O Insaciavel Moloch

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    macroeconômicas significam que as duas dimensões públicas das economias de mercado – a moeda e as finanças do Estado – devem ser administradas de forma a não perturbar ofuncionamento das forças que sempre reconduzem a economia privada ao equilíbrio delongo prazo.

    Mas escapou a esse ideário bem-comportado que os fenômenos centrais do capitalismodestravado de nosso tempo são o acirramento da concorrência entre as grandes empresasinternacionais, a escalada da financeirização e as rápidas mudanças na geoeconomiamundial. As posições relativas de países, continentes e classes sociais sofrem, já há algumtempo, alterações tão radicais quanto perturbadoras.

    O economista de Harvard Richard Freeman diz, em artigo recente, que a velha conversasobre os benefícios do comércio – na situação em que os países avançados produzem bensde alta tecnologia com trabalho qualificado enquanto os menos desenvolvidos se dedicamaos setores de mão-de-obra não qualificada –  “tornou-se obsoleta com a presença daChina e da Índia”. 

    Nos anos 90, Paul Krugman, o economista recém-laureado com o Nobel, patrocinou umacruzada ideológica contra os movimentos antiglobalização que protestavam pela perda dosbons empregos americanos para os trabalhadores produtivistas da Ásia. Em artigo recentesobre os efeitos da migração de empresas para a China, Krugman foi obrigado a

    reconsiderar seus pontos de vista. Os moradores de Flitch, no estado de Michigan,perderam o emprego na fábrica de autopeças fechada sob pressão da concorrência chinesa.

    Indagado sobre o destino dos desempregados, o economista Gregory Mankiw respondeucandidamente: “As pessoas têm de se mover”. Afirmou isso depois de ter proclamado anecessidade de se ministrar um curso de economia no ensino médio para que o público emgeral possa ter uma visão mais acurada da globalização.

    A internacionalização da economia é um fenômeno constitutivo do capitalismo, o que nãosignifica que haja uma única maneira de lidarmos com os processos que a constituem. Éfácil, hoje em dia, confundir as limitações crescentes impostas ao Estado-nação com aconstrução de um espaço de livre circulação dos indivíduos, promovido pelo movimentodesembaraçado de mercadorias e capitais. Os entusiastas da globalização asseguram que a

    liberdade humana decorre do impulso natural do homem à troca, ao intercâmbio, àaproximação por meio do comércio etc. Adam Smith corretamente chamou a atenção parao caráter libertador da economia mercantil capitalista e para as suas potencialidades. Marx,herdeiro e defensor das postulações do Iluminismo e da Revolução Francesa, indagou se asrelações de produção e as forças produtivas do capitalismo permitiriam, de fato, arealização da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade.

    O capitalismo pode ser definido como a coexistência entre a enorme capacidade de criar,transformar e dominar a natureza, suscitando desejos, ambições e esperanças, e aslimitações intrínsecas à sua capacidade de entregar o que prometeu. Não se trata de umaperversidade, mas do seu modo de funcionamento.

    As novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das grandes corporações.

    As fusões e aquisições suscitaram um maior controle dos mercados e promoveramcampanhas contra os direitos sociais e econômicos, considerados um obstáculo à operaçãodas leis de concorrência. A abertura dos mercados e o acirramento da concorrênciacoexistem com a tendência ao monopólio e, assim, restringem a soberania estatal eimpedem que os cidadãos, no exercício da política democrática, tenham capacidade dedecidir sobre a própria vida.

    Na visão de Elizabeth Roudinesco, o sujeito moderno, aquele “consciente de sua liberda de,mas atormentado pelo sexo, pela morte, pela proibição”, é substituído pela concepção

     “mais psicológica de um indivíduo depressivo que foge de seu inconsciente e estápreocupado em retirar de si a essência de todo o conflito”. 

    Os trabalhos de destruição da subjetividade moderna são realizados por uma sociedadeque precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. As ciências humanas e sociaiscontemporâneas exprimem essas necessidades da sociedade capitalista, ou seja, dessesujeito abstrato, mediante duas visões: a universalidade naturalista, deduzida de

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    disciplinas sérias como as neurociências ou a genética e a diversidade do culturalismoempírico.

    Para os primeiros, os males do mundo podem ser solucionados com doses maciças deProzac ou de qualquer substância química capaz de aliviar o sofrimento dos “aparelhosbiológicos”. Para os outros, os do culturalismo, o melhor é abandonar as dores queacompanham a constituição de um saber universal e eternamente inacabado, refugiando-se na completude do mundo mítico e mágico das verdades particulares e supostamenteoriginárias. As duas visões do sujeito, aparentemente antitéticas, têm em comum o horrorà diversidade concreta e irredutível do mundo da vida. Esse horror não pode ser aplacadopela sociabilidade do mercado que transforma o Outro num inimigo-competidor.

    Apoiados em convenções e constrangidos pela concorrência, essas subjetividades, osdetentores de riqueza não podem escapar dos estados de euforia e apetite pelo risco queculminam na decepção, na crise e na desvalorização da riqueza. Os indivíduos racionais ecalculadores são atropelados pela “busca desesperada da riqueza líquida”, a volúpiacoletiva pela forma geral da riqueza que, em seu movimento maníaco, termina por destruirnão só as suas formas particulares como também os particularismos dos indivíduostomados pelo instinto de manada. Em todas as crises, o descontrole da manada só éaplacado com intervenções de suporte de liquidez que visavam e visam impedir que a

    busca da riqueza geral produza a generalização do empobrecimento causado pela “sagradafome do ouro”. Auri Sacra Fames. 

    A intervenção salvadora dos bancos centrais, sem dúvida, corre o risco de fortalecer acrença de que os desatinos dos investidores estarão sempre a salvo de perdaspronunciadas e definitivas. As eventuais crises seriam momentâneas, apenasoportunidades em que se apresentariam pontos de compra convidativos para o início deuma nova temporada de alta generalizada.

    Ainda assim, a experiência dos últimos anos, estimulada, entre outras causas, pelaimprevidência do ex-presidente do Banco Central dos EUA Alan Greenspan, não é suficientepara assegurar que a sucessão de episódios de euforia e depressão vá terminar semprecom a salvação dos protagonistas mais alavancados.

    Os ataques frenéticos de desorientação e desespero são apenas os aspectos maisexplicitamente homicidas do capitalismo “financeirizado”. Nele, a pretensão dos bem-sucedidos de acumular “tempo livre” sob a forma de capital fictício é, ao mesmo tempo, a

     “liberação” dos dependentes para as agruras do desemprego, da crescente insegurança eprecariedade das novas ocupações, da queda dos salários reais, da exclusão social.

    Nesse ambiente darwinista são cada vez mais freqüentes as arengas dos economistas,sacerdotes da religião dos mercados, contra as tentativas dos simples cidadãos e cidadãsde barrar a marcha do Moloch insaciável e ávido por expandir o seu poder. A grita dossábios da finança é desferida contra os “desvios” da política, os surtos de “populismo”. Com esses slogans os ideólogos pretendem enquadrar a sociedade na camisa-de-força de umasuposta racionalidade econômica.

    Os mercados e seus agentes, diga-se, não estão certos nem errados. Estão simplesmenteobrigados a tomar decisões que, em seu imaginário peculiar, são as apropriadas paraproteger ou acrescentar o valor de sua riqueza. Na verdade eles são “pensados” por umalógica que não controlam.