O PENSAMENTO DE MERLEAU-PONTY NO ENSINO DO

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O Pensamento de Merleau-Ponty no Ensino do Cuidar- Cuidando em Enfermagem The Thought of Merleau-Ponty in Care - Caring Nursing Education Fernandes, Henriqueta Ilda V. M. – ESEP, Portugal Sousa, Francisca G. M. – UFM/DE, Brasil Figueiredo, Maria Céu B. – ESEP, Portugal Resumo Os cuidados de enfermagem encontram-se centrados no corpo doente, caracterizando-se pela fragmentação, pela divisão de tarefas e por relações superficiais e impessoais. Esta condição relega e anula o sujeito na sua dimensão humana. A necessidade de reformar o cuidar-cuidado em enfermagem e recriar o seu ensino levou-nos a reflexões baseadas na filosofia da percepção de Maurice Merleau-Ponty no e para, o cuidado no ensinar e aprender enfermagem. Elaboramos um estudo reflexivo e filosófico para enriquecer e clarificar a natureza e o conteúdo do cuidar em enfermagem e alcançar a sensibilidade para a prática pedagógica do cuidar na complexidade humana. Para a sua compreensão realizamos a leitura das suas obras e encontros reflexivos das quais emergiu a construção de relações e interacções com o quotidiano pedagógico. A noção do corpo associou-se à percepção, à linguagem, à experiência vivida, ao sensível e ao invisível. A intersubjectividade emergiu da relação entre o mundo natural e o humano, a percepção envolveu a co-existência e apreensão do outro e a sensibilidade surge no contacto directo com e pelo outro. A dimensão física, emocional, espiritual, social, histórica e cultural constituem a 1

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intersubjectividade e pela comunicação compreendemos o outro e devemos procurar a Nursing care is centred in sick bodies, characterizing itself for splitting, dividing tasks and superficial and impersonal relations. In this way, patients are not well cared for as human beings. It is necessary to recreate and to remodel the care in nursing. The reflexivos das quais emergiu a construção de relações e interacções com o quotidiano

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O Pensamento de Merleau-Ponty no Ensino do Cuidar-Cuidando em

EnfermagemThe Thought of Merleau-Ponty in Care - Caring Nursing Education

Fernandes, Henriqueta Ilda V. M. – ESEP, Portugal

Sousa, Francisca G. M. – UFM/DE, Brasil

Figueiredo, Maria Céu B. – ESEP, Portugal

Resumo

Os cuidados de enfermagem encontram-se centrados no corpo doente, caracterizando-se

pela fragmentação, pela divisão de tarefas e por relações superficiais e impessoais. Esta

condição relega e anula o sujeito na sua dimensão humana. A necessidade de reformar o cuidar-

cuidado em enfermagem e recriar o seu ensino levou-nos a reflexões baseadas na filosofia da

percepção de Maurice Merleau-Ponty no e para, o cuidado no ensinar e aprender enfermagem.

Elaboramos um estudo reflexivo e filosófico para enriquecer e clarificar a natureza e o conteúdo

do cuidar em enfermagem e alcançar a sensibilidade para a prática pedagógica do cuidar na

complexidade humana. Para a sua compreensão realizamos a leitura das suas obras e encontros

reflexivos das quais emergiu a construção de relações e interacções com o quotidiano

pedagógico. A noção do corpo associou-se à percepção, à linguagem, à experiência vivida, ao

sensível e ao invisível. A intersubjectividade emergiu da relação entre o mundo natural e o

humano, a percepção envolveu a co-existência e apreensão do outro e a sensibilidade surge no

contacto directo com e pelo outro. A dimensão física, emocional, espiritual, social, histórica e

cultural constituem a corporeidade que são indissociáveis. Na percepção enriquecida pela

intersubjectividade e pela comunicação compreendemos o outro e devemos procurar a

compreensão da complexidade humana dos estudantes de enfermagem dirigindo a prática

pedagógica na óptica do cuidar-cuidado em enfermagem.

Palavras-chave: Enfermagem; Humanização; Ensinar; Aprender; Cuidar.

Abstract

Nursing care is centred in sick bodies, characterizing itself for splitting, dividing

tasks and superficial and impersonal relations. In this way, patients are not well cared

for as human beings. It is necessary to recreate and to remodel the care in nursing. The

nurse reflections had become stimulants of questioning the contribution of the

perception philosophy and for the care in teaching and learning in nursing. We elaborate

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a reflective study and philosophical supported in the thought of Maurice Merleau-Ponty.

We became sensitive to teach caretaking in the complexity of the human being in order

to understand and to apprehend a pedagogical practice. After reading his books it was

followed by reflective meetings, where the construction relations with our experiences

in the day by day emerged. The body appeared mainly associated to the perception,

language, lived experiences, sensitive and invisible. The intersubjectivity emerged of

the relation between natural world and human beings, while the perception involved the

coexistence and apprehension of other and sensitivity in direct contact with other and

for the other. The physical, emotional, cultural and spiritual dimensions constitute the

corporeity that is inseparable in the perception enriched by intersubjectivity and the

communication we understand the other. We must look for understanding the students’

complexity as a human being directing the pedagogical practice to teach care/caring in

nursing.

Key words: Nursing; Humanization; Learning; Teaching; Caring.

Introdução

O pensamento de Maurice Merleau-Ponty no ensino do cuidar em enfermagem

resulta da contribuição da filosofia da percepção no e para o cuidado no aprender a ser

enfermeiro. Elaboramos um estudo reflexivo e filosófico com a finalidade de enriquecer

e clarificar a natureza e o conteúdo do cuidar em enfermagem, alcançar a sensibilidade

para ensinar a cuidar na complexidade do ser humano e ainda, compreender e apreender

uma prática pedagógica do cuidar-cuidado em enfermagem. Para tal, realizamos a

leitura das obras de Maurice Merleau-Ponty e encontros reflexivos dos quais emergiu a

construção de relações e interacções do pensamento do filósofo com as nossas vivências

no quotidiano do ensinar a cuidar em enfermagem baseada nos pressupostos: carne-

corpo vivido; corporeidade; alteridade e dualidade: Eu-Outro e sujeito/objecto e o

mundo percebido-mundo vivido.

A motivação para a realização deste estudo envolve quatro propósitos relacionados

com o olhar sobre os conceitos de professor-reflexivo e de ensinar a cuidar, as

mudanças do exercício profissional e do sistema educativo de enfermagem.

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Na actividade profissional procuramos ser “professores-reflexivos” dada a

complexidade da prática pedagógica, que segundo Nóvoa (1991) e na actualidade, é

acrescida da complexidade tecnológica e social. A última, muitas vezes questionadora

do papel da escola, que a própria sociedade tem na sua definição com clareza e que

sempre se situou na produção e promoção da cidadania nacional e social.

Acrescentamos a incerteza de fins e objectivos, uma característica dos nossos tempos.

Reflectir sobre a prática é inerente à própria profissão, porém, sentimos necessidade de

criar um conjunto de lógicas de trabalho em rede para partilharmos as inquietações da

docência. Nesta perspectiva pensamos contribuir com a nossa experiência individual

para a análise em rede da formação em enfermagem.

Ensinar a cuidar envolve duas componentes o talento e a oportunidade, que se

interrelacionam. O talento é multifacetado, em função da multiplas formas de conhecer

e de construir significados tornando emergente para o professor o domínio na prática

pedagógica dos sistemas simbólicos e do registo da linguagem. O estudante pensa e

produz significados diferentes de acordo com a intimidade do contexto aonde ocorre o

aprender a cuidar e ainda, com o seu percurso histórico, social e político, articulado ao

seu contexto familiar, ao meio ambiente e à sociedade de pertença, o que lhe permite

dar diferentes configurações aos modos de pensar e de registar o saber. Do aluno

espera-se que seja, simultaneamente enfermeiro de cuidados gerais e cidadão. Este

cenário, evidencia a oportunidade de articular as acções pedagógicas como elemento

produtor de um saber em rede que se traduz no aluno na sua capacidade de alcançar a

autonomia e a emancipação para poder cuidar de si, dos outros, das famílias e do seu

futuro profissional com competência.

O talento e a oportunidade sustentam o desenvolvimento de duas competências do

professor: a organização das aprendizagens no interior da sala de aula que a extrapolam

pela utilização dos recursos disponíveis (tecnologia informática, realidades virtuais) e a

compreensão do saber, tornando-o capaz de o (re)organizar, (re)elaborar e de o transpor

- transposição didáctica - para o acto pedagógico em sala de aula (grupo de estudantes).

E desta forma, o professor pode contribuir para a construção da competência

solicitada, ao estudante do Curso de Licenciatura em Enfermagem (CLE), no final da

formação académica que é a de ser capaz de gerir situações humanas complexas e

instáveis (Le Boterf 1997; 2005), numa sociedade em que as competências tendem a

deixar o estatuto de “recursos” ao serviço das instituições, no caso da saúde, como

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produtor de custos e encargos e para passarem a ser geradores de “valor”,

correspondendo ao “capital humano”.

Pelas transformações implícitas no ensino de enfermagem decorrentes do exercício

da profissão, que remonta, em Portugal, aos finais do século XIX, mas apenas a partir

da segunda metade do século XX, as modificações operadas no cuidar se traduziram no

desenvolvimento da prática de cuidado cada vez mais complexa, diferenciada e exigente

ao nível de formação académica e profissional. Reconhecido pelo Governo Português,

ao aprovar em 1998 a criação da Ordem dos Enfermeiros (OE), enquanto associação

profissional de direito público, com poderes no que concerne à regulamentação e

controlo do exercício profissional, designadamente nos seus aspectos deontológicos e

disciplinares. Deste ponto de vista, o enfermeiro enquanto sujeito e cidadão tem:

Valores universais a cumprir na relação profissional como a igualdade, a

liberdade responsável com capacidade de escolha; a verdade, a justiça; o altruísmo e a

solidariedade, a competência e o aperfeiçoamento profissional;

Princípios orientadores das suas actividades, como a responsabilidade

inerente ao papel assumido perante a sociedade; o respeito pelos direitos humanos na

relação com os clientes;

Deveres deontológicos, como responsabilizar-se pela tomada de decisão,

proteger e defender a pessoa humana; ser solidário com a comunidade;

Valores humanos como cuidar da pessoa sem qualquer discriminação

económica, social, política, étnica, ideológica ou religiosa, salvaguarda dos direitos das

crianças/adolescentes, da pessoa idosa, com deficiência e abster-se de juízos de valor

sobre o comportamento da pessoa assistida.

Da conjuntura das competências definidas pela OE, em 2002, o estudante, futuro

enfermeiro de cuidados gerais, tem que no final do CLE ter adquirido a competência

mínima nos domínios da prática profissional, ética e legal; na prestação e gestão de

cuidados e desenvolvimento profissional.

Da aplicação da lógica do Processo de Bolonha no Ensino Superior em Portugal,

cuja concepção dos cursos se formaliza no D.L. n.º 74/2006 na transição de um sistema

de ensino baseado na transmissão de conhecimentos para um outro assente no

desenvolvimento de competências pelos estudantes. O sistema de créditos curriculares

constitui a base para a introdução dessa mudança nos paradigmas de formação,

centrando-a na globalidade da actividade, nas competências a adquirir e projectando-a

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para as etapas da vida adulta. Processo que se liga com a evolução do conhecimento e

dos interesses individuais e colectivos; a eliminação dos obstáculos, ainda existentes à

total mobilidade de estudantes (estagiários e diplomados) e professores (investigadores

e administradores).

Desta forma, torna-se visível a missão do ensino de enfermagem, na sua dimensão

bidireccional, pois assegura a transição das exigências da sociedade à organização

educativa traduzida nos resultados da reflexão e da prática pedagógica que essa

organização transmite à sociedade pelos seus estudantes. Tem, também, um carácter

dinâmico e modificador por estabelecer uma relação dialéctica entre a escola e a

sociedade e a reflexão e a prática pedagógica.

Espera-se do ensinar a cuidar em enfermagem o proporcionar de uma mais vasta e

aprofundada consciência da Vida, o que nos recorda os pilares da educação propostos

por Delors (1996): aprender a conhecer (instrumentos da compreensão), aprender a

fazer (agir sobre o meio), aprender a viver juntos (participar e cooperar) e aprender a ser

(conhecer, fazer, viver junto).

O “Corpo” na História do Cuidar em Enfermagem

A primeira questão objecto da nossa reflexão foi a história dos cuidados de

enfermagem, na sua evolução identificamos a noção do corpo como fio condutor e na

qual se incorporam os pressupostos de Merleau-Ponty (2003, 2004, 2006).

Desde as civilizações mais remotas os saberes sobre o corpo, que designamos por

“ferido” encontram-se expressos em diversos papiros em forma de indicações sobre

cuidados à pele, cabelos, dentes e língua; remédios caseiros contra as pestes;

considerações sobre a vida, a saúde e a doença; uso de azeite de castor, de rícino e

outros. Entre os povos da Antiguidade, distinguimos os egípcios por possuírem, o que

nos dias de hoje se poderia chamar “cultura do cuidar”, pois os sábios recomendavam:

amabilidade extrema para com os indivíduos com deficiências físicas e mentais (e.g.

cegos, coxos, mancos e os loucos); atitudes baseadas na ternura que deveriam ter na

presença de grávidas, recém-nascidos e crianças. Porém, os cuidados egípcios provêm

da descoberta do “corpo ferido”, isto é, na descoberta do corpo por dentro, a sua

exploração, levando ao desenvolvimento de técnicas e tratamentos (Donahue, 1985;

Collière, 1989; Conesa, 1995).

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Com o Cristianismo, a prática de cuidar passa a basear-se no conceito de ajuda como

vocação, cristã e caritativa, na qual as necessidades espirituais se sobrepõem às físicas,

às psíquicas e às sociais. O seu exercício estava entregue às ordens religiosas cuja

obrigação de voto de castidade influenciou e modificou o simbolismo do corpo

influenciando a evolução da profissão de enfermagem. A doença surge como

consequência do Divino em função do pecado, sendo prioritária a salvação da alma

mediante o sacrifício. O corpo transforma-se no instrumento de salvação para os

cuidadores e para os que necessitavam de cuidados (Donahue, 1985; Collière, 1989;

Conesa, 1995; Maia & Vaghetti, 2008).

A revolução industrial trouxe mudanças profundas nos espaços económicos e sociais

como o êxodo rural, a urbanização, a industrialização, a independência da mulher, a

especialização do trabalho, a massificação da produção, a diferenciação social

(capitalismo/operariado). E com ela surgiu a noção de “corpo doente” fruto do

desenvolvimento intelectual e tecnológico (e.g. a descoberta das bactérias, a circulação

sanguínea, a fisiologia, as técnicas cirúrgicas, os meios de propagação da infecção).

Estas mudanças interdependentes entre si, fruto de processos revolucionários e de

resistência, ecoaram adquirindo velocidades e reflexos distintos nas diferentes regiões,

países e culturas levando-nos para o caminho do desconhecimento das suas

consequências (Torres, 2003).

Olhar, o panorama da saúde, neste período histórico permite perceber a ausência de

estatuto social da enfermagem, como profissão, fundamentada em:

O progresso do método científico e da investigação nas áreas da saúde

proporciona no âmbito das ciências médicas a sua visibilidade social como um grupo de

elite;

A laicização do pessoal hospitalar, por expulsão das ordens religiosas,

faz-se pela contratação inicial de indivíduos sem formação, que a foram adquirindo pela

necessidade crescente dos médicos terem “auxiliares” das suas actividades; o

progressivo abandono do hospital da sua função protectora e caritativa (doentes pobres,

abandonados, “inválidos”);

E, por fim, o convergir da sua atenção para a investigação da doença e

seu tratamento, que se organizou por especialidades, pelo trabalho dividido por tarefas e

centrado na noção de “corpo doente” (Donahue, 1985; Collière, 1989; Conesa, 1995;

Graça & Henriques, 2000; Maia & Vaghetti, 2008).

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Nesta perspectiva a saúde é a ausência de doença, independente do ambiente, da

sociedade, da cultura; a origem do “corpo doente” é de causa única que é necessário

tratar e curar, para garantir a “força” de trabalho na produção industrial que então se

afirmava.

Esta noção de “corpo doente” evolui para outra concepção o “corpo pessoa”, isto é

para um todo formado por partes, mas interrelacionadas com componentes bio-psico-

sociais, culturais e espirituais que o influenciam. A saúde e a doença são duas entidades

distintas coexistentes e interactivas no “corpo pessoa”. O cuidar visa a manutenção da

saúde da pessoa, significando “actuar com” ela, satisfazendo as necessidades alteradas,

ajudando-a a escolher comportamentos de saúde que se adaptam ao funcionamento

pessoal e interpessoal mais harmonioso.

A partir dos anos setenta, inicia-se o processo de globalização com a abertura das

fronteiras à cultura, à economia, à política e à influência recíproca entre o ocidente e o

oriente, conduzido por movimentos demográficos, económicos e tecnológicos. Esta

movimentação transforma os países, encurta as distâncias e favorece a proliferação da

informação e recria o contexto da prática de cuidar. Neste âmbito surge a noção de

“corpo mundo” por se basear em pressupostos de acessibilidade, de universalidade do

sujeito enquanto indivíduo e/ou grupo (e.g. família, colectividades sociais) e de co-

responsabilidade no processo de saúde, considerado “bem” universal (Ribeiro, 1995;

Kérouac, 1996).

A ênfase é o “corpo pessoa” como ser único dentro de múltiplas dimensões e

unidade indissociável do universo, em relação contínua com o ambiente interior e/ou

exterior a ela mesma. A saúde tem valor individual e é uma experiência única; engloba a

unidade ser humano - ambiente, o bem-estar e a realização do potencial do

desenvolvimento da pessoa. A doença torna-se um significante no processo de mudança

individual. Intervir significa para o enfermeiro é “estar com” a pessoa e com ela

constituir parceria no cuidar, com respeito mútuo, em que ambos acreditam na

oportunidade de desenvolver o potencial individual.

O “Corpo” no Ensino de Enfermagem

A análise histórica do cuidar em enfermagem baseada na evolução conceptual do

“corpo” direccionou o nosso pensamento para outra questão, a compreensão da sua

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relação com os conceitos pedagógicos que sustentaram ao longo dos tempos o ensinar e

aprender a cuidar em enfermagem.

A noção de “corpo ferido” e de “salvação” surgem numa época em que o seu ensino

não era institucionalizado e organizado, mas com regulação social e estabelecedora de

normas de conduta pelo que o seu ensino era veiculado pela palavra (mulheres, criados)

e para os intelectuais da época pela escrita, mas sem qualquer relação com a profissão

de enfermagem. Esta só adquire essa designação nos finais do século XIX, com o

contributo de Florence Nigthingale, movimento iniciado em Inglaterra, e em Portugal a

primeira escola de enfermagem remonta, também, a essa época (Collière, 1989; Conesa,

1995; Kérouac, 1996).

Ensinar a ser enfermeiro, sustentado na noção do “corpo doente” relaciona-se com o

adquirir do seu saber teórico e prático circunscrito às disciplinas de anatomia, fisiologia,

farmacologia baseado num conjunto de procedimentos e do desenvolvimento de actos

reflexos para tratar sinais e sintomas, sem que o significado destes fosse

contextualizado, num contexto inicial de dependência dos médicos e dos princípios

morais - bondade, caridade, obediência, vocação – dos quais progressivamente a

enfermagem se foi desvinculando até à aquisição de um estatuto profissional

reconhecido social e politicamente (Collière, 1989; Conesa, 1995; Ribeiro, 1995;

Kérouac, 1996).

A transmissão desse saber baseou-se nos princípios da pedagogia tradicional

oriundos do idealismo, que assumem os métodos da escolástica medieval, perceptíveis

em muitas das práticas pedagógicas, que ainda hoje parecem subsistir no ensino.

Também, se incluem neste grupo os comportamentalistas, que visam “formar o sujeito”

segundo o desejo do professor; ou as originárias do pragmatismo preocupadas

essencialmente com o resultado final do ensinar de que é exemplo a reprodução do

saber. Para os seus defensores a personalidade do estudante resulta da influência de

factores externos a ele: o professor, a família, o meio social, o grupo de pertença, entre

outros. O aluno é um sujeito com um papel passivo, assimilador e reprodutor das

influências (positivas e/ou negativas), pelo que o “ensino” deve seleccionar as de

carácter favorecedor e organizar todos os agentes socializadores para a acção sobre o

estudante, esperando-se um resultado positivo e mensurável quanto ao seu nível de

resposta face às influências recebidas (Ozmon & Craver, 2004).

Ao focalizarmo-nos na realidade portuguesa nos anos 80, altura em que o ensino de

enfermagem se desenraizava do modelo biomédico, para o qual a pessoa era um ser

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físico, sendo desvalorizadas outras dimensões da natureza humana. A noção do “corpo

doente” transmitia-se de forma segmentada, de factores individuais (e.g. procedimentos)

e de relação simples entre itens (e.g. utilização de instrumentos e materiais). A sua

organização, baseada nos princípios behavioristas era mecanicista e ritualista (e.g.

avaliar a tensão arterial e os locais adequados para o fazer) e eram ou antecipadas do

ensinar directivo (e.g. as regras e suas excepções, as ordens, o cumprimento das

instruções) ou apreendidas em simultâneo (Bevis & Watson, 2005).

Estava-se, portanto, num período de transição, para o ensino da noção do “corpo

pessoa” e posteriormente para a do “corpo mundo” correspondendo respectivamente ao

período áureo da afirmação e consolidação da identidade profissional de enfermagem,

em Portugal. As transições ocorreram num curto período de tempo de uma forma

avassaladora da qual destacamos alguma da regulamentação, que surgiu nos últimos 20

anos:

No final da década de 80, a integração no Sistema Educativo Nacional

do ensino de enfermagem no Ensino Superior Politécnico;

Na década dos anos 90, as alterações da carreira de Enfermagem, na

qual os enfermeiros docentes transitam para a dupla tutela dos Ministério de Educação e

da Saúde, a criação do regulamento do exercício profissional dos enfermeiros e da

Ordem dos enfermeiros, de condições de acesso ao grau de licenciado e de abertura de

cursos de especialidade em enfermagem;

E no inicio do século a definição das competências do enfermeiro de

cuidados gerais, a fusão das escolas superiores de enfermagem públicas, a alteração da

Lei de bases do Sistema Educativo.

Mas, este avanço no domínio regulamentar “parece” não acompanhar a evolução da

prática pedagógica, isto é, ela encontra-se arreigada aos fundamentos da pedagogia

tradicional. Nesta perspectiva, a concretização do Processo de Bolonha pode constituir o

desenvolvimento da prática do pensamento educativo proporcionando a ruptura com o

passado e o presente das organizações educativas, tornando-se protagonista da

(des)estruturação e da (re)construção de um novo paradigma. Porém, estamos

conscientes que existe o risco dos actores e dos processos de abordagem pedagógica

serem substituídos, sem que ocorra qualquer transformação na estrutura fundamental do

paradigma que sustenta a educação e muito menos no sociocultural ao qual ele está

associado.

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Hoje, ensinar a cuidar do “corpo mundo” parece-nos sustentável com a concepção

existencialista e fenomenológica, na qual o estudante e professor ocupam o plano do

fenómeno educativo. Os factores internos da sua personalidade são os elementos activos

da sua educação, em particular a motivação, pois admite-se uma variabilidade de

respostas face à mesma influência externa. A partir, deste posicionamento, o aluno auto-

educa-se face à recreação da realidade, participa nela e transforma-a, motivo pelo qual

não pode querer a reprodução de um modelo único de indivíduo, mas antes a

combinação entre a sua socialização e a sua individualização com a plenitude possível

(Ozmon & Craver, 2004).

Nesta perspectiva, a noção do “corpo mundo” deve ser assente na unicidade da

pessoa e da situação que ela vive, o professor incita os estudantes a usarem o saber

informal (sentimentos e emoções) e o formal no ser enfermeiro (Bevis & Watson,

2005). É deste posicionamento que surge a dimensão filosófica do ensinar a cuidar-

cuidando, isto é, fundamentada na concretização de uma relação pedagógica

interpessoal.

A relação pedagógica sustenta-se num processo de comunicação, no seu sentido

mais profundo e autêntico, como impulsionador do desenvolvimento e da sustentação da

condição humana (Postic, 2007). O que nos remete ao pensamento de Merleau Ponty,

para quem o corpo fala através da expressão, da fala e da linguagem; da percepção da

união do ser e da acção, percepção da expressão de valores, da afectividade e da

sensibilidade e ainda pelo silêncio do corpo.

Esta acepção a Merleau Ponty implica um conjunto de atitudes, sem as quais a

relação pedagógica não passa de uma série de técnicas didácticas sustentadas em

princípios filosóficos educativos. Por isso, tem sentido centrar o ensinar a cuidar do

corpo “mundo” na relação que permeia os seus intervenientes (alunos, professor), na

qual o seu todo é qualitativamente superior à soma das suas partes: é o emergir da

relação pedagógica como resultado do cruzar das inter e intra-influência do professor,

do aluno, da relação interpessoal, da instituição de ensino.

Considerar, esta concepção, implica um esforço acrescido por parte do professor,

pois centrar a comunicação no sistema de relação professor-aluno pressupõe que ambos

são pessoa, e neste caso o primeiro com um nível de responsabilidade maior no

processo educacional, face ao seu papel e status na estrutura social. Estas contingências

por parte do professor não podem ser arredadas da relação pedagógica, nem tão pouco

as do aluno, que igualmente tem um papel e um status na estrutura social, neste caso nas

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Escolas Superiores de Enfermagem. A estas possibilidades acrescentamos outras

variáveis como as culturais, económicas e individuais das pessoas (professor, aluno) em

acção.

À luz do pensamento de Edgar Morin (2003o, 2003i) compreendemos o ser humano

como ser complexo, estando todas as qualidades e dimensões pertencentes ao humano

enraizadas em seu corpo. É através dele que podemos identificar a individualidade, a

existência e o Ser. A corporeidade constitui-se, assim, em quatro dimensões: a física

(estrutura orgânica, biofísica e motora), a emocional-afectiva (instinto, pulsão e afecto),

a mental-espiritual (cognição, razão, pensamento, ideia e consciência) e a social

histórica e cultural (valores, hábitos, costumes, sentidos e significados. Dimensões

indissociáveis da totalidade do ser humano, constituindo a sua corporeidade. É neste

sentido que devemos procurar compreender a complexidade humana. Estas dimensões

são produtos e simultaneamente produtores da corporeidade. Esta resulta da complexa

articulação do universo físico (physis), do universo da vida (bios) e do universo

antropossocial. Ela é a materialidade do corpo contido na dimensão humana que se dá

pela presença e na existência do Outro.

Perspectivar, então, o ensinar a cuidar-cuidando é considerar o professor e o aluno

como seres que se percebem e em seguida reelaboram a sua percepção e é dessa forma

que compreendem-se um ao outro. É a percepção enriquecida pela subjectividade e

intersubjectividade, pela comunicação e pela relação com o Outro e com o outro Eu. A

intersubjectividade diz respeito a relação entre o mundo natural e o mundo do humano,

enquanto a percepção envolve a co-existência e apreensão do Outro em um contacto

directo com o Outro. E esse contacto directo com e pelo Outro dá-se pela sensibilidade,

que significa a generalidade do sensível em si (Merleau-Ponty 2003, 2004, 2006).

De outra forma, podemos pensar que a significação humana é dada pela

sensibilidade, pelas intenções humanas, pelo mundo percebido. A percepção é o sentido

da “coisa” para o Eu e o Outro e pelas quais utilizam as sensações e a intencionalidade

para compreender. Esta compreensão é transversal ao fenómeno ensinar a cuidar-

cuidando e dá-se a partir de movimentos complexos e circulares em uma dimensão

maior que liga essência e existência.

Lembramos, a este propósito, o exemplo, na orientação de estudantes na prática

clínica: os mesmos parâmetros vitais, em duas crianças, cuja interpretação linear

permite a um estudante afirmar estarem dentro dos parâmetros de valores normais, para

outro estudante essa mesma interpretação foi capaz de perceber que aquela criança não

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estava bem, que algo estava a acontecer, ela estava quieta, e esta quietude alertou-o para

a possível hipoglicemia, seguida de taquicardia e após surge…. E o mais interessante é

que um parâmetro visivelmente normal, a quietude, mas que sinalizou o risco de

anormalidade e que simultaneamente tranquiliza o professor, o estudante, o

utente/família, isto é, a compreensão transversal que ultrapassa o instituído.

O que isso significa: que o conhecimento do mundo, mesmo em termos científicos,

se dá a partir da própria experiência do sujeito. Todo o saber científico deriva do

mundo-vivido, ou seja, dos pensamentos, das percepções e das vivências que os

intervenientes no processo de ensinar a cuidar-cuidando têm no meio natural. Por isso,

Merleau-Ponty afirma que tudo o que sabe do mundo, mesmo pela ciência, ele sabe a

partir da sua visão ou de uma sua experiência, sem a qual a ciência não lhe poderia dizer

nada. É, pois, na intersubjectividade, ou seja, na intersecção das experiências entre os

indivíduos, que o mundo fenomenológico encontra sentido. Nessa perspectiva, a

consciência adquire um novo significado, totalmente diferente daquele existente, até

então. As experiências constituem a fonte de todo o saber, sendo este adquirido no

próprio mundo, um mundo que existe ao nosso redor e que só passa a existir

efectivamente para nós quando lhe atribuímos um sentido (Merleau-Ponty 2003, 2004,

2006).

O mundo está aí mesmo, ele é inesgotável, pois o conhecimento que podemos ter

dele é em perspectiva, ou seja, há várias possibilidades ou ângulos de apreendê-lo,

dependendo das vivências do Eu e do Outro. Sendo assim, a consciência está

ininterruptamente a voltar-se para o mundo e a procurar pela essência e pela

sensibilidade, um contacto mais directo e profundo com a existência. É, pois, com o

corpo que se apreende as coisas ao nosso redor, de acordo com as situações que cada

um vivencia (Merleau-Ponty 2003, 2004, 2006).

A presença de cada ser no mundo é, portanto, uma presença corporal que define o

lugar de onde vivenciamos o mundo, isto é, a zona de corporeidade. O modo como o

corpo se encontra no mundo é expresso pelo esquema corporal. De entre os gestos que

ele exprime, encontra-se a “fala” entrelaçada ao pensamento, dotada de um sentido

afectivo que permeia a relação com o Outro, numa reciprocidade de intenções. É, pois,

pela linguagem sensível que o corpo-próprio expressa a unidade do homem. O sensível

refere-se ao sentir e confere-nos uma existência singular - a unidade humana (Merleau-

Ponty 2003, 2004, 2006).

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Ensinar a cuidar-cuidando do “corpo mundo”, fundamentada nesta perspectiva,

coloca aos intervenientes deste processo desafios na construção do acto pedagógico

fundamentado na ontologia do sensível. Na qual, o mundo se renova sempre, é outro em

cada instante, a cada novo instante se mostra um novo Ser. Este tem como forma

universal, o sensível, o qual é também ausência e vazio nos intervalos entre as “coisas”.

Enquanto ausência ou inacessibilidade o sensível é pensamento, consciência,

subjectividade. Deste modo, Merleau-Ponty afirma que a procura pelas significações

permitem pensar, não o que já foi pensado, mas o que se esconde, o que é subjacente ao

pensado. É preciso “pensar de novo”, saber que há uma sombra e ir até ela (2003, 2004,

2006).

O sensível é enigmático porque possui uma riqueza inesgotável, um fundo de

impensado que Merleau-Ponty (2003, 2004, 2006) caracteriza como deficiência

expressiva, pois a expressão nunca é completa. A expressividade da linguagem

pressupõe a junção da intenção significativa da palavra e a significação. Ela é

apreendida ontologicamente como expressão original, manifestação e presença. O corpo

não é “coisa” nem ideia, é movimento, sensibilidade e expressão criadora. Nesta

perspectiva, os conceitos de sensação, de órgãos dos sentidos e de percepções são

importantes. O corpo está associado à motricidade, à percepção, à linguagem, ao mito, à

experiência vivida, à poesia, ao sensível e ao invisível, apresentando-se como um

fenómeno complexo, não se reduzindo à perspectiva de objecto. Para ele, a sensação é

um dado da percepção e elemento da compreensão.

Reflexão Final

Neste âmbito ensinar hoje é diferente do que era num passado próximo,

fundamentalmente pela massificação do ensino de enfermagem levar à problematização

da qualidade, que a OCDE (1992) colocava ao nível de outros sistemas educativos. O

debate sobre a qualidade educativa é complexo pela existência de multivariáveis (e.g.

número de escolas, processo de avaliação e de interacção escola-comunidade, nível de

satisfação dos intervenientes) e pelas relações que se estabelecem entre elas (e.g.

numero de escolas versus processo de avaliação). Venâncio & Otero (2003) consideram

esta complexidade pouco clarificadora do termo - qualidade educativa - e as medidas

propostas para a alcançar por vezes contraditórias. A inovação implícita nesse desafio

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não se relaciona com o decréscimo dos padrões de ensino promovendo o sucesso

independentemente do desempenho do aluno, mas sim em tornar os programas, os

conteúdos e as aprendizagens mais relevantes e significativas.

Durante os quatro anos do CLE a escola para o estudante passa a ser o espaço para o

desenvolvimento da competência pessoal ao ser considerado como sujeito: social ao

promover a sua integração na escola e na sociedade; cívico ao torná-lo consciente das

estruturas institucionais; profissional ao orientá-lo para o mundo do trabalho e cultural

ao consciencializá-lo do património comunitário (Venâncio & Otero, 2003). Este é o

ambiente no qual o estudante desenvolve competências que lhe permitem o exercício

profissional de Enfermeiro de Cuidados Gerais, aprendendo aí a construir saberes

científicos, técnicos e relacionais e adquirindo a “performance” e a compreensão do

“ser humano” nas múltiplas dimensões e ao longo da vida. É um aprender que ocorre

em dois contextos, a sala de aula e o ensino clínico, nos quais se confronta com uma

pluralidade de intervenientes dos quais destacamos:

A singularidade e unicidade do enfermeiro professor, do aluno, do

enfermeiro tutor e/ou orientador, do utente e família e todos os outros elementos da

equipa de saúde aonde a interdisciplinaridade exige saber lidar com o Outro;

A modificação do cuidar e do gerir cuidados de enfermagem que ocorre

em ritmos distintos, de acordo com a política, a cultura e subculturas institucionais;

Um utente cada vez mais exigente, consciente dos seus direitos e da sua

participação activa, enquanto cidadão;

O confronto com a diversidade de ensinar, de aprender e de cuidar em

enfermagem, intimamente ligada à coexistência de paradigmas educativos e de cuidados

distintos em que num extremo, uns podem-se inserir numa visão tradicional do acto

pedagógico, enfatizando comportamentos, procedimentos, disfunção orgânica, e no

outro extremo enaltecem a tomada de decisão, a criatividade, a autonomia e a

responsabilidade aliada à performance de “saber ser” e “estar com”;

O distanciamento, muitas vezes verbalizado, entre saberes apreendidos

na escola e os produzidos no contexto hospitalar, permite pensar a tendência de ensinar

na escola identidades virtuais, afastadas das reconhecidas em contexto de trabalho

(Trindade, 2002).

A qualidade do acto educativo está imbricada ao conceito de desenvolvimento do

aluno e avalia-se pelos resultados cognitivos, mas prestando atenção aos factores que os

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Page 15: O PENSAMENTO DE MERLEAU-PONTY NO ENSINO DO

influenciam, pelas expectativas, pelas atitudes, pelas aprendizagens, pela sociabilidade,

pela capacidade de tomar decisões e pela aquisição de valores relacionados com a

cidadania, liberdade e respeito pela diferença (Venâncio & Otero, 2003).

Face a esta realidade importa que as orientações das instituições educativas de

enfermagem mantenham uma visão das práticas pedagógicas considerando o saber

como um acto interpretativo e uma construção individual, resultado de exercícios

cognitivos de interpretação da experiência e dependente desta, propiciador do

desenvolvimento de significados. Nestes a dimensão afectiva, relacional e social, a

motivação, o gosto e o interesse do estudante são activadores do conhecimento anterior

e permitem-lhe ligar-se às actividades educativas, para promover a construção de novos

saberes a aplicar. Cabe ao ser-enfermeiro professor desenvolver uma relação

pedagógica baseada em estratégias de ensino activas, no sentido de o ajudar a aprender

a cuidar, onde ele se sinta cuidado e onde impere a “partilha” e o “diálogo”.

É necessário reformar o ensinar a cuidar-cuidando em enfermagem e recriar um

fazer, um ser e um estar do enfermeiro, para o que contribui as noções de corpo e

corporeidade de Merleau-Ponty, pois o corpo fala até quando silencia e a sua utilização

no âmbito educativo da enfermagem, justifica-se pela(o):

Leitura face às noções de aluno e utente. Ambos seres humanos em

criação contínua, com atitudes complexas, que para se compreenderem precisam de

perceber a sua condição de incessante movimento, no qual, onde se estabelece a

comunicação entre o biológico e o fenomenológico e o corpo num continuum saúde-

doença.

Fenómeno - saúde-doença - cujas alterações não são determinantes

exclusivamente do meio externo, no sentido resultado causa-efeito, estímulo-resposta,

mas provenientes da organização da corporeidade humana (movimento e reorganização)

com movimento autopoiético;

Comunicação no ensino do cuidar em enfermagem que surge como um

sistema de interacções, no qual o saber se incorpora numa perspectiva circular, de lógica

recursiva, entre os sentidos (e.g. quem nunca olhou com as mãos, o tacto como visão

pelas mãos ou palpar pelo olhar).

Neste olhar sobre o ensinar a cuidar-cuidando, e de acordo com Merleau-Ponty, a

sensação e a percepção são imprescindíveis para o processo da aquisição do saber,

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Page 16: O PENSAMENTO DE MERLEAU-PONTY NO ENSINO DO

porque a essência do ser vivido e da corporeidade é o resgate do humano, na dualidade

Eu-Outro e o sujeito-objecto

Esperamos ter sido suficientemente claras na complexidade da filosofia da

percepção de Merleau-Ponty. Consideramos que esta é a primeira aproximação do

grupo com esse pensador e filósofo contemporâneo e que dela iremos construir o ser

vivido na dimensão da essência do humano e pela via da sensibilidade no ensino de

enfermagem.

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Nota sobre os autores:

Henriqueta Ilda V. M. Fernandes - Doutoranda em Educação pela Universidade

Lusófona do Porto. Membro do grupo núcleo de qualidade de vida da unidade de

investigação - UNIESEP. Área de pesquisa: desenvolvimento de competências no

cuidado centrado na família e criança e a prática de cuidados e o ensino humanista da

enfermagem. Professora Adjunta da Escola Superior de Enfermagem do Porto, (ESEP),

Portugal [email protected]

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Francisca Georgina Macêdo Sousa – Doutoranda em Enfermagem pelo PEN/UFSC.

Membro do grupo de pesquisa GEPADES. Linha de pesquisa: cuidado à criança e ao

adolescente, organização do sistema de cuidados e cuidado centrado na família.

Professora Assistente III na Universidade Federal do Maranhão no Centro de Ciências

da Saúde/Departamento de Enfermagem, em São Luis, Maranhão, Brasil

[email protected] Céu Barbieri Figueiredo – Doutora em Ciências de Enfermagem pela

Universidade Porto, Instituto Ciências Biomédicas Abel Salazar (UP- ICBAS), Porto.

Membro do grupo núcleo de qualidade de vida da unidade de investigação - UNIESEP.

Área de pesquisa: Cuidado centrado na Família. Professora Coordenadora da Escola

Superior de Enfermagem do Porto (ESEP), Portugal [email protected]

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