O Ensino de Línguas No Brasil de 1978.

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Rev. Brasileira de Lingüística Aplicada, v.l, n.l, 15-29, 2001 15 O Ensino de Línguas no Brasil de 1978. E Agora? José Carlos Paes de Almeida Filho UNICAMP The year of 1978 saw the staging of the first academic event devoted to communicative language teaching in Brazil. The author traces his personal protagonism in communicative movement that is launched on that date. The article, then attempts to outline the still very recent history of the communicative ideas for language teaching in the country, reestablishing its foundations, potential and main obstacles for not deepening its roots and blossoming in the country’s language teaching and applied research scenes. Introdução Vinte e três anos se passaram desde que me vi diante de uma platéia acadêmica em Florianópolis fazendo um balanço dos destroços do moderno estruturalismo audiolingualista no ensino de línguas fazen- do a mesma pergunta contida no título deste trabalho: e agora para o ensino de línguas no Brasil? Naquele momento parecia correto e urgente para os que estavam no caminho da pesquisa e da reflexão sobre o ensino de línguas (EL) levantar essa indagação sobre o próximo estágio do de- senvolvimento nacional nesse âmbito. Isso porque em 1978 voltávamos ao Brasil, depois de um programa de estudos pós-graduados em Lingüística Aplicada na Inglaterra, Carmen Rosa Caldas-Coulthard e eu. Ambos sentíamos o peso dos ventos de mudança que sopravam céleres na Europa do então Mercado Comum em construção nas questões edu- cacionais e no âmbito do EL em particular para nós. Aquele já longínquo Seminário sobre o ensino nocional-funcíó- nal, que se anunciava como doce promessa de renovação profissional, organizado por Carmen Rosa e colegas do curso de Letras da Universi- dade Federal de Santa Catarina, constituiu-se de fato na base pioneira de lançamento para o debate público e na primeira vitrine do que se anunci- ava como a nova maneira comunicativa de se planejar a operação de ensino de uma nova língua.

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O Ensino de Línguas No Brasil de 1978.

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  • Rev. Brasileira de Lingstica Aplicada, v .l , n .l , 15-29, 2001 15

    O Ensino de Lnguas no Brasil de 1978. E Agora?

    Jos Carlos Paes de Almeida Filho UNICAMP

    The year o f 1978 saw the staging o f the first academic event devoted to com m unicative language teaching in Brazil. The author traces his personal protagonism in com m unicative movement that is launched on that date. The article, then attempts to outline the still very recent history o f the com m unicative ideas for language teaching in the country, reestablishing its foundations, potential and main obstacles for not deepening its roots and blossom ing in the countrys language teaching and applied research scenes.

    Introduo

    Vinte e trs anos se passaram desde que me vi diante de uma platia acadmica em Florianpolis fazendo um balano dos destroos do moderno estruturalismo audiolingualista no ensino de lnguas fazendo a mesma pergunta contida no ttulo deste trabalho: e agora para o ensino de lnguas no Brasil? Naquele momento parecia correto e urgente para os que estavam no caminho da pesquisa e da reflexo sobre o ensino de lnguas (EL) levantar essa indagao sobre o prximo estgio do desenvolvimento nacional nesse mbito. Isso porque em 1978 voltvamos ao Brasil, depois de um programa de estudos ps-graduados em Lingstica Aplicada na Inglaterra, Carmen Rosa Caldas-Coulthard e eu. Ambos sentamos o peso dos ventos de mudana que sopravam cleres na Europa do ento Mercado Comum em construo nas questes educacionais e no mbito do EL em particular para ns.

    Aquele j longnquo Seminrio sobre o ensino nocional-func- nal, que se anunciava como doce promessa de renovao profissional, organizado por Carmen Rosa e colegas do curso de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina, constituiu-se de fato na base pioneira de lanamento para o debate pblico e na primeira vitrine do que se anunciava como a nova maneira comunicativa de se planejar a operao de ensino de uma nova lngua.

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    Pareceu-nos poca que vivamos a aurora da Era de Aqurio para a Lingstica Aplicada e o Ensino de Lnguas Estrangeiras (ELE),

    Na Esccia e Inglaterra mais precisamente em Edimburgo e em Manchester, tnhamos atravessado o tufo filosfico das propostas comunicativas dos meados dos anos 70 e agora estvamos de volta a Florianpolis e So Paulo para enfrentar o sonho de mudana e atualizao em terra ptria.

    Do mesmo Seminrio de Florianpolis constava como palestrante convidado o autor do que considervamos como a primeira srie didtica funcional (baseada em funes comunicativas) a ser introduzida no Brasil - Brian Abbs, que juntamente como Ingrid Freebaim lanavam no pas a ento novidosa srie Strategies. A srie foi prontamente adotada nuns poucos centros mais atirados de ensino de ingls, entre eles, a PUC - So Paulo, a Sociedade Brasileira de Cultura Inglesa de So Paulo e a Universidade Federal de Santa Catarina.

    A minha tese de mestrado sobre a abordagem nocional-funcional de um planejamento do curso para o contexto universitrio brasileiro defendida no vero ingls de 1977 qualificava-me como palestrante (embora visivelmente inexperiente na tribuna da fala pblica) e como debatedor da abordagem ento emergente. Mais tarde essa abordagem (comunicativa) que se opunha gramatical ou formalista seria reconhecida como um verdadeiro paradigma alternativo (para usar a nomenclatura de Kunh, 1970) para o ensino das lnguas nas escolas. Esse paradigma ou modelo terico, veramos depois, no era um floro casual da Lingstica Aplicada mas um padro novo alinhado com as profundas mudanas para as cincias iniciadas no ltimo quartel do sculo 18 com os trabalhos do filosfico alemo Hegel, conforme veremos ao final da seo 2 adiante.

    N ano de 1976, quando me via mergulhado em pleno processo de compreender a dimenso nocional funcional da abordagem comunicativa, o lingista aplicado David Wilkins ligado Universidade de Reading, sul da Inglaterra, publicou com alarde nos meios acadmicos o livro seminal Notional-Functional Syllabuses, nunca traduzido e provavelmente pouco lido no Brasil desde ento. Desde 1972, poca da implantao do ento Mercado Comum Europeu (MCE), j havia artigos e documentos produzidos no bojo das comisses do MCE para os assuntos de aprendizagem das lnguas da Comunidade. Havia artigos do prprio Wilkins, de membros de comisses encarregadas de traar as novas

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    diretrizes para o esforo europeu de renovao do ensino (Trim, Richterich, van Ek entre outros) e muitas idias em gestao, como as de Henry Widdowson que em 78 publicaria tambm o livro seminal The Teaching o f Language as Communication a partir do seu trabalho na Universidade de Edinburgo, na Esccia. Tendo sido aluno de Widdowson no programa de ps-graduao em Lingstica Aplicada de Edinburgo, Esccia, preparei eu mesmo a traduo dessa obra que em Portugus recebeu o ttulo de O Ensino de Lnguas para a Comunicao.

    Os ventos comunicativstas eram to fortes que faziam lingistas compenetrados em seu esforo descritivo do ingls redigirem verses com unicativistas da gram tica (vide Leech e Svartvik, 1975 A Communicative Grammar ofEnglish). Crticas ao ensino audiolingualista ento vigente j se acumulavam desde meados dos anos 60 (vide Newmark, 1966, por exemplo) tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. O Brasil nessa poca (dcadas de 60 e 70) praticamente no tinha produo prpria especfica em teorizao sobre o ensino de lnguas e muito menos crtica sustentada do ensino estruturalista fortemente ortodoxo e em franca consolidao no pas.

    No incio de 76 j corria nos meios acadmicos britnicos a notcia da publicao prxima do livro de David Wilkins. Minha dissertao de mestrado j aprovada enquanto projeto no podia esperar que o livro chegasse a livraria da universidade e por isso viajei em junho a Reading em busca do texto to aguardado. Em dois ou trs dias turbulentos em Reading, mantive contato com colaboradores prximos de Wilkins (Keith Morrow e Keith Johnson) e voltei a Manchester com um exemplar do livro debaixo do brao.

    Os conceitos que sustentavam o paradigma no eram claros para os nefitos e suspeito que tambm no o eram plenamente para os nossos professores nas universidades inglesas. Todos parecamos, contudo, entusiasmados com a promessa renovadora contida na proposta comunicacional europia. Tnhamos j convico (no evidncias inequvocas) de que no estvamos lidando com mudanas apenas superficiais na ortodoxia metodolgica estruturalista. Essa ortodoxia j vinha cansada a essa altura de uma campanha de desgaste conduzida por seus crticos e a ela se opunha agora a idia do significado como a fora organizadora central da aprendizagem comeando pelo planejamento de cursos to amplamente favorecido naquela poca. As categorias de significados / conceitos se convertiam em nova metalinguagem para os

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    planejadores e o procedimento de consulta aos alunos sobre seus interesses e necessidades deslocaram a gramtica como preocupao central no processo de ensino e aprendizagem de uma nova lngua. Essas caractersticas j nos faziam antever que algo importante e profundo estava ocorrendo enquanto fundamentao e prtica do ensino de lnguas.

    Os professores em centros mais avanados de ensino de lnguas no Brasil nessa poca (por volta de 78) mostravam-se geralmente muito curiosos por conhecer e experimentar o ensino funcional mas alguns profissionais mais graduados poca apressaram-se em mostrar sua sobriedade ctica solapando as infundadas esperanas de revoluo. Uma crtica produzida em 1979 por Henry Widdowson, ele mesmo um proponente d idias alinhadas com o movimento comunicativo, contra pressupostos da primeira gerao de comunicativas funcionais, deu munio extra aos estruturalistas modernos brasileiros que se apressaram em dissipar altas expectativas (sem fundamento, segundo o autor) da revoluo no ensino de lnguas. O movimento comunicativo seria um mero modismo fadado a uma trajetria efmera sem maior impacto.

    Aps 23 anos da data da aprovao da minha dissertao em Manchester e do Seminrio de Florianpolis ainda vlido indagar - e agora? uma pergunta vlida para um largo espectro do corpo profissional para que valeu-se desse perodo de tempo para familiarizar-se com as bases do comunicativismo. Quero dizer que ainda lcito indagar o que fazer do movimento comunicativo?. ousadia fazer a pergunta, porque muitos j questionaram a vitalidade e validade dos fundamentos da filosofia comunicativa. Para alguns a abordagem teria fracassado na sua promessa de materializar a competncia comunicativa nos aprendizes. Para outros haveria na abordagem problemas conceituais srios (por exemplo, ingnua na sua concepo de linguagem, no que projeta como papel do aprendiz, etc.) que a inviabilizariam afinal. Essa no a minha posio conforme explicarei e argumentarei mais adiante no texto.

    Tendo passado por muitas experincias de ensino de lnguas (ingls e portugus como LE) ao longo dos anos, tendo trabalhado como trabalhei em tantos projetos de investigao direta de situaes de ensino e aprendizagem e ofertado tantos cursos de formao de professores de lnguas em minha carreira universitria, estou cada vez mais convencido de que o potencial comunicativo para o ensino de lnguas grande e continua inexplorado abaixo da superfcie onde temos em geral atuado. H muito a acrescentar e que transformar no paradigma emergente e no

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    concreto da prtica. A dimenso do que ainda preciso formular pode intimidar numa primeira tomada de conscincia mas devemos sempre reafirmar nossa disposio de avanar nos esforos de construo terica e renovao cautelosa da prtica nos anos e dcadas vindouros.

    Neste trabalho vou arriscar um condensado estado da arte da abordagem comunicativa do ensino de lnguas tanto como paradigma para a formao de professores quanto para a pesquisa aplicada do processos vitais de ensino e aprendizagem de lngua voltados para a aquisio. Ao enfrentar essas duas questes terei ocasio de recompor o paradigma comunicativo hoje sob ataques e enfrentando crises isoladas de desconfiana aqui e acol alm de tentar responder questo que nos move nesta tarefa - e o que que vir?

    Abordagem como filosofia de ensino e como paradigma de pesquisa

    Os professores de lnguas precisam, entre outras cousas, produzir o seu ensino e buscar explicar porque procedem das maneiras como o fazem. Para dar conta desse duplo desafio, o movimento comunicativo tem sugerido alarmos a posio mais alta o nvel de abstrao das crenas e pressupostos guias. Isso equivale a elevar a abstrao do nvel do mtodo (materialidade de ensino, frmula estvel de ao pedaggica) para abordagem (conjunto de conceitos nucleados sobre aspectos cruciais do aprender e ensinar uma nova lngua). Note-se que o alamento dessa abstrao se d para um patamar ainda mais acima de metodologia tomada como conjunto de idias que justificam o ensinar de uma certa maneira, isto , um mtodo. A abordagem mais ampla e abstrata do que a metodologia por se enderear no s ao mtodo mas s outras trs dimenses de materialidade do ensino, a saber, a do planejamento aps a determinao dos objetivos, a dos materiais (que se escolhem ou se produzem) e a do controle do processo mediante avaliaes.

    A abordagem de ensinar o resultado da plasmagem de um conjunto de concepes, sejam elas crenas implcitas ou pressupostos revelados guisa de hipteses em alguma configurao especfica que a histria de vida de cada professor se incumbe de gerar num campo de idias onde foras outras atuam buscando se impor: idias de ensinar de outros professores e agentes escolares (orientadores, coordenadores, diretores,

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    pais de alunos) que tm poder nos contextos onde estiverem, as idias de autores de materiais adotados e de formuladores de exames ou outros tipos de instrumentos de avaliao introduzidos no processo. Incide ainda como fora concorrente da abordagem do professor a concepo de aprender (a cultura de aprender conforme nomeei em outros trabalhos - Almeida Filho, 1993,1997,1999) dos alunos aprendentes de lnguas.

    De forma sucinta, so 6 os formantes do construto da abordagem que se equacionam de algum modo em cada caso de ensino/aprendizagem:

    - um conceito de aluno aprendente de lngua como pessoa em processo de socializao humanizadora

    - um conceito de lngua estrangeira e de linguagem humana- um conceito de aprender lngua outra que no a LI- um conceito de ensinar uma nova lngua a quem deseja ou precisa

    dela- um conceito de sala de aula de lngua estrangeira (ou de representa

    o do lugar de aprend-la)- um conceito de papis a desempenhar no processo seja como aluno

    seja como professor

    Uma dada abordagem exerce a fora que tem atravs de uma combinao de competncias (saberes e habilidades em vrias composies), cada uma representada num nvel especfico de desenvolvimento em termos de funes que exercem, da implicitude ou explicitude dos elementos, da conscincia e refinamento terico com que podem operar. Assim, os professores agem a partir de um nvel especfico ou configurao de competncias para obter qualidades variveis na ao orientada pela equao da abordagem de ensino (obtida no confronto de foras histricas pessoais e outras foras externas em tenso). As competncias previstas so as seguintes: competncia implcita (que se desenvolve em ns a partir das experincias de aprender lngua(s) que vivemos), competncia terica (corpo de conhecimentos que podemos enunciar), competncia aplicada (o ensino que podemos realizar orientado e explicado pela competncia terica que temos), competncia lingstico-comuni- cativa (a lngua que se sabe e se pode usar) e a competncia profissional (nosso reconhecimento do valor de ser professor de lngua, nossa responsabilidade pelo avano profissional prprio e dos outros e as aes correspondentes).

  • Vejamos os formantes esboados no diagrama apresentado na Fig.l abaixo:

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    definio de objetivos e planejamento de cursos

    materiais (produzidos

    ou adotados)

    expenencias de ensinar e aprender

    a lngua-alvo

    controlemediante

    avaliaes

    As definies mais precisas dos formantes ou elementos do construto da abordagem esto pormenorizadas em textos anteriores que podem ser acessados com facilidade. Vejam-se, por exemplo, Almeida Filho (1993, 1997 e 1999) e Barante Alvarenga (1999) entre outros.

    suficiente lembrar aqui que muitas alteraes nas condies e nas aes verificadas nas situaes de ensino podem ocorrer para as quais no haver alteraes nos formantes conceituais. Nesse caso, diremos que ajustes superficiais nas materialidades do ensino-aprendizagem ocorreram e no mudanas propriamente ditas no mbito mais alto e abstrato da abordagem que em ltima instncia determina a natureza filosfica ou qualidade fundante do processo instaurado / vivido.

    A abordagem foi tratada at aqui como filosofia ou concepes integradas de ensinar e aprender lnguas para compreender e analisar o processo (interpretando aulas, avaliando materiais, investigando aprendizes em seus esforos de aprender, etc) e servir-se dele para formar

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    novos professores ou auxiliar professores em busca de formao permanente/continuada. Mas poderamos igualmente tomar a perspectiva da abordagem como refletidora de cmbios e equao contnua de um paradigma ou modelo de fazer pesquisa aplicada rumo produo de mais conhecimentos relevantes sobre o ensino e aprendizagem de lnguas nas condies que temos.

    Nessa tica de pesquisa, a abordagem radiografada e construda em construtos tericos cada vez mais abrangentes e fundamentados serve como nucleadora de conceitos convergentes explicadores das aes tpicas estudadas e das utopias da poca colocadas no horizonte dos desejos profissionais dos professores. O alto poder de abstrao permitido ao estudo da abordagem faculta a elevao do mesmo bem acima do patamar do mtodo (como as experincias de ensinar e aprender a ln- gua-alvo) e isso, por sua vez, permite-nos explicar porque a muitas mudanas ao nvel do mtodo no correspondem ganhos, ou alteraes pelo menos, nos resultados da aprendizagem.

    Na perspectiva da pesquisa em Lingstica Aplicada, a abordagem encapsula um corte epistmico cujo reconhecimento rigoroso traz benefcios ao desenvolvimento terico do ensino de lnguas. A noo de paradigma que adoto aqui tem os sentidos apontados por Kuhn (1970): o de ser um caso exemplar, um exemplo tradicionalmente aceito a que um iniciante em cincia exposto e que eventualmente vem a adotar ou uma matriz disciplinar composta de crenas comuns de uma comunidade de praticantes sobre como proceder num dado campo (o que vale como dados, boa metodologia, argumentos vlidos, etc). Mas no sentido de viso de mundo que creio existir o melhor potencial para explicarmos um paradigma de abordagem como a formal/gramatical ou a comunicativa/ scio-interativa. Markova (1982) assinala a tenso nas cincias entre os paradigmas cartesiano e hegeliano que nos fazem refletir sobre os enfoques formal e comunicativo respectivamente. Vejamos o que relaciona a autora enquanto traos fundamentais dos dois macro-paradigmas para as cincias em geral:

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    Arcabouo cartesiano (Descartes, 1516-1650)

    natureza da mente individual a mente esttica e passiva na aquisio do conhecimento conhecimento adquirido atravs de logaritmoso critrio do conhecimento externobusca do que certo (universais invariveis)

    - ahistrico

    Arcabouo hegeliano (Hegel, 1770-1831)

    natureza da mente social mente dinmica e ativa na aquisio do conhecimento conhecimento adquirido num

    crculo que retoma sempre a si mesmoo critrio do conhecimento internonatureza dialtica do ser (s por contradio as coisas mudam histrico

    o cenrio daO ensino de lnguas estrangeiras no Brasil - prtica e o horizonte da vanguarda

    H uma grande diferena no Brasil entre o que se prtica de ensino de lnguas nas escolas e salas de aula e o que projetam acadmicos, tericos e pesquisadores no cenrio universitrio dos cursos de Letras e programas de ps-graduao em Lingstica Aplicada, Letras e Estudos da Linguagem.

    A cena cotidiana de ensino de lnguas no pas, alm de dspar entre as regies, igualmente diversa quando consideramos o tipo de escola (se pblicas, particulares, regulares ou instituto de lnguas) e a realidade de alguns nichos (universitrios experimentais, empresariais, imersivos temporrios, etc).

    A urgncia de aprender uma nova lngua para algum uso real pessoal e/ou profissional exacerba uma outra disparidade que nos acompanha h cinco sculos no Brasil: aprender para obter alguma distino social no aprender mais sobre a lngua-alvo do que o prprio novo idioma, e aprender para valer quando o aprendizado deve frutificar no trabalho, na formao, nos contatos interpessoais interpases. O aprender sobre pode se dar com o preceptor ou professor particular que a elite contrata ou com professores nos colgios e nas escolas popularizando o toque de distino nos gestos de aprender para s quase ler (temos de lembrar que o quase falar foi rebaixado como objetivo nos Parmetros Curriculares Nacionais). O aprender para desempenhar-se no domnio da nova lngua foi por sculos no Brasil um filho da contingncia e da urgncia e por pouco mais de duas dcadas antes do fim do sculo XX

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    tornou-se uma idia terica para ser compreendida em sua anatomia e dinmica nas salas de aula que no quisessem mais apenas o figurino da distino.

    nisso que estamos. Nosso trem da distino popularizada ainda corre veloz antes que possamos frei-lo e mud-lo de trilhos.

    O cenrio da prtica que tem a esttica da distino (mesmo que plida a ponto de quase nem ser reconhecvel) abalado por sinais de novos tempos (novas demandas em funo de novas tecnologias e relaes econmicas) e por condies depauperantes do tecido social onde ficam as escolas e do processo formativo dos novos professores.

    O cenrio alternativo da fora no aprender em uso e para usos reais vai por um lado por novas exigncias da vida e do trabalho e, por outro, pelo horizonte desej ado por uma vanguarda ou elite acadmica ocupada sistematicamente em reinventar caminhos.

    Conforme j se pode ver, esta racionalizao analtica de um agente acadmico desqualifica a viso por movimentos cclicos ou pendulares, ora estamos a ensinar forma explicitamente, ora s implicitamente. Sempre que essa imagem valer estaremos reforando a noo de que nossa rea uma mera arena prtica para eventuais aplicaes de idias momentosas do prprio Ensino de Lnguas e das outras cincias, a lingstica principalmente entre elas.

    Se no aceitarmos a imagem do pndulo que vai e volta sem sair do lugar, sem que haja progresso, a pergunta e agora? poderia ento querer dizer o que mais agora? ou que novas transformaes esperar agora?.

    Se quisssemos perguntar honestamente o que que devemos enfrentar agora como novos movimentos gerados pelas mudanas anunciadas?, a indagao seria de todo justa hoje em dia. Considerando-se que o movimento comunicativo faz vinte e trs anos no Brasil em 2001, o primeiro no novo sculo, a questo que se pe no exatamente sobre acrscimos ou variaes do que se apresenta como o novo no ensino das lnguas mas por um desejo no horizonte profissional que j l est por algum tempo sem claras indicaes de como compreend-lo e como proceder informadamente para fru-lo num esforo profissional nacional.

    Se o ensino que estiver no horizonte do nosso desejo for de raiz vivencial do uso e no s um verniz de distino despreocupada com o desempenho na nova lngua, ser preciso clarific-lo e reafirmar seus traos distintivos centrais para dirimir confuses que praguejam os esforos de caminhar na direo do horizonte.

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    Quando o ensino reconhecido no horizonte for confirmado como comprometido com o uso, ainda assim ser preciso perguntar sobre a natureza da caminhada at l chegar. Pode-se tomar o rumo bsico de ensinar e aprender o sistema primeiro e ir ensaiando o uso paulatinamente ou pode-se viver a comunicao (mesmo que precariamente no incio) e, nela, aprender a lngua e, em alguns momentos, sobre ela. Esse segundo caminho o que tenho tomado como o caminho da abordagem comunicativa e o primeiro o da abordagem sistmica pela forma (gramatical).

    preciso reafirmar mil vezes que esses caminhos no so iguais variando apenas a paisagem - que possuem os mesmos elementos tericos com nfases distintas. Trata-se de qualidades distintas de ensinar e aprender lnguas que precisamos reconhecer para escapar de confuses retardadoras do avano das concepes e da prtica de ensinar lnguas.

    Em seguida, quero reafirmar alguns traos distintivos essenciais que reconheo na grande abordagem comunicativa (o caminho da comunicao em direo ao horizonte de uso adquirido da nova lngua). A primeira armadilha ser evitada no se tomando que tudo comunicativo no processo de aprendizagem, com isso implicando que nada de fato e a rigor comunicativo.

    No quadro que apresento a seguir (Quadro 1), separei os sentidos perifricos ou at mesmo errneos do que seja abordagem comunicativa para as pessoas no-leigas, dos sentidos centrais que constituem a filosofia comunicativa. Estes dados foram preliminarmente levantados a partir de entrevistas com professores e exame de obras correntes de referncia terica.

    Quadro 1. Traos distintivos do paradigma comunicativo

    Sentidos perifricos ou errneos F azer uso da mdia Entender toda ao lingstica como comunicativa Tomar comunicao como de transmisso de sinais eltricos envolvendo

    trfego de informao Referir-se ao movimento norte-americano de ensino de escrita a calouros

    baseado em habilidades e estratgias Indicao de foco na oralidade Equacionar ser comunicativo com possuir personalidade agradvel, tom

    sim ptico , aberto, fluente e desinibido A bolir a gramtica F azer joguinhos e dinm icas

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    Interagir (pura e simplesmente) D ialogar ou monologar criticamente na LI

    Sentidos centrais Anti-anterioridade (anticentralismo) da gramtica ou estrutura frstica

    no processo de ensino aprendizagem de lnguas Foco em recortes de atividades desejadas produzidos na prpria lngua-

    alvo (Ex. Ouvir palestra e anotar,; receber (ler) mensagem e respond-la, iniciar conversao , etc)

    P rim a zia da co n stru o de se n tid o s na LE num a m b ien te de compreensibilidade e ausncia de presso emocional

    Processo complexo de ensinar e aprender lnguas no qual a dimenso lingstica da form a no a mais importante, mas subsidiria da dimenso social, cultural e eventualmente poltica

    Aprender comunicao na comunicao, mesmo que, no inicio, com andaimes facilitaores

    D eslocar a idia de aprender lngua pela lngua para aprender outras coisas na lngua-alvo e, nesse ambiente, aprender a lngua

    Uso de nomenclatura no-gramaticalista., isto , de terminologia especfica como funo, expoente de formulao, recorte comunicativo, papel social, tema, tpico, etc

    Observao dos interesses e eventuais necessidades e fantasias dos participantes para com por objetivos do curso

    A realizao desses traos do cerne comunicativo (acompanhados ou no de traos perifricos) num ensino alternativo caracterizado pela comunicao enquanto se aprende a nova lngua no , por certo, tarefa fcil de ser realizada na prtica. A prtica do ensino comunicativo no tem sido generalizada nos contextos nacionais e nem farta nos resultados de uma aprendizagem eficaz. Os resultados de pesquisa aplicada sobre questes do ensino comunicativo no tm sido suficientes para compor um quadro terico slido que respalde a prtica renovadora. Isso pelos motivos que passo a expor: h tradio de aprender j arraigada entre professores e alunos, ge

    ralmente num hbrido de mtodos da abordagem gramatical sedimentados por estrato social, por regio, etc, e uma tradio tende a se defender de inovaes que possam ameaar o confortvel equilbrio de uma situao de aprendizagem ou ensino;

    idias com fora tomadas de fora da Lingstica Aplicada/Ensino de Lnguas que se candidatam a alavancar mudanas metodolgicas

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    de amplo alcance, quase sempre alm do que podem oferecer essas idias grande operao do ensino de lnguas na prtica. (Acompanha uma postura aplicadora e muitas vezes salvadora que os inocentes no podiam ver: por exemplo, alguns criticalistas fundamentalistas escorados na AD de linha francesa ou criticalistas-transformadores na perspectiva de Freire);

    faltam condies externas cruciais para sustentar iniciativas de mudanas - o caso flagrante da escarcidade ou mesmo ausncia no mercado de materiais didticos verdadeiramente alternativos (existem, claro, muitos falsos comunicativos ou apenas comunicativizados para vender), mas tambm currculos conservadores, exames tradicionais, materiais-fonte como gramticas pedaggicas, livros sobre concepes da comunicao, livros sobre o ensino comunicativo ou com outros nomes mas focados no sentido e na interao propositada;

    as bases tericas do ensino comunicativo no esto disponveis em formatos ou modelos portteis que auxiliem o professor comum a compreender o que seja ensinar e aprender comunicativamente;

    o ensino comunicativo no est disponvel ou uma falsa opo para os professores de uma lngua estrangeira que no apresentam um desempenho comunicativo nessa lngua-alvo;

    o denominar (-se) comunicativo/a por uma faceta errnea, superficial e/ou fragmentada que banaliza os sentido mais centrais da abordagem comunicativa levando as crticas de espantalhos comunicativos criados para serem destrudos em argumentao vanguardista ou ingnua;

    falta de compreenso rigorosa do que abordagem. (Da proliferarem as abordagens nos textos dos autores: abordagem oral, natural, humanista, crtica, socio-interacional).

    Observaes finais

    Dado esse quadro do ensino de lnguas no Brasil desde 1978, quando um evento acadmico reuniu especialistas em tomo do ensino comunicativo pela primeira vez no pas, mais do que e agora? ns deveramos estar indagando por que chegamos s at aqui?, ou at onde queremos chegar? e como chegaremos l?. As respostas a essas questes todas apontam para uma anlise histrica do que vimos realizando no pas e para o exame atento dos pressuposto tericos e as questes da

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    prtica comunicativa como alternativas centralidade do sistema lingstico no ensino de lnguas. Quanto questo dos mtodos com os quais alcanar as metas, parte da resposta mais pesquisa, mais publicaes e mais autonomia no agendamento das perguntas da nossa poca. A outra parte da resposta reside nos processo de formao de professores provavelmente atravs da auto-reflexo ou reflexo auto-sustentada em aes teoricamente bem informadas. O paradigma comunicativo est longe de ter exaurido seu grande potencial de recursos para renovar o ensino de lnguas. Os esforos de pesquisa e implementao devero nos ocupar bem mais alm do ano de 2001.

    Vivemos numa poca em que muitos professores de lnguas enfrentam questes ainda anteriores da abordagem e metodologia. o caso da urgente demanda por uma competncia lingstico-comunicativa que fora uma prtica calcada no estudo de pontos gramaticais para serem passados aos alunos j pouco convencidos de que obtero resultados palpveis que justifiquem seu investimento no aprendizado. Nesse cenrio incerto criticado fortemente por agentes especialistas no surpreende que muitos sonhem ser comunicativos e alguns poucos eleitos em ser crticos e j distanciados da abordagem comunicativa. A vanguarda do criticalismo deve radicalizar perigosamente a distncia j aprecivel entre o dizer (o que parece certo ou desejvel) e o fazer (o que e como se ensina de fato). Entre muitos desafios preciso ajudar os professores a compreender a qualidade do seu ensino pela (auto) observa- o.

    hora de esclarecer, reforar, descartar ou reafirmar pressupostos na construo de uma experincia que pode fazer a diferena num pas onde o corpo profissional de ensino de lnguas est praguejado com limitaes extrnsecas endmicas e confuses tericas srias mas ao mesmo tempo to esperanosamente ocupado com a sua (re)construo.

    Referncias Bibliogrficas

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