeo das questotildees poliacuteticas e influi nessa forma de percepccedilatildeo Para o teatro o que eacute importante eacute a forma de mudar essa percepccedilatildeo a forma como se vai conseguir alterar essas foacutermulas de percepccedilatildeo que estatildeo dadas (2003 10)

La Fura parece responder agrave questatildeo apontada de maneira diferenciada e contundente Sua proposta de falta de barreiras entre o objeto que eacute observado a obra a criaccedilatildeo o palco o mesmo eu e do outro lado o sujeito que observa a assistecircncia a fruiccedilatildeo a plateacuteia o outro ele ou ela altera radicalmente a percepccedilatildeo habitual do teatro e do tema sendo abordado nessa outra proposiccedilatildeo relacional e esteacutetica As associaccedilotildees diretas das montagens fureras com a teorizaccedilatildeo de Lehmann sobre o poacutes-dramaacutetico e teatro poliacutetico continuam quando ele fala da necessidade de se alterar percepccedilotildees habituais ldquonessa sociedade dominada pela miacutediardquo afirmando que o teatro ldquooferece a alternativa de uma comunicaccedilatildeo ao vivo e realrdquo mas que ldquoessa possibilidade de comunicaccedilatildeo entre o espectador e o realizado e o fato de o teatro ser esse cinema tridimensional natildeo eacute aproveitadardquo para concluir que ldquoeacute justamente essa situaccedilatildeo que eacute aproveitada por algumas dessas novas formas do teatro poacutes-dramaacuteticordquo (2003 12) La Fura parece aproveitar a situaccedilatildeo apropriadamente e tambeacutem servir como evidecircncia clara E o mesmo acontece quando Lehmann versa sobre o jogo e a categoria eacutetica nessas outras formas de teatro

Lehmann trabalha sobre o tema da categoria eacutetica em formas de teatro que exercitam outras formas relacionais com espectadores e espectadoras apontando a responsabilidade deles e delas pelo processo e pelo espetaacuteculo que ele ou ela fazem parte Apesar de reconhecer a possibilidade da mesma responsabilidade ou categoria eacutetica acontecer no teatro tradicional Lehmann acentua que nas novas formas do poacutes-dramaacutetico

isso se torna infinitamente mais claro Eu estou numa situaccedilatildeo em que estou jogando participando e atuando juntos com outros Faccedilo parte desse jogo mesmo que eu natildeo seja obrigado a fazer parte desse

9

jogo Uma situaccedilatildeo como essa eacute como uma situaccedilatildeo poliacutetica Tem a ver com a relaccedilatildeo que cada espectador estabelece com as coisas que estatildeo acontecendo (2003 13)

Natildeo parece exagerado dizer que ele parece estar descrevendo aspectos relacionais de espetaacuteculos da linguagem furera Assim como Wittgenstein natildeo separava eacutetica e esteacutetica La Fura natildeo desassocia jogo e estEacutetica de sua proposta de relacionamento com a plateacuteia Utilizando um artigo anterior onde abordo especificamente o jogo furero podermos ver que La Fura tambeacutem pode ser uma traduccedilatildeo muito especial do entendimento de Lehmann do poacutes-dramaacutetico como jogo eacutetico e tambeacutem como esfacelamento de formas tradicionais de teatro e tambeacutem da explosatildeo da unidade entre elementos teatrais como pessoas tempo e espaccedilo

Os artistas cecircnicos se deparam com uma multidatildeo que natildeo ensaiada vai danccedilar a mesma coreografia que os fureros vecircm ensaiando As deixas gestos e accedilotildees que eles tecircm que desempenhar satildeo executadas dentro entre acima abaixo e com a plateacuteia Natildeo haacute muito tempo para anaacutelise O tempo estaacute contra vocecirc membro do puacuteblico porque vocecirc tem que correr Ou vocecirc eacute empurrado Vocecirc pode tambeacutem tropeccedilar em outro membro do puacuteblico ou em um dos artistas tentando chegar a algum lugar do espaccedilo Seu espaccedilo temporaacuterio estaacute no caminho do espaccedilo temporaacuterio do ator Vocecirc estaacute no seu caminho O show apenas comeccedilou e vocecirc estaacute atuando sem ensaios entre centenas de outros que vivenciam a mesma situaccedilatildeo Centenas de performances acontecem ao mesmo tempo Os artistas ensaiados encontram novos parceiros e parceiras cada noite em uma contiacutenua improvisaccedilatildeo arriscando alguns ossos aqui e suas proacuteprias vidas ali ou mesmo uma plateacuteia hostil Vocecirc nunca pode ter um aparente controle total sobre a cena sendo interpretada como vocecirc estaacute acostumado ou acostumada quando senta-se na escuridatildeo entre os outros membros invisiacuteveis do puacuteblico de teatro convencional Quem satildeo os atores La Fura divide questotildees E essas questotildees satildeo literalmente vividas durante a performance (Queiroz 1999 251)

Essas questotildees divididas com a plateacuteia tecircm gerado herdeiros ou artistas claramente influenciados pela esteacutetica furera dentro e fora da Espanha A recepccedilatildeo agraves obras do La Fura mantecircm um retorno criacutetico e de puacuteblico significativos em diferentes continentes do planeta Em outras palavras a linguagem audiovisual furera circula bem por diversos contextos geopoliacuteticos independente da liacutengua Entretanto um breve olhar no solo histoacuterico e cultural do grupo pode nos introduzir outros matizes

10

sobre a questatildeo do teatro (poliacutetico ou natildeo) e da opccedilatildeo relacional dos fureros

A obra do La Fura se insere dentro de um contexto diferenciado de uma naccedilatildeo sem estado ou uma naccedilatildeo catalatilde dentro de um Estado espanhol que eacute constituiacutedo por 19 autonomias com presidentes eleitos e bandeiras proacuteprias Catalunya (Catalunha) Galicia (Galiza) e Euskadi (Paiacutes Basco) satildeo autonomias diferenciadas chamadas de autonomias histoacutericas Com liacutenguas e histoacuterias proacuteprias independentes e anteriores ao Estado espanhol essas naccedilotildees foram gradualmente incorporadas como regiotildees desde o casamento dos reis catoacutelicos Fernando V de Aragatildeo e Isabela I de Castela em 1469 Nos nossos dias permanece uma tensatildeo entre centralizaccedilatildeo e integraccedilatildeo agraves forccedilas do Estado espanhol e movimentos na direccedilatildeo de descentralizaccedilatildeo mais autonomia e ainda que cada vez mais deacutebil separatismo

A histoacuteria da Catalunha marca uma intensa resistecircncia cultural e um senso forte de identidade nacional que natildeo sucumbiram aos ataques de Felipe V no seacuteculo XVIII ou de Franco e sua ditadura (1936-1975) que tentaram em vatildeo promover um genociacutedio da identidade autonomia e direitos histoacutericos da Catalunha Desde a transiccedilatildeo democraacutetica iniciada em 1976 o processo de normalitzacioacute e ideacuteias nacionalistas chocam-se com o processo de normalizacioacuten que defende os interesses do Estado e a ideacuteia de uma identidade espanhola nacional Dentro do lsquonada eacute fixorsquo da chamada poacutes-modernidade da globalizaccedilatildeo e a nova cena geopoliacutetica da Europa haacute uma crise na definiccedilatildeo de identidade ndash crise que natildeo eacute soacute catalatilde espanhola ou europeacuteia mas ocidental e contemporacircnea nossa haacute tempos Na especificidade catalatilde da crise pessoas nascidas na Catalunha podem ainda ser vistas como uma lsquosegunda ou terceira geraccedilatildeo de imigrantesrsquo mesmo se eles falam catalatildeo que era fator diferenciador de uma identidade catalatilde lsquoCharnegorsquo eacute um termo utilizado por catalatildees para catalatildees com pai ou matildee de outra regiatildeo da Espanha Quando esses indiviacuteduos estatildeo na regiatildeo de seus pais eles satildeo lsquoos catalatildeesrsquo Assim eles podem ser estrangeiros dentro e fora da Catalunha

No bojo desse contexto de sutilezas rudemente sintetizado acima Antonio Saacutenchez Helen Graham e Jo Labanyi Josep-Anton Fernagravendez e Michael Keating satildeo alguns dos acadecircmicos europeus que reconhecem um crescimento da identidade catalatilde promovido pela transiccedilatildeo democraacutetica e a normalitzacioacute Keating frisa que ldquoo forte senso de identidade catalatilde que cresceu fortemente nos uacuteltimos vinte anos [] natildeo eacute uma identidade exclusiva mas uma identidade dupla como uma naccedilatildeo distinta dentro da Espanha e no niacutevel da elite com um forte compromisso com a Europardquo (1996 160) Keating tambeacutem sugere que ldquoa proporccedilatildeo daqueles que se identificam como puramente lsquoespanholrsquo caiu nitidamenterdquo (1996 130) Entretanto estudos no final da deacutecada de 1990 sobre uso de liacutengua e

11

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 2: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

Haacute tambeacutem uma histoacuteria de teatros natildeo escritos nem motivados pelo dramaacutetico ou literaacuterio mas sim pelo teatral cecircnico e performaacutetico ou pelo visual cineacutetico tecnoloacutegico mediado ou coreograacutefico O artista cecircnico quebequense Robert Lepage por exemplo eacute representante de uma primeira geraccedilatildeo que cresce com a televisatildeo e isso natildeo pode ser ignorado na anaacutelise de obras que essa geraccedilatildeo produz vinte anos depois nem na anaacutelise da contemporaneidade a partir daiacute Em entrevista publicada com o diretor inglecircs Richard Eyre o ator diretor e encenador de teatro cinema circo muacutesica teatro e oacutepera afirma que

Nunca fui interessado em teatro como tal Na minha adolescecircncia eu era mais interessado em teatralidade Acho que o gosto para jovens criadores atores ou diretores no Quebec pelo menos nos setenta veio muito mais de assistir a shows de rock danccedila performance arte do que vendo teatro porque teatro natildeo eacute tatildeo acessiacutevel laacute como eacute aqui na [Gratilde-]Bretanha (1996 238)

Diversidade de formaccedilotildees e de influecircncias possiacuteveis se multiplicou em diversidades de poeacuteticas cecircnicas possiacuteveis armando um desafio agrave criacutetica atada a esquemas excludentes que legitimavam um uacutenico teatro ou uma poeacutetica que deveria ser ancorada em cacircnones dramaacuteticos e literaacuterios O acadecircmico brasileiro Jacoacute Guinsburg encara o desafio como estiacutemulo e sintetiza bem a questatildeo quando diz que

Natildeo haacute a menor duacutevida de que no teatro tudo eacute vaacutelido desde que a resultante dos esforccedilos criadores ofereccedila ao seu destinataacuterio a plateacuteia qualquer que seja ela uma obra convincente natildeo por qualquer lsquofidelidadersquo literaacuteria ou respeito por cacircnones previamente estabelecidos mas por suas virtudes cecircnicas pela poesia de imagem e palavra em maior ou menor proporccedilatildeo uma em relaccedilatildeo agrave outra e pela forccedila traacutegica cocircmica ou tragicocircmica da exposiccedilatildeo dramaacutetica (2001 87)

Triangulando a questatildeo entre praacutetica criacutetica e metodologia Brian Mazzumi em sua introduccedilatildeo de sua traduccedilatildeo inglesa dos Mil Plateaus de Gilles Deleuze e Feacutelix Guattari (1988) coloca que

A imagem de Deleuze para um conceito natildeo eacute a de um tijolo mas de uma lsquocaixa de ferramentasrsquo Ele chama esse tipo de filosofia lsquopragmaacuteticarsquo porque seu objetivo eacute a invenccedilatildeo de conceitos que natildeo adiram a um sistema de crenccedila ou uma arquitetura de proposiccedilotildees em que vocecirc ou entra ou natildeo mas sim conceitos que ao inveacutes disso

2

carreguem um potencial idecircntico ao de um peacute de cabra que em matildeos desejosas irradia uma energia de alavancar (1988 xv)

A manutenccedilatildeo da defasagem criacutetica e teoacuterica em relaccedilatildeo a diferentes poeacuteticas do teatro contemporacircneo nubla negativamente o diaacutelogo entre puacuteblico obra academia criacutetica criador ou criadora e obra com todas as perdas impliacutecitas nessa incomunicabilidade esterilizante E isso nos traz de volta agrave importacircncia da caixa de ferramentas de Lehmann que encorpa uma linhagem de artistas acadecircmicas e acadecircmicos e artistas acadecircmicos que investigam outros teatros ou outras articulaccedilotildees dos limites da linguagem teatral cecircnica eou performaacutetica3

Vale chamar atenccedilatildeo destacada para o subestimado The Theatre Event Modern Theories of Performance (1980) de Timothy Wiles e sua conceituaccedilatildeo de um lsquoTeatro Performancersquo Teatro Performance ou Performance Teatro circunscreveriam praacuteticas cecircnicas natildeo mais representadas por unidades aristoteacutelicas naturalismo ou teatro eacutepico Wiles desenvolve uma descriccedilatildeo e anaacutelise sistematizadas de outras formas de teatro que desafiavam as certezas e limites da criacutetica da eacutepoca Semelhante agrave Lehmann Wiles buscava um termo que incluiacutesse uma outra diversidade revelada por dramaturgias estilos interpretativos e inovaccedilotildees formais distintas que criaram ldquouma situaccedilatildeo desconfortaacutevel para todos os historiadores de esteacuteticardquo (1980 112) Natalie Crohn Smitt resenha o livro de Wiles e comenta que teatro performance ldquoembora de alguma forma redundante eacute consistente com o agora largamente aceito termo de lsquoperformance artersquo e o termo define o novo teatro em termos do que [] eacute o aspecto mais importante deste novo teatro sua ecircnfase consciente na primazia da performance [apresentaccedilatildeo acontecendo]rdquo (1982 589) Sem excluir um cacircnone de textos literaacuterios dentro do teatro performance Wiles

3 Aumenta o nuacutemero de pesquisadoras(es) que objetivam outras metodologias que consigam seguir as permanentes transformaccedilotildees esteacuteticas da linguagem teatral em sua permanente expansatildeo e retraccedilatildeo e em nutriccedilatildeo muacutetua com o cotidiano que molda o teatro assim como eacute moldado por ele Haacute de se frisar a contribuiccedilatildeo fundamental dos estudos de performance durante o seacuteculo XX de Nikolai Evreinov nas primeiras deacutecadas agrave Richard Schechner J L Austin RoseLee Goldberg Dick Higgins Victor Turner Erwin Goffman e seus atuais seguidores Na deacutecada de 1980 Schechner e Michael Kirby Timothy J Wiles Mathew Macguire Bonnie Marranca Bert O States Valentina Valentini Mercegrave Saumell e Esperanza Ferrer Jacoacute Guinsburg Herbert Blau Renato Cohen Elin Diamond e Marvin Carlson satildeo alguns nomes dos EUA Europa e Brasil que persistem na deacutecada seguinte buscando a anaacutelise de diversas formas de teatro ldquopara aleacutem do recitar de um textordquo (Lehmann 2003 16) Na mesma empreitada nos anos 1990 chegando aos nossos dias temos aleacutem de muitos dos citados acima Joseacute A Saacutenchez Christopher Innes Margaret Wilkerson Jill Dolan Johannes Birringer Peggy Phelan Lucia Sander Alan Read Maria Delgado Paul Heritage Erika Fischer-Lichte Oscar Bernal Philip Auslander Michel Vanden Heuvel Silvia Fernandes Bim Mason Janette Reinelt Silvia Davini Andreacute Carreira Joseacute Da Costa Luiz Fernando Ramos Bya Braga Ciane Fernandes Acircngela Materno Sonia Rangel Luacutecio Agra Nara Ciotti Renato Ferracini Sara Rojo Josette Feral Gecirc Orthof Bia Medeiros Joatildeo Gabriel Teixeira e Rita Gusmatildeo entre tantos outros e outras que tive e terei o prazer de encontrar Os cruzamentos da Nova Histoacuteria com a historiografia teatral e as pesquisas de Thomas Postlewait Bruce McConnachie Joseph R Roach e Dwight Conquergood satildeo igualmente uacuteteis

3

descreve um teatro que pode ldquoprescindir de palavras que natildeo tenham funccedilatildeo aleacutem da exposiccedilatildeordquo (1980 128) Seu interesse estava nas formas teatrais que apresentam inovaccedilotildees formais que questionam as limitaccedilotildees do teatro eacutepico e de ldquoAristoacuteteles (ou nossas suposiccedilotildees equivocadas sobre ele) para propor um conceito do evento teatral que encontra existecircncia e significado na performance natildeo no encapsulamento literaacuterio cujo preservar acionou tantos escritos de tantas mais poeacuteticasrdquo (1980 117)

Wiles cunha um termo conciliatoacuterio que reconhece e investiga o diaacutelogo entre teatro e performance se distanciando assim de tendecircncias que se dividiam e ainda se dividem em uma falsa dicotomia de teatro e performance como opostos Supostos opostos como esse cortam a possibilidade de uma discussatildeo necessaacuteria uacutetil e fundamental para a ontologia e epistemologia do teatro da performance e da arte Lehmann posiciona performance como uma das novas formas de teatro poacutes-dramaacutetico Schechner e os estudiosos da performance colocariam o poacutes-dramaacutetico como uma forma de teatro que por sua vez seria abrigado pelo guarda-chuva conceitual de performance Sabemos de uma corrente que define performance como forma teatral e outra que defende que o teatro natildeo eacute performance Correntes que se opotildeem entre performance ser teatro ou natildeo ser teatro se manteacutem no desconhecimento de um outro territoacuterio que se cria aleacutem das antigas fronteiras disciplinares Teatro danccedila butoh viacutedeo poesia performance arte performance teatro instalaccedilotildees animadas CAVEs ou arte na rede satildeo interdisciplinas ou interlinguagens4

Wessendorf nos lembra que o termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo jaacute havia sido utilizado por Schechner no final da deacutecada de 1970 para descrever Happenings (2003 sp) Sem dar as costas para a instacircncia artiacutestica da performance nem para a teatralidade que detonaram mudanccedilas radicais em todas as linguagens artiacutesticas no seacuteculo XX Wiles na deacutecada de 1980 jaacute parecia estudar o iniacutecio de um teatro poacutes-performance arte Se abrindo para um teatro performance ele se abre tambeacutem para a interlinguagem e os hibridismos que a linguagem cecircnica pocircde materializar em uma outra etapa das transformaccedilotildees de uma arte que como tal negocia com e interfere em seu tempo e se transforma continuamente por meio de processos interdisciplinares natildeo soacute entre as artes mas tambeacutem com a filosofia ciecircncias sociais e exatas novas miacutedias e tecnologias

No lusco-fusco dos seacuteculos XX e XXI Wessendorf frisa que um ponto fundamental na teoria do poacutes-dramaacutetico estaacute no fato que ldquoLehmann mapeia uma esteacutetica afirmativa do teatro poacutes-dramaacutetico e concretiza um cataacutelogo de ideacuteias que permitem descrever e analisar aquele tipo de teatro em termos positivosrdquo (2003 sp) Apoacutes tantos debates sobre tantas poacutes-4 lsquoIntermediarsquo foi o termo cunhado pelo artista do FLUXUS Dick Higgins que jaacute em 1967 definia o Happening ldquocomo um intermeio na terra natildeo mapeada entre a colagem muacutesica e teatrordquo uma outra expressatildeo artiacutestica hiacutebrida que se desenvolveu segundo Higgins ldquosimultaneamente nos EUA Europa Brasil e Japatildeordquo (1978 17)

4

modernidades e poacutes-modernismos o poacutes-dramaacutetico de Lehmann pode tambeacutem soar para muitos como mais uma lsquoafetaccedilatildeo poacutes-modernarsquo ou uma lsquopoacutes-modernicersquo Tal equiacutevoco de julgamento estaria mais uma vez subestimando um adendo crucial no ataque contra ideacuteias preconcebidas sobre poeacuteticas e linguagens artiacutesticas mui especialmente poeacuteticas contemporacircneas da linguagem teatral

Este artigo elege La Fura dels Baus5 para conectar o conceitual de Lehmann e um estudo de obra teatral contemporacircnea6 De forma alguma se pretende colocar a companhia catalatilde como modelo de teatro poacutes-dramaacutetico nem o poacutes-dramaacutetico de Lehmann como modelo para anaacutelise do La Fura O grupo eacute um dos ensembles e artistas que percorreram as deacutecadas de 1980 e 1990 e chegaram aos nossos dias Seja em Barcelona (La Cubana Secircmola Teatre Marcelliacute Antunez Roca Simona Levi) Montreal (Robert Lepage) Copenhaguen-Bruxelas-Amsterdam (Jan Fabre Alain Platell e Arne Sirens Michel Laub) Brasiacutelia (Hugo Rodas Udigrudi) Satildeo Paulo (Oacutepera Seca XPTO Cristiane Paoli Quito Joseacute Celso Antunes Filho Maacutercio Aureacutelio Antonio Noacutebrega Antonio Abujamra) Rio (Companhia dos Atores Armazeacutem) Paris (Royal de Luxe) Buenos Aires (Perifeacutericos de Objetos Organizacioacuten NegraDe la Guarda) Nova York (Wooster Group Karen Finley) Londres (DV8 Forced Entertainment) ou em Toacutequio (Shankai Juku Min Tanaka) essas poeacuteticas selecionadas em continentes distintos dividem em comum o fato de terem permanecido nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX e chegado aos nossos dias mantendo a possibilidade de ter muitas de suas obras agrupadas como teatro poacutes-dramaacutetico teatro performance eou dramaturgias de imagens

La Fura dels Baus foi criado em 1979 em Barcelona capital da Catalunya autonomia histoacuterica de Espantildea O grupo nasce entre o desbunde da transiccedilatildeo democraacutetica apoacutes a morte do ditador Franco em 1975 ndash e a ressaca do desencanto (EacutePOCA) com a lentidatildeo e ausecircncia de transformaccedilotildees fazendo parte do posterior vigor da movida madrilentildea e do investimento massivo em arte e cultura como vitrine para a ambicionada entrada na Comunidade Europeacuteia e do incremento de mudanccedilas estruturais no paiacutes com a eleiccedilatildeo de Felipe Gonzaacutelez do Partido Social Obrero Espantildeol (PSOE)

5 lsquoFurarsquo em catalatildeo significa furatildeo aquele animal aparentado com fuinhas lsquoEl Bausrsquo era um coacuterrego seco que virou um depoacutesito espontacircneo e anti-ecoloacutegico de lixo em Moiagrave Catalunha pequena cidade de 3000 habitantes a 60 km de Barcelona onde trecircs dos diretores fundadores do La Fura nasceram e cresceram (Carles Padrissa Marcelliacute Antuacutenez Roca e Pere Tantinyagrave)6 O livro editado por Mauri e Ollegrave La Fura dels Baus 1979-2004 (2004) apresenta um completo painel sobre a obra do grupo com artigos dos integrantes do grupo associados criacuteticos pesquisadoras e acadecircmicos aleacutem de um DVD com material editado de quase todas suas obras cecircnicas incluindo todos os trabalhos da linguagem furera nos 25 anos da companhia A paacutegina do grupo na internet (wwwlafuracom) tambeacutem apresenta vasto material teoacuterico e audiovisual sobre os trabalhos do grupo Para uma introduccedilatildeo sobre o trabalho do La Fura veja Villar (2001) ou Queiroz (1999)

5

Nesse solo histoacuterico sintetizado ao extremo La Fura passa por uma fase inicial de quatro anos de teatro em ruas praccedilas e poblets da naccedilatildeo catalatilde que por sua vez passa por intenso processo de normalizaccedilatildeo linguumliacutestica e de resgate da identidade catalatilde Neste primeiro periacuteodo firma-se uma composiccedilatildeo estaacutevel de nove homens7 que seratildeo responsaacuteveis pelo salto artisticamente interdisciplinar que o grupo realiza com Accions Alteraciograve Fiacutesica drsquoun Espai em 19831984 apresentado ateacute 1987 em diversos paiacuteses da Europa e na Argentina Accions mescla elementos esteacuteticos de concertos de rock e de performance arte com festas populares catalatildes e espanholas com um resultado artisticamente interdisciplinar realizado ndash de maneira claustrofoacutebica para muitos e muitas ndash em instalaccedilotildees fora de teatros convencionais onde atuantes espectadores palco plateacuteia obra recepccedilatildeo sujeito e objeto se misturam fisicamente e espacialmente em performances simultacircneas e cambiantes

Accions detona enorme visibilidade criacutetica e puacuteblica internacional que o grupo manteacutem na deacutecada de 1980 e a amplia planetariamente com a mega-performance Mar Mediterragravenia na cerimocircnia de abertura dos Jogos Oliacutempicos de Barcelona em 1992 O grupo deixa de ser tachado de punk anarquista eou enfant terribles para ser reverenciado como uma companhia profissional de competecircncia iacutempar para uns e uma famigerada marca multinacional para outros A poeacutetica interdisciplinar do La Fura continua a desdobrar-se em incursotildees em diferentes campos como publicidade cinema criaccedilotildees na internet oacutepera eventos puacuteblicos e interlinguagens seja em um navio cargueiro em cavernas preacute-histoacutericas ou desde 1996 tambeacutem em teatros convencionais com plateacuteia separada da accedilatildeo no palco

Antes do atual momento do grupo as apresentaccedilotildees em espaccedilos encontrados fora dos edifiacutecios construiacutedos e convencionalmente utilizados como teatros representavam uma das quatro caracteriacutesticas diferenciais do que a imprensa espanhola convencionou descrever como lenguaje furero Aleacutem das montagens fora de teatros convencionais a linguagem furera pode ser resumida em mais trecircs caracteriacutesticas principais A segunda caracteriacutestica eacute a de que os fureros eram os autores diretores encenadores produtores e interpretes de suas obras8 A terceira eacute composta pelo interesse e a troca artisticamente interdisciplinar com diferentes linguagens e miacutedias na composiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo dessas obras E a quarta caracteriacutestica da linguagem furera seria a falta da quarta parede ou de qualquer outra barreira entre espectadores atuantes e obra 7 O trio de Moiagrave mais Alex Ollegrave Hansel Cereza Jordi Aruacutes Jurgen Muumlller Miki Espuma e Pep Gatell Sobre este primeiro periacuteodo do La Fura veja Villar (2005)8 Esta caracteriacutestica deixa de existir apoacutes MTM (1994) quando o alematildeo Jurgen Muller foi o uacutenico dos diretores fundadores a atuar e a direccedilatildeo ainda era coletiva Os seis restantes diretores se uniriam atuando juntos novamente em um dos viacutedeos de Fust 30 (1996) dirigido por Aacutelex Ollegrave e Carles Padrissa Em Manes (1996) a direccedilatildeo foi assinada unicamente por Pere Tantinyagrave e em OslashBS (2000-02) por Pep Gatell e Muumlller com muacutesica de outro diretor fundador Miki Espuma O uacuteltimo trabalho com caracteriacutesticas da linguagem furera eacute OBIT (2005) dirigido por Tantinyagrave

6

Accions (1983-87) Suz-O-Suz (1985-92) Tier Mon (1988-90) Noun (1990-92) MTM (1994-96) Manes (1996-98) OslashBS (2000-02) e no tempo deste artigo OBIT (2005) tambeacutem tecircm suas apresentaccedilotildees em hangares faacutebricas locaccedilotildees industriais edifiacutecios abandonados espaccedilos polivalentes ginaacutesios subterracircneos funeraacuterias etc ou em teatros que possam tirar sua plateacuteia ou poltronas para promover espetaacuteculos em que atuantes e espectadores satildeo performadores ativos A caracteriacutestica relacional na opccedilatildeo do La Fura talvez seja a mais forte razatildeo do impacto do teatro do grupo em vaacuterias partes do planeta Tanto para espectadores(as) que voltam para uma outra apresentaccedilatildeo furera pelo sublime do imageacutetico do espetaacuteculo como para aqueles e aquelas que natildeo retornam pela violecircncia e risco do mesmo

Eacute por meio desta caracteriacutestica relacional da linguagem furera que me aproximo da teoria de Lehmann para sondar a aplicabilidade do termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo para o teatro do La Fura Apesar da linguagem furera se caracterizar pela interdependecircncia e dinacircmica de nexos entre as quatro caracteriacutesticas listadas acima seleciono esta uacuteltima pela fundamental importacircncia que ela tem natildeo soacute em definir o especiacutefico da poeacutetica do La Fura A ausecircncia de barreiras entre espectadores e atuantes nos trabalhos de linguagem furera eacute tambeacutem a ausecircncia ou variaccedilotildees intensas de distacircncia espacial eou fiacutesica entre eles entre palco e plateacuteia interpretaccedilatildeo e assistecircncia obra e recepccedilatildeo sujeito e objeto Isso significa um desafio agraves ontologias e epistemologias do teatro imutaacuteveis e impassiacuteveis ante as profundas alteraccedilotildees na linguagem teatral promovidos desde a deacutecada de 1960 e que continuam a reverberar na arte contemporacircnea Formas de relaccedilatildeo com a plateacuteia sempre impulsionaram estudos e poeacuteticas teatrais Mas em sua metodologia transdisciplinar o antropoacutelogo e acadecircmico estadunidense Edward L Schieffelin reclama uma posiccedilatildeo central em investigaccedilotildees etnograacuteficas para questotildees sobre o relacionamento entre performador e espectador pois para ele eacute dentro desse relacionamento ldquoque as relaccedilotildees ontoloacutegicas e epistemoloacutegicas fundamentais de qualquer sociedade poderatildeo mais possivelmente estar implicadas e ser solucionadasrdquo jaacute que esse relacionamento comporta ldquosuposiccedilotildees ocidentais fundamentais sobre a natureza da accedilatildeo em situaccedilotildees cotidianasrdquo (1998 204)

Schieffelin comenta que ldquopara a maioria dos acadecircmicos ocidentais com uma experiecircncia meacutedia como espectadores de apresentaccedilotildees teatrais a noccedilatildeo de apresentaccedilatildeo ao vivo conjura uma ideacuteia de atores no palcordquo (1998 200) Enquanto que o criacutetico e artista brasileiro Andreacute Lepecki coloca que em teatro e danccedila ldquonoacutes sentamos as luzes se apagam e noacutes testemunhamos ndash entatildeo vamos embora e esquecemos A plateacuteia tem aprendido uma higiene moacuterbida do fruirrdquo (1996 105) o antropoacutelogo estadunidense Victor Turner (tatildeo caro aos estudos de performance) especifica que ldquodiferentemente do teatro o ritual natildeo distingue entre plateacuteia

7

e performadores [] Teatro existe quando ocorre uma separaccedilatildeo entre a plateacuteia e os performadoresrdquo (1982 112)

Contradizendo noccedilotildees habituais as accedilotildees ou os rituais artiacutesticos da linguagem furera acontecem entre atraacutes acima abaixo transversal ao lado ou na frente mas sempre comno puacuteblico nos amplos espaccedilos sem arquibancadas poltronas ou cadeiras Esse fato pode apontar generalizaccedilotildees excludentes ingenuidade ou falta de informaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo entre agentes ou ainda um apego a convenccedilotildees que nem a histoacuteria do teatro manteacutem e nem o puacuteblico necessariamente segue No programa de Accions em 1987 o jornalista catalatildeo Albert de la Torre sugeria que ao inveacutes da violecircncia apontada por muitos La Fura promovia a violaccedilatildeo do espaccedilo que o teatro convencional reserva para o ldquoartista-rei-atorrdquo

O ensemble questiona tambeacutem o lugar reservado convencionalmente para a plateacuteia Talvez nenhuma outra companhia cecircnica ocidental durante o seacuteculo XX tenha investigado tanto essa caracteriacutestica relacional e o teatro ambientalista ou como definido e estudado por Schechner o environmental theatre (1973) Interferir na relaccedilatildeo com a plateacuteia jaacute fazia parte crucial do radical ataque agraves convenccedilotildees da linguagem da plateacuteia e dos proacuteprios artistas promovido por diferentes artistas e grupos de teatro de distintos continentes nas Vanguardas Histoacutericas das trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo passado A questatildeo volta nas deacutecadas de 1960 e 1970 quando segundo o diretor estadunidense Arthur Sainer grupos e artistas ldquoquestionavam tudordquo inclusive a eficaacutecia ldquoem nosso tempo da velha caixinha de joacuteias do proscecircnio assustadoramente representando a manipuladora relaccedilatildeo atuante-espectador com sua noccedilatildeo de atuante como doador e espectador como recipienterdquo (1975 53-4)

Essa manipulaccedilatildeo comum em praacuteticas convencionais de teatro eacute a mesma que Peggy Phelan vecirc como ldquoaparentemente tatildeo compatiacutevel com (as tradicionais descriccedilotildees do) desejo masculino [] Muito da praacutetica teatral ocidental evoca desejo baseado e estimulado pela falta de igualdade entre performador e espectadorrdquo (1993 163) Utilizando estudos de Michel Foucault sobre a confissatildeo na igreja catoacutelica a acadecircmica e autora estadunidense descreve o fulcro (o ponto de apoio da balanccedila) que equilibra poder e conhecimento como o sustentaacuteculo que manteacutem a agecircncia de dominaccedilatildeo no confessionaacuterio e tambeacutem no evento teatral o espectador eacute o confessor silencioso que nada fala mas que domina e controla a troca (1993 163)

Estaacute aleacutem dos limites deste artigo abordar as instigantes questotildees levantadas por Phelan Schieffelin Lepecki e Turner da maneira que as mesmas merecem Mas os pontos aqui rapidamente colocados podem nos ajudar a situar a proposta relacional do La Fura como uma accedilatildeo poliacutetica A poeacutetica da linguagem furera questiona replicaccedilotildees de comportamentos

8

hegemocircnicos impostos bem como conformismos cacircnones hierarquias e dogmas esteacuteticos O impacto alcanccedilado pela caracteriacutestica relacional da linguagem furera me parece tornar possiacutevel a associaccedilatildeo direta com uma busca por uma alteraccedilatildeo da percepccedilatildeo habitual ou uma mudanccedila de lsquofoacutermulas de percepccedilatildeorsquo jaacute dadas que Lehmann coloca como funccedilatildeo objetivo e necessidade para a contundecircncia de um teatro poliacutetico

A questatildeo jaacute era para Brecht para Heiner Muller e para todos os que trabalharam com teatro poliacutetico como vocecirc muda a forma de percepccedilatildeo das questotildees poliacuteticas e influi nessa forma de percepccedilatildeo Para o teatro o que eacute importante eacute a forma de mudar essa percepccedilatildeo a forma como se vai conseguir alterar essas foacutermulas de percepccedilatildeo que estatildeo dadas (2003 10)

La Fura parece responder agrave questatildeo apontada de maneira diferenciada e contundente Sua proposta de falta de barreiras entre o objeto que eacute observado a obra a criaccedilatildeo o palco o mesmo eu e do outro lado o sujeito que observa a assistecircncia a fruiccedilatildeo a plateacuteia o outro ele ou ela altera radicalmente a percepccedilatildeo habitual do teatro e do tema sendo abordado nessa outra proposiccedilatildeo relacional e esteacutetica As associaccedilotildees diretas das montagens fureras com a teorizaccedilatildeo de Lehmann sobre o poacutes-dramaacutetico e teatro poliacutetico continuam quando ele fala da necessidade de se alterar percepccedilotildees habituais ldquonessa sociedade dominada pela miacutediardquo afirmando que o teatro ldquooferece a alternativa de uma comunicaccedilatildeo ao vivo e realrdquo mas que ldquoessa possibilidade de comunicaccedilatildeo entre o espectador e o realizado e o fato de o teatro ser esse cinema tridimensional natildeo eacute aproveitadardquo para concluir que ldquoeacute justamente essa situaccedilatildeo que eacute aproveitada por algumas dessas novas formas do teatro poacutes-dramaacuteticordquo (2003 12) La Fura parece aproveitar a situaccedilatildeo apropriadamente e tambeacutem servir como evidecircncia clara E o mesmo acontece quando Lehmann versa sobre o jogo e a categoria eacutetica nessas outras formas de teatro

Lehmann trabalha sobre o tema da categoria eacutetica em formas de teatro que exercitam outras formas relacionais com espectadores e espectadoras apontando a responsabilidade deles e delas pelo processo e pelo espetaacuteculo que ele ou ela fazem parte Apesar de reconhecer a possibilidade da mesma responsabilidade ou categoria eacutetica acontecer no teatro tradicional Lehmann acentua que nas novas formas do poacutes-dramaacutetico

isso se torna infinitamente mais claro Eu estou numa situaccedilatildeo em que estou jogando participando e atuando juntos com outros Faccedilo parte desse jogo mesmo que eu natildeo seja obrigado a fazer parte desse

9

jogo Uma situaccedilatildeo como essa eacute como uma situaccedilatildeo poliacutetica Tem a ver com a relaccedilatildeo que cada espectador estabelece com as coisas que estatildeo acontecendo (2003 13)

Natildeo parece exagerado dizer que ele parece estar descrevendo aspectos relacionais de espetaacuteculos da linguagem furera Assim como Wittgenstein natildeo separava eacutetica e esteacutetica La Fura natildeo desassocia jogo e estEacutetica de sua proposta de relacionamento com a plateacuteia Utilizando um artigo anterior onde abordo especificamente o jogo furero podermos ver que La Fura tambeacutem pode ser uma traduccedilatildeo muito especial do entendimento de Lehmann do poacutes-dramaacutetico como jogo eacutetico e tambeacutem como esfacelamento de formas tradicionais de teatro e tambeacutem da explosatildeo da unidade entre elementos teatrais como pessoas tempo e espaccedilo

Os artistas cecircnicos se deparam com uma multidatildeo que natildeo ensaiada vai danccedilar a mesma coreografia que os fureros vecircm ensaiando As deixas gestos e accedilotildees que eles tecircm que desempenhar satildeo executadas dentro entre acima abaixo e com a plateacuteia Natildeo haacute muito tempo para anaacutelise O tempo estaacute contra vocecirc membro do puacuteblico porque vocecirc tem que correr Ou vocecirc eacute empurrado Vocecirc pode tambeacutem tropeccedilar em outro membro do puacuteblico ou em um dos artistas tentando chegar a algum lugar do espaccedilo Seu espaccedilo temporaacuterio estaacute no caminho do espaccedilo temporaacuterio do ator Vocecirc estaacute no seu caminho O show apenas comeccedilou e vocecirc estaacute atuando sem ensaios entre centenas de outros que vivenciam a mesma situaccedilatildeo Centenas de performances acontecem ao mesmo tempo Os artistas ensaiados encontram novos parceiros e parceiras cada noite em uma contiacutenua improvisaccedilatildeo arriscando alguns ossos aqui e suas proacuteprias vidas ali ou mesmo uma plateacuteia hostil Vocecirc nunca pode ter um aparente controle total sobre a cena sendo interpretada como vocecirc estaacute acostumado ou acostumada quando senta-se na escuridatildeo entre os outros membros invisiacuteveis do puacuteblico de teatro convencional Quem satildeo os atores La Fura divide questotildees E essas questotildees satildeo literalmente vividas durante a performance (Queiroz 1999 251)

Essas questotildees divididas com a plateacuteia tecircm gerado herdeiros ou artistas claramente influenciados pela esteacutetica furera dentro e fora da Espanha A recepccedilatildeo agraves obras do La Fura mantecircm um retorno criacutetico e de puacuteblico significativos em diferentes continentes do planeta Em outras palavras a linguagem audiovisual furera circula bem por diversos contextos geopoliacuteticos independente da liacutengua Entretanto um breve olhar no solo histoacuterico e cultural do grupo pode nos introduzir outros matizes

10

sobre a questatildeo do teatro (poliacutetico ou natildeo) e da opccedilatildeo relacional dos fureros

A obra do La Fura se insere dentro de um contexto diferenciado de uma naccedilatildeo sem estado ou uma naccedilatildeo catalatilde dentro de um Estado espanhol que eacute constituiacutedo por 19 autonomias com presidentes eleitos e bandeiras proacuteprias Catalunya (Catalunha) Galicia (Galiza) e Euskadi (Paiacutes Basco) satildeo autonomias diferenciadas chamadas de autonomias histoacutericas Com liacutenguas e histoacuterias proacuteprias independentes e anteriores ao Estado espanhol essas naccedilotildees foram gradualmente incorporadas como regiotildees desde o casamento dos reis catoacutelicos Fernando V de Aragatildeo e Isabela I de Castela em 1469 Nos nossos dias permanece uma tensatildeo entre centralizaccedilatildeo e integraccedilatildeo agraves forccedilas do Estado espanhol e movimentos na direccedilatildeo de descentralizaccedilatildeo mais autonomia e ainda que cada vez mais deacutebil separatismo

A histoacuteria da Catalunha marca uma intensa resistecircncia cultural e um senso forte de identidade nacional que natildeo sucumbiram aos ataques de Felipe V no seacuteculo XVIII ou de Franco e sua ditadura (1936-1975) que tentaram em vatildeo promover um genociacutedio da identidade autonomia e direitos histoacutericos da Catalunha Desde a transiccedilatildeo democraacutetica iniciada em 1976 o processo de normalitzacioacute e ideacuteias nacionalistas chocam-se com o processo de normalizacioacuten que defende os interesses do Estado e a ideacuteia de uma identidade espanhola nacional Dentro do lsquonada eacute fixorsquo da chamada poacutes-modernidade da globalizaccedilatildeo e a nova cena geopoliacutetica da Europa haacute uma crise na definiccedilatildeo de identidade ndash crise que natildeo eacute soacute catalatilde espanhola ou europeacuteia mas ocidental e contemporacircnea nossa haacute tempos Na especificidade catalatilde da crise pessoas nascidas na Catalunha podem ainda ser vistas como uma lsquosegunda ou terceira geraccedilatildeo de imigrantesrsquo mesmo se eles falam catalatildeo que era fator diferenciador de uma identidade catalatilde lsquoCharnegorsquo eacute um termo utilizado por catalatildees para catalatildees com pai ou matildee de outra regiatildeo da Espanha Quando esses indiviacuteduos estatildeo na regiatildeo de seus pais eles satildeo lsquoos catalatildeesrsquo Assim eles podem ser estrangeiros dentro e fora da Catalunha

No bojo desse contexto de sutilezas rudemente sintetizado acima Antonio Saacutenchez Helen Graham e Jo Labanyi Josep-Anton Fernagravendez e Michael Keating satildeo alguns dos acadecircmicos europeus que reconhecem um crescimento da identidade catalatilde promovido pela transiccedilatildeo democraacutetica e a normalitzacioacute Keating frisa que ldquoo forte senso de identidade catalatilde que cresceu fortemente nos uacuteltimos vinte anos [] natildeo eacute uma identidade exclusiva mas uma identidade dupla como uma naccedilatildeo distinta dentro da Espanha e no niacutevel da elite com um forte compromisso com a Europardquo (1996 160) Keating tambeacutem sugere que ldquoa proporccedilatildeo daqueles que se identificam como puramente lsquoespanholrsquo caiu nitidamenterdquo (1996 130) Entretanto estudos no final da deacutecada de 1990 sobre uso de liacutengua e

11

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 3: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

carreguem um potencial idecircntico ao de um peacute de cabra que em matildeos desejosas irradia uma energia de alavancar (1988 xv)

A manutenccedilatildeo da defasagem criacutetica e teoacuterica em relaccedilatildeo a diferentes poeacuteticas do teatro contemporacircneo nubla negativamente o diaacutelogo entre puacuteblico obra academia criacutetica criador ou criadora e obra com todas as perdas impliacutecitas nessa incomunicabilidade esterilizante E isso nos traz de volta agrave importacircncia da caixa de ferramentas de Lehmann que encorpa uma linhagem de artistas acadecircmicas e acadecircmicos e artistas acadecircmicos que investigam outros teatros ou outras articulaccedilotildees dos limites da linguagem teatral cecircnica eou performaacutetica3

Vale chamar atenccedilatildeo destacada para o subestimado The Theatre Event Modern Theories of Performance (1980) de Timothy Wiles e sua conceituaccedilatildeo de um lsquoTeatro Performancersquo Teatro Performance ou Performance Teatro circunscreveriam praacuteticas cecircnicas natildeo mais representadas por unidades aristoteacutelicas naturalismo ou teatro eacutepico Wiles desenvolve uma descriccedilatildeo e anaacutelise sistematizadas de outras formas de teatro que desafiavam as certezas e limites da criacutetica da eacutepoca Semelhante agrave Lehmann Wiles buscava um termo que incluiacutesse uma outra diversidade revelada por dramaturgias estilos interpretativos e inovaccedilotildees formais distintas que criaram ldquouma situaccedilatildeo desconfortaacutevel para todos os historiadores de esteacuteticardquo (1980 112) Natalie Crohn Smitt resenha o livro de Wiles e comenta que teatro performance ldquoembora de alguma forma redundante eacute consistente com o agora largamente aceito termo de lsquoperformance artersquo e o termo define o novo teatro em termos do que [] eacute o aspecto mais importante deste novo teatro sua ecircnfase consciente na primazia da performance [apresentaccedilatildeo acontecendo]rdquo (1982 589) Sem excluir um cacircnone de textos literaacuterios dentro do teatro performance Wiles

3 Aumenta o nuacutemero de pesquisadoras(es) que objetivam outras metodologias que consigam seguir as permanentes transformaccedilotildees esteacuteticas da linguagem teatral em sua permanente expansatildeo e retraccedilatildeo e em nutriccedilatildeo muacutetua com o cotidiano que molda o teatro assim como eacute moldado por ele Haacute de se frisar a contribuiccedilatildeo fundamental dos estudos de performance durante o seacuteculo XX de Nikolai Evreinov nas primeiras deacutecadas agrave Richard Schechner J L Austin RoseLee Goldberg Dick Higgins Victor Turner Erwin Goffman e seus atuais seguidores Na deacutecada de 1980 Schechner e Michael Kirby Timothy J Wiles Mathew Macguire Bonnie Marranca Bert O States Valentina Valentini Mercegrave Saumell e Esperanza Ferrer Jacoacute Guinsburg Herbert Blau Renato Cohen Elin Diamond e Marvin Carlson satildeo alguns nomes dos EUA Europa e Brasil que persistem na deacutecada seguinte buscando a anaacutelise de diversas formas de teatro ldquopara aleacutem do recitar de um textordquo (Lehmann 2003 16) Na mesma empreitada nos anos 1990 chegando aos nossos dias temos aleacutem de muitos dos citados acima Joseacute A Saacutenchez Christopher Innes Margaret Wilkerson Jill Dolan Johannes Birringer Peggy Phelan Lucia Sander Alan Read Maria Delgado Paul Heritage Erika Fischer-Lichte Oscar Bernal Philip Auslander Michel Vanden Heuvel Silvia Fernandes Bim Mason Janette Reinelt Silvia Davini Andreacute Carreira Joseacute Da Costa Luiz Fernando Ramos Bya Braga Ciane Fernandes Acircngela Materno Sonia Rangel Luacutecio Agra Nara Ciotti Renato Ferracini Sara Rojo Josette Feral Gecirc Orthof Bia Medeiros Joatildeo Gabriel Teixeira e Rita Gusmatildeo entre tantos outros e outras que tive e terei o prazer de encontrar Os cruzamentos da Nova Histoacuteria com a historiografia teatral e as pesquisas de Thomas Postlewait Bruce McConnachie Joseph R Roach e Dwight Conquergood satildeo igualmente uacuteteis

3

descreve um teatro que pode ldquoprescindir de palavras que natildeo tenham funccedilatildeo aleacutem da exposiccedilatildeordquo (1980 128) Seu interesse estava nas formas teatrais que apresentam inovaccedilotildees formais que questionam as limitaccedilotildees do teatro eacutepico e de ldquoAristoacuteteles (ou nossas suposiccedilotildees equivocadas sobre ele) para propor um conceito do evento teatral que encontra existecircncia e significado na performance natildeo no encapsulamento literaacuterio cujo preservar acionou tantos escritos de tantas mais poeacuteticasrdquo (1980 117)

Wiles cunha um termo conciliatoacuterio que reconhece e investiga o diaacutelogo entre teatro e performance se distanciando assim de tendecircncias que se dividiam e ainda se dividem em uma falsa dicotomia de teatro e performance como opostos Supostos opostos como esse cortam a possibilidade de uma discussatildeo necessaacuteria uacutetil e fundamental para a ontologia e epistemologia do teatro da performance e da arte Lehmann posiciona performance como uma das novas formas de teatro poacutes-dramaacutetico Schechner e os estudiosos da performance colocariam o poacutes-dramaacutetico como uma forma de teatro que por sua vez seria abrigado pelo guarda-chuva conceitual de performance Sabemos de uma corrente que define performance como forma teatral e outra que defende que o teatro natildeo eacute performance Correntes que se opotildeem entre performance ser teatro ou natildeo ser teatro se manteacutem no desconhecimento de um outro territoacuterio que se cria aleacutem das antigas fronteiras disciplinares Teatro danccedila butoh viacutedeo poesia performance arte performance teatro instalaccedilotildees animadas CAVEs ou arte na rede satildeo interdisciplinas ou interlinguagens4

Wessendorf nos lembra que o termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo jaacute havia sido utilizado por Schechner no final da deacutecada de 1970 para descrever Happenings (2003 sp) Sem dar as costas para a instacircncia artiacutestica da performance nem para a teatralidade que detonaram mudanccedilas radicais em todas as linguagens artiacutesticas no seacuteculo XX Wiles na deacutecada de 1980 jaacute parecia estudar o iniacutecio de um teatro poacutes-performance arte Se abrindo para um teatro performance ele se abre tambeacutem para a interlinguagem e os hibridismos que a linguagem cecircnica pocircde materializar em uma outra etapa das transformaccedilotildees de uma arte que como tal negocia com e interfere em seu tempo e se transforma continuamente por meio de processos interdisciplinares natildeo soacute entre as artes mas tambeacutem com a filosofia ciecircncias sociais e exatas novas miacutedias e tecnologias

No lusco-fusco dos seacuteculos XX e XXI Wessendorf frisa que um ponto fundamental na teoria do poacutes-dramaacutetico estaacute no fato que ldquoLehmann mapeia uma esteacutetica afirmativa do teatro poacutes-dramaacutetico e concretiza um cataacutelogo de ideacuteias que permitem descrever e analisar aquele tipo de teatro em termos positivosrdquo (2003 sp) Apoacutes tantos debates sobre tantas poacutes-4 lsquoIntermediarsquo foi o termo cunhado pelo artista do FLUXUS Dick Higgins que jaacute em 1967 definia o Happening ldquocomo um intermeio na terra natildeo mapeada entre a colagem muacutesica e teatrordquo uma outra expressatildeo artiacutestica hiacutebrida que se desenvolveu segundo Higgins ldquosimultaneamente nos EUA Europa Brasil e Japatildeordquo (1978 17)

4

modernidades e poacutes-modernismos o poacutes-dramaacutetico de Lehmann pode tambeacutem soar para muitos como mais uma lsquoafetaccedilatildeo poacutes-modernarsquo ou uma lsquopoacutes-modernicersquo Tal equiacutevoco de julgamento estaria mais uma vez subestimando um adendo crucial no ataque contra ideacuteias preconcebidas sobre poeacuteticas e linguagens artiacutesticas mui especialmente poeacuteticas contemporacircneas da linguagem teatral

Este artigo elege La Fura dels Baus5 para conectar o conceitual de Lehmann e um estudo de obra teatral contemporacircnea6 De forma alguma se pretende colocar a companhia catalatilde como modelo de teatro poacutes-dramaacutetico nem o poacutes-dramaacutetico de Lehmann como modelo para anaacutelise do La Fura O grupo eacute um dos ensembles e artistas que percorreram as deacutecadas de 1980 e 1990 e chegaram aos nossos dias Seja em Barcelona (La Cubana Secircmola Teatre Marcelliacute Antunez Roca Simona Levi) Montreal (Robert Lepage) Copenhaguen-Bruxelas-Amsterdam (Jan Fabre Alain Platell e Arne Sirens Michel Laub) Brasiacutelia (Hugo Rodas Udigrudi) Satildeo Paulo (Oacutepera Seca XPTO Cristiane Paoli Quito Joseacute Celso Antunes Filho Maacutercio Aureacutelio Antonio Noacutebrega Antonio Abujamra) Rio (Companhia dos Atores Armazeacutem) Paris (Royal de Luxe) Buenos Aires (Perifeacutericos de Objetos Organizacioacuten NegraDe la Guarda) Nova York (Wooster Group Karen Finley) Londres (DV8 Forced Entertainment) ou em Toacutequio (Shankai Juku Min Tanaka) essas poeacuteticas selecionadas em continentes distintos dividem em comum o fato de terem permanecido nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX e chegado aos nossos dias mantendo a possibilidade de ter muitas de suas obras agrupadas como teatro poacutes-dramaacutetico teatro performance eou dramaturgias de imagens

La Fura dels Baus foi criado em 1979 em Barcelona capital da Catalunya autonomia histoacuterica de Espantildea O grupo nasce entre o desbunde da transiccedilatildeo democraacutetica apoacutes a morte do ditador Franco em 1975 ndash e a ressaca do desencanto (EacutePOCA) com a lentidatildeo e ausecircncia de transformaccedilotildees fazendo parte do posterior vigor da movida madrilentildea e do investimento massivo em arte e cultura como vitrine para a ambicionada entrada na Comunidade Europeacuteia e do incremento de mudanccedilas estruturais no paiacutes com a eleiccedilatildeo de Felipe Gonzaacutelez do Partido Social Obrero Espantildeol (PSOE)

5 lsquoFurarsquo em catalatildeo significa furatildeo aquele animal aparentado com fuinhas lsquoEl Bausrsquo era um coacuterrego seco que virou um depoacutesito espontacircneo e anti-ecoloacutegico de lixo em Moiagrave Catalunha pequena cidade de 3000 habitantes a 60 km de Barcelona onde trecircs dos diretores fundadores do La Fura nasceram e cresceram (Carles Padrissa Marcelliacute Antuacutenez Roca e Pere Tantinyagrave)6 O livro editado por Mauri e Ollegrave La Fura dels Baus 1979-2004 (2004) apresenta um completo painel sobre a obra do grupo com artigos dos integrantes do grupo associados criacuteticos pesquisadoras e acadecircmicos aleacutem de um DVD com material editado de quase todas suas obras cecircnicas incluindo todos os trabalhos da linguagem furera nos 25 anos da companhia A paacutegina do grupo na internet (wwwlafuracom) tambeacutem apresenta vasto material teoacuterico e audiovisual sobre os trabalhos do grupo Para uma introduccedilatildeo sobre o trabalho do La Fura veja Villar (2001) ou Queiroz (1999)

5

Nesse solo histoacuterico sintetizado ao extremo La Fura passa por uma fase inicial de quatro anos de teatro em ruas praccedilas e poblets da naccedilatildeo catalatilde que por sua vez passa por intenso processo de normalizaccedilatildeo linguumliacutestica e de resgate da identidade catalatilde Neste primeiro periacuteodo firma-se uma composiccedilatildeo estaacutevel de nove homens7 que seratildeo responsaacuteveis pelo salto artisticamente interdisciplinar que o grupo realiza com Accions Alteraciograve Fiacutesica drsquoun Espai em 19831984 apresentado ateacute 1987 em diversos paiacuteses da Europa e na Argentina Accions mescla elementos esteacuteticos de concertos de rock e de performance arte com festas populares catalatildes e espanholas com um resultado artisticamente interdisciplinar realizado ndash de maneira claustrofoacutebica para muitos e muitas ndash em instalaccedilotildees fora de teatros convencionais onde atuantes espectadores palco plateacuteia obra recepccedilatildeo sujeito e objeto se misturam fisicamente e espacialmente em performances simultacircneas e cambiantes

Accions detona enorme visibilidade criacutetica e puacuteblica internacional que o grupo manteacutem na deacutecada de 1980 e a amplia planetariamente com a mega-performance Mar Mediterragravenia na cerimocircnia de abertura dos Jogos Oliacutempicos de Barcelona em 1992 O grupo deixa de ser tachado de punk anarquista eou enfant terribles para ser reverenciado como uma companhia profissional de competecircncia iacutempar para uns e uma famigerada marca multinacional para outros A poeacutetica interdisciplinar do La Fura continua a desdobrar-se em incursotildees em diferentes campos como publicidade cinema criaccedilotildees na internet oacutepera eventos puacuteblicos e interlinguagens seja em um navio cargueiro em cavernas preacute-histoacutericas ou desde 1996 tambeacutem em teatros convencionais com plateacuteia separada da accedilatildeo no palco

Antes do atual momento do grupo as apresentaccedilotildees em espaccedilos encontrados fora dos edifiacutecios construiacutedos e convencionalmente utilizados como teatros representavam uma das quatro caracteriacutesticas diferenciais do que a imprensa espanhola convencionou descrever como lenguaje furero Aleacutem das montagens fora de teatros convencionais a linguagem furera pode ser resumida em mais trecircs caracteriacutesticas principais A segunda caracteriacutestica eacute a de que os fureros eram os autores diretores encenadores produtores e interpretes de suas obras8 A terceira eacute composta pelo interesse e a troca artisticamente interdisciplinar com diferentes linguagens e miacutedias na composiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo dessas obras E a quarta caracteriacutestica da linguagem furera seria a falta da quarta parede ou de qualquer outra barreira entre espectadores atuantes e obra 7 O trio de Moiagrave mais Alex Ollegrave Hansel Cereza Jordi Aruacutes Jurgen Muumlller Miki Espuma e Pep Gatell Sobre este primeiro periacuteodo do La Fura veja Villar (2005)8 Esta caracteriacutestica deixa de existir apoacutes MTM (1994) quando o alematildeo Jurgen Muller foi o uacutenico dos diretores fundadores a atuar e a direccedilatildeo ainda era coletiva Os seis restantes diretores se uniriam atuando juntos novamente em um dos viacutedeos de Fust 30 (1996) dirigido por Aacutelex Ollegrave e Carles Padrissa Em Manes (1996) a direccedilatildeo foi assinada unicamente por Pere Tantinyagrave e em OslashBS (2000-02) por Pep Gatell e Muumlller com muacutesica de outro diretor fundador Miki Espuma O uacuteltimo trabalho com caracteriacutesticas da linguagem furera eacute OBIT (2005) dirigido por Tantinyagrave

6

Accions (1983-87) Suz-O-Suz (1985-92) Tier Mon (1988-90) Noun (1990-92) MTM (1994-96) Manes (1996-98) OslashBS (2000-02) e no tempo deste artigo OBIT (2005) tambeacutem tecircm suas apresentaccedilotildees em hangares faacutebricas locaccedilotildees industriais edifiacutecios abandonados espaccedilos polivalentes ginaacutesios subterracircneos funeraacuterias etc ou em teatros que possam tirar sua plateacuteia ou poltronas para promover espetaacuteculos em que atuantes e espectadores satildeo performadores ativos A caracteriacutestica relacional na opccedilatildeo do La Fura talvez seja a mais forte razatildeo do impacto do teatro do grupo em vaacuterias partes do planeta Tanto para espectadores(as) que voltam para uma outra apresentaccedilatildeo furera pelo sublime do imageacutetico do espetaacuteculo como para aqueles e aquelas que natildeo retornam pela violecircncia e risco do mesmo

Eacute por meio desta caracteriacutestica relacional da linguagem furera que me aproximo da teoria de Lehmann para sondar a aplicabilidade do termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo para o teatro do La Fura Apesar da linguagem furera se caracterizar pela interdependecircncia e dinacircmica de nexos entre as quatro caracteriacutesticas listadas acima seleciono esta uacuteltima pela fundamental importacircncia que ela tem natildeo soacute em definir o especiacutefico da poeacutetica do La Fura A ausecircncia de barreiras entre espectadores e atuantes nos trabalhos de linguagem furera eacute tambeacutem a ausecircncia ou variaccedilotildees intensas de distacircncia espacial eou fiacutesica entre eles entre palco e plateacuteia interpretaccedilatildeo e assistecircncia obra e recepccedilatildeo sujeito e objeto Isso significa um desafio agraves ontologias e epistemologias do teatro imutaacuteveis e impassiacuteveis ante as profundas alteraccedilotildees na linguagem teatral promovidos desde a deacutecada de 1960 e que continuam a reverberar na arte contemporacircnea Formas de relaccedilatildeo com a plateacuteia sempre impulsionaram estudos e poeacuteticas teatrais Mas em sua metodologia transdisciplinar o antropoacutelogo e acadecircmico estadunidense Edward L Schieffelin reclama uma posiccedilatildeo central em investigaccedilotildees etnograacuteficas para questotildees sobre o relacionamento entre performador e espectador pois para ele eacute dentro desse relacionamento ldquoque as relaccedilotildees ontoloacutegicas e epistemoloacutegicas fundamentais de qualquer sociedade poderatildeo mais possivelmente estar implicadas e ser solucionadasrdquo jaacute que esse relacionamento comporta ldquosuposiccedilotildees ocidentais fundamentais sobre a natureza da accedilatildeo em situaccedilotildees cotidianasrdquo (1998 204)

Schieffelin comenta que ldquopara a maioria dos acadecircmicos ocidentais com uma experiecircncia meacutedia como espectadores de apresentaccedilotildees teatrais a noccedilatildeo de apresentaccedilatildeo ao vivo conjura uma ideacuteia de atores no palcordquo (1998 200) Enquanto que o criacutetico e artista brasileiro Andreacute Lepecki coloca que em teatro e danccedila ldquonoacutes sentamos as luzes se apagam e noacutes testemunhamos ndash entatildeo vamos embora e esquecemos A plateacuteia tem aprendido uma higiene moacuterbida do fruirrdquo (1996 105) o antropoacutelogo estadunidense Victor Turner (tatildeo caro aos estudos de performance) especifica que ldquodiferentemente do teatro o ritual natildeo distingue entre plateacuteia

7

e performadores [] Teatro existe quando ocorre uma separaccedilatildeo entre a plateacuteia e os performadoresrdquo (1982 112)

Contradizendo noccedilotildees habituais as accedilotildees ou os rituais artiacutesticos da linguagem furera acontecem entre atraacutes acima abaixo transversal ao lado ou na frente mas sempre comno puacuteblico nos amplos espaccedilos sem arquibancadas poltronas ou cadeiras Esse fato pode apontar generalizaccedilotildees excludentes ingenuidade ou falta de informaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo entre agentes ou ainda um apego a convenccedilotildees que nem a histoacuteria do teatro manteacutem e nem o puacuteblico necessariamente segue No programa de Accions em 1987 o jornalista catalatildeo Albert de la Torre sugeria que ao inveacutes da violecircncia apontada por muitos La Fura promovia a violaccedilatildeo do espaccedilo que o teatro convencional reserva para o ldquoartista-rei-atorrdquo

O ensemble questiona tambeacutem o lugar reservado convencionalmente para a plateacuteia Talvez nenhuma outra companhia cecircnica ocidental durante o seacuteculo XX tenha investigado tanto essa caracteriacutestica relacional e o teatro ambientalista ou como definido e estudado por Schechner o environmental theatre (1973) Interferir na relaccedilatildeo com a plateacuteia jaacute fazia parte crucial do radical ataque agraves convenccedilotildees da linguagem da plateacuteia e dos proacuteprios artistas promovido por diferentes artistas e grupos de teatro de distintos continentes nas Vanguardas Histoacutericas das trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo passado A questatildeo volta nas deacutecadas de 1960 e 1970 quando segundo o diretor estadunidense Arthur Sainer grupos e artistas ldquoquestionavam tudordquo inclusive a eficaacutecia ldquoem nosso tempo da velha caixinha de joacuteias do proscecircnio assustadoramente representando a manipuladora relaccedilatildeo atuante-espectador com sua noccedilatildeo de atuante como doador e espectador como recipienterdquo (1975 53-4)

Essa manipulaccedilatildeo comum em praacuteticas convencionais de teatro eacute a mesma que Peggy Phelan vecirc como ldquoaparentemente tatildeo compatiacutevel com (as tradicionais descriccedilotildees do) desejo masculino [] Muito da praacutetica teatral ocidental evoca desejo baseado e estimulado pela falta de igualdade entre performador e espectadorrdquo (1993 163) Utilizando estudos de Michel Foucault sobre a confissatildeo na igreja catoacutelica a acadecircmica e autora estadunidense descreve o fulcro (o ponto de apoio da balanccedila) que equilibra poder e conhecimento como o sustentaacuteculo que manteacutem a agecircncia de dominaccedilatildeo no confessionaacuterio e tambeacutem no evento teatral o espectador eacute o confessor silencioso que nada fala mas que domina e controla a troca (1993 163)

Estaacute aleacutem dos limites deste artigo abordar as instigantes questotildees levantadas por Phelan Schieffelin Lepecki e Turner da maneira que as mesmas merecem Mas os pontos aqui rapidamente colocados podem nos ajudar a situar a proposta relacional do La Fura como uma accedilatildeo poliacutetica A poeacutetica da linguagem furera questiona replicaccedilotildees de comportamentos

8

hegemocircnicos impostos bem como conformismos cacircnones hierarquias e dogmas esteacuteticos O impacto alcanccedilado pela caracteriacutestica relacional da linguagem furera me parece tornar possiacutevel a associaccedilatildeo direta com uma busca por uma alteraccedilatildeo da percepccedilatildeo habitual ou uma mudanccedila de lsquofoacutermulas de percepccedilatildeorsquo jaacute dadas que Lehmann coloca como funccedilatildeo objetivo e necessidade para a contundecircncia de um teatro poliacutetico

A questatildeo jaacute era para Brecht para Heiner Muller e para todos os que trabalharam com teatro poliacutetico como vocecirc muda a forma de percepccedilatildeo das questotildees poliacuteticas e influi nessa forma de percepccedilatildeo Para o teatro o que eacute importante eacute a forma de mudar essa percepccedilatildeo a forma como se vai conseguir alterar essas foacutermulas de percepccedilatildeo que estatildeo dadas (2003 10)

La Fura parece responder agrave questatildeo apontada de maneira diferenciada e contundente Sua proposta de falta de barreiras entre o objeto que eacute observado a obra a criaccedilatildeo o palco o mesmo eu e do outro lado o sujeito que observa a assistecircncia a fruiccedilatildeo a plateacuteia o outro ele ou ela altera radicalmente a percepccedilatildeo habitual do teatro e do tema sendo abordado nessa outra proposiccedilatildeo relacional e esteacutetica As associaccedilotildees diretas das montagens fureras com a teorizaccedilatildeo de Lehmann sobre o poacutes-dramaacutetico e teatro poliacutetico continuam quando ele fala da necessidade de se alterar percepccedilotildees habituais ldquonessa sociedade dominada pela miacutediardquo afirmando que o teatro ldquooferece a alternativa de uma comunicaccedilatildeo ao vivo e realrdquo mas que ldquoessa possibilidade de comunicaccedilatildeo entre o espectador e o realizado e o fato de o teatro ser esse cinema tridimensional natildeo eacute aproveitadardquo para concluir que ldquoeacute justamente essa situaccedilatildeo que eacute aproveitada por algumas dessas novas formas do teatro poacutes-dramaacuteticordquo (2003 12) La Fura parece aproveitar a situaccedilatildeo apropriadamente e tambeacutem servir como evidecircncia clara E o mesmo acontece quando Lehmann versa sobre o jogo e a categoria eacutetica nessas outras formas de teatro

Lehmann trabalha sobre o tema da categoria eacutetica em formas de teatro que exercitam outras formas relacionais com espectadores e espectadoras apontando a responsabilidade deles e delas pelo processo e pelo espetaacuteculo que ele ou ela fazem parte Apesar de reconhecer a possibilidade da mesma responsabilidade ou categoria eacutetica acontecer no teatro tradicional Lehmann acentua que nas novas formas do poacutes-dramaacutetico

isso se torna infinitamente mais claro Eu estou numa situaccedilatildeo em que estou jogando participando e atuando juntos com outros Faccedilo parte desse jogo mesmo que eu natildeo seja obrigado a fazer parte desse

9

jogo Uma situaccedilatildeo como essa eacute como uma situaccedilatildeo poliacutetica Tem a ver com a relaccedilatildeo que cada espectador estabelece com as coisas que estatildeo acontecendo (2003 13)

Natildeo parece exagerado dizer que ele parece estar descrevendo aspectos relacionais de espetaacuteculos da linguagem furera Assim como Wittgenstein natildeo separava eacutetica e esteacutetica La Fura natildeo desassocia jogo e estEacutetica de sua proposta de relacionamento com a plateacuteia Utilizando um artigo anterior onde abordo especificamente o jogo furero podermos ver que La Fura tambeacutem pode ser uma traduccedilatildeo muito especial do entendimento de Lehmann do poacutes-dramaacutetico como jogo eacutetico e tambeacutem como esfacelamento de formas tradicionais de teatro e tambeacutem da explosatildeo da unidade entre elementos teatrais como pessoas tempo e espaccedilo

Os artistas cecircnicos se deparam com uma multidatildeo que natildeo ensaiada vai danccedilar a mesma coreografia que os fureros vecircm ensaiando As deixas gestos e accedilotildees que eles tecircm que desempenhar satildeo executadas dentro entre acima abaixo e com a plateacuteia Natildeo haacute muito tempo para anaacutelise O tempo estaacute contra vocecirc membro do puacuteblico porque vocecirc tem que correr Ou vocecirc eacute empurrado Vocecirc pode tambeacutem tropeccedilar em outro membro do puacuteblico ou em um dos artistas tentando chegar a algum lugar do espaccedilo Seu espaccedilo temporaacuterio estaacute no caminho do espaccedilo temporaacuterio do ator Vocecirc estaacute no seu caminho O show apenas comeccedilou e vocecirc estaacute atuando sem ensaios entre centenas de outros que vivenciam a mesma situaccedilatildeo Centenas de performances acontecem ao mesmo tempo Os artistas ensaiados encontram novos parceiros e parceiras cada noite em uma contiacutenua improvisaccedilatildeo arriscando alguns ossos aqui e suas proacuteprias vidas ali ou mesmo uma plateacuteia hostil Vocecirc nunca pode ter um aparente controle total sobre a cena sendo interpretada como vocecirc estaacute acostumado ou acostumada quando senta-se na escuridatildeo entre os outros membros invisiacuteveis do puacuteblico de teatro convencional Quem satildeo os atores La Fura divide questotildees E essas questotildees satildeo literalmente vividas durante a performance (Queiroz 1999 251)

Essas questotildees divididas com a plateacuteia tecircm gerado herdeiros ou artistas claramente influenciados pela esteacutetica furera dentro e fora da Espanha A recepccedilatildeo agraves obras do La Fura mantecircm um retorno criacutetico e de puacuteblico significativos em diferentes continentes do planeta Em outras palavras a linguagem audiovisual furera circula bem por diversos contextos geopoliacuteticos independente da liacutengua Entretanto um breve olhar no solo histoacuterico e cultural do grupo pode nos introduzir outros matizes

10

sobre a questatildeo do teatro (poliacutetico ou natildeo) e da opccedilatildeo relacional dos fureros

A obra do La Fura se insere dentro de um contexto diferenciado de uma naccedilatildeo sem estado ou uma naccedilatildeo catalatilde dentro de um Estado espanhol que eacute constituiacutedo por 19 autonomias com presidentes eleitos e bandeiras proacuteprias Catalunya (Catalunha) Galicia (Galiza) e Euskadi (Paiacutes Basco) satildeo autonomias diferenciadas chamadas de autonomias histoacutericas Com liacutenguas e histoacuterias proacuteprias independentes e anteriores ao Estado espanhol essas naccedilotildees foram gradualmente incorporadas como regiotildees desde o casamento dos reis catoacutelicos Fernando V de Aragatildeo e Isabela I de Castela em 1469 Nos nossos dias permanece uma tensatildeo entre centralizaccedilatildeo e integraccedilatildeo agraves forccedilas do Estado espanhol e movimentos na direccedilatildeo de descentralizaccedilatildeo mais autonomia e ainda que cada vez mais deacutebil separatismo

A histoacuteria da Catalunha marca uma intensa resistecircncia cultural e um senso forte de identidade nacional que natildeo sucumbiram aos ataques de Felipe V no seacuteculo XVIII ou de Franco e sua ditadura (1936-1975) que tentaram em vatildeo promover um genociacutedio da identidade autonomia e direitos histoacutericos da Catalunha Desde a transiccedilatildeo democraacutetica iniciada em 1976 o processo de normalitzacioacute e ideacuteias nacionalistas chocam-se com o processo de normalizacioacuten que defende os interesses do Estado e a ideacuteia de uma identidade espanhola nacional Dentro do lsquonada eacute fixorsquo da chamada poacutes-modernidade da globalizaccedilatildeo e a nova cena geopoliacutetica da Europa haacute uma crise na definiccedilatildeo de identidade ndash crise que natildeo eacute soacute catalatilde espanhola ou europeacuteia mas ocidental e contemporacircnea nossa haacute tempos Na especificidade catalatilde da crise pessoas nascidas na Catalunha podem ainda ser vistas como uma lsquosegunda ou terceira geraccedilatildeo de imigrantesrsquo mesmo se eles falam catalatildeo que era fator diferenciador de uma identidade catalatilde lsquoCharnegorsquo eacute um termo utilizado por catalatildees para catalatildees com pai ou matildee de outra regiatildeo da Espanha Quando esses indiviacuteduos estatildeo na regiatildeo de seus pais eles satildeo lsquoos catalatildeesrsquo Assim eles podem ser estrangeiros dentro e fora da Catalunha

No bojo desse contexto de sutilezas rudemente sintetizado acima Antonio Saacutenchez Helen Graham e Jo Labanyi Josep-Anton Fernagravendez e Michael Keating satildeo alguns dos acadecircmicos europeus que reconhecem um crescimento da identidade catalatilde promovido pela transiccedilatildeo democraacutetica e a normalitzacioacute Keating frisa que ldquoo forte senso de identidade catalatilde que cresceu fortemente nos uacuteltimos vinte anos [] natildeo eacute uma identidade exclusiva mas uma identidade dupla como uma naccedilatildeo distinta dentro da Espanha e no niacutevel da elite com um forte compromisso com a Europardquo (1996 160) Keating tambeacutem sugere que ldquoa proporccedilatildeo daqueles que se identificam como puramente lsquoespanholrsquo caiu nitidamenterdquo (1996 130) Entretanto estudos no final da deacutecada de 1990 sobre uso de liacutengua e

11

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 4: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

descreve um teatro que pode ldquoprescindir de palavras que natildeo tenham funccedilatildeo aleacutem da exposiccedilatildeordquo (1980 128) Seu interesse estava nas formas teatrais que apresentam inovaccedilotildees formais que questionam as limitaccedilotildees do teatro eacutepico e de ldquoAristoacuteteles (ou nossas suposiccedilotildees equivocadas sobre ele) para propor um conceito do evento teatral que encontra existecircncia e significado na performance natildeo no encapsulamento literaacuterio cujo preservar acionou tantos escritos de tantas mais poeacuteticasrdquo (1980 117)

Wiles cunha um termo conciliatoacuterio que reconhece e investiga o diaacutelogo entre teatro e performance se distanciando assim de tendecircncias que se dividiam e ainda se dividem em uma falsa dicotomia de teatro e performance como opostos Supostos opostos como esse cortam a possibilidade de uma discussatildeo necessaacuteria uacutetil e fundamental para a ontologia e epistemologia do teatro da performance e da arte Lehmann posiciona performance como uma das novas formas de teatro poacutes-dramaacutetico Schechner e os estudiosos da performance colocariam o poacutes-dramaacutetico como uma forma de teatro que por sua vez seria abrigado pelo guarda-chuva conceitual de performance Sabemos de uma corrente que define performance como forma teatral e outra que defende que o teatro natildeo eacute performance Correntes que se opotildeem entre performance ser teatro ou natildeo ser teatro se manteacutem no desconhecimento de um outro territoacuterio que se cria aleacutem das antigas fronteiras disciplinares Teatro danccedila butoh viacutedeo poesia performance arte performance teatro instalaccedilotildees animadas CAVEs ou arte na rede satildeo interdisciplinas ou interlinguagens4

Wessendorf nos lembra que o termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo jaacute havia sido utilizado por Schechner no final da deacutecada de 1970 para descrever Happenings (2003 sp) Sem dar as costas para a instacircncia artiacutestica da performance nem para a teatralidade que detonaram mudanccedilas radicais em todas as linguagens artiacutesticas no seacuteculo XX Wiles na deacutecada de 1980 jaacute parecia estudar o iniacutecio de um teatro poacutes-performance arte Se abrindo para um teatro performance ele se abre tambeacutem para a interlinguagem e os hibridismos que a linguagem cecircnica pocircde materializar em uma outra etapa das transformaccedilotildees de uma arte que como tal negocia com e interfere em seu tempo e se transforma continuamente por meio de processos interdisciplinares natildeo soacute entre as artes mas tambeacutem com a filosofia ciecircncias sociais e exatas novas miacutedias e tecnologias

No lusco-fusco dos seacuteculos XX e XXI Wessendorf frisa que um ponto fundamental na teoria do poacutes-dramaacutetico estaacute no fato que ldquoLehmann mapeia uma esteacutetica afirmativa do teatro poacutes-dramaacutetico e concretiza um cataacutelogo de ideacuteias que permitem descrever e analisar aquele tipo de teatro em termos positivosrdquo (2003 sp) Apoacutes tantos debates sobre tantas poacutes-4 lsquoIntermediarsquo foi o termo cunhado pelo artista do FLUXUS Dick Higgins que jaacute em 1967 definia o Happening ldquocomo um intermeio na terra natildeo mapeada entre a colagem muacutesica e teatrordquo uma outra expressatildeo artiacutestica hiacutebrida que se desenvolveu segundo Higgins ldquosimultaneamente nos EUA Europa Brasil e Japatildeordquo (1978 17)

4

modernidades e poacutes-modernismos o poacutes-dramaacutetico de Lehmann pode tambeacutem soar para muitos como mais uma lsquoafetaccedilatildeo poacutes-modernarsquo ou uma lsquopoacutes-modernicersquo Tal equiacutevoco de julgamento estaria mais uma vez subestimando um adendo crucial no ataque contra ideacuteias preconcebidas sobre poeacuteticas e linguagens artiacutesticas mui especialmente poeacuteticas contemporacircneas da linguagem teatral

Este artigo elege La Fura dels Baus5 para conectar o conceitual de Lehmann e um estudo de obra teatral contemporacircnea6 De forma alguma se pretende colocar a companhia catalatilde como modelo de teatro poacutes-dramaacutetico nem o poacutes-dramaacutetico de Lehmann como modelo para anaacutelise do La Fura O grupo eacute um dos ensembles e artistas que percorreram as deacutecadas de 1980 e 1990 e chegaram aos nossos dias Seja em Barcelona (La Cubana Secircmola Teatre Marcelliacute Antunez Roca Simona Levi) Montreal (Robert Lepage) Copenhaguen-Bruxelas-Amsterdam (Jan Fabre Alain Platell e Arne Sirens Michel Laub) Brasiacutelia (Hugo Rodas Udigrudi) Satildeo Paulo (Oacutepera Seca XPTO Cristiane Paoli Quito Joseacute Celso Antunes Filho Maacutercio Aureacutelio Antonio Noacutebrega Antonio Abujamra) Rio (Companhia dos Atores Armazeacutem) Paris (Royal de Luxe) Buenos Aires (Perifeacutericos de Objetos Organizacioacuten NegraDe la Guarda) Nova York (Wooster Group Karen Finley) Londres (DV8 Forced Entertainment) ou em Toacutequio (Shankai Juku Min Tanaka) essas poeacuteticas selecionadas em continentes distintos dividem em comum o fato de terem permanecido nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX e chegado aos nossos dias mantendo a possibilidade de ter muitas de suas obras agrupadas como teatro poacutes-dramaacutetico teatro performance eou dramaturgias de imagens

La Fura dels Baus foi criado em 1979 em Barcelona capital da Catalunya autonomia histoacuterica de Espantildea O grupo nasce entre o desbunde da transiccedilatildeo democraacutetica apoacutes a morte do ditador Franco em 1975 ndash e a ressaca do desencanto (EacutePOCA) com a lentidatildeo e ausecircncia de transformaccedilotildees fazendo parte do posterior vigor da movida madrilentildea e do investimento massivo em arte e cultura como vitrine para a ambicionada entrada na Comunidade Europeacuteia e do incremento de mudanccedilas estruturais no paiacutes com a eleiccedilatildeo de Felipe Gonzaacutelez do Partido Social Obrero Espantildeol (PSOE)

5 lsquoFurarsquo em catalatildeo significa furatildeo aquele animal aparentado com fuinhas lsquoEl Bausrsquo era um coacuterrego seco que virou um depoacutesito espontacircneo e anti-ecoloacutegico de lixo em Moiagrave Catalunha pequena cidade de 3000 habitantes a 60 km de Barcelona onde trecircs dos diretores fundadores do La Fura nasceram e cresceram (Carles Padrissa Marcelliacute Antuacutenez Roca e Pere Tantinyagrave)6 O livro editado por Mauri e Ollegrave La Fura dels Baus 1979-2004 (2004) apresenta um completo painel sobre a obra do grupo com artigos dos integrantes do grupo associados criacuteticos pesquisadoras e acadecircmicos aleacutem de um DVD com material editado de quase todas suas obras cecircnicas incluindo todos os trabalhos da linguagem furera nos 25 anos da companhia A paacutegina do grupo na internet (wwwlafuracom) tambeacutem apresenta vasto material teoacuterico e audiovisual sobre os trabalhos do grupo Para uma introduccedilatildeo sobre o trabalho do La Fura veja Villar (2001) ou Queiroz (1999)

5

Nesse solo histoacuterico sintetizado ao extremo La Fura passa por uma fase inicial de quatro anos de teatro em ruas praccedilas e poblets da naccedilatildeo catalatilde que por sua vez passa por intenso processo de normalizaccedilatildeo linguumliacutestica e de resgate da identidade catalatilde Neste primeiro periacuteodo firma-se uma composiccedilatildeo estaacutevel de nove homens7 que seratildeo responsaacuteveis pelo salto artisticamente interdisciplinar que o grupo realiza com Accions Alteraciograve Fiacutesica drsquoun Espai em 19831984 apresentado ateacute 1987 em diversos paiacuteses da Europa e na Argentina Accions mescla elementos esteacuteticos de concertos de rock e de performance arte com festas populares catalatildes e espanholas com um resultado artisticamente interdisciplinar realizado ndash de maneira claustrofoacutebica para muitos e muitas ndash em instalaccedilotildees fora de teatros convencionais onde atuantes espectadores palco plateacuteia obra recepccedilatildeo sujeito e objeto se misturam fisicamente e espacialmente em performances simultacircneas e cambiantes

Accions detona enorme visibilidade criacutetica e puacuteblica internacional que o grupo manteacutem na deacutecada de 1980 e a amplia planetariamente com a mega-performance Mar Mediterragravenia na cerimocircnia de abertura dos Jogos Oliacutempicos de Barcelona em 1992 O grupo deixa de ser tachado de punk anarquista eou enfant terribles para ser reverenciado como uma companhia profissional de competecircncia iacutempar para uns e uma famigerada marca multinacional para outros A poeacutetica interdisciplinar do La Fura continua a desdobrar-se em incursotildees em diferentes campos como publicidade cinema criaccedilotildees na internet oacutepera eventos puacuteblicos e interlinguagens seja em um navio cargueiro em cavernas preacute-histoacutericas ou desde 1996 tambeacutem em teatros convencionais com plateacuteia separada da accedilatildeo no palco

Antes do atual momento do grupo as apresentaccedilotildees em espaccedilos encontrados fora dos edifiacutecios construiacutedos e convencionalmente utilizados como teatros representavam uma das quatro caracteriacutesticas diferenciais do que a imprensa espanhola convencionou descrever como lenguaje furero Aleacutem das montagens fora de teatros convencionais a linguagem furera pode ser resumida em mais trecircs caracteriacutesticas principais A segunda caracteriacutestica eacute a de que os fureros eram os autores diretores encenadores produtores e interpretes de suas obras8 A terceira eacute composta pelo interesse e a troca artisticamente interdisciplinar com diferentes linguagens e miacutedias na composiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo dessas obras E a quarta caracteriacutestica da linguagem furera seria a falta da quarta parede ou de qualquer outra barreira entre espectadores atuantes e obra 7 O trio de Moiagrave mais Alex Ollegrave Hansel Cereza Jordi Aruacutes Jurgen Muumlller Miki Espuma e Pep Gatell Sobre este primeiro periacuteodo do La Fura veja Villar (2005)8 Esta caracteriacutestica deixa de existir apoacutes MTM (1994) quando o alematildeo Jurgen Muller foi o uacutenico dos diretores fundadores a atuar e a direccedilatildeo ainda era coletiva Os seis restantes diretores se uniriam atuando juntos novamente em um dos viacutedeos de Fust 30 (1996) dirigido por Aacutelex Ollegrave e Carles Padrissa Em Manes (1996) a direccedilatildeo foi assinada unicamente por Pere Tantinyagrave e em OslashBS (2000-02) por Pep Gatell e Muumlller com muacutesica de outro diretor fundador Miki Espuma O uacuteltimo trabalho com caracteriacutesticas da linguagem furera eacute OBIT (2005) dirigido por Tantinyagrave

6

Accions (1983-87) Suz-O-Suz (1985-92) Tier Mon (1988-90) Noun (1990-92) MTM (1994-96) Manes (1996-98) OslashBS (2000-02) e no tempo deste artigo OBIT (2005) tambeacutem tecircm suas apresentaccedilotildees em hangares faacutebricas locaccedilotildees industriais edifiacutecios abandonados espaccedilos polivalentes ginaacutesios subterracircneos funeraacuterias etc ou em teatros que possam tirar sua plateacuteia ou poltronas para promover espetaacuteculos em que atuantes e espectadores satildeo performadores ativos A caracteriacutestica relacional na opccedilatildeo do La Fura talvez seja a mais forte razatildeo do impacto do teatro do grupo em vaacuterias partes do planeta Tanto para espectadores(as) que voltam para uma outra apresentaccedilatildeo furera pelo sublime do imageacutetico do espetaacuteculo como para aqueles e aquelas que natildeo retornam pela violecircncia e risco do mesmo

Eacute por meio desta caracteriacutestica relacional da linguagem furera que me aproximo da teoria de Lehmann para sondar a aplicabilidade do termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo para o teatro do La Fura Apesar da linguagem furera se caracterizar pela interdependecircncia e dinacircmica de nexos entre as quatro caracteriacutesticas listadas acima seleciono esta uacuteltima pela fundamental importacircncia que ela tem natildeo soacute em definir o especiacutefico da poeacutetica do La Fura A ausecircncia de barreiras entre espectadores e atuantes nos trabalhos de linguagem furera eacute tambeacutem a ausecircncia ou variaccedilotildees intensas de distacircncia espacial eou fiacutesica entre eles entre palco e plateacuteia interpretaccedilatildeo e assistecircncia obra e recepccedilatildeo sujeito e objeto Isso significa um desafio agraves ontologias e epistemologias do teatro imutaacuteveis e impassiacuteveis ante as profundas alteraccedilotildees na linguagem teatral promovidos desde a deacutecada de 1960 e que continuam a reverberar na arte contemporacircnea Formas de relaccedilatildeo com a plateacuteia sempre impulsionaram estudos e poeacuteticas teatrais Mas em sua metodologia transdisciplinar o antropoacutelogo e acadecircmico estadunidense Edward L Schieffelin reclama uma posiccedilatildeo central em investigaccedilotildees etnograacuteficas para questotildees sobre o relacionamento entre performador e espectador pois para ele eacute dentro desse relacionamento ldquoque as relaccedilotildees ontoloacutegicas e epistemoloacutegicas fundamentais de qualquer sociedade poderatildeo mais possivelmente estar implicadas e ser solucionadasrdquo jaacute que esse relacionamento comporta ldquosuposiccedilotildees ocidentais fundamentais sobre a natureza da accedilatildeo em situaccedilotildees cotidianasrdquo (1998 204)

Schieffelin comenta que ldquopara a maioria dos acadecircmicos ocidentais com uma experiecircncia meacutedia como espectadores de apresentaccedilotildees teatrais a noccedilatildeo de apresentaccedilatildeo ao vivo conjura uma ideacuteia de atores no palcordquo (1998 200) Enquanto que o criacutetico e artista brasileiro Andreacute Lepecki coloca que em teatro e danccedila ldquonoacutes sentamos as luzes se apagam e noacutes testemunhamos ndash entatildeo vamos embora e esquecemos A plateacuteia tem aprendido uma higiene moacuterbida do fruirrdquo (1996 105) o antropoacutelogo estadunidense Victor Turner (tatildeo caro aos estudos de performance) especifica que ldquodiferentemente do teatro o ritual natildeo distingue entre plateacuteia

7

e performadores [] Teatro existe quando ocorre uma separaccedilatildeo entre a plateacuteia e os performadoresrdquo (1982 112)

Contradizendo noccedilotildees habituais as accedilotildees ou os rituais artiacutesticos da linguagem furera acontecem entre atraacutes acima abaixo transversal ao lado ou na frente mas sempre comno puacuteblico nos amplos espaccedilos sem arquibancadas poltronas ou cadeiras Esse fato pode apontar generalizaccedilotildees excludentes ingenuidade ou falta de informaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo entre agentes ou ainda um apego a convenccedilotildees que nem a histoacuteria do teatro manteacutem e nem o puacuteblico necessariamente segue No programa de Accions em 1987 o jornalista catalatildeo Albert de la Torre sugeria que ao inveacutes da violecircncia apontada por muitos La Fura promovia a violaccedilatildeo do espaccedilo que o teatro convencional reserva para o ldquoartista-rei-atorrdquo

O ensemble questiona tambeacutem o lugar reservado convencionalmente para a plateacuteia Talvez nenhuma outra companhia cecircnica ocidental durante o seacuteculo XX tenha investigado tanto essa caracteriacutestica relacional e o teatro ambientalista ou como definido e estudado por Schechner o environmental theatre (1973) Interferir na relaccedilatildeo com a plateacuteia jaacute fazia parte crucial do radical ataque agraves convenccedilotildees da linguagem da plateacuteia e dos proacuteprios artistas promovido por diferentes artistas e grupos de teatro de distintos continentes nas Vanguardas Histoacutericas das trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo passado A questatildeo volta nas deacutecadas de 1960 e 1970 quando segundo o diretor estadunidense Arthur Sainer grupos e artistas ldquoquestionavam tudordquo inclusive a eficaacutecia ldquoem nosso tempo da velha caixinha de joacuteias do proscecircnio assustadoramente representando a manipuladora relaccedilatildeo atuante-espectador com sua noccedilatildeo de atuante como doador e espectador como recipienterdquo (1975 53-4)

Essa manipulaccedilatildeo comum em praacuteticas convencionais de teatro eacute a mesma que Peggy Phelan vecirc como ldquoaparentemente tatildeo compatiacutevel com (as tradicionais descriccedilotildees do) desejo masculino [] Muito da praacutetica teatral ocidental evoca desejo baseado e estimulado pela falta de igualdade entre performador e espectadorrdquo (1993 163) Utilizando estudos de Michel Foucault sobre a confissatildeo na igreja catoacutelica a acadecircmica e autora estadunidense descreve o fulcro (o ponto de apoio da balanccedila) que equilibra poder e conhecimento como o sustentaacuteculo que manteacutem a agecircncia de dominaccedilatildeo no confessionaacuterio e tambeacutem no evento teatral o espectador eacute o confessor silencioso que nada fala mas que domina e controla a troca (1993 163)

Estaacute aleacutem dos limites deste artigo abordar as instigantes questotildees levantadas por Phelan Schieffelin Lepecki e Turner da maneira que as mesmas merecem Mas os pontos aqui rapidamente colocados podem nos ajudar a situar a proposta relacional do La Fura como uma accedilatildeo poliacutetica A poeacutetica da linguagem furera questiona replicaccedilotildees de comportamentos

8

hegemocircnicos impostos bem como conformismos cacircnones hierarquias e dogmas esteacuteticos O impacto alcanccedilado pela caracteriacutestica relacional da linguagem furera me parece tornar possiacutevel a associaccedilatildeo direta com uma busca por uma alteraccedilatildeo da percepccedilatildeo habitual ou uma mudanccedila de lsquofoacutermulas de percepccedilatildeorsquo jaacute dadas que Lehmann coloca como funccedilatildeo objetivo e necessidade para a contundecircncia de um teatro poliacutetico

A questatildeo jaacute era para Brecht para Heiner Muller e para todos os que trabalharam com teatro poliacutetico como vocecirc muda a forma de percepccedilatildeo das questotildees poliacuteticas e influi nessa forma de percepccedilatildeo Para o teatro o que eacute importante eacute a forma de mudar essa percepccedilatildeo a forma como se vai conseguir alterar essas foacutermulas de percepccedilatildeo que estatildeo dadas (2003 10)

La Fura parece responder agrave questatildeo apontada de maneira diferenciada e contundente Sua proposta de falta de barreiras entre o objeto que eacute observado a obra a criaccedilatildeo o palco o mesmo eu e do outro lado o sujeito que observa a assistecircncia a fruiccedilatildeo a plateacuteia o outro ele ou ela altera radicalmente a percepccedilatildeo habitual do teatro e do tema sendo abordado nessa outra proposiccedilatildeo relacional e esteacutetica As associaccedilotildees diretas das montagens fureras com a teorizaccedilatildeo de Lehmann sobre o poacutes-dramaacutetico e teatro poliacutetico continuam quando ele fala da necessidade de se alterar percepccedilotildees habituais ldquonessa sociedade dominada pela miacutediardquo afirmando que o teatro ldquooferece a alternativa de uma comunicaccedilatildeo ao vivo e realrdquo mas que ldquoessa possibilidade de comunicaccedilatildeo entre o espectador e o realizado e o fato de o teatro ser esse cinema tridimensional natildeo eacute aproveitadardquo para concluir que ldquoeacute justamente essa situaccedilatildeo que eacute aproveitada por algumas dessas novas formas do teatro poacutes-dramaacuteticordquo (2003 12) La Fura parece aproveitar a situaccedilatildeo apropriadamente e tambeacutem servir como evidecircncia clara E o mesmo acontece quando Lehmann versa sobre o jogo e a categoria eacutetica nessas outras formas de teatro

Lehmann trabalha sobre o tema da categoria eacutetica em formas de teatro que exercitam outras formas relacionais com espectadores e espectadoras apontando a responsabilidade deles e delas pelo processo e pelo espetaacuteculo que ele ou ela fazem parte Apesar de reconhecer a possibilidade da mesma responsabilidade ou categoria eacutetica acontecer no teatro tradicional Lehmann acentua que nas novas formas do poacutes-dramaacutetico

isso se torna infinitamente mais claro Eu estou numa situaccedilatildeo em que estou jogando participando e atuando juntos com outros Faccedilo parte desse jogo mesmo que eu natildeo seja obrigado a fazer parte desse

9

jogo Uma situaccedilatildeo como essa eacute como uma situaccedilatildeo poliacutetica Tem a ver com a relaccedilatildeo que cada espectador estabelece com as coisas que estatildeo acontecendo (2003 13)

Natildeo parece exagerado dizer que ele parece estar descrevendo aspectos relacionais de espetaacuteculos da linguagem furera Assim como Wittgenstein natildeo separava eacutetica e esteacutetica La Fura natildeo desassocia jogo e estEacutetica de sua proposta de relacionamento com a plateacuteia Utilizando um artigo anterior onde abordo especificamente o jogo furero podermos ver que La Fura tambeacutem pode ser uma traduccedilatildeo muito especial do entendimento de Lehmann do poacutes-dramaacutetico como jogo eacutetico e tambeacutem como esfacelamento de formas tradicionais de teatro e tambeacutem da explosatildeo da unidade entre elementos teatrais como pessoas tempo e espaccedilo

Os artistas cecircnicos se deparam com uma multidatildeo que natildeo ensaiada vai danccedilar a mesma coreografia que os fureros vecircm ensaiando As deixas gestos e accedilotildees que eles tecircm que desempenhar satildeo executadas dentro entre acima abaixo e com a plateacuteia Natildeo haacute muito tempo para anaacutelise O tempo estaacute contra vocecirc membro do puacuteblico porque vocecirc tem que correr Ou vocecirc eacute empurrado Vocecirc pode tambeacutem tropeccedilar em outro membro do puacuteblico ou em um dos artistas tentando chegar a algum lugar do espaccedilo Seu espaccedilo temporaacuterio estaacute no caminho do espaccedilo temporaacuterio do ator Vocecirc estaacute no seu caminho O show apenas comeccedilou e vocecirc estaacute atuando sem ensaios entre centenas de outros que vivenciam a mesma situaccedilatildeo Centenas de performances acontecem ao mesmo tempo Os artistas ensaiados encontram novos parceiros e parceiras cada noite em uma contiacutenua improvisaccedilatildeo arriscando alguns ossos aqui e suas proacuteprias vidas ali ou mesmo uma plateacuteia hostil Vocecirc nunca pode ter um aparente controle total sobre a cena sendo interpretada como vocecirc estaacute acostumado ou acostumada quando senta-se na escuridatildeo entre os outros membros invisiacuteveis do puacuteblico de teatro convencional Quem satildeo os atores La Fura divide questotildees E essas questotildees satildeo literalmente vividas durante a performance (Queiroz 1999 251)

Essas questotildees divididas com a plateacuteia tecircm gerado herdeiros ou artistas claramente influenciados pela esteacutetica furera dentro e fora da Espanha A recepccedilatildeo agraves obras do La Fura mantecircm um retorno criacutetico e de puacuteblico significativos em diferentes continentes do planeta Em outras palavras a linguagem audiovisual furera circula bem por diversos contextos geopoliacuteticos independente da liacutengua Entretanto um breve olhar no solo histoacuterico e cultural do grupo pode nos introduzir outros matizes

10

sobre a questatildeo do teatro (poliacutetico ou natildeo) e da opccedilatildeo relacional dos fureros

A obra do La Fura se insere dentro de um contexto diferenciado de uma naccedilatildeo sem estado ou uma naccedilatildeo catalatilde dentro de um Estado espanhol que eacute constituiacutedo por 19 autonomias com presidentes eleitos e bandeiras proacuteprias Catalunya (Catalunha) Galicia (Galiza) e Euskadi (Paiacutes Basco) satildeo autonomias diferenciadas chamadas de autonomias histoacutericas Com liacutenguas e histoacuterias proacuteprias independentes e anteriores ao Estado espanhol essas naccedilotildees foram gradualmente incorporadas como regiotildees desde o casamento dos reis catoacutelicos Fernando V de Aragatildeo e Isabela I de Castela em 1469 Nos nossos dias permanece uma tensatildeo entre centralizaccedilatildeo e integraccedilatildeo agraves forccedilas do Estado espanhol e movimentos na direccedilatildeo de descentralizaccedilatildeo mais autonomia e ainda que cada vez mais deacutebil separatismo

A histoacuteria da Catalunha marca uma intensa resistecircncia cultural e um senso forte de identidade nacional que natildeo sucumbiram aos ataques de Felipe V no seacuteculo XVIII ou de Franco e sua ditadura (1936-1975) que tentaram em vatildeo promover um genociacutedio da identidade autonomia e direitos histoacutericos da Catalunha Desde a transiccedilatildeo democraacutetica iniciada em 1976 o processo de normalitzacioacute e ideacuteias nacionalistas chocam-se com o processo de normalizacioacuten que defende os interesses do Estado e a ideacuteia de uma identidade espanhola nacional Dentro do lsquonada eacute fixorsquo da chamada poacutes-modernidade da globalizaccedilatildeo e a nova cena geopoliacutetica da Europa haacute uma crise na definiccedilatildeo de identidade ndash crise que natildeo eacute soacute catalatilde espanhola ou europeacuteia mas ocidental e contemporacircnea nossa haacute tempos Na especificidade catalatilde da crise pessoas nascidas na Catalunha podem ainda ser vistas como uma lsquosegunda ou terceira geraccedilatildeo de imigrantesrsquo mesmo se eles falam catalatildeo que era fator diferenciador de uma identidade catalatilde lsquoCharnegorsquo eacute um termo utilizado por catalatildees para catalatildees com pai ou matildee de outra regiatildeo da Espanha Quando esses indiviacuteduos estatildeo na regiatildeo de seus pais eles satildeo lsquoos catalatildeesrsquo Assim eles podem ser estrangeiros dentro e fora da Catalunha

No bojo desse contexto de sutilezas rudemente sintetizado acima Antonio Saacutenchez Helen Graham e Jo Labanyi Josep-Anton Fernagravendez e Michael Keating satildeo alguns dos acadecircmicos europeus que reconhecem um crescimento da identidade catalatilde promovido pela transiccedilatildeo democraacutetica e a normalitzacioacute Keating frisa que ldquoo forte senso de identidade catalatilde que cresceu fortemente nos uacuteltimos vinte anos [] natildeo eacute uma identidade exclusiva mas uma identidade dupla como uma naccedilatildeo distinta dentro da Espanha e no niacutevel da elite com um forte compromisso com a Europardquo (1996 160) Keating tambeacutem sugere que ldquoa proporccedilatildeo daqueles que se identificam como puramente lsquoespanholrsquo caiu nitidamenterdquo (1996 130) Entretanto estudos no final da deacutecada de 1990 sobre uso de liacutengua e

11

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 5: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

modernidades e poacutes-modernismos o poacutes-dramaacutetico de Lehmann pode tambeacutem soar para muitos como mais uma lsquoafetaccedilatildeo poacutes-modernarsquo ou uma lsquopoacutes-modernicersquo Tal equiacutevoco de julgamento estaria mais uma vez subestimando um adendo crucial no ataque contra ideacuteias preconcebidas sobre poeacuteticas e linguagens artiacutesticas mui especialmente poeacuteticas contemporacircneas da linguagem teatral

Este artigo elege La Fura dels Baus5 para conectar o conceitual de Lehmann e um estudo de obra teatral contemporacircnea6 De forma alguma se pretende colocar a companhia catalatilde como modelo de teatro poacutes-dramaacutetico nem o poacutes-dramaacutetico de Lehmann como modelo para anaacutelise do La Fura O grupo eacute um dos ensembles e artistas que percorreram as deacutecadas de 1980 e 1990 e chegaram aos nossos dias Seja em Barcelona (La Cubana Secircmola Teatre Marcelliacute Antunez Roca Simona Levi) Montreal (Robert Lepage) Copenhaguen-Bruxelas-Amsterdam (Jan Fabre Alain Platell e Arne Sirens Michel Laub) Brasiacutelia (Hugo Rodas Udigrudi) Satildeo Paulo (Oacutepera Seca XPTO Cristiane Paoli Quito Joseacute Celso Antunes Filho Maacutercio Aureacutelio Antonio Noacutebrega Antonio Abujamra) Rio (Companhia dos Atores Armazeacutem) Paris (Royal de Luxe) Buenos Aires (Perifeacutericos de Objetos Organizacioacuten NegraDe la Guarda) Nova York (Wooster Group Karen Finley) Londres (DV8 Forced Entertainment) ou em Toacutequio (Shankai Juku Min Tanaka) essas poeacuteticas selecionadas em continentes distintos dividem em comum o fato de terem permanecido nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX e chegado aos nossos dias mantendo a possibilidade de ter muitas de suas obras agrupadas como teatro poacutes-dramaacutetico teatro performance eou dramaturgias de imagens

La Fura dels Baus foi criado em 1979 em Barcelona capital da Catalunya autonomia histoacuterica de Espantildea O grupo nasce entre o desbunde da transiccedilatildeo democraacutetica apoacutes a morte do ditador Franco em 1975 ndash e a ressaca do desencanto (EacutePOCA) com a lentidatildeo e ausecircncia de transformaccedilotildees fazendo parte do posterior vigor da movida madrilentildea e do investimento massivo em arte e cultura como vitrine para a ambicionada entrada na Comunidade Europeacuteia e do incremento de mudanccedilas estruturais no paiacutes com a eleiccedilatildeo de Felipe Gonzaacutelez do Partido Social Obrero Espantildeol (PSOE)

5 lsquoFurarsquo em catalatildeo significa furatildeo aquele animal aparentado com fuinhas lsquoEl Bausrsquo era um coacuterrego seco que virou um depoacutesito espontacircneo e anti-ecoloacutegico de lixo em Moiagrave Catalunha pequena cidade de 3000 habitantes a 60 km de Barcelona onde trecircs dos diretores fundadores do La Fura nasceram e cresceram (Carles Padrissa Marcelliacute Antuacutenez Roca e Pere Tantinyagrave)6 O livro editado por Mauri e Ollegrave La Fura dels Baus 1979-2004 (2004) apresenta um completo painel sobre a obra do grupo com artigos dos integrantes do grupo associados criacuteticos pesquisadoras e acadecircmicos aleacutem de um DVD com material editado de quase todas suas obras cecircnicas incluindo todos os trabalhos da linguagem furera nos 25 anos da companhia A paacutegina do grupo na internet (wwwlafuracom) tambeacutem apresenta vasto material teoacuterico e audiovisual sobre os trabalhos do grupo Para uma introduccedilatildeo sobre o trabalho do La Fura veja Villar (2001) ou Queiroz (1999)

5

Nesse solo histoacuterico sintetizado ao extremo La Fura passa por uma fase inicial de quatro anos de teatro em ruas praccedilas e poblets da naccedilatildeo catalatilde que por sua vez passa por intenso processo de normalizaccedilatildeo linguumliacutestica e de resgate da identidade catalatilde Neste primeiro periacuteodo firma-se uma composiccedilatildeo estaacutevel de nove homens7 que seratildeo responsaacuteveis pelo salto artisticamente interdisciplinar que o grupo realiza com Accions Alteraciograve Fiacutesica drsquoun Espai em 19831984 apresentado ateacute 1987 em diversos paiacuteses da Europa e na Argentina Accions mescla elementos esteacuteticos de concertos de rock e de performance arte com festas populares catalatildes e espanholas com um resultado artisticamente interdisciplinar realizado ndash de maneira claustrofoacutebica para muitos e muitas ndash em instalaccedilotildees fora de teatros convencionais onde atuantes espectadores palco plateacuteia obra recepccedilatildeo sujeito e objeto se misturam fisicamente e espacialmente em performances simultacircneas e cambiantes

Accions detona enorme visibilidade criacutetica e puacuteblica internacional que o grupo manteacutem na deacutecada de 1980 e a amplia planetariamente com a mega-performance Mar Mediterragravenia na cerimocircnia de abertura dos Jogos Oliacutempicos de Barcelona em 1992 O grupo deixa de ser tachado de punk anarquista eou enfant terribles para ser reverenciado como uma companhia profissional de competecircncia iacutempar para uns e uma famigerada marca multinacional para outros A poeacutetica interdisciplinar do La Fura continua a desdobrar-se em incursotildees em diferentes campos como publicidade cinema criaccedilotildees na internet oacutepera eventos puacuteblicos e interlinguagens seja em um navio cargueiro em cavernas preacute-histoacutericas ou desde 1996 tambeacutem em teatros convencionais com plateacuteia separada da accedilatildeo no palco

Antes do atual momento do grupo as apresentaccedilotildees em espaccedilos encontrados fora dos edifiacutecios construiacutedos e convencionalmente utilizados como teatros representavam uma das quatro caracteriacutesticas diferenciais do que a imprensa espanhola convencionou descrever como lenguaje furero Aleacutem das montagens fora de teatros convencionais a linguagem furera pode ser resumida em mais trecircs caracteriacutesticas principais A segunda caracteriacutestica eacute a de que os fureros eram os autores diretores encenadores produtores e interpretes de suas obras8 A terceira eacute composta pelo interesse e a troca artisticamente interdisciplinar com diferentes linguagens e miacutedias na composiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo dessas obras E a quarta caracteriacutestica da linguagem furera seria a falta da quarta parede ou de qualquer outra barreira entre espectadores atuantes e obra 7 O trio de Moiagrave mais Alex Ollegrave Hansel Cereza Jordi Aruacutes Jurgen Muumlller Miki Espuma e Pep Gatell Sobre este primeiro periacuteodo do La Fura veja Villar (2005)8 Esta caracteriacutestica deixa de existir apoacutes MTM (1994) quando o alematildeo Jurgen Muller foi o uacutenico dos diretores fundadores a atuar e a direccedilatildeo ainda era coletiva Os seis restantes diretores se uniriam atuando juntos novamente em um dos viacutedeos de Fust 30 (1996) dirigido por Aacutelex Ollegrave e Carles Padrissa Em Manes (1996) a direccedilatildeo foi assinada unicamente por Pere Tantinyagrave e em OslashBS (2000-02) por Pep Gatell e Muumlller com muacutesica de outro diretor fundador Miki Espuma O uacuteltimo trabalho com caracteriacutesticas da linguagem furera eacute OBIT (2005) dirigido por Tantinyagrave

6

Accions (1983-87) Suz-O-Suz (1985-92) Tier Mon (1988-90) Noun (1990-92) MTM (1994-96) Manes (1996-98) OslashBS (2000-02) e no tempo deste artigo OBIT (2005) tambeacutem tecircm suas apresentaccedilotildees em hangares faacutebricas locaccedilotildees industriais edifiacutecios abandonados espaccedilos polivalentes ginaacutesios subterracircneos funeraacuterias etc ou em teatros que possam tirar sua plateacuteia ou poltronas para promover espetaacuteculos em que atuantes e espectadores satildeo performadores ativos A caracteriacutestica relacional na opccedilatildeo do La Fura talvez seja a mais forte razatildeo do impacto do teatro do grupo em vaacuterias partes do planeta Tanto para espectadores(as) que voltam para uma outra apresentaccedilatildeo furera pelo sublime do imageacutetico do espetaacuteculo como para aqueles e aquelas que natildeo retornam pela violecircncia e risco do mesmo

Eacute por meio desta caracteriacutestica relacional da linguagem furera que me aproximo da teoria de Lehmann para sondar a aplicabilidade do termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo para o teatro do La Fura Apesar da linguagem furera se caracterizar pela interdependecircncia e dinacircmica de nexos entre as quatro caracteriacutesticas listadas acima seleciono esta uacuteltima pela fundamental importacircncia que ela tem natildeo soacute em definir o especiacutefico da poeacutetica do La Fura A ausecircncia de barreiras entre espectadores e atuantes nos trabalhos de linguagem furera eacute tambeacutem a ausecircncia ou variaccedilotildees intensas de distacircncia espacial eou fiacutesica entre eles entre palco e plateacuteia interpretaccedilatildeo e assistecircncia obra e recepccedilatildeo sujeito e objeto Isso significa um desafio agraves ontologias e epistemologias do teatro imutaacuteveis e impassiacuteveis ante as profundas alteraccedilotildees na linguagem teatral promovidos desde a deacutecada de 1960 e que continuam a reverberar na arte contemporacircnea Formas de relaccedilatildeo com a plateacuteia sempre impulsionaram estudos e poeacuteticas teatrais Mas em sua metodologia transdisciplinar o antropoacutelogo e acadecircmico estadunidense Edward L Schieffelin reclama uma posiccedilatildeo central em investigaccedilotildees etnograacuteficas para questotildees sobre o relacionamento entre performador e espectador pois para ele eacute dentro desse relacionamento ldquoque as relaccedilotildees ontoloacutegicas e epistemoloacutegicas fundamentais de qualquer sociedade poderatildeo mais possivelmente estar implicadas e ser solucionadasrdquo jaacute que esse relacionamento comporta ldquosuposiccedilotildees ocidentais fundamentais sobre a natureza da accedilatildeo em situaccedilotildees cotidianasrdquo (1998 204)

Schieffelin comenta que ldquopara a maioria dos acadecircmicos ocidentais com uma experiecircncia meacutedia como espectadores de apresentaccedilotildees teatrais a noccedilatildeo de apresentaccedilatildeo ao vivo conjura uma ideacuteia de atores no palcordquo (1998 200) Enquanto que o criacutetico e artista brasileiro Andreacute Lepecki coloca que em teatro e danccedila ldquonoacutes sentamos as luzes se apagam e noacutes testemunhamos ndash entatildeo vamos embora e esquecemos A plateacuteia tem aprendido uma higiene moacuterbida do fruirrdquo (1996 105) o antropoacutelogo estadunidense Victor Turner (tatildeo caro aos estudos de performance) especifica que ldquodiferentemente do teatro o ritual natildeo distingue entre plateacuteia

7

e performadores [] Teatro existe quando ocorre uma separaccedilatildeo entre a plateacuteia e os performadoresrdquo (1982 112)

Contradizendo noccedilotildees habituais as accedilotildees ou os rituais artiacutesticos da linguagem furera acontecem entre atraacutes acima abaixo transversal ao lado ou na frente mas sempre comno puacuteblico nos amplos espaccedilos sem arquibancadas poltronas ou cadeiras Esse fato pode apontar generalizaccedilotildees excludentes ingenuidade ou falta de informaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo entre agentes ou ainda um apego a convenccedilotildees que nem a histoacuteria do teatro manteacutem e nem o puacuteblico necessariamente segue No programa de Accions em 1987 o jornalista catalatildeo Albert de la Torre sugeria que ao inveacutes da violecircncia apontada por muitos La Fura promovia a violaccedilatildeo do espaccedilo que o teatro convencional reserva para o ldquoartista-rei-atorrdquo

O ensemble questiona tambeacutem o lugar reservado convencionalmente para a plateacuteia Talvez nenhuma outra companhia cecircnica ocidental durante o seacuteculo XX tenha investigado tanto essa caracteriacutestica relacional e o teatro ambientalista ou como definido e estudado por Schechner o environmental theatre (1973) Interferir na relaccedilatildeo com a plateacuteia jaacute fazia parte crucial do radical ataque agraves convenccedilotildees da linguagem da plateacuteia e dos proacuteprios artistas promovido por diferentes artistas e grupos de teatro de distintos continentes nas Vanguardas Histoacutericas das trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo passado A questatildeo volta nas deacutecadas de 1960 e 1970 quando segundo o diretor estadunidense Arthur Sainer grupos e artistas ldquoquestionavam tudordquo inclusive a eficaacutecia ldquoem nosso tempo da velha caixinha de joacuteias do proscecircnio assustadoramente representando a manipuladora relaccedilatildeo atuante-espectador com sua noccedilatildeo de atuante como doador e espectador como recipienterdquo (1975 53-4)

Essa manipulaccedilatildeo comum em praacuteticas convencionais de teatro eacute a mesma que Peggy Phelan vecirc como ldquoaparentemente tatildeo compatiacutevel com (as tradicionais descriccedilotildees do) desejo masculino [] Muito da praacutetica teatral ocidental evoca desejo baseado e estimulado pela falta de igualdade entre performador e espectadorrdquo (1993 163) Utilizando estudos de Michel Foucault sobre a confissatildeo na igreja catoacutelica a acadecircmica e autora estadunidense descreve o fulcro (o ponto de apoio da balanccedila) que equilibra poder e conhecimento como o sustentaacuteculo que manteacutem a agecircncia de dominaccedilatildeo no confessionaacuterio e tambeacutem no evento teatral o espectador eacute o confessor silencioso que nada fala mas que domina e controla a troca (1993 163)

Estaacute aleacutem dos limites deste artigo abordar as instigantes questotildees levantadas por Phelan Schieffelin Lepecki e Turner da maneira que as mesmas merecem Mas os pontos aqui rapidamente colocados podem nos ajudar a situar a proposta relacional do La Fura como uma accedilatildeo poliacutetica A poeacutetica da linguagem furera questiona replicaccedilotildees de comportamentos

8

hegemocircnicos impostos bem como conformismos cacircnones hierarquias e dogmas esteacuteticos O impacto alcanccedilado pela caracteriacutestica relacional da linguagem furera me parece tornar possiacutevel a associaccedilatildeo direta com uma busca por uma alteraccedilatildeo da percepccedilatildeo habitual ou uma mudanccedila de lsquofoacutermulas de percepccedilatildeorsquo jaacute dadas que Lehmann coloca como funccedilatildeo objetivo e necessidade para a contundecircncia de um teatro poliacutetico

A questatildeo jaacute era para Brecht para Heiner Muller e para todos os que trabalharam com teatro poliacutetico como vocecirc muda a forma de percepccedilatildeo das questotildees poliacuteticas e influi nessa forma de percepccedilatildeo Para o teatro o que eacute importante eacute a forma de mudar essa percepccedilatildeo a forma como se vai conseguir alterar essas foacutermulas de percepccedilatildeo que estatildeo dadas (2003 10)

La Fura parece responder agrave questatildeo apontada de maneira diferenciada e contundente Sua proposta de falta de barreiras entre o objeto que eacute observado a obra a criaccedilatildeo o palco o mesmo eu e do outro lado o sujeito que observa a assistecircncia a fruiccedilatildeo a plateacuteia o outro ele ou ela altera radicalmente a percepccedilatildeo habitual do teatro e do tema sendo abordado nessa outra proposiccedilatildeo relacional e esteacutetica As associaccedilotildees diretas das montagens fureras com a teorizaccedilatildeo de Lehmann sobre o poacutes-dramaacutetico e teatro poliacutetico continuam quando ele fala da necessidade de se alterar percepccedilotildees habituais ldquonessa sociedade dominada pela miacutediardquo afirmando que o teatro ldquooferece a alternativa de uma comunicaccedilatildeo ao vivo e realrdquo mas que ldquoessa possibilidade de comunicaccedilatildeo entre o espectador e o realizado e o fato de o teatro ser esse cinema tridimensional natildeo eacute aproveitadardquo para concluir que ldquoeacute justamente essa situaccedilatildeo que eacute aproveitada por algumas dessas novas formas do teatro poacutes-dramaacuteticordquo (2003 12) La Fura parece aproveitar a situaccedilatildeo apropriadamente e tambeacutem servir como evidecircncia clara E o mesmo acontece quando Lehmann versa sobre o jogo e a categoria eacutetica nessas outras formas de teatro

Lehmann trabalha sobre o tema da categoria eacutetica em formas de teatro que exercitam outras formas relacionais com espectadores e espectadoras apontando a responsabilidade deles e delas pelo processo e pelo espetaacuteculo que ele ou ela fazem parte Apesar de reconhecer a possibilidade da mesma responsabilidade ou categoria eacutetica acontecer no teatro tradicional Lehmann acentua que nas novas formas do poacutes-dramaacutetico

isso se torna infinitamente mais claro Eu estou numa situaccedilatildeo em que estou jogando participando e atuando juntos com outros Faccedilo parte desse jogo mesmo que eu natildeo seja obrigado a fazer parte desse

9

jogo Uma situaccedilatildeo como essa eacute como uma situaccedilatildeo poliacutetica Tem a ver com a relaccedilatildeo que cada espectador estabelece com as coisas que estatildeo acontecendo (2003 13)

Natildeo parece exagerado dizer que ele parece estar descrevendo aspectos relacionais de espetaacuteculos da linguagem furera Assim como Wittgenstein natildeo separava eacutetica e esteacutetica La Fura natildeo desassocia jogo e estEacutetica de sua proposta de relacionamento com a plateacuteia Utilizando um artigo anterior onde abordo especificamente o jogo furero podermos ver que La Fura tambeacutem pode ser uma traduccedilatildeo muito especial do entendimento de Lehmann do poacutes-dramaacutetico como jogo eacutetico e tambeacutem como esfacelamento de formas tradicionais de teatro e tambeacutem da explosatildeo da unidade entre elementos teatrais como pessoas tempo e espaccedilo

Os artistas cecircnicos se deparam com uma multidatildeo que natildeo ensaiada vai danccedilar a mesma coreografia que os fureros vecircm ensaiando As deixas gestos e accedilotildees que eles tecircm que desempenhar satildeo executadas dentro entre acima abaixo e com a plateacuteia Natildeo haacute muito tempo para anaacutelise O tempo estaacute contra vocecirc membro do puacuteblico porque vocecirc tem que correr Ou vocecirc eacute empurrado Vocecirc pode tambeacutem tropeccedilar em outro membro do puacuteblico ou em um dos artistas tentando chegar a algum lugar do espaccedilo Seu espaccedilo temporaacuterio estaacute no caminho do espaccedilo temporaacuterio do ator Vocecirc estaacute no seu caminho O show apenas comeccedilou e vocecirc estaacute atuando sem ensaios entre centenas de outros que vivenciam a mesma situaccedilatildeo Centenas de performances acontecem ao mesmo tempo Os artistas ensaiados encontram novos parceiros e parceiras cada noite em uma contiacutenua improvisaccedilatildeo arriscando alguns ossos aqui e suas proacuteprias vidas ali ou mesmo uma plateacuteia hostil Vocecirc nunca pode ter um aparente controle total sobre a cena sendo interpretada como vocecirc estaacute acostumado ou acostumada quando senta-se na escuridatildeo entre os outros membros invisiacuteveis do puacuteblico de teatro convencional Quem satildeo os atores La Fura divide questotildees E essas questotildees satildeo literalmente vividas durante a performance (Queiroz 1999 251)

Essas questotildees divididas com a plateacuteia tecircm gerado herdeiros ou artistas claramente influenciados pela esteacutetica furera dentro e fora da Espanha A recepccedilatildeo agraves obras do La Fura mantecircm um retorno criacutetico e de puacuteblico significativos em diferentes continentes do planeta Em outras palavras a linguagem audiovisual furera circula bem por diversos contextos geopoliacuteticos independente da liacutengua Entretanto um breve olhar no solo histoacuterico e cultural do grupo pode nos introduzir outros matizes

10

sobre a questatildeo do teatro (poliacutetico ou natildeo) e da opccedilatildeo relacional dos fureros

A obra do La Fura se insere dentro de um contexto diferenciado de uma naccedilatildeo sem estado ou uma naccedilatildeo catalatilde dentro de um Estado espanhol que eacute constituiacutedo por 19 autonomias com presidentes eleitos e bandeiras proacuteprias Catalunya (Catalunha) Galicia (Galiza) e Euskadi (Paiacutes Basco) satildeo autonomias diferenciadas chamadas de autonomias histoacutericas Com liacutenguas e histoacuterias proacuteprias independentes e anteriores ao Estado espanhol essas naccedilotildees foram gradualmente incorporadas como regiotildees desde o casamento dos reis catoacutelicos Fernando V de Aragatildeo e Isabela I de Castela em 1469 Nos nossos dias permanece uma tensatildeo entre centralizaccedilatildeo e integraccedilatildeo agraves forccedilas do Estado espanhol e movimentos na direccedilatildeo de descentralizaccedilatildeo mais autonomia e ainda que cada vez mais deacutebil separatismo

A histoacuteria da Catalunha marca uma intensa resistecircncia cultural e um senso forte de identidade nacional que natildeo sucumbiram aos ataques de Felipe V no seacuteculo XVIII ou de Franco e sua ditadura (1936-1975) que tentaram em vatildeo promover um genociacutedio da identidade autonomia e direitos histoacutericos da Catalunha Desde a transiccedilatildeo democraacutetica iniciada em 1976 o processo de normalitzacioacute e ideacuteias nacionalistas chocam-se com o processo de normalizacioacuten que defende os interesses do Estado e a ideacuteia de uma identidade espanhola nacional Dentro do lsquonada eacute fixorsquo da chamada poacutes-modernidade da globalizaccedilatildeo e a nova cena geopoliacutetica da Europa haacute uma crise na definiccedilatildeo de identidade ndash crise que natildeo eacute soacute catalatilde espanhola ou europeacuteia mas ocidental e contemporacircnea nossa haacute tempos Na especificidade catalatilde da crise pessoas nascidas na Catalunha podem ainda ser vistas como uma lsquosegunda ou terceira geraccedilatildeo de imigrantesrsquo mesmo se eles falam catalatildeo que era fator diferenciador de uma identidade catalatilde lsquoCharnegorsquo eacute um termo utilizado por catalatildees para catalatildees com pai ou matildee de outra regiatildeo da Espanha Quando esses indiviacuteduos estatildeo na regiatildeo de seus pais eles satildeo lsquoos catalatildeesrsquo Assim eles podem ser estrangeiros dentro e fora da Catalunha

No bojo desse contexto de sutilezas rudemente sintetizado acima Antonio Saacutenchez Helen Graham e Jo Labanyi Josep-Anton Fernagravendez e Michael Keating satildeo alguns dos acadecircmicos europeus que reconhecem um crescimento da identidade catalatilde promovido pela transiccedilatildeo democraacutetica e a normalitzacioacute Keating frisa que ldquoo forte senso de identidade catalatilde que cresceu fortemente nos uacuteltimos vinte anos [] natildeo eacute uma identidade exclusiva mas uma identidade dupla como uma naccedilatildeo distinta dentro da Espanha e no niacutevel da elite com um forte compromisso com a Europardquo (1996 160) Keating tambeacutem sugere que ldquoa proporccedilatildeo daqueles que se identificam como puramente lsquoespanholrsquo caiu nitidamenterdquo (1996 130) Entretanto estudos no final da deacutecada de 1990 sobre uso de liacutengua e

11

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 6: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

Nesse solo histoacuterico sintetizado ao extremo La Fura passa por uma fase inicial de quatro anos de teatro em ruas praccedilas e poblets da naccedilatildeo catalatilde que por sua vez passa por intenso processo de normalizaccedilatildeo linguumliacutestica e de resgate da identidade catalatilde Neste primeiro periacuteodo firma-se uma composiccedilatildeo estaacutevel de nove homens7 que seratildeo responsaacuteveis pelo salto artisticamente interdisciplinar que o grupo realiza com Accions Alteraciograve Fiacutesica drsquoun Espai em 19831984 apresentado ateacute 1987 em diversos paiacuteses da Europa e na Argentina Accions mescla elementos esteacuteticos de concertos de rock e de performance arte com festas populares catalatildes e espanholas com um resultado artisticamente interdisciplinar realizado ndash de maneira claustrofoacutebica para muitos e muitas ndash em instalaccedilotildees fora de teatros convencionais onde atuantes espectadores palco plateacuteia obra recepccedilatildeo sujeito e objeto se misturam fisicamente e espacialmente em performances simultacircneas e cambiantes

Accions detona enorme visibilidade criacutetica e puacuteblica internacional que o grupo manteacutem na deacutecada de 1980 e a amplia planetariamente com a mega-performance Mar Mediterragravenia na cerimocircnia de abertura dos Jogos Oliacutempicos de Barcelona em 1992 O grupo deixa de ser tachado de punk anarquista eou enfant terribles para ser reverenciado como uma companhia profissional de competecircncia iacutempar para uns e uma famigerada marca multinacional para outros A poeacutetica interdisciplinar do La Fura continua a desdobrar-se em incursotildees em diferentes campos como publicidade cinema criaccedilotildees na internet oacutepera eventos puacuteblicos e interlinguagens seja em um navio cargueiro em cavernas preacute-histoacutericas ou desde 1996 tambeacutem em teatros convencionais com plateacuteia separada da accedilatildeo no palco

Antes do atual momento do grupo as apresentaccedilotildees em espaccedilos encontrados fora dos edifiacutecios construiacutedos e convencionalmente utilizados como teatros representavam uma das quatro caracteriacutesticas diferenciais do que a imprensa espanhola convencionou descrever como lenguaje furero Aleacutem das montagens fora de teatros convencionais a linguagem furera pode ser resumida em mais trecircs caracteriacutesticas principais A segunda caracteriacutestica eacute a de que os fureros eram os autores diretores encenadores produtores e interpretes de suas obras8 A terceira eacute composta pelo interesse e a troca artisticamente interdisciplinar com diferentes linguagens e miacutedias na composiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo dessas obras E a quarta caracteriacutestica da linguagem furera seria a falta da quarta parede ou de qualquer outra barreira entre espectadores atuantes e obra 7 O trio de Moiagrave mais Alex Ollegrave Hansel Cereza Jordi Aruacutes Jurgen Muumlller Miki Espuma e Pep Gatell Sobre este primeiro periacuteodo do La Fura veja Villar (2005)8 Esta caracteriacutestica deixa de existir apoacutes MTM (1994) quando o alematildeo Jurgen Muller foi o uacutenico dos diretores fundadores a atuar e a direccedilatildeo ainda era coletiva Os seis restantes diretores se uniriam atuando juntos novamente em um dos viacutedeos de Fust 30 (1996) dirigido por Aacutelex Ollegrave e Carles Padrissa Em Manes (1996) a direccedilatildeo foi assinada unicamente por Pere Tantinyagrave e em OslashBS (2000-02) por Pep Gatell e Muumlller com muacutesica de outro diretor fundador Miki Espuma O uacuteltimo trabalho com caracteriacutesticas da linguagem furera eacute OBIT (2005) dirigido por Tantinyagrave

6

Accions (1983-87) Suz-O-Suz (1985-92) Tier Mon (1988-90) Noun (1990-92) MTM (1994-96) Manes (1996-98) OslashBS (2000-02) e no tempo deste artigo OBIT (2005) tambeacutem tecircm suas apresentaccedilotildees em hangares faacutebricas locaccedilotildees industriais edifiacutecios abandonados espaccedilos polivalentes ginaacutesios subterracircneos funeraacuterias etc ou em teatros que possam tirar sua plateacuteia ou poltronas para promover espetaacuteculos em que atuantes e espectadores satildeo performadores ativos A caracteriacutestica relacional na opccedilatildeo do La Fura talvez seja a mais forte razatildeo do impacto do teatro do grupo em vaacuterias partes do planeta Tanto para espectadores(as) que voltam para uma outra apresentaccedilatildeo furera pelo sublime do imageacutetico do espetaacuteculo como para aqueles e aquelas que natildeo retornam pela violecircncia e risco do mesmo

Eacute por meio desta caracteriacutestica relacional da linguagem furera que me aproximo da teoria de Lehmann para sondar a aplicabilidade do termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo para o teatro do La Fura Apesar da linguagem furera se caracterizar pela interdependecircncia e dinacircmica de nexos entre as quatro caracteriacutesticas listadas acima seleciono esta uacuteltima pela fundamental importacircncia que ela tem natildeo soacute em definir o especiacutefico da poeacutetica do La Fura A ausecircncia de barreiras entre espectadores e atuantes nos trabalhos de linguagem furera eacute tambeacutem a ausecircncia ou variaccedilotildees intensas de distacircncia espacial eou fiacutesica entre eles entre palco e plateacuteia interpretaccedilatildeo e assistecircncia obra e recepccedilatildeo sujeito e objeto Isso significa um desafio agraves ontologias e epistemologias do teatro imutaacuteveis e impassiacuteveis ante as profundas alteraccedilotildees na linguagem teatral promovidos desde a deacutecada de 1960 e que continuam a reverberar na arte contemporacircnea Formas de relaccedilatildeo com a plateacuteia sempre impulsionaram estudos e poeacuteticas teatrais Mas em sua metodologia transdisciplinar o antropoacutelogo e acadecircmico estadunidense Edward L Schieffelin reclama uma posiccedilatildeo central em investigaccedilotildees etnograacuteficas para questotildees sobre o relacionamento entre performador e espectador pois para ele eacute dentro desse relacionamento ldquoque as relaccedilotildees ontoloacutegicas e epistemoloacutegicas fundamentais de qualquer sociedade poderatildeo mais possivelmente estar implicadas e ser solucionadasrdquo jaacute que esse relacionamento comporta ldquosuposiccedilotildees ocidentais fundamentais sobre a natureza da accedilatildeo em situaccedilotildees cotidianasrdquo (1998 204)

Schieffelin comenta que ldquopara a maioria dos acadecircmicos ocidentais com uma experiecircncia meacutedia como espectadores de apresentaccedilotildees teatrais a noccedilatildeo de apresentaccedilatildeo ao vivo conjura uma ideacuteia de atores no palcordquo (1998 200) Enquanto que o criacutetico e artista brasileiro Andreacute Lepecki coloca que em teatro e danccedila ldquonoacutes sentamos as luzes se apagam e noacutes testemunhamos ndash entatildeo vamos embora e esquecemos A plateacuteia tem aprendido uma higiene moacuterbida do fruirrdquo (1996 105) o antropoacutelogo estadunidense Victor Turner (tatildeo caro aos estudos de performance) especifica que ldquodiferentemente do teatro o ritual natildeo distingue entre plateacuteia

7

e performadores [] Teatro existe quando ocorre uma separaccedilatildeo entre a plateacuteia e os performadoresrdquo (1982 112)

Contradizendo noccedilotildees habituais as accedilotildees ou os rituais artiacutesticos da linguagem furera acontecem entre atraacutes acima abaixo transversal ao lado ou na frente mas sempre comno puacuteblico nos amplos espaccedilos sem arquibancadas poltronas ou cadeiras Esse fato pode apontar generalizaccedilotildees excludentes ingenuidade ou falta de informaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo entre agentes ou ainda um apego a convenccedilotildees que nem a histoacuteria do teatro manteacutem e nem o puacuteblico necessariamente segue No programa de Accions em 1987 o jornalista catalatildeo Albert de la Torre sugeria que ao inveacutes da violecircncia apontada por muitos La Fura promovia a violaccedilatildeo do espaccedilo que o teatro convencional reserva para o ldquoartista-rei-atorrdquo

O ensemble questiona tambeacutem o lugar reservado convencionalmente para a plateacuteia Talvez nenhuma outra companhia cecircnica ocidental durante o seacuteculo XX tenha investigado tanto essa caracteriacutestica relacional e o teatro ambientalista ou como definido e estudado por Schechner o environmental theatre (1973) Interferir na relaccedilatildeo com a plateacuteia jaacute fazia parte crucial do radical ataque agraves convenccedilotildees da linguagem da plateacuteia e dos proacuteprios artistas promovido por diferentes artistas e grupos de teatro de distintos continentes nas Vanguardas Histoacutericas das trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo passado A questatildeo volta nas deacutecadas de 1960 e 1970 quando segundo o diretor estadunidense Arthur Sainer grupos e artistas ldquoquestionavam tudordquo inclusive a eficaacutecia ldquoem nosso tempo da velha caixinha de joacuteias do proscecircnio assustadoramente representando a manipuladora relaccedilatildeo atuante-espectador com sua noccedilatildeo de atuante como doador e espectador como recipienterdquo (1975 53-4)

Essa manipulaccedilatildeo comum em praacuteticas convencionais de teatro eacute a mesma que Peggy Phelan vecirc como ldquoaparentemente tatildeo compatiacutevel com (as tradicionais descriccedilotildees do) desejo masculino [] Muito da praacutetica teatral ocidental evoca desejo baseado e estimulado pela falta de igualdade entre performador e espectadorrdquo (1993 163) Utilizando estudos de Michel Foucault sobre a confissatildeo na igreja catoacutelica a acadecircmica e autora estadunidense descreve o fulcro (o ponto de apoio da balanccedila) que equilibra poder e conhecimento como o sustentaacuteculo que manteacutem a agecircncia de dominaccedilatildeo no confessionaacuterio e tambeacutem no evento teatral o espectador eacute o confessor silencioso que nada fala mas que domina e controla a troca (1993 163)

Estaacute aleacutem dos limites deste artigo abordar as instigantes questotildees levantadas por Phelan Schieffelin Lepecki e Turner da maneira que as mesmas merecem Mas os pontos aqui rapidamente colocados podem nos ajudar a situar a proposta relacional do La Fura como uma accedilatildeo poliacutetica A poeacutetica da linguagem furera questiona replicaccedilotildees de comportamentos

8

hegemocircnicos impostos bem como conformismos cacircnones hierarquias e dogmas esteacuteticos O impacto alcanccedilado pela caracteriacutestica relacional da linguagem furera me parece tornar possiacutevel a associaccedilatildeo direta com uma busca por uma alteraccedilatildeo da percepccedilatildeo habitual ou uma mudanccedila de lsquofoacutermulas de percepccedilatildeorsquo jaacute dadas que Lehmann coloca como funccedilatildeo objetivo e necessidade para a contundecircncia de um teatro poliacutetico

A questatildeo jaacute era para Brecht para Heiner Muller e para todos os que trabalharam com teatro poliacutetico como vocecirc muda a forma de percepccedilatildeo das questotildees poliacuteticas e influi nessa forma de percepccedilatildeo Para o teatro o que eacute importante eacute a forma de mudar essa percepccedilatildeo a forma como se vai conseguir alterar essas foacutermulas de percepccedilatildeo que estatildeo dadas (2003 10)

La Fura parece responder agrave questatildeo apontada de maneira diferenciada e contundente Sua proposta de falta de barreiras entre o objeto que eacute observado a obra a criaccedilatildeo o palco o mesmo eu e do outro lado o sujeito que observa a assistecircncia a fruiccedilatildeo a plateacuteia o outro ele ou ela altera radicalmente a percepccedilatildeo habitual do teatro e do tema sendo abordado nessa outra proposiccedilatildeo relacional e esteacutetica As associaccedilotildees diretas das montagens fureras com a teorizaccedilatildeo de Lehmann sobre o poacutes-dramaacutetico e teatro poliacutetico continuam quando ele fala da necessidade de se alterar percepccedilotildees habituais ldquonessa sociedade dominada pela miacutediardquo afirmando que o teatro ldquooferece a alternativa de uma comunicaccedilatildeo ao vivo e realrdquo mas que ldquoessa possibilidade de comunicaccedilatildeo entre o espectador e o realizado e o fato de o teatro ser esse cinema tridimensional natildeo eacute aproveitadardquo para concluir que ldquoeacute justamente essa situaccedilatildeo que eacute aproveitada por algumas dessas novas formas do teatro poacutes-dramaacuteticordquo (2003 12) La Fura parece aproveitar a situaccedilatildeo apropriadamente e tambeacutem servir como evidecircncia clara E o mesmo acontece quando Lehmann versa sobre o jogo e a categoria eacutetica nessas outras formas de teatro

Lehmann trabalha sobre o tema da categoria eacutetica em formas de teatro que exercitam outras formas relacionais com espectadores e espectadoras apontando a responsabilidade deles e delas pelo processo e pelo espetaacuteculo que ele ou ela fazem parte Apesar de reconhecer a possibilidade da mesma responsabilidade ou categoria eacutetica acontecer no teatro tradicional Lehmann acentua que nas novas formas do poacutes-dramaacutetico

isso se torna infinitamente mais claro Eu estou numa situaccedilatildeo em que estou jogando participando e atuando juntos com outros Faccedilo parte desse jogo mesmo que eu natildeo seja obrigado a fazer parte desse

9

jogo Uma situaccedilatildeo como essa eacute como uma situaccedilatildeo poliacutetica Tem a ver com a relaccedilatildeo que cada espectador estabelece com as coisas que estatildeo acontecendo (2003 13)

Natildeo parece exagerado dizer que ele parece estar descrevendo aspectos relacionais de espetaacuteculos da linguagem furera Assim como Wittgenstein natildeo separava eacutetica e esteacutetica La Fura natildeo desassocia jogo e estEacutetica de sua proposta de relacionamento com a plateacuteia Utilizando um artigo anterior onde abordo especificamente o jogo furero podermos ver que La Fura tambeacutem pode ser uma traduccedilatildeo muito especial do entendimento de Lehmann do poacutes-dramaacutetico como jogo eacutetico e tambeacutem como esfacelamento de formas tradicionais de teatro e tambeacutem da explosatildeo da unidade entre elementos teatrais como pessoas tempo e espaccedilo

Os artistas cecircnicos se deparam com uma multidatildeo que natildeo ensaiada vai danccedilar a mesma coreografia que os fureros vecircm ensaiando As deixas gestos e accedilotildees que eles tecircm que desempenhar satildeo executadas dentro entre acima abaixo e com a plateacuteia Natildeo haacute muito tempo para anaacutelise O tempo estaacute contra vocecirc membro do puacuteblico porque vocecirc tem que correr Ou vocecirc eacute empurrado Vocecirc pode tambeacutem tropeccedilar em outro membro do puacuteblico ou em um dos artistas tentando chegar a algum lugar do espaccedilo Seu espaccedilo temporaacuterio estaacute no caminho do espaccedilo temporaacuterio do ator Vocecirc estaacute no seu caminho O show apenas comeccedilou e vocecirc estaacute atuando sem ensaios entre centenas de outros que vivenciam a mesma situaccedilatildeo Centenas de performances acontecem ao mesmo tempo Os artistas ensaiados encontram novos parceiros e parceiras cada noite em uma contiacutenua improvisaccedilatildeo arriscando alguns ossos aqui e suas proacuteprias vidas ali ou mesmo uma plateacuteia hostil Vocecirc nunca pode ter um aparente controle total sobre a cena sendo interpretada como vocecirc estaacute acostumado ou acostumada quando senta-se na escuridatildeo entre os outros membros invisiacuteveis do puacuteblico de teatro convencional Quem satildeo os atores La Fura divide questotildees E essas questotildees satildeo literalmente vividas durante a performance (Queiroz 1999 251)

Essas questotildees divididas com a plateacuteia tecircm gerado herdeiros ou artistas claramente influenciados pela esteacutetica furera dentro e fora da Espanha A recepccedilatildeo agraves obras do La Fura mantecircm um retorno criacutetico e de puacuteblico significativos em diferentes continentes do planeta Em outras palavras a linguagem audiovisual furera circula bem por diversos contextos geopoliacuteticos independente da liacutengua Entretanto um breve olhar no solo histoacuterico e cultural do grupo pode nos introduzir outros matizes

10

sobre a questatildeo do teatro (poliacutetico ou natildeo) e da opccedilatildeo relacional dos fureros

A obra do La Fura se insere dentro de um contexto diferenciado de uma naccedilatildeo sem estado ou uma naccedilatildeo catalatilde dentro de um Estado espanhol que eacute constituiacutedo por 19 autonomias com presidentes eleitos e bandeiras proacuteprias Catalunya (Catalunha) Galicia (Galiza) e Euskadi (Paiacutes Basco) satildeo autonomias diferenciadas chamadas de autonomias histoacutericas Com liacutenguas e histoacuterias proacuteprias independentes e anteriores ao Estado espanhol essas naccedilotildees foram gradualmente incorporadas como regiotildees desde o casamento dos reis catoacutelicos Fernando V de Aragatildeo e Isabela I de Castela em 1469 Nos nossos dias permanece uma tensatildeo entre centralizaccedilatildeo e integraccedilatildeo agraves forccedilas do Estado espanhol e movimentos na direccedilatildeo de descentralizaccedilatildeo mais autonomia e ainda que cada vez mais deacutebil separatismo

A histoacuteria da Catalunha marca uma intensa resistecircncia cultural e um senso forte de identidade nacional que natildeo sucumbiram aos ataques de Felipe V no seacuteculo XVIII ou de Franco e sua ditadura (1936-1975) que tentaram em vatildeo promover um genociacutedio da identidade autonomia e direitos histoacutericos da Catalunha Desde a transiccedilatildeo democraacutetica iniciada em 1976 o processo de normalitzacioacute e ideacuteias nacionalistas chocam-se com o processo de normalizacioacuten que defende os interesses do Estado e a ideacuteia de uma identidade espanhola nacional Dentro do lsquonada eacute fixorsquo da chamada poacutes-modernidade da globalizaccedilatildeo e a nova cena geopoliacutetica da Europa haacute uma crise na definiccedilatildeo de identidade ndash crise que natildeo eacute soacute catalatilde espanhola ou europeacuteia mas ocidental e contemporacircnea nossa haacute tempos Na especificidade catalatilde da crise pessoas nascidas na Catalunha podem ainda ser vistas como uma lsquosegunda ou terceira geraccedilatildeo de imigrantesrsquo mesmo se eles falam catalatildeo que era fator diferenciador de uma identidade catalatilde lsquoCharnegorsquo eacute um termo utilizado por catalatildees para catalatildees com pai ou matildee de outra regiatildeo da Espanha Quando esses indiviacuteduos estatildeo na regiatildeo de seus pais eles satildeo lsquoos catalatildeesrsquo Assim eles podem ser estrangeiros dentro e fora da Catalunha

No bojo desse contexto de sutilezas rudemente sintetizado acima Antonio Saacutenchez Helen Graham e Jo Labanyi Josep-Anton Fernagravendez e Michael Keating satildeo alguns dos acadecircmicos europeus que reconhecem um crescimento da identidade catalatilde promovido pela transiccedilatildeo democraacutetica e a normalitzacioacute Keating frisa que ldquoo forte senso de identidade catalatilde que cresceu fortemente nos uacuteltimos vinte anos [] natildeo eacute uma identidade exclusiva mas uma identidade dupla como uma naccedilatildeo distinta dentro da Espanha e no niacutevel da elite com um forte compromisso com a Europardquo (1996 160) Keating tambeacutem sugere que ldquoa proporccedilatildeo daqueles que se identificam como puramente lsquoespanholrsquo caiu nitidamenterdquo (1996 130) Entretanto estudos no final da deacutecada de 1990 sobre uso de liacutengua e

11

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 7: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

Accions (1983-87) Suz-O-Suz (1985-92) Tier Mon (1988-90) Noun (1990-92) MTM (1994-96) Manes (1996-98) OslashBS (2000-02) e no tempo deste artigo OBIT (2005) tambeacutem tecircm suas apresentaccedilotildees em hangares faacutebricas locaccedilotildees industriais edifiacutecios abandonados espaccedilos polivalentes ginaacutesios subterracircneos funeraacuterias etc ou em teatros que possam tirar sua plateacuteia ou poltronas para promover espetaacuteculos em que atuantes e espectadores satildeo performadores ativos A caracteriacutestica relacional na opccedilatildeo do La Fura talvez seja a mais forte razatildeo do impacto do teatro do grupo em vaacuterias partes do planeta Tanto para espectadores(as) que voltam para uma outra apresentaccedilatildeo furera pelo sublime do imageacutetico do espetaacuteculo como para aqueles e aquelas que natildeo retornam pela violecircncia e risco do mesmo

Eacute por meio desta caracteriacutestica relacional da linguagem furera que me aproximo da teoria de Lehmann para sondar a aplicabilidade do termo lsquopoacutes-dramaacuteticorsquo para o teatro do La Fura Apesar da linguagem furera se caracterizar pela interdependecircncia e dinacircmica de nexos entre as quatro caracteriacutesticas listadas acima seleciono esta uacuteltima pela fundamental importacircncia que ela tem natildeo soacute em definir o especiacutefico da poeacutetica do La Fura A ausecircncia de barreiras entre espectadores e atuantes nos trabalhos de linguagem furera eacute tambeacutem a ausecircncia ou variaccedilotildees intensas de distacircncia espacial eou fiacutesica entre eles entre palco e plateacuteia interpretaccedilatildeo e assistecircncia obra e recepccedilatildeo sujeito e objeto Isso significa um desafio agraves ontologias e epistemologias do teatro imutaacuteveis e impassiacuteveis ante as profundas alteraccedilotildees na linguagem teatral promovidos desde a deacutecada de 1960 e que continuam a reverberar na arte contemporacircnea Formas de relaccedilatildeo com a plateacuteia sempre impulsionaram estudos e poeacuteticas teatrais Mas em sua metodologia transdisciplinar o antropoacutelogo e acadecircmico estadunidense Edward L Schieffelin reclama uma posiccedilatildeo central em investigaccedilotildees etnograacuteficas para questotildees sobre o relacionamento entre performador e espectador pois para ele eacute dentro desse relacionamento ldquoque as relaccedilotildees ontoloacutegicas e epistemoloacutegicas fundamentais de qualquer sociedade poderatildeo mais possivelmente estar implicadas e ser solucionadasrdquo jaacute que esse relacionamento comporta ldquosuposiccedilotildees ocidentais fundamentais sobre a natureza da accedilatildeo em situaccedilotildees cotidianasrdquo (1998 204)

Schieffelin comenta que ldquopara a maioria dos acadecircmicos ocidentais com uma experiecircncia meacutedia como espectadores de apresentaccedilotildees teatrais a noccedilatildeo de apresentaccedilatildeo ao vivo conjura uma ideacuteia de atores no palcordquo (1998 200) Enquanto que o criacutetico e artista brasileiro Andreacute Lepecki coloca que em teatro e danccedila ldquonoacutes sentamos as luzes se apagam e noacutes testemunhamos ndash entatildeo vamos embora e esquecemos A plateacuteia tem aprendido uma higiene moacuterbida do fruirrdquo (1996 105) o antropoacutelogo estadunidense Victor Turner (tatildeo caro aos estudos de performance) especifica que ldquodiferentemente do teatro o ritual natildeo distingue entre plateacuteia

7

e performadores [] Teatro existe quando ocorre uma separaccedilatildeo entre a plateacuteia e os performadoresrdquo (1982 112)

Contradizendo noccedilotildees habituais as accedilotildees ou os rituais artiacutesticos da linguagem furera acontecem entre atraacutes acima abaixo transversal ao lado ou na frente mas sempre comno puacuteblico nos amplos espaccedilos sem arquibancadas poltronas ou cadeiras Esse fato pode apontar generalizaccedilotildees excludentes ingenuidade ou falta de informaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo entre agentes ou ainda um apego a convenccedilotildees que nem a histoacuteria do teatro manteacutem e nem o puacuteblico necessariamente segue No programa de Accions em 1987 o jornalista catalatildeo Albert de la Torre sugeria que ao inveacutes da violecircncia apontada por muitos La Fura promovia a violaccedilatildeo do espaccedilo que o teatro convencional reserva para o ldquoartista-rei-atorrdquo

O ensemble questiona tambeacutem o lugar reservado convencionalmente para a plateacuteia Talvez nenhuma outra companhia cecircnica ocidental durante o seacuteculo XX tenha investigado tanto essa caracteriacutestica relacional e o teatro ambientalista ou como definido e estudado por Schechner o environmental theatre (1973) Interferir na relaccedilatildeo com a plateacuteia jaacute fazia parte crucial do radical ataque agraves convenccedilotildees da linguagem da plateacuteia e dos proacuteprios artistas promovido por diferentes artistas e grupos de teatro de distintos continentes nas Vanguardas Histoacutericas das trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo passado A questatildeo volta nas deacutecadas de 1960 e 1970 quando segundo o diretor estadunidense Arthur Sainer grupos e artistas ldquoquestionavam tudordquo inclusive a eficaacutecia ldquoem nosso tempo da velha caixinha de joacuteias do proscecircnio assustadoramente representando a manipuladora relaccedilatildeo atuante-espectador com sua noccedilatildeo de atuante como doador e espectador como recipienterdquo (1975 53-4)

Essa manipulaccedilatildeo comum em praacuteticas convencionais de teatro eacute a mesma que Peggy Phelan vecirc como ldquoaparentemente tatildeo compatiacutevel com (as tradicionais descriccedilotildees do) desejo masculino [] Muito da praacutetica teatral ocidental evoca desejo baseado e estimulado pela falta de igualdade entre performador e espectadorrdquo (1993 163) Utilizando estudos de Michel Foucault sobre a confissatildeo na igreja catoacutelica a acadecircmica e autora estadunidense descreve o fulcro (o ponto de apoio da balanccedila) que equilibra poder e conhecimento como o sustentaacuteculo que manteacutem a agecircncia de dominaccedilatildeo no confessionaacuterio e tambeacutem no evento teatral o espectador eacute o confessor silencioso que nada fala mas que domina e controla a troca (1993 163)

Estaacute aleacutem dos limites deste artigo abordar as instigantes questotildees levantadas por Phelan Schieffelin Lepecki e Turner da maneira que as mesmas merecem Mas os pontos aqui rapidamente colocados podem nos ajudar a situar a proposta relacional do La Fura como uma accedilatildeo poliacutetica A poeacutetica da linguagem furera questiona replicaccedilotildees de comportamentos

8

hegemocircnicos impostos bem como conformismos cacircnones hierarquias e dogmas esteacuteticos O impacto alcanccedilado pela caracteriacutestica relacional da linguagem furera me parece tornar possiacutevel a associaccedilatildeo direta com uma busca por uma alteraccedilatildeo da percepccedilatildeo habitual ou uma mudanccedila de lsquofoacutermulas de percepccedilatildeorsquo jaacute dadas que Lehmann coloca como funccedilatildeo objetivo e necessidade para a contundecircncia de um teatro poliacutetico

A questatildeo jaacute era para Brecht para Heiner Muller e para todos os que trabalharam com teatro poliacutetico como vocecirc muda a forma de percepccedilatildeo das questotildees poliacuteticas e influi nessa forma de percepccedilatildeo Para o teatro o que eacute importante eacute a forma de mudar essa percepccedilatildeo a forma como se vai conseguir alterar essas foacutermulas de percepccedilatildeo que estatildeo dadas (2003 10)

La Fura parece responder agrave questatildeo apontada de maneira diferenciada e contundente Sua proposta de falta de barreiras entre o objeto que eacute observado a obra a criaccedilatildeo o palco o mesmo eu e do outro lado o sujeito que observa a assistecircncia a fruiccedilatildeo a plateacuteia o outro ele ou ela altera radicalmente a percepccedilatildeo habitual do teatro e do tema sendo abordado nessa outra proposiccedilatildeo relacional e esteacutetica As associaccedilotildees diretas das montagens fureras com a teorizaccedilatildeo de Lehmann sobre o poacutes-dramaacutetico e teatro poliacutetico continuam quando ele fala da necessidade de se alterar percepccedilotildees habituais ldquonessa sociedade dominada pela miacutediardquo afirmando que o teatro ldquooferece a alternativa de uma comunicaccedilatildeo ao vivo e realrdquo mas que ldquoessa possibilidade de comunicaccedilatildeo entre o espectador e o realizado e o fato de o teatro ser esse cinema tridimensional natildeo eacute aproveitadardquo para concluir que ldquoeacute justamente essa situaccedilatildeo que eacute aproveitada por algumas dessas novas formas do teatro poacutes-dramaacuteticordquo (2003 12) La Fura parece aproveitar a situaccedilatildeo apropriadamente e tambeacutem servir como evidecircncia clara E o mesmo acontece quando Lehmann versa sobre o jogo e a categoria eacutetica nessas outras formas de teatro

Lehmann trabalha sobre o tema da categoria eacutetica em formas de teatro que exercitam outras formas relacionais com espectadores e espectadoras apontando a responsabilidade deles e delas pelo processo e pelo espetaacuteculo que ele ou ela fazem parte Apesar de reconhecer a possibilidade da mesma responsabilidade ou categoria eacutetica acontecer no teatro tradicional Lehmann acentua que nas novas formas do poacutes-dramaacutetico

isso se torna infinitamente mais claro Eu estou numa situaccedilatildeo em que estou jogando participando e atuando juntos com outros Faccedilo parte desse jogo mesmo que eu natildeo seja obrigado a fazer parte desse

9

jogo Uma situaccedilatildeo como essa eacute como uma situaccedilatildeo poliacutetica Tem a ver com a relaccedilatildeo que cada espectador estabelece com as coisas que estatildeo acontecendo (2003 13)

Natildeo parece exagerado dizer que ele parece estar descrevendo aspectos relacionais de espetaacuteculos da linguagem furera Assim como Wittgenstein natildeo separava eacutetica e esteacutetica La Fura natildeo desassocia jogo e estEacutetica de sua proposta de relacionamento com a plateacuteia Utilizando um artigo anterior onde abordo especificamente o jogo furero podermos ver que La Fura tambeacutem pode ser uma traduccedilatildeo muito especial do entendimento de Lehmann do poacutes-dramaacutetico como jogo eacutetico e tambeacutem como esfacelamento de formas tradicionais de teatro e tambeacutem da explosatildeo da unidade entre elementos teatrais como pessoas tempo e espaccedilo

Os artistas cecircnicos se deparam com uma multidatildeo que natildeo ensaiada vai danccedilar a mesma coreografia que os fureros vecircm ensaiando As deixas gestos e accedilotildees que eles tecircm que desempenhar satildeo executadas dentro entre acima abaixo e com a plateacuteia Natildeo haacute muito tempo para anaacutelise O tempo estaacute contra vocecirc membro do puacuteblico porque vocecirc tem que correr Ou vocecirc eacute empurrado Vocecirc pode tambeacutem tropeccedilar em outro membro do puacuteblico ou em um dos artistas tentando chegar a algum lugar do espaccedilo Seu espaccedilo temporaacuterio estaacute no caminho do espaccedilo temporaacuterio do ator Vocecirc estaacute no seu caminho O show apenas comeccedilou e vocecirc estaacute atuando sem ensaios entre centenas de outros que vivenciam a mesma situaccedilatildeo Centenas de performances acontecem ao mesmo tempo Os artistas ensaiados encontram novos parceiros e parceiras cada noite em uma contiacutenua improvisaccedilatildeo arriscando alguns ossos aqui e suas proacuteprias vidas ali ou mesmo uma plateacuteia hostil Vocecirc nunca pode ter um aparente controle total sobre a cena sendo interpretada como vocecirc estaacute acostumado ou acostumada quando senta-se na escuridatildeo entre os outros membros invisiacuteveis do puacuteblico de teatro convencional Quem satildeo os atores La Fura divide questotildees E essas questotildees satildeo literalmente vividas durante a performance (Queiroz 1999 251)

Essas questotildees divididas com a plateacuteia tecircm gerado herdeiros ou artistas claramente influenciados pela esteacutetica furera dentro e fora da Espanha A recepccedilatildeo agraves obras do La Fura mantecircm um retorno criacutetico e de puacuteblico significativos em diferentes continentes do planeta Em outras palavras a linguagem audiovisual furera circula bem por diversos contextos geopoliacuteticos independente da liacutengua Entretanto um breve olhar no solo histoacuterico e cultural do grupo pode nos introduzir outros matizes

10

sobre a questatildeo do teatro (poliacutetico ou natildeo) e da opccedilatildeo relacional dos fureros

A obra do La Fura se insere dentro de um contexto diferenciado de uma naccedilatildeo sem estado ou uma naccedilatildeo catalatilde dentro de um Estado espanhol que eacute constituiacutedo por 19 autonomias com presidentes eleitos e bandeiras proacuteprias Catalunya (Catalunha) Galicia (Galiza) e Euskadi (Paiacutes Basco) satildeo autonomias diferenciadas chamadas de autonomias histoacutericas Com liacutenguas e histoacuterias proacuteprias independentes e anteriores ao Estado espanhol essas naccedilotildees foram gradualmente incorporadas como regiotildees desde o casamento dos reis catoacutelicos Fernando V de Aragatildeo e Isabela I de Castela em 1469 Nos nossos dias permanece uma tensatildeo entre centralizaccedilatildeo e integraccedilatildeo agraves forccedilas do Estado espanhol e movimentos na direccedilatildeo de descentralizaccedilatildeo mais autonomia e ainda que cada vez mais deacutebil separatismo

A histoacuteria da Catalunha marca uma intensa resistecircncia cultural e um senso forte de identidade nacional que natildeo sucumbiram aos ataques de Felipe V no seacuteculo XVIII ou de Franco e sua ditadura (1936-1975) que tentaram em vatildeo promover um genociacutedio da identidade autonomia e direitos histoacutericos da Catalunha Desde a transiccedilatildeo democraacutetica iniciada em 1976 o processo de normalitzacioacute e ideacuteias nacionalistas chocam-se com o processo de normalizacioacuten que defende os interesses do Estado e a ideacuteia de uma identidade espanhola nacional Dentro do lsquonada eacute fixorsquo da chamada poacutes-modernidade da globalizaccedilatildeo e a nova cena geopoliacutetica da Europa haacute uma crise na definiccedilatildeo de identidade ndash crise que natildeo eacute soacute catalatilde espanhola ou europeacuteia mas ocidental e contemporacircnea nossa haacute tempos Na especificidade catalatilde da crise pessoas nascidas na Catalunha podem ainda ser vistas como uma lsquosegunda ou terceira geraccedilatildeo de imigrantesrsquo mesmo se eles falam catalatildeo que era fator diferenciador de uma identidade catalatilde lsquoCharnegorsquo eacute um termo utilizado por catalatildees para catalatildees com pai ou matildee de outra regiatildeo da Espanha Quando esses indiviacuteduos estatildeo na regiatildeo de seus pais eles satildeo lsquoos catalatildeesrsquo Assim eles podem ser estrangeiros dentro e fora da Catalunha

No bojo desse contexto de sutilezas rudemente sintetizado acima Antonio Saacutenchez Helen Graham e Jo Labanyi Josep-Anton Fernagravendez e Michael Keating satildeo alguns dos acadecircmicos europeus que reconhecem um crescimento da identidade catalatilde promovido pela transiccedilatildeo democraacutetica e a normalitzacioacute Keating frisa que ldquoo forte senso de identidade catalatilde que cresceu fortemente nos uacuteltimos vinte anos [] natildeo eacute uma identidade exclusiva mas uma identidade dupla como uma naccedilatildeo distinta dentro da Espanha e no niacutevel da elite com um forte compromisso com a Europardquo (1996 160) Keating tambeacutem sugere que ldquoa proporccedilatildeo daqueles que se identificam como puramente lsquoespanholrsquo caiu nitidamenterdquo (1996 130) Entretanto estudos no final da deacutecada de 1990 sobre uso de liacutengua e

11

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 8: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

e performadores [] Teatro existe quando ocorre uma separaccedilatildeo entre a plateacuteia e os performadoresrdquo (1982 112)

Contradizendo noccedilotildees habituais as accedilotildees ou os rituais artiacutesticos da linguagem furera acontecem entre atraacutes acima abaixo transversal ao lado ou na frente mas sempre comno puacuteblico nos amplos espaccedilos sem arquibancadas poltronas ou cadeiras Esse fato pode apontar generalizaccedilotildees excludentes ingenuidade ou falta de informaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo entre agentes ou ainda um apego a convenccedilotildees que nem a histoacuteria do teatro manteacutem e nem o puacuteblico necessariamente segue No programa de Accions em 1987 o jornalista catalatildeo Albert de la Torre sugeria que ao inveacutes da violecircncia apontada por muitos La Fura promovia a violaccedilatildeo do espaccedilo que o teatro convencional reserva para o ldquoartista-rei-atorrdquo

O ensemble questiona tambeacutem o lugar reservado convencionalmente para a plateacuteia Talvez nenhuma outra companhia cecircnica ocidental durante o seacuteculo XX tenha investigado tanto essa caracteriacutestica relacional e o teatro ambientalista ou como definido e estudado por Schechner o environmental theatre (1973) Interferir na relaccedilatildeo com a plateacuteia jaacute fazia parte crucial do radical ataque agraves convenccedilotildees da linguagem da plateacuteia e dos proacuteprios artistas promovido por diferentes artistas e grupos de teatro de distintos continentes nas Vanguardas Histoacutericas das trecircs primeiras deacutecadas do seacuteculo passado A questatildeo volta nas deacutecadas de 1960 e 1970 quando segundo o diretor estadunidense Arthur Sainer grupos e artistas ldquoquestionavam tudordquo inclusive a eficaacutecia ldquoem nosso tempo da velha caixinha de joacuteias do proscecircnio assustadoramente representando a manipuladora relaccedilatildeo atuante-espectador com sua noccedilatildeo de atuante como doador e espectador como recipienterdquo (1975 53-4)

Essa manipulaccedilatildeo comum em praacuteticas convencionais de teatro eacute a mesma que Peggy Phelan vecirc como ldquoaparentemente tatildeo compatiacutevel com (as tradicionais descriccedilotildees do) desejo masculino [] Muito da praacutetica teatral ocidental evoca desejo baseado e estimulado pela falta de igualdade entre performador e espectadorrdquo (1993 163) Utilizando estudos de Michel Foucault sobre a confissatildeo na igreja catoacutelica a acadecircmica e autora estadunidense descreve o fulcro (o ponto de apoio da balanccedila) que equilibra poder e conhecimento como o sustentaacuteculo que manteacutem a agecircncia de dominaccedilatildeo no confessionaacuterio e tambeacutem no evento teatral o espectador eacute o confessor silencioso que nada fala mas que domina e controla a troca (1993 163)

Estaacute aleacutem dos limites deste artigo abordar as instigantes questotildees levantadas por Phelan Schieffelin Lepecki e Turner da maneira que as mesmas merecem Mas os pontos aqui rapidamente colocados podem nos ajudar a situar a proposta relacional do La Fura como uma accedilatildeo poliacutetica A poeacutetica da linguagem furera questiona replicaccedilotildees de comportamentos

8

hegemocircnicos impostos bem como conformismos cacircnones hierarquias e dogmas esteacuteticos O impacto alcanccedilado pela caracteriacutestica relacional da linguagem furera me parece tornar possiacutevel a associaccedilatildeo direta com uma busca por uma alteraccedilatildeo da percepccedilatildeo habitual ou uma mudanccedila de lsquofoacutermulas de percepccedilatildeorsquo jaacute dadas que Lehmann coloca como funccedilatildeo objetivo e necessidade para a contundecircncia de um teatro poliacutetico

A questatildeo jaacute era para Brecht para Heiner Muller e para todos os que trabalharam com teatro poliacutetico como vocecirc muda a forma de percepccedilatildeo das questotildees poliacuteticas e influi nessa forma de percepccedilatildeo Para o teatro o que eacute importante eacute a forma de mudar essa percepccedilatildeo a forma como se vai conseguir alterar essas foacutermulas de percepccedilatildeo que estatildeo dadas (2003 10)

La Fura parece responder agrave questatildeo apontada de maneira diferenciada e contundente Sua proposta de falta de barreiras entre o objeto que eacute observado a obra a criaccedilatildeo o palco o mesmo eu e do outro lado o sujeito que observa a assistecircncia a fruiccedilatildeo a plateacuteia o outro ele ou ela altera radicalmente a percepccedilatildeo habitual do teatro e do tema sendo abordado nessa outra proposiccedilatildeo relacional e esteacutetica As associaccedilotildees diretas das montagens fureras com a teorizaccedilatildeo de Lehmann sobre o poacutes-dramaacutetico e teatro poliacutetico continuam quando ele fala da necessidade de se alterar percepccedilotildees habituais ldquonessa sociedade dominada pela miacutediardquo afirmando que o teatro ldquooferece a alternativa de uma comunicaccedilatildeo ao vivo e realrdquo mas que ldquoessa possibilidade de comunicaccedilatildeo entre o espectador e o realizado e o fato de o teatro ser esse cinema tridimensional natildeo eacute aproveitadardquo para concluir que ldquoeacute justamente essa situaccedilatildeo que eacute aproveitada por algumas dessas novas formas do teatro poacutes-dramaacuteticordquo (2003 12) La Fura parece aproveitar a situaccedilatildeo apropriadamente e tambeacutem servir como evidecircncia clara E o mesmo acontece quando Lehmann versa sobre o jogo e a categoria eacutetica nessas outras formas de teatro

Lehmann trabalha sobre o tema da categoria eacutetica em formas de teatro que exercitam outras formas relacionais com espectadores e espectadoras apontando a responsabilidade deles e delas pelo processo e pelo espetaacuteculo que ele ou ela fazem parte Apesar de reconhecer a possibilidade da mesma responsabilidade ou categoria eacutetica acontecer no teatro tradicional Lehmann acentua que nas novas formas do poacutes-dramaacutetico

isso se torna infinitamente mais claro Eu estou numa situaccedilatildeo em que estou jogando participando e atuando juntos com outros Faccedilo parte desse jogo mesmo que eu natildeo seja obrigado a fazer parte desse

9

jogo Uma situaccedilatildeo como essa eacute como uma situaccedilatildeo poliacutetica Tem a ver com a relaccedilatildeo que cada espectador estabelece com as coisas que estatildeo acontecendo (2003 13)

Natildeo parece exagerado dizer que ele parece estar descrevendo aspectos relacionais de espetaacuteculos da linguagem furera Assim como Wittgenstein natildeo separava eacutetica e esteacutetica La Fura natildeo desassocia jogo e estEacutetica de sua proposta de relacionamento com a plateacuteia Utilizando um artigo anterior onde abordo especificamente o jogo furero podermos ver que La Fura tambeacutem pode ser uma traduccedilatildeo muito especial do entendimento de Lehmann do poacutes-dramaacutetico como jogo eacutetico e tambeacutem como esfacelamento de formas tradicionais de teatro e tambeacutem da explosatildeo da unidade entre elementos teatrais como pessoas tempo e espaccedilo

Os artistas cecircnicos se deparam com uma multidatildeo que natildeo ensaiada vai danccedilar a mesma coreografia que os fureros vecircm ensaiando As deixas gestos e accedilotildees que eles tecircm que desempenhar satildeo executadas dentro entre acima abaixo e com a plateacuteia Natildeo haacute muito tempo para anaacutelise O tempo estaacute contra vocecirc membro do puacuteblico porque vocecirc tem que correr Ou vocecirc eacute empurrado Vocecirc pode tambeacutem tropeccedilar em outro membro do puacuteblico ou em um dos artistas tentando chegar a algum lugar do espaccedilo Seu espaccedilo temporaacuterio estaacute no caminho do espaccedilo temporaacuterio do ator Vocecirc estaacute no seu caminho O show apenas comeccedilou e vocecirc estaacute atuando sem ensaios entre centenas de outros que vivenciam a mesma situaccedilatildeo Centenas de performances acontecem ao mesmo tempo Os artistas ensaiados encontram novos parceiros e parceiras cada noite em uma contiacutenua improvisaccedilatildeo arriscando alguns ossos aqui e suas proacuteprias vidas ali ou mesmo uma plateacuteia hostil Vocecirc nunca pode ter um aparente controle total sobre a cena sendo interpretada como vocecirc estaacute acostumado ou acostumada quando senta-se na escuridatildeo entre os outros membros invisiacuteveis do puacuteblico de teatro convencional Quem satildeo os atores La Fura divide questotildees E essas questotildees satildeo literalmente vividas durante a performance (Queiroz 1999 251)

Essas questotildees divididas com a plateacuteia tecircm gerado herdeiros ou artistas claramente influenciados pela esteacutetica furera dentro e fora da Espanha A recepccedilatildeo agraves obras do La Fura mantecircm um retorno criacutetico e de puacuteblico significativos em diferentes continentes do planeta Em outras palavras a linguagem audiovisual furera circula bem por diversos contextos geopoliacuteticos independente da liacutengua Entretanto um breve olhar no solo histoacuterico e cultural do grupo pode nos introduzir outros matizes

10

sobre a questatildeo do teatro (poliacutetico ou natildeo) e da opccedilatildeo relacional dos fureros

A obra do La Fura se insere dentro de um contexto diferenciado de uma naccedilatildeo sem estado ou uma naccedilatildeo catalatilde dentro de um Estado espanhol que eacute constituiacutedo por 19 autonomias com presidentes eleitos e bandeiras proacuteprias Catalunya (Catalunha) Galicia (Galiza) e Euskadi (Paiacutes Basco) satildeo autonomias diferenciadas chamadas de autonomias histoacutericas Com liacutenguas e histoacuterias proacuteprias independentes e anteriores ao Estado espanhol essas naccedilotildees foram gradualmente incorporadas como regiotildees desde o casamento dos reis catoacutelicos Fernando V de Aragatildeo e Isabela I de Castela em 1469 Nos nossos dias permanece uma tensatildeo entre centralizaccedilatildeo e integraccedilatildeo agraves forccedilas do Estado espanhol e movimentos na direccedilatildeo de descentralizaccedilatildeo mais autonomia e ainda que cada vez mais deacutebil separatismo

A histoacuteria da Catalunha marca uma intensa resistecircncia cultural e um senso forte de identidade nacional que natildeo sucumbiram aos ataques de Felipe V no seacuteculo XVIII ou de Franco e sua ditadura (1936-1975) que tentaram em vatildeo promover um genociacutedio da identidade autonomia e direitos histoacutericos da Catalunha Desde a transiccedilatildeo democraacutetica iniciada em 1976 o processo de normalitzacioacute e ideacuteias nacionalistas chocam-se com o processo de normalizacioacuten que defende os interesses do Estado e a ideacuteia de uma identidade espanhola nacional Dentro do lsquonada eacute fixorsquo da chamada poacutes-modernidade da globalizaccedilatildeo e a nova cena geopoliacutetica da Europa haacute uma crise na definiccedilatildeo de identidade ndash crise que natildeo eacute soacute catalatilde espanhola ou europeacuteia mas ocidental e contemporacircnea nossa haacute tempos Na especificidade catalatilde da crise pessoas nascidas na Catalunha podem ainda ser vistas como uma lsquosegunda ou terceira geraccedilatildeo de imigrantesrsquo mesmo se eles falam catalatildeo que era fator diferenciador de uma identidade catalatilde lsquoCharnegorsquo eacute um termo utilizado por catalatildees para catalatildees com pai ou matildee de outra regiatildeo da Espanha Quando esses indiviacuteduos estatildeo na regiatildeo de seus pais eles satildeo lsquoos catalatildeesrsquo Assim eles podem ser estrangeiros dentro e fora da Catalunha

No bojo desse contexto de sutilezas rudemente sintetizado acima Antonio Saacutenchez Helen Graham e Jo Labanyi Josep-Anton Fernagravendez e Michael Keating satildeo alguns dos acadecircmicos europeus que reconhecem um crescimento da identidade catalatilde promovido pela transiccedilatildeo democraacutetica e a normalitzacioacute Keating frisa que ldquoo forte senso de identidade catalatilde que cresceu fortemente nos uacuteltimos vinte anos [] natildeo eacute uma identidade exclusiva mas uma identidade dupla como uma naccedilatildeo distinta dentro da Espanha e no niacutevel da elite com um forte compromisso com a Europardquo (1996 160) Keating tambeacutem sugere que ldquoa proporccedilatildeo daqueles que se identificam como puramente lsquoespanholrsquo caiu nitidamenterdquo (1996 130) Entretanto estudos no final da deacutecada de 1990 sobre uso de liacutengua e

11

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 9: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

hegemocircnicos impostos bem como conformismos cacircnones hierarquias e dogmas esteacuteticos O impacto alcanccedilado pela caracteriacutestica relacional da linguagem furera me parece tornar possiacutevel a associaccedilatildeo direta com uma busca por uma alteraccedilatildeo da percepccedilatildeo habitual ou uma mudanccedila de lsquofoacutermulas de percepccedilatildeorsquo jaacute dadas que Lehmann coloca como funccedilatildeo objetivo e necessidade para a contundecircncia de um teatro poliacutetico

A questatildeo jaacute era para Brecht para Heiner Muller e para todos os que trabalharam com teatro poliacutetico como vocecirc muda a forma de percepccedilatildeo das questotildees poliacuteticas e influi nessa forma de percepccedilatildeo Para o teatro o que eacute importante eacute a forma de mudar essa percepccedilatildeo a forma como se vai conseguir alterar essas foacutermulas de percepccedilatildeo que estatildeo dadas (2003 10)

La Fura parece responder agrave questatildeo apontada de maneira diferenciada e contundente Sua proposta de falta de barreiras entre o objeto que eacute observado a obra a criaccedilatildeo o palco o mesmo eu e do outro lado o sujeito que observa a assistecircncia a fruiccedilatildeo a plateacuteia o outro ele ou ela altera radicalmente a percepccedilatildeo habitual do teatro e do tema sendo abordado nessa outra proposiccedilatildeo relacional e esteacutetica As associaccedilotildees diretas das montagens fureras com a teorizaccedilatildeo de Lehmann sobre o poacutes-dramaacutetico e teatro poliacutetico continuam quando ele fala da necessidade de se alterar percepccedilotildees habituais ldquonessa sociedade dominada pela miacutediardquo afirmando que o teatro ldquooferece a alternativa de uma comunicaccedilatildeo ao vivo e realrdquo mas que ldquoessa possibilidade de comunicaccedilatildeo entre o espectador e o realizado e o fato de o teatro ser esse cinema tridimensional natildeo eacute aproveitadardquo para concluir que ldquoeacute justamente essa situaccedilatildeo que eacute aproveitada por algumas dessas novas formas do teatro poacutes-dramaacuteticordquo (2003 12) La Fura parece aproveitar a situaccedilatildeo apropriadamente e tambeacutem servir como evidecircncia clara E o mesmo acontece quando Lehmann versa sobre o jogo e a categoria eacutetica nessas outras formas de teatro

Lehmann trabalha sobre o tema da categoria eacutetica em formas de teatro que exercitam outras formas relacionais com espectadores e espectadoras apontando a responsabilidade deles e delas pelo processo e pelo espetaacuteculo que ele ou ela fazem parte Apesar de reconhecer a possibilidade da mesma responsabilidade ou categoria eacutetica acontecer no teatro tradicional Lehmann acentua que nas novas formas do poacutes-dramaacutetico

isso se torna infinitamente mais claro Eu estou numa situaccedilatildeo em que estou jogando participando e atuando juntos com outros Faccedilo parte desse jogo mesmo que eu natildeo seja obrigado a fazer parte desse

9

jogo Uma situaccedilatildeo como essa eacute como uma situaccedilatildeo poliacutetica Tem a ver com a relaccedilatildeo que cada espectador estabelece com as coisas que estatildeo acontecendo (2003 13)

Natildeo parece exagerado dizer que ele parece estar descrevendo aspectos relacionais de espetaacuteculos da linguagem furera Assim como Wittgenstein natildeo separava eacutetica e esteacutetica La Fura natildeo desassocia jogo e estEacutetica de sua proposta de relacionamento com a plateacuteia Utilizando um artigo anterior onde abordo especificamente o jogo furero podermos ver que La Fura tambeacutem pode ser uma traduccedilatildeo muito especial do entendimento de Lehmann do poacutes-dramaacutetico como jogo eacutetico e tambeacutem como esfacelamento de formas tradicionais de teatro e tambeacutem da explosatildeo da unidade entre elementos teatrais como pessoas tempo e espaccedilo

Os artistas cecircnicos se deparam com uma multidatildeo que natildeo ensaiada vai danccedilar a mesma coreografia que os fureros vecircm ensaiando As deixas gestos e accedilotildees que eles tecircm que desempenhar satildeo executadas dentro entre acima abaixo e com a plateacuteia Natildeo haacute muito tempo para anaacutelise O tempo estaacute contra vocecirc membro do puacuteblico porque vocecirc tem que correr Ou vocecirc eacute empurrado Vocecirc pode tambeacutem tropeccedilar em outro membro do puacuteblico ou em um dos artistas tentando chegar a algum lugar do espaccedilo Seu espaccedilo temporaacuterio estaacute no caminho do espaccedilo temporaacuterio do ator Vocecirc estaacute no seu caminho O show apenas comeccedilou e vocecirc estaacute atuando sem ensaios entre centenas de outros que vivenciam a mesma situaccedilatildeo Centenas de performances acontecem ao mesmo tempo Os artistas ensaiados encontram novos parceiros e parceiras cada noite em uma contiacutenua improvisaccedilatildeo arriscando alguns ossos aqui e suas proacuteprias vidas ali ou mesmo uma plateacuteia hostil Vocecirc nunca pode ter um aparente controle total sobre a cena sendo interpretada como vocecirc estaacute acostumado ou acostumada quando senta-se na escuridatildeo entre os outros membros invisiacuteveis do puacuteblico de teatro convencional Quem satildeo os atores La Fura divide questotildees E essas questotildees satildeo literalmente vividas durante a performance (Queiroz 1999 251)

Essas questotildees divididas com a plateacuteia tecircm gerado herdeiros ou artistas claramente influenciados pela esteacutetica furera dentro e fora da Espanha A recepccedilatildeo agraves obras do La Fura mantecircm um retorno criacutetico e de puacuteblico significativos em diferentes continentes do planeta Em outras palavras a linguagem audiovisual furera circula bem por diversos contextos geopoliacuteticos independente da liacutengua Entretanto um breve olhar no solo histoacuterico e cultural do grupo pode nos introduzir outros matizes

10

sobre a questatildeo do teatro (poliacutetico ou natildeo) e da opccedilatildeo relacional dos fureros

A obra do La Fura se insere dentro de um contexto diferenciado de uma naccedilatildeo sem estado ou uma naccedilatildeo catalatilde dentro de um Estado espanhol que eacute constituiacutedo por 19 autonomias com presidentes eleitos e bandeiras proacuteprias Catalunya (Catalunha) Galicia (Galiza) e Euskadi (Paiacutes Basco) satildeo autonomias diferenciadas chamadas de autonomias histoacutericas Com liacutenguas e histoacuterias proacuteprias independentes e anteriores ao Estado espanhol essas naccedilotildees foram gradualmente incorporadas como regiotildees desde o casamento dos reis catoacutelicos Fernando V de Aragatildeo e Isabela I de Castela em 1469 Nos nossos dias permanece uma tensatildeo entre centralizaccedilatildeo e integraccedilatildeo agraves forccedilas do Estado espanhol e movimentos na direccedilatildeo de descentralizaccedilatildeo mais autonomia e ainda que cada vez mais deacutebil separatismo

A histoacuteria da Catalunha marca uma intensa resistecircncia cultural e um senso forte de identidade nacional que natildeo sucumbiram aos ataques de Felipe V no seacuteculo XVIII ou de Franco e sua ditadura (1936-1975) que tentaram em vatildeo promover um genociacutedio da identidade autonomia e direitos histoacutericos da Catalunha Desde a transiccedilatildeo democraacutetica iniciada em 1976 o processo de normalitzacioacute e ideacuteias nacionalistas chocam-se com o processo de normalizacioacuten que defende os interesses do Estado e a ideacuteia de uma identidade espanhola nacional Dentro do lsquonada eacute fixorsquo da chamada poacutes-modernidade da globalizaccedilatildeo e a nova cena geopoliacutetica da Europa haacute uma crise na definiccedilatildeo de identidade ndash crise que natildeo eacute soacute catalatilde espanhola ou europeacuteia mas ocidental e contemporacircnea nossa haacute tempos Na especificidade catalatilde da crise pessoas nascidas na Catalunha podem ainda ser vistas como uma lsquosegunda ou terceira geraccedilatildeo de imigrantesrsquo mesmo se eles falam catalatildeo que era fator diferenciador de uma identidade catalatilde lsquoCharnegorsquo eacute um termo utilizado por catalatildees para catalatildees com pai ou matildee de outra regiatildeo da Espanha Quando esses indiviacuteduos estatildeo na regiatildeo de seus pais eles satildeo lsquoos catalatildeesrsquo Assim eles podem ser estrangeiros dentro e fora da Catalunha

No bojo desse contexto de sutilezas rudemente sintetizado acima Antonio Saacutenchez Helen Graham e Jo Labanyi Josep-Anton Fernagravendez e Michael Keating satildeo alguns dos acadecircmicos europeus que reconhecem um crescimento da identidade catalatilde promovido pela transiccedilatildeo democraacutetica e a normalitzacioacute Keating frisa que ldquoo forte senso de identidade catalatilde que cresceu fortemente nos uacuteltimos vinte anos [] natildeo eacute uma identidade exclusiva mas uma identidade dupla como uma naccedilatildeo distinta dentro da Espanha e no niacutevel da elite com um forte compromisso com a Europardquo (1996 160) Keating tambeacutem sugere que ldquoa proporccedilatildeo daqueles que se identificam como puramente lsquoespanholrsquo caiu nitidamenterdquo (1996 130) Entretanto estudos no final da deacutecada de 1990 sobre uso de liacutengua e

11

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 10: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

jogo Uma situaccedilatildeo como essa eacute como uma situaccedilatildeo poliacutetica Tem a ver com a relaccedilatildeo que cada espectador estabelece com as coisas que estatildeo acontecendo (2003 13)

Natildeo parece exagerado dizer que ele parece estar descrevendo aspectos relacionais de espetaacuteculos da linguagem furera Assim como Wittgenstein natildeo separava eacutetica e esteacutetica La Fura natildeo desassocia jogo e estEacutetica de sua proposta de relacionamento com a plateacuteia Utilizando um artigo anterior onde abordo especificamente o jogo furero podermos ver que La Fura tambeacutem pode ser uma traduccedilatildeo muito especial do entendimento de Lehmann do poacutes-dramaacutetico como jogo eacutetico e tambeacutem como esfacelamento de formas tradicionais de teatro e tambeacutem da explosatildeo da unidade entre elementos teatrais como pessoas tempo e espaccedilo

Os artistas cecircnicos se deparam com uma multidatildeo que natildeo ensaiada vai danccedilar a mesma coreografia que os fureros vecircm ensaiando As deixas gestos e accedilotildees que eles tecircm que desempenhar satildeo executadas dentro entre acima abaixo e com a plateacuteia Natildeo haacute muito tempo para anaacutelise O tempo estaacute contra vocecirc membro do puacuteblico porque vocecirc tem que correr Ou vocecirc eacute empurrado Vocecirc pode tambeacutem tropeccedilar em outro membro do puacuteblico ou em um dos artistas tentando chegar a algum lugar do espaccedilo Seu espaccedilo temporaacuterio estaacute no caminho do espaccedilo temporaacuterio do ator Vocecirc estaacute no seu caminho O show apenas comeccedilou e vocecirc estaacute atuando sem ensaios entre centenas de outros que vivenciam a mesma situaccedilatildeo Centenas de performances acontecem ao mesmo tempo Os artistas ensaiados encontram novos parceiros e parceiras cada noite em uma contiacutenua improvisaccedilatildeo arriscando alguns ossos aqui e suas proacuteprias vidas ali ou mesmo uma plateacuteia hostil Vocecirc nunca pode ter um aparente controle total sobre a cena sendo interpretada como vocecirc estaacute acostumado ou acostumada quando senta-se na escuridatildeo entre os outros membros invisiacuteveis do puacuteblico de teatro convencional Quem satildeo os atores La Fura divide questotildees E essas questotildees satildeo literalmente vividas durante a performance (Queiroz 1999 251)

Essas questotildees divididas com a plateacuteia tecircm gerado herdeiros ou artistas claramente influenciados pela esteacutetica furera dentro e fora da Espanha A recepccedilatildeo agraves obras do La Fura mantecircm um retorno criacutetico e de puacuteblico significativos em diferentes continentes do planeta Em outras palavras a linguagem audiovisual furera circula bem por diversos contextos geopoliacuteticos independente da liacutengua Entretanto um breve olhar no solo histoacuterico e cultural do grupo pode nos introduzir outros matizes

10

sobre a questatildeo do teatro (poliacutetico ou natildeo) e da opccedilatildeo relacional dos fureros

A obra do La Fura se insere dentro de um contexto diferenciado de uma naccedilatildeo sem estado ou uma naccedilatildeo catalatilde dentro de um Estado espanhol que eacute constituiacutedo por 19 autonomias com presidentes eleitos e bandeiras proacuteprias Catalunya (Catalunha) Galicia (Galiza) e Euskadi (Paiacutes Basco) satildeo autonomias diferenciadas chamadas de autonomias histoacutericas Com liacutenguas e histoacuterias proacuteprias independentes e anteriores ao Estado espanhol essas naccedilotildees foram gradualmente incorporadas como regiotildees desde o casamento dos reis catoacutelicos Fernando V de Aragatildeo e Isabela I de Castela em 1469 Nos nossos dias permanece uma tensatildeo entre centralizaccedilatildeo e integraccedilatildeo agraves forccedilas do Estado espanhol e movimentos na direccedilatildeo de descentralizaccedilatildeo mais autonomia e ainda que cada vez mais deacutebil separatismo

A histoacuteria da Catalunha marca uma intensa resistecircncia cultural e um senso forte de identidade nacional que natildeo sucumbiram aos ataques de Felipe V no seacuteculo XVIII ou de Franco e sua ditadura (1936-1975) que tentaram em vatildeo promover um genociacutedio da identidade autonomia e direitos histoacutericos da Catalunha Desde a transiccedilatildeo democraacutetica iniciada em 1976 o processo de normalitzacioacute e ideacuteias nacionalistas chocam-se com o processo de normalizacioacuten que defende os interesses do Estado e a ideacuteia de uma identidade espanhola nacional Dentro do lsquonada eacute fixorsquo da chamada poacutes-modernidade da globalizaccedilatildeo e a nova cena geopoliacutetica da Europa haacute uma crise na definiccedilatildeo de identidade ndash crise que natildeo eacute soacute catalatilde espanhola ou europeacuteia mas ocidental e contemporacircnea nossa haacute tempos Na especificidade catalatilde da crise pessoas nascidas na Catalunha podem ainda ser vistas como uma lsquosegunda ou terceira geraccedilatildeo de imigrantesrsquo mesmo se eles falam catalatildeo que era fator diferenciador de uma identidade catalatilde lsquoCharnegorsquo eacute um termo utilizado por catalatildees para catalatildees com pai ou matildee de outra regiatildeo da Espanha Quando esses indiviacuteduos estatildeo na regiatildeo de seus pais eles satildeo lsquoos catalatildeesrsquo Assim eles podem ser estrangeiros dentro e fora da Catalunha

No bojo desse contexto de sutilezas rudemente sintetizado acima Antonio Saacutenchez Helen Graham e Jo Labanyi Josep-Anton Fernagravendez e Michael Keating satildeo alguns dos acadecircmicos europeus que reconhecem um crescimento da identidade catalatilde promovido pela transiccedilatildeo democraacutetica e a normalitzacioacute Keating frisa que ldquoo forte senso de identidade catalatilde que cresceu fortemente nos uacuteltimos vinte anos [] natildeo eacute uma identidade exclusiva mas uma identidade dupla como uma naccedilatildeo distinta dentro da Espanha e no niacutevel da elite com um forte compromisso com a Europardquo (1996 160) Keating tambeacutem sugere que ldquoa proporccedilatildeo daqueles que se identificam como puramente lsquoespanholrsquo caiu nitidamenterdquo (1996 130) Entretanto estudos no final da deacutecada de 1990 sobre uso de liacutengua e

11

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 11: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

sobre a questatildeo do teatro (poliacutetico ou natildeo) e da opccedilatildeo relacional dos fureros

A obra do La Fura se insere dentro de um contexto diferenciado de uma naccedilatildeo sem estado ou uma naccedilatildeo catalatilde dentro de um Estado espanhol que eacute constituiacutedo por 19 autonomias com presidentes eleitos e bandeiras proacuteprias Catalunya (Catalunha) Galicia (Galiza) e Euskadi (Paiacutes Basco) satildeo autonomias diferenciadas chamadas de autonomias histoacutericas Com liacutenguas e histoacuterias proacuteprias independentes e anteriores ao Estado espanhol essas naccedilotildees foram gradualmente incorporadas como regiotildees desde o casamento dos reis catoacutelicos Fernando V de Aragatildeo e Isabela I de Castela em 1469 Nos nossos dias permanece uma tensatildeo entre centralizaccedilatildeo e integraccedilatildeo agraves forccedilas do Estado espanhol e movimentos na direccedilatildeo de descentralizaccedilatildeo mais autonomia e ainda que cada vez mais deacutebil separatismo

A histoacuteria da Catalunha marca uma intensa resistecircncia cultural e um senso forte de identidade nacional que natildeo sucumbiram aos ataques de Felipe V no seacuteculo XVIII ou de Franco e sua ditadura (1936-1975) que tentaram em vatildeo promover um genociacutedio da identidade autonomia e direitos histoacutericos da Catalunha Desde a transiccedilatildeo democraacutetica iniciada em 1976 o processo de normalitzacioacute e ideacuteias nacionalistas chocam-se com o processo de normalizacioacuten que defende os interesses do Estado e a ideacuteia de uma identidade espanhola nacional Dentro do lsquonada eacute fixorsquo da chamada poacutes-modernidade da globalizaccedilatildeo e a nova cena geopoliacutetica da Europa haacute uma crise na definiccedilatildeo de identidade ndash crise que natildeo eacute soacute catalatilde espanhola ou europeacuteia mas ocidental e contemporacircnea nossa haacute tempos Na especificidade catalatilde da crise pessoas nascidas na Catalunha podem ainda ser vistas como uma lsquosegunda ou terceira geraccedilatildeo de imigrantesrsquo mesmo se eles falam catalatildeo que era fator diferenciador de uma identidade catalatilde lsquoCharnegorsquo eacute um termo utilizado por catalatildees para catalatildees com pai ou matildee de outra regiatildeo da Espanha Quando esses indiviacuteduos estatildeo na regiatildeo de seus pais eles satildeo lsquoos catalatildeesrsquo Assim eles podem ser estrangeiros dentro e fora da Catalunha

No bojo desse contexto de sutilezas rudemente sintetizado acima Antonio Saacutenchez Helen Graham e Jo Labanyi Josep-Anton Fernagravendez e Michael Keating satildeo alguns dos acadecircmicos europeus que reconhecem um crescimento da identidade catalatilde promovido pela transiccedilatildeo democraacutetica e a normalitzacioacute Keating frisa que ldquoo forte senso de identidade catalatilde que cresceu fortemente nos uacuteltimos vinte anos [] natildeo eacute uma identidade exclusiva mas uma identidade dupla como uma naccedilatildeo distinta dentro da Espanha e no niacutevel da elite com um forte compromisso com a Europardquo (1996 160) Keating tambeacutem sugere que ldquoa proporccedilatildeo daqueles que se identificam como puramente lsquoespanholrsquo caiu nitidamenterdquo (1996 130) Entretanto estudos no final da deacutecada de 1990 sobre uso de liacutengua e

11

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 12: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

identidades realizados pelo Centro de Investigaciones Socioloacutegicas espanhol indicam que ambas identidades simples isso eacute tanto a espanhola quanto a catalatilde decresceram Ambas vecircm perdendo terreno para uma identidade dual que natildeo deixa de manter uma relaccedilatildeo problemaacutetica e difusa

Dentro de suas transformaccedilotildees artiacutesticas e reaccedilotildees causadas a linguagem furera e muito especialmente sua caracteriacutestica relacional parecem replicar artisticamente a tensatildeo e conteuacutedo que permeiam o relacionamento entre Catalunha e Espanha9 Para avanccedilar na investigaccedilatildeo do assunto uma cena especiacutefica de Accions protoacutetipo da linguagem furera pode nos dar outras facetas do relacional na linguagem furera e no eixo catalatildeo-espanhol

A cena em questatildeo eacute a quinta accedilatildeo de Accions Na segunda accedilatildeo da peccedila quatro dos fureros saiacuteam do chatildeo abaixo da plateacuteia aparecendo com uma cobertura de barro cinza sobre seus corpos suas cabeccedilas raspadas e seus tapas-sexo que cobriam suas genitaacutelias Aquelas criaturas ou os lsquohomens de barrorsquo (como era tambeacutem chamada a segunda cena ou accedilatildeo) circulavam pela plateacuteia em um trecircmulo fraacutegil e apreensivo butoh caindo e se levantando com esforccedilo para depois expelir ou parir ovos pela boca que eram quebrados pela rudeza no manuseio Entre o medo e a curiosidade mas evitando o contato com os espectadores os homens de barro fogem no final da cena dentro de grandes toneacuteis de barro que rolam para fora da cena Abrindo clarotildees no puacuteblico eles se deslocam para partes escuras do espaccedilo cecircnico Blecaute Uma parede comeccedila a levar golpes e se inicia a terceira accedilatildeo Tijolos vatildeo caindo tochas no interior da parede vatildeo revelando dois indiviacuteduos com ternos pretos bem cortados gravatas pretas e camisas sociais brancas derrubando a parede Chamados de lsquofaquiresrsquo (que tambeacutem intitulava a cena) os dois urbanos contemporacircneos corriam pelo espaccedilo com machado e picareta ateacute um carro que os dois esquartejavam em poucos minutos com partes da carroceria sendo lanccediladas ou manejadas perigosamente perto da plateacuteia10 Um novo blecaute escondia os dois fureros e trazia quatro minutos de caos piroteacutecnico explodindo no espaccedilo

A quinta accedilatildeo que nos interessa aqui traz de volta os faquires pastoreando os toneacuteis de barro onde os homens de barro tinham se escondido e fugido em sua preacutevia apariccedilatildeo na segunda cena Os faquires

9 Natildeo estaacute sendo aqui levantada a hipoacutetese de que a proposta que mesclava atuantes e espectadores no mesmo espaccedilotempo testemunhado era uma decisatildeo esteacutetica planejada pelos fureros baseada na anaacutelise soacutecio-poliacutetica da realidade catalatilde Entrevistas com os diretores fundadores e colaboradores negaram essa ideacuteia Mas uma examinaccedilatildeo mais detalhada na caracteriacutestica relacional da linguagem furera juxtaposta ao contexto catalatildeo pode embasar essa hipoacutetese na minha tese como tento sintetizar aqui Veja Queiroz (2001)10 Bim Mason eacute um dos que chamam a atenccedilatildeo para a mestria dos fureros em lidar com o risco sem atentar contra o bem estar da plateacuteia (1992 122) Os quatro anos de rua foram importantes no desenvolvimento dessa mestria

12

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 13: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

forccedilam a saiacuteda dos homens de barro jogando baldes de tinta preta e azul Klein em seus toneacuteis e depois sobre seus corpos cambaleantes que tentavam inutilmente se defender do ataque e se esquivar do puacuteblico A tortura continuava com baldes de sopa de macarratildeo e de gratildeos de cevada transformando ainda mais os corpos tingidos dos homens de barro Os materiais orgacircnicos e plaacutesticos provocavam diferentes reaccedilotildees gestuais expressivas coreograacuteficas e improvisaccedilotildees nos atuantes e tambeacutem na plateacuteia O puacuteblico e os homens de barro tinham que correr durante toda a cena para reagir aos deslocamentos simultacircneos em volta e na direccedilatildeo deles ou para tentar encontrar um momento e um espaccedilo de seguranccedila fora do caos recorrente

A cena e a accedilatildeo comum da corrida transplantava espectadores espectadoras e homens de barro para um situaccedilatildeo idecircntica ambos grupos estavam sendo atacados e tinham que desarmados reagir para evitar a tinta e os materiais sendo jogados pelos faquires e seus recursos beacutelico-plaacutesticos Entatildeo os homens de barros que em sua primeira apariccedilatildeo seriam lsquooutrosrsquo em relaccedilatildeo agrave plateacuteia de repente tinham se tornado lsquoiguaisrsquo O lsquonovo igual ou mesmorsquo (os homens de barro) por outro lado tinha uma linguagem corporal e texturas de pele distintas O lsquonovo outrorsquo (os faquires) tinham roupas constituiccedilatildeo ou linguagem corporal semelhantes mas comportamento inimigo

A relaccedilatildeo normal em teatro ou seja entre digamos noacutes (espectadores plateacuteia mesmo idecircntico realidade vida) e nossos supostos opostos eles (atores palco outro diferente ficccedilatildeo arte) eacute estraccedilalhada Isso pode desorientar espectadores e estudiosos reproduzindo cenicamente em um espaccedilo acordado como teatro uma esquizofrenia que ocorre dentro da cultura contemporacircnea e que reverbera na Barcelona nativa dos fureros Antonio Saacutenchez e Helen Graham colocam que a esquizofrenia poacutes-moderna na Espanha

natildeo eacute mera afetaccedilatildeo poacutes-moderna mas uma tentativa de definir os efeitos desorientadores nas consciecircncias dos espanhoacuteis da velocidade e complexidade de mudanccedilas que tecircm alterado radicalmente sua sociedade nos uacuteltimos trinta anos [] Exibe toda a fragmentaccedilatildeo social e cultural da era poacutes-moderna [ A Espanha] eacute um mundo onde o arcaico e o moderno coexistem [] A transformaccedilatildeo da Espanha em uma sociedade consumista moderna nos uacuteltimos trinta anos tem significado a erosatildeo de formas tradicionais de solidariedade social e poliacutetica e a predominacircncia do dinheiro na hierarquia dos valores sociais (1996 407-14)

Assim a accedilatildeo cecircnica desorientava certezas de identidade e essa desorientaccedilatildeo eacute familiar aos catalatildees As cientistas sociais inglesas Sarah

13

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 14: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

Radcliff e Sallie Westwood nos lembram que lsquocomo um regime moderno de poder o estado utiliza uma seacuterie de mecanismos de normalizaccedilatildeo que acabam alojando-se no corpo atraveacutes do qual as relaccedilotildees de poder satildeo produzidas e canalizadasrdquo (1996 13-14) La Fura centra toda a accedilatildeo e movimentaccedilatildeo nos corpos dos atuantes e tambeacutem dos espectadores todos e todas participantes na construccedilatildeo e vivecircncia corporais que significam a proacutepria obra Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ldquoespaccedilo corporal e espaccedilo externo formam um sistema praacuteticordquo (1962 102) Esse corpo que eacute o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera A percepccedilatildeo do espaccedilo corporal em uma aacuterea dividida tem uma relaccedilatildeo direta tanto com o proacuteprio corpo de um quanto com os outros espaccedilos corporais Sendo assim a linguagem furera promove uma aceleraccedilatildeo fiacutesica e sensorial de todos envolvidos em um encontro ndash ou choque ndash universal de sistemas praacuteticos distintos questionando definiccedilotildees de identidade e alteridade ou diferenciaccedilotildees definitivas de igual e outro dependendo das accedilotildees cecircnicas de cada momento A proposta ambientalista do La Fura pode ser vista como um iacutendice metafoacuterico dos processos criativos dentro dos quais identidades satildeo forjadas cambiadas eou reinventadas ao inveacutes de prontamente catalogadas impostas fixadas ou rotuladas com fronteiras intransponiacuteveis lsquome atoryou espectadorrsquo ou lsquominha terrasua terrarsquo

A centralidade do corpo na construccedilatildeo da dramaturgia cecircnica o hiper-realismo na interpretaccedilatildeo a dimensatildeo a-teacutetica a intrusatildeo do Real ou as lsquopeccedilas paisagensrsquo satildeo outros pontos que aproximam o teatro conceituado como poacutes-dramaacutetico por Hans Thies-Lehmann de praacuteticas artisticamente interdisciplinares eou poeacuteticas teatrais contemporacircneas como as do La Fura dels Baus Tanto a companhia quanto o acadecircmico questionam taxonomias excludentes conformistas e defasadas Tanto os conceitos sintetizados por Lehmann quanto as cenas fureras brevemente abordadas aqui ou ainda a relaccedilatildeo espectador-atuante permitem excitantes abordagens de nossa contemporaneidade ou de nossa histoacuteria recente por meio do teatro alcanccedilando outras releituras novas informaccedilotildees e relaccedilotildees sobre a cena e o poacutes-modernismo modernismos nacionalismos identidades resistecircncia cultural novas tecnologias linguumliacutestica antropologia filosofia histoacuteria sociologia performance arte E mais inclusive recontar histoacuterias mal ditas Satildeo outras formas que podem nos ajudar a responder a demanda de Margaret Wilkerson na epiacutegrafe deste artigo ldquonatildeo podemos mais ensinar ou mesmo estudar teatro como faziacuteamos no passado [] Teremos que fazer mais do que nos clonarmos para preparar aqueles que possam ir aleacutem das nossas limitaccedilotildeesrdquo (1991 240)

Obras citadas

14

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 15: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

EYRE Richard ldquoRobert Lepage in discussion with Richard Eyrerdquo in Huxley Michael e Witts Noel eds The Twentieth-Century Performance Reader (Londres e Nova York Routledge 1996)GRAHAM Helen e SAacuteNCHEZ Antonio ldquoThe Politics of 1992rdquo in Graham Helen e Labanyi Jo Spanish Cultural Studies An Introduction (Oxford Oxford University Press 1995)GUINSBURG Jacoacute ldquoTexto e pretextordquo Sala Preta 11 2001 pp 87-8HIGGINS Dick A Dialetics of Centuries (Nova York e Barton Printed Editions 1978)KEATING Michael Nations against the State The New Politics of Nationalism in Quebec Catalonia and Scotland (Londres Macmillan 1996)LEHMANN Hans-Thies ldquoTeatro Poacutes-Dramaacutetico e Teatro Poliacuteticordquo Sala Preta 3 2003 pp 9-16LEPECKI Andreacute ldquoEmbracing the Stain Notes on the Time of Dancerdquo Performance Research 11 (1996) pp 103-107MASON Bim Street Theatre and Other Outdoors Performances (Londres e Nova York Routledge 1992)MAURI Albert e OLLEgrave Alex La Fura dels Baus 1979-2004 (Barcelona Electa 2004)MAZZUMI Brian ldquoIntroductionrdquo in Deleuze Gilles e Guattari Feacutelix A Thousand Plateaus Capitalism and Schizophrenia trad Brian Mazzumi (Londres Athlone Press 1988)MERLEAU-PONTY Maurice Phenomenology of Perception trad Colin Smith (Londres Routledge e Kegan Paul 1962)PHELAN Peggy Unmarked The Politics of Performance (Londres e Nova York Routledge 1993)QUEIROZ Fernando Antonio Pinheiro Villar de ldquoWill All the World Become a Stage The Big Opera Mundi de La Fura dels Bausrdquo Romance Quarterly 464 Outono 1999 pp 248-52________ ldquoArtistic Interdisciplinarity and La Fura dels Baus (1979-1989)rdquo tese de PhD natildeo publicada Universidade de Londres 2001RADCLIFF Sarah e WESTWOOD Sallie Remaking the Nation Place Identity and Politics in Latin America (Londres e Nova York Routledge 1996) SCHECHNER Richard Environmental Theatre (Nova York Hawthorn Books 1973)SCHIEFFELIN Edward ldquoProblematizing Performancerdquo in Hughes-Freeland Felicia ed Ritual Performance Media (Londres e Nova York Routledge 1998) pp 194-207SMITT Natalie Crohn ldquoBook Reviewsrdquo Modern Drama 251 (1982) pp 588-90

15

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16

Page 16: O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus · Web viewFernando Pinheiro Villar We can no longer teach or even study theatre as we have in the past. […] We will have to do more

TURNER Victor From Ritual to Theatre The Human Seriousness of Play (Nova York Performing Arts Journal Publications 1982)VILLAR Fernando Pinheiro ldquoInterdisciplinaridade artiacutestica e La Fura dels Baus outras dimensotildees em performancerdquo Anais do II Congresso Nacional da Associaccedilatildeo Brasileira de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo em Artes Cecircnicas Como pesquisamos (Salvador ABRACE 2001) volume 2 pp 833-8_______ ldquoRuas preacute-histoacutericas rotas virtuais e furamogravevilesrdquo in Telles Narciso e Carneiro Ana (orgs) Teatro de rua Olhares e perspectivas (Rio de Janeiro E-papers 2005)WESSENDORF Markus ldquoThe Postdramatic Theatre of Richard Maxwellrdquo www2hawaiiedu~wessendoMaxwellhtm acessado em 13 de maio de 2003WILES Timothy J The Theatre Event Modern Theories of Performance (Chicago The University of Chicago Press 1980)WILKERSON Margaret ldquoDemographics and the Academyrdquo in Case Sue-Ellen and Reinelt Janelle eds The Performance of Power Theatrical Discourse and Politics (Iowa City University of Iowa Press 1991) pp238-41

16