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    T

    OOOOO p e rp e rp e rp e rp e reg r i no da ma t r i aeg r i no da ma t r i aeg r i no da ma t r i aeg r i no da ma t r i aeg r i no da ma t r i a

    RRRRR omeo Castellucci

    Texto extrado de entrevista feita por Yan Ciret para LAcadmie Experimentale de Thtres de Paris,gentilmente cedida por Michelle Kokosowski e publicada em: Castellucci Romeo; Castellucci Claudia;Guidi Chiara. Epopea della polvere. Il teatro della Societs Raffaello Sanzio, 1992-1999.Amleto,Masoch,Orestea, Giulio Cesare,Genesi. Milano: Ubulibri, 2001, p. 270-7. Traduo de Narahan Dib.

    odo trabalho que assume uma qualidadeorgnica vai ao encontro de sua prpria eespecfica animalidade. Cada trabalhopode ser resumido de uma forma animal.

    , esta, a maneira Aristotlica deconsiderar o teatro. Uma boa parte do teatrodeve poder ser condensada em uma imagem,que a imagem de um organismo, de um ani-mal: com este esprito. Este animal uma pre-sena, e muito freqentemente um fantasma,

    que atravessa a matria, e, eu com ele. O pro-blema est em sermos peregrinos da matria.A matria a ltima realidade. a realidade fi-nal que tem como fronteira o respiro do neona-to e a carne do cadver. uma peregrinao quefazemos na matria. , portanto, um teatro deelementos. Um teatro elementar. Os elementosso entendidos como puros comunicveis,como a mnima comunicao possvel, e, istoque me interessa; comunicar o menos possvel.

    E o menor grau de comunicao possvel consis-te na superfcie da matria. Neste sentido, e porparadoxo, um teatro superficial feito de super-fcies, porque um teatro que busca a comoo.

    O prO prO prO prO problema teolgico do teatroblema teolgico do teatroblema teolgico do teatroblema teolgico do teatroblema teolgico do teatrooooo

    O teatro encerra sempre, no meu parecer, umproblema teolgico. Foi assim; no incio desdea fundao do teatro. O teatro atravessado poresse problema, o da presena de Deus, porqueo teatro nasce para ns ocidentais quando Deusmorre. evidente que o animal desempenhaum papel fundamental nesta relao entre o te-atro e a morte de Deus. No momento em que

    o animal desaparece da cena, nasce a tragdia.O gesto polmico que temos em relao tra-gdia tica o de recolocar em cena o animal,dando um passo atrs. Revolver o arado sobreos prprios passos, ver um animal em cena, sig-nifica ir ao encontro da raiz teolgica e crticado teatro.

    Um teatro pr-trgico significa, antes detudo, infantil. O teatro pr-trgico , aceleran-do essa imagem, a infncia. A infncia, compre-

    endida como in-fncia isto a condio dequem est fora da linguagem. Entretanto, se huma polmica em relao tragdia ela esta,sem duvida nenhuma, ligada ao papel do autor,

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    ao movimento da escritura e portanto a esta in-crvel pretenso de verticalidade sexuada. Exis-te uma tradio, completamente esquecida, can-celada, afastada do teatro ocidental que aquelado teatro pr-trgico. E foi removida porque um teatro justamente ligado matria e ao ter-ror da matria. , sem dvida, ligado muitomais a uma presena ou a uma potncia do g-nero feminino. Entender a ao do femininoseja (no mistrio da gestao da vida e na cust-dia dos mortos) um fato que concerne na reali-dade, tambm expresso artstica, que reen-contra neste termo feminino uma relao coma vida real que vai do nascimento sepultura.

    A arte no teatro pr-trgico tinha este vnculoprivilegiado com a me em relao ao corpo ge-rador e ao corpo recomposto pela sepultura. Sa-mos da esfera lingstica.

    O prO prO prO prO problema do incio e do fimoblema do incio e do fimoblema do incio e do fimoblema do incio e do fimoblema do incio e do fim

    Acredito que este seja um teatro no qual a dia-ltica no tem lugar. Mesmo os elementos ex-

    tremos do incio e do fim no so colocadosdialeticamente, mas so justapostos, penetran-do violentamente um no outro. S umacontraposio do tipo qumico pode desenca-dear reaes que fogem ao controle. Estas rea-es podem desencadear o acaso; a casualidade.

    A casualidade um elemento fundamental emqualquer problema da beleza. Deixar-se surpre-ender. Evidentemente o tema do Genesis1colo-ca em evidncia de modo completamente me-

    galomanaco o problema do incio e do fim, masse considerada em um nvel de simples leitura,percebemos que o espetculo Genesi consti-tudo de coisas finais.

    Quando elaboro um espetculo, um tra-balho, parto de um pequeno caderno de apon-tamentos que fao todos os dias. um exercciocotidiano. Anoto sobre estas folhas todas assensaes que uma jornada me oferece. Este ca-derno cheio de notas, de sensaes e de idias.Constitui a matria fundamental do trabalho aseguir. Folheando este caderno percebemos ime-diatamente que se trata de um caos, que umcaderno de refugos, qualquer coisa jogada nes-te caderno. Portanto muitas vezes me encontrona mesma posio genital de Deus: elaborar ocaos para poder faz-lo emergir, poder reunirestas possibilidades. De incio qualquer artista

    sabe que o palco vazio um mar aberto de pos-sibilidades e nisto, inclusive, consiste o terror dacena. No tanto pelo que me concerne oterror do vazio, mas o terror do cheio: tem mui-ta coisa, a quantidade nos submerge. A matria escura. Trata-se de entender o que comunicaeste caderno, o que comunica este caos, e relen-do muitas vezes este miservel caderno, entendoque afloram alguns traos que se tornam maisfortes do que outras coisas. Criam-se por parte-

    nognese prescindem da minha personalida-de linhas, constelaes... E no me resta fazeroutra coisa seno seguir esta constelao e atra-vs dela, vem ao meu encontro um nome. Com-preendo apenas baseado no que o caos, estecaos, neste caso, me aconselha, me transmite.

    O ttulo deve ter uma ressonncia, o ttu-lo de uma obra um problema musical. O ttu-lo deve ressoar exatamente como um bronze,deve ter a inflexo precisa. Pois, quando encon-

    tramos um nome nesse caso Genesi, ouAmleto,2Hnsel e Gretel3 se h um nome per-feito, justo exato, comea ento um outro tra-balho, uma outra fase do trabalho, que estrei-

    1 Genesi. From the museum of sleep. Direo: Romeo Casrellucci. Estria: Holland Festival, TTA Theatre,Amsterdam, 5 de maio de 1999.

    2 Amleto. La veemente esteriorit della morte di um mollusco. Direo: Romeo Castellucci. Estria: Cesena/ Itlia no Laboratori Meccanici Comandini, 10.01.1992 em seguida apresentado em garagens, dep-sitos, fbricas, institutos, escolas e igrejas.

    3 Hnsel e Gretel, Direo: Romeo Castellucci. Estria: Cesena/Itlia. Teatro Comandini, 21.04.1993.

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    tamente vinculada a um problema de ordem.Se no incio h a desordem, mais uma vez, vio-lentamente, os dois contrrios devem se con-frontar devem se interpenetrar sem dialtica.

    Alguma coisa deve morrer neste encontro. Algu-ma coisa deve acontecer. Deve morrer para po-dermos transformar, para podermos ir a um ou-tro lugar. No caso de Genesi, peguei a bblia (sli depois, mas), li muitas vezes, muitssimas ve-zes, segundo uma tcnica bem conhecida pelosferreiros, isto : martelar. Martelar, martelar,martelar o texto at expandi-lo, deve ser aque-cido com a martelao da leitura, e atravsdessa martelao se abrem frestas que, em uma

    primeira leitura, ou numa leitura especfica oumesmo numa leitura mais intelectual, no seabrem. S com a obsesso temos xito em abrirfrestas de outra forma incomunicveis.

    Neste ponto e, atravs dessas frestas, en-tra o meu caderno do lixo, da imundcie. Nessemomento h um encontro e um desencontro.Pois h ainda um trabalho paradoxal de filolo-gia clssica sobre o nome que foi escolhido, sejaem Genesi,Amletoou Giulio Cesare.4 um tra-

    balho sobre as razes. E fazemos um trabalhosobre as razes para podermos cort-las. No um trabalho de f, no existe nunca um traba-lho de f sobre estes textos, porque se deve co-nhecer melhor o prprio inimigo do que o pr-prio amigo. Do encontro destas duas dimensesnascem os problemas de ordem dramatrgica etcnica, que eu adoro. ainda, mais uma vez, amatria. O que existe, o que esmaga um palco,e quem pisoteia um palco, quanto pesa, como

    gira o pescoo, como eleva o cotovelo. Estas soas coisas que verdadeiramente me apaixonam,por serem um mergulho na matria.

    A respeito do incio e do fim, evidenteque no teatro h em si, ontologicamente, no seutecido profundo, este problema do incio e dofim, porque so interdependentes. O teatro, que a arte carnal por excelncia, por antonomsia,enquanto existe, finda simultaneamente. O te-

    atro enquanto nasce, contemporaneamente,morre ao mesmo tempo e vice-versa.

    A condio pattica da cena.A condio pattica da cena.A condio pattica da cena.A condio pattica da cena.A condio pattica da cena.

    Em todos os meus trabalhos existe uma formado ser vtima, mas, freqentemente uma ten-dncia para armar-se em vtima. Muitas vezeseste ser vtima, um vitimismo autodetermi-nado, porque a nica condio para existir so-bre o palco. Alm desta condio pattica, isto, de paixo, depathos, no possvel o teatro.Vitimismo, como no caso de Hamlet, ele tor-

    na-se uma vtima, cria seu personagem, e fazcom que todo mundo esteja contra ele, porque,de fato, assim. Mas a construo deste perso-nagem toda centrada na recriao desse viti-mismo, que no to evidente no incio. Eletem tudo; porque ento tem a necessidade de

    jogar-se contra as energias negativas do mundotodo? Porque naquele momento de sua existn-cia necessita do teatro. um nascimento. Temnecessidade de nascer, daquele modo, com

    aquela dor, com aquela paixo. H um elemen-to de passividade na paixo. Cada vtima mo-vida, seja qual for o modo, por todo o resto.Tambm no nosso trabalho nos damos contaque freqentemente existem elementos que cir-cundam o ator e o seu tipo de energia.

    Na trajetria de Genesi, Auschwitz re-presenta uma espcie de jardim do den. pos-svel? Um jardim no qual ressoa o silncio deDeus, mais do que A Palavra de Deus. As pala-

    vras no esto presentes, existe o silncio deDeus, portanto h um limbo no qual os corposse tornam fantasmas, e so duplamente sacrifi-cados por uma dimenso humana. Uma outracondio da vtima a da inocncia. Quandoum personagem deve sofrer, deve ser contem-poraneamente vtima e necessariamente ino-cente, de outro modo no se cria o processo decomoo, que diversamente no teria lugar.

    4 Giulio Cesare. Direo: Romeo Casrellucci. Estria: Prato/Itlia no Teatro Fabbriccone, 05.03.1997.

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    Auschwitz representa ainda um momento deirrepresentabilidade.

    SobrSobrSobrSobrSobre Artaud e Clinee Artaud e Clinee Artaud e Clinee Artaud e Clinee Artaud e Cline

    No vejo uma distino assim to ntida. ver-dade que existem contrastes muito fortes, mash conexes to fortes quanto. suficiente pen-sar no conceito que estes dois autores tem arespeito da palavra como queda. Falvamos exa-tamente da alquimia da transformao, datransmigrao de uma forma em outra. Eviden-temente h um aspecto do catolicismo, que in-

    flui e inerente a esta forma de teatro, que estvinculada ao momento da transformao docorpo de Cristo em fato eucarstico. O fatoeucarstico tambm um elemento que encon-tramos em Artaud; o fato de transformar umcorpo, de doar um corpo, de reduzi-lo em milpedaos, de liber-lo dos rgos; so todos ele-mentos que derivam de uma viso crist. Nistoest a idia de toda estranheza desta religio, queacho a mais estranha do planeta. uma religio

    que eu ainda no entendo, no compreendo. extraordinria em relao ao discurso que fa-zamos sobre a vtima, sobre a vtima inocente,sobre o sangue da vtima que transformado etransforma as coisas e tem capacidade de pene-trar no mundo. Portanto se o grande reino, daspossibilidades abertas, pertence a Deus, o fatoao invs de reunir e realizar essas possibilidadesque restaram em um mundo inconsistente, acapacidade de aniquil-los pertence, muito

    mais, ao peso de um corpo; ou a necessidade deque Deus se transforme em alguma coisa car-nal, para cair em pecado, nos arrastar, e atravsdos elementos materiais, carnais e nas suas con-

    jugaes , as possibilidades. Podemos tentar aspossibilidades. Podemos experimentar. E asconjunes destas possibilidades so um jogoqumico, alqumico.

    Essas combinaes podem dar lugar a ou-tros mundos no s possveis mas experiment-veis, e a prova de serem experimentais a cena.O teatro no qualquer coisa que se deve reco-

    nhecer. Eu vou ao teatro para reconhecerShakespeare naqueles estudos que eu fiz: no assim. uma viagem ao desconhecido, ao en-contro do desconhecido, no podemos calcularas conjunes dos elementos do possvel. A pe-dra final desta alquimia o tempo. Todas estastransformaes no devem fazer mais do quemodificar o tempo, que se encontrar em umoutro tempo. A viagem se a ocupao, a preo-cupao geogrfica a meta desta viagem geo-grfica o tempo. a experincia de um outrotempo, o teatro. Entendo-o como o transcorrerdo tempo, no me refiro a uma cronologia, masa qualidade do tempo.Os fenmenos como o

    autismo, o masoquismo, no so mais que sis-temas para repensar o mundo, repensar a lin-guagem e se recolocar no mundo. O problema tambm o renascimento, a necessidade defaz-lo, diante dos outros, fazer se ver, de assu-mir a pele do ator. Mas tambm o cristianismo,tem um sistema de persuaso.

    Stanislavski emStanislavski emStanislavski emStanislavski emStanislavski em Giulio CesarGiulio CesarGiulio CesarGiulio CesarGiulio Cesareeeee

    Havia em Giulio Cesare uma confuso deseja-da. Via-se neste personagem apresentado com...vskij, como o rabo de um animal que estfugindo e conseguimos ver somente a caudacom este final de nome: vskij, deixando aber-ta a possibilidade de um erro de reconstruo.No exatamente Stanislavski, no se sabe...Poderia ser Stanislavski... mas h tambm ou-tro mestre cujo nome termina comvskij. um

    pouco como a imagem da cabea de Velsquezque aparece furtivamente na tela As Meninas.Tambm em As Meninas h um sistema. Soesses sistemas que me interessam, mais que ascoisas, so os jogos de relao, as conjunes, asprecipitaes de uma coisa em outra. So estasconexes que formam um sistema complexo, eeste sistema o nico com a condio de anu-lar o elemento da realidade, eclips-lo ainda queseja por apenas uma hora. Mas preciso umagrande complexidade, repito, de um sistema.

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    E mesmo no interno deste sistema haviao jogo entre Stanislavski e a figura de Cristo.No final do espetculo Stanislavski, ou aquele,que por ele, assume para si,(porque esse o pre-o a pagar pelo qual; o masoquismo ou oautismo ou o cristianismo ou o fazer teatral sesujeitam) todo o peso da cena, necessariamen-te. Deve pagar pelo fato de ter estado aqui, so-bre este lugar ignominioso, vskij, em JulioCsar, paga como primeira pessoa o fato de terpensado esse sistema, de ter pensado a arte doator tambm, tomando o lugar de Bruto no fi-nal. Bruto no final hesita em suicidar-se, temmedo de atirar na prpria cabea e Stanislavski,

    o faz por ele, mostrando a linha de ao,5oempurra, pega a pistola e tomando seu lugar,mostra como se faz: dispara na prpria cabea.Sacrifica-se, cede a prpria representao e arepresentao encontra uma via de fuga de simesma. preciso, entretanto, um momentode descarga e de contradio no interno deuma representao.

    Devemos poder descarregar, muito oupouco, no final de cada espetculo. Na Genesi

    h aquele crculo negro,6 um buraco de des-carga, no qual tudo conflui; toda a representa-o descarregada, liberta de seu prprio peso.

    O texto, o l ivrO texto, o l ivrO texto, o l ivrO texto, o l ivrO texto, o l ivro, o teatro, o teatro, o teatro, o teatro, o teatrooooo

    O livro, tambm nesse nosso trabalho, foi sem-pre visto como uma coisa, um paraleleppedode papel; esta a primeira realidade do livro.

    Lembro que o primeiro interesse que tive peloslivros foi a respeito do teatro, ao reconsiderar amitologia mesopotmica.

    Nessa regio em que os livros foram in-ventados, mas logo aps a esta inveno, surgiuo problema da conservao dos mesmos, da sua

    estocagem. A biblioteca mais antiga do mundoera a de Elam; era organizada exatamente comoos cemitrios, essa relao original do livro como cadver era para mim o essencial. O livro um cadver. uma letra morta, de qualquermodo e sempre. Hamlet torna-se um nome eum corpo na cena, no um livro. uma men-talidade supersticiosa aquela de confiar-se nabondade de um livro, na bondade de um clssi-co. Se existe uma escritura, existe, sim, mas como um cdigo que no se pode fazer crer aosoutros. alguma coisa que permanece atrs:ento no escritura. Ns no podemos dizerque a alquimia est vinculada escritura. Certa-

    mente no se v. O que conta so os resultados.

    Genesis visto pelos olhos de LciferGenesis visto pelos olhos de LciferGenesis visto pelos olhos de LciferGenesis visto pelos olhos de LciferGenesis visto pelos olhos de Lcifer

    Em Genesino havia o problema da considera-o de um texto como o de Shakespeare ou desquilo, mas das prprias palavras de Deus, por-tanto se tratava de um gesto de subverso se-mntica, utilizar as palavras que freqentemen-

    te ressoam nos templos ou nas igrejas e faz-lasressoar num teatro. E, vice-versa, o Genesis mes-mo poderia parecer a preparao de uma cena.Ora, que significado h em repetir estas pala-vras, que so as palavras das primeiras pginasdo Gnesis, que so as mesmas coisas, o mesmomundo, so as palavras que fizeram acontecer omundo, e tambm este mesmo palco? A nicapessoa que poderia suportar o peso dessas pala-vras de origem aquele que de incio falou em

    forma dupla, aquele que de incio assumiu umcostume: Lcifer. Lcifer, na histria do homemaparece sempre atravs de um disfarce, assumin-do a palavra de um outro. O fez desde o incio,assumindo a pele da serpente. Duplicou pelaprimeira vez a palavra de um outro dizendo:

    5 Famosa espressione di Konstantin Stanislavskij, cf. Il lavoro dellattore. Bari: Laterza, 1982.6 All fine Del terzo atto della Genesi, sorge da terra um disco Nero Del dimetro di due metri Che,

    fissandosi nel perfetto cenro dellinquadratura scenica, ostruisce la visione.

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    verdade que Deus disse..., dando lugar auma forma de mimese, de duplicao da lingua-gem. o primeiro a trabalhar com a superabun-dncia da linguagem; numa palavra, desfrutarcomo energia o teatro, dando tambm origema arte.

    A arte encontra nesse ncleo uma relaoprivilegiada com o mal. O mal o aspecto ex-tremo da liberdade que Deus concedeu a todosos seres. Lcifer vive na condio da prpriacondenao que , justamente, viver na regiodo no ser. Lcifer, para poder tornar a ser, constrangido porque constrangido a assu-mir a pele de um outro, a voz de um outro. H

    a necessidade da arte, quando no h mais oparaso. Neste sentido, a nica pessoa que po-deria suportar o fato de rir das palavras de Deuse, mais ainda, da linguagem original, o hebraico,era Lcifer. Esta relao est presente em umapequena mesa, no estdio de Madame Curie,na qual h uma caixinha que contm uma pe-quena pedra de radium. O radium , entre ou-tras coisas, uma pedra que emana luz prpria,portanto , de maneira misteriosa prxima da

    etimologia da palavra Lcifer.A luz do radium uma luz da qual, aindano se conhece a substncia, mas uma luz quecertamente penetra os ossos. H alguma coisamaligna, mas tambm a luz do conhecimen-to. tambm o jogo da arte, este expr-se con-tinuamente at o fim.

    Corrupo e rCorrupo e rCorrupo e rCorrupo e rCorrupo e retricaetricaetricaetricaetrica

    Parto do fato de que a arte no pura. Nin-gum conseguir jamais me convencer de que aarte liberta o homem. A soteriologia da arte pa-rece-me uma mentira de mercador. A arte, paramim, assume, deve assumir, a prpria condiode corrupo. A arte corrupta, mas no umapalavra como esta, simplesmente negativa, aocontrrio toda beleza da arte consiste na suacorrupo, na sua conscincia da corrupo.

    A palavra verdadeira, a palavra potica, no tea-

    tro no tem sentido. No tem sentido, porquea linguagem, a palavra, sempre exterior,no h mais aderncia em relao a meu corpo.No uma experincia feliz, o falar nunca foi.

    As palavras exprimem sempre uma separao,uma frieza. Enquanto falo, no sou eu. No omeu lugar, no o conheo. No estou l quan-do falo, entretanto adoto a linguagem em suapletora, em sua superabundncia e, portanto, naretrica. A retrica toma para si, consciente-mente, a prpria corrupo, e de maneira pre-

    judicial, usa a palavra como meio de reformu-lao de uma linguagem.

    como vestir um figurino: mais uma vez

    um elemento do teatro. Mais ainda, se arma, uma palavra armada. armada por um siste-ma. Existem figuras retricas que correspondema projteis, a munies muito precisas. GiulioCesare desencadeou o problema de trabalharnestes termos. Sobre a palavra e sobre a palavraarmada. Mas o que eu queria era contrastar, deum lado, a linguagem retrica que est longeda nossa experincia, e por outro lado, a con-cretude e a veracidade do corpo de um ator.

    Qualquer ator no palco est na posio de serportador dessa contradio, de estar ali, em car-ne e osso, sofrer fisicamente, suportar o peso doolhar dos outros, porque o olhar dos outros, vosasseguro, to pesado quanto uma martelada.Encontra-se na posio de ter que suportar opeso da cena, o olhar duro e concreto dos es-pectadores, e mais ainda, sua prpria realidade,e contemporaneamente, ser qualquer um queage de maneira corrupta.

    Uma imagem que pode condensar a du-plicidade deste comportamento , por exemplo,quando um ator no incio, insere em uma nari-na um endoscpio e faz uma viagem dentro dacarne, dentro de uma intimidade, que de outramaneira no seria possvel ver. Claro que h umdiscurso Stanislavskiano, e torna-se provavel-mente uma pardia da via interior e da viaexterna (vocs sabem que ele separou o ator emduas vias: a da experincia psicolgica emotivainterior e a dos caracteres exteriores).7

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    A via interior realiza-se fsicamente, lite-ralmente; uma viagem ao interior do ator, por-tanto, vemos as mucosas que produzem a pala-vra. Isto um escndalo: ver quase uma origempornogrfica das palavras, como se a garganta doator tivesse o mesmo tipo de problemtica quese tem em relao ao pudor dos prprios genitais.

    igualmente simptico e emblemtico porque um emblema no sentido retrico, isto uma figura com pregas, uma armadilha ver o sexo feminino na garganta de um homem. uma ironia, em relao tenso masculinamachista fortemente sexuada de todo o GiulioCesare, aonde h somente homens polticos

    ver, na garganta do ator principal, este elemen-to, o genital feminino, porque as cordas vocaisque vamos examinar, remetem imediatamente,por associao de idias, vagina.

    Vemos as cordas vocais palpitarem numacontrao muscular aquilo que depois numsegundo momento consideraremos como dis-curso e como palavra mas, antes de tudo h acarne, a contrao muscular. A histria de quea palavra um sopro, mais uma vez mentira.

    A palavra tem o mesmo destino de um corpo, apresena, mas tambm a maravilha da carne.

    Assim vocs vem bem como est distante o li-vro! Est muito distante o livro. Desde que abrecortina, a imagem tradicional do ator a do cor-po fsico visto exteriormente, vem do avessocomo uma meia: a primeira imagem que se temde um ator a interna e no a externa. Enfiar

    um endoscpio em uma narina um gesto re-trico, mas, como contradio, mostra a reali-dade mais comovente da carne, permanece, en-tretanto, um gesto retrico.

    7 Stanislavski, Il lavoro dellattore, op. cit.