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O americanismo em Tavares Bastos e a crítica ao liberalismo brasileiro The Americanism of Tavares Bastos and the critique of Brazilian liberalism Marcos Abraão Ribeiro Mestrando em Sociologia Política PPGSP/UENF [email protected] RESUMO: Este texto analisa a construção do argumento liberal em Tavares Bastos durante a segunda metade do século XIX. Para tanto, demonstraremos de que forma o autor apropria-se do conceito de americanismo em Tocqueville como uma via fundamental para a modernização do Brasil. Aliado à construção do argumento liberal em Tavares Bastos, inserimos as críticas ao liberalismo brasileiro feitas por Oliveira Vianna e Francisco Campos, bem como suas proposições singulares de iberismo e americanismo, respectivamente, como vias alternativas ao americanismo de Tavares Bastos PALAVRAS-CHAVE: americanismo, liberalismo, modernidade, Tavares Bastos ABSTRACT: This article examines the construction of the liberal argument by Tavares Bastos during the second half of the nineteenth century. To achieve this goal, we demonstrate how the author uses the concept of Americanism present in Alexis Tocqueville’s thought as a fundamental way to Brazil´s modernization process. In addition to the construction of the liberal argument by Tavares Bastos, we insert the critics to Brazilian liberalism made by Oliveira Vianna and Francisco Campos with their peculiar propositions of Iberism and Americanism, respectively, as alternative routes to the Americanism of the former author. KEYWORDS: Americanism, liberalism, Modernity, Tavares Bastos Introdução: O processo de formação nacional e a constituição do Estado brasileiro transformaram-se em grande querela entre os nossos intelectuais. As análises eram divididas entre aqueles que viam na transplantação do patrimonialismo português durante o período colonial - reforçado com a Agenda Social. Revista do PPGPS / UENF. Campos dos Goytacazes, v.2, n.3, out-dez / 2008, p.44-65, ISSN 1981-9862

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O americanismo em Tavares Bastos e a crítica ao liberalismo

brasileiro

The Americanism of Tavares Bastos and the critique of Brazilian liberalism

Marcos Abraão Ribeiro Mestrando em Sociologia Política

PPGSP/[email protected]

RESUMO: Este texto analisa a construção do argumento liberal em Tavares Bastos durante a segunda metade do século XIX. Para tanto, demonstraremos de que forma o autor apropria-se do conceito de americanismo em Tocqueville como uma via fundamental para a modernização do Brasil. Aliado à construção do argumento liberal em Tavares Bastos, inserimos as críticas ao liberalismo brasileiro feitas por Oliveira Vianna e Francisco Campos, bem como suas proposições singulares de iberismo e americanismo, respectivamente, como vias alternativas ao americanismo de Tavares Bastos

PALAVRAS-CHAVE: americanismo, liberalismo, modernidade, Tavares Bastos

ABSTRACT: This article examines the construction of the liberal argument by Tavares Bastos during the second half of the nineteenth century. To achieve this goal, we demonstrate how the author uses the concept of Americanism present in Alexis Tocqueville’s thought as a fundamental way to Brazil´s modernization process. In addition to the construction of the liberal argument by Tavares Bastos, we insert the critics to Brazilian liberalism made by Oliveira Vianna and Francisco Campos with their peculiar propositions of Iberism and Americanism, respectively, as alternative routes to the Americanism of the former author.

KEYWORDS: Americanism, liberalism, Modernity, Tavares Bastos

Introdução:

O processo de formação nacional e a constituição do Estado brasileiro transformaram-se em

grande querela entre os nossos intelectuais. As análises eram divididas entre aqueles que viam

na transplantação do patrimonialismo português durante o período colonial - reforçado com a

Agenda Social. Revista do PPGPS / UENF. Campos dos Goytacazes, v.2, n.3, out-dez / 2008, p.44-65, ISSN 1981-9862

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chegada da família real ao Brasil em 1808 - como grande fonte de nossas mazelas; e aqueles

que identificavam no singular processo de nossa formação social o grande responsável pelo

chamado atraso 1 brasileiro. As duas correntes, cujos grandes representantes são Tavares

Bastos e Oliveira Vianna, vão ser caracterizadas por Luis Werneck Vianna como

americanistas e iberistas, respectivamente.

Como aponta Brandão (2005), a obra de Tavares Bastos é responsável pela constituição de

uma linhagem de pensamento político que desembocará no século XX em autores como

Raymundo Faoro e Simon Schwartzman, os quais engendrarão a visão ainda hoje hegemônica

no pensamento acadêmico sobre o Brasil e disseminada também pelo senso comum. Esta

corrente argumenta que a única saída para o Brasil chegar à modernidade seria passar por um

intenso processo de reforma do Estado, para que este pudesse despir-se de sua malfadada

herança ibérica. A linhagem societal de Oliveira Vianna, por sua vez, identifica na

singularidade social brasileira uma caracterização positiva, faltando apenas educar nossas

elites sobre o seu papel para levar o país ao desenvolvimento e à modernidade. Além do

instigante debate entre as visões de Tavares Bastos e Oliveira Vianna, inserimos as críticas de

outro americanista, Francisco Campos, ao pensamento liberal de Bastos, cujas proposições

resultaram na constituição de 1937 e na instauração do Estado Novo.

Para que possamos montar este diálogo faz-se necessário buscar o conceito de americanismo

contido na obra de Alexis de Tocqueville. Foi a partir da instituição da via americanista

derivada da obra do pensador francês que Tavares Bastos constituiu o fio condutor de seu 1 Refiro-me ao termo atraso em itálico por considerar sua abordagem problemática quando este é visto de maneira irrestrita. Na verdade, teríamos de matizar em que dimensões somos atrasados, sob pena de constituirmos visões atávicas da realidade brasileira ao não conseguirmos enxergar mudanças em nossa história. Exemplos disto, a meu ver, encontramos na análise de Roberto DaMatta sobre nossa composição hibridista. Sua análise carrega o argumento segundo o qual a modernidade, isto é, as ações do Estado centralizado, do mercado competitivo e da esfera pública não possuem eficácia entre nós. Ou seja, a realidade brasileira, permeada fortemente por sua herança ibérica, não consegue de forma alguma lograr a modernidade. O interessante é que, a despeito de todas as fragilidades teóricas contidas nesta análise, ela possui uma força avassaladora sobre o senso comum, corroborando de maneira decisiva os preconceitos neste contidos. Para uma análise crítica da visão hibridista de Roberto DaMatta ver Souza, 2001.

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realismo político, a fim de engendrar o elemento transformador para levar o país à

modernidade. Essa apropriação, contudo, não se deu de forma passiva, isto é, Bastos não

deixou de atentar às especificidades brasileiras. Daí que o debate sobre a transformação do

Estado brasileiro não é tão simples.

1. Tocqueville e o americanismo

Tocqueville nasceu em uma família aristocrática, cuja linhagem remontava ao século XII 2

(Gahyva, 2001). Sua família também possuía forte atividade política, o que o fez participar

ativamente da vida política na França no período de 1840 a 1851, quando se afastou de

maneira definitiva após o golpe de Estado efetuado por Luis Napoleão. A linhagem

aristocrática de Tocqueville fará com que ele tenha uma constituição híbrida entre o político e

o intelectual. Isto se evidencia na medida em que seus escritos tinham como fim a proposição

de mudanças para a realidade francesa, o que é evidenciado em seu Democracia na América,

obra da qual os franceses poderiam tirar proveito para sua realidade a partir do conhecimento

da vida democrática nos Estados Unidos. Com isso, Tocqueville se alinhará a autores como

Montesquieu, Comte e Marx que tiveram como ponto fundamental a descoberta de

mecanismos estruturantes da sociedade para efetuar nela uma intervenção (Jasmim, 1997).

Nessas análises, Tocqueville demonstra com intensa riqueza analítica como a organização

aristocrática é solapada de maneira estrutural e irreversível pela democracia. Isto resultou na

constituição de relações sociais pautadas pela igualdade de condições entre os homens

diferindo-se da aristocracia, que tinha como característica fundamental as relações

hierárquicas entre seus membros. A democracia americana detinha como característica

2 Os avós de Tocqueville são mortos na guilhotina e seus pais só não têm o mesmo destino devido ao 9 Thermidor. Com isso, conseguimos perceber uma real motivação para que o quadro de mudanças bruscas não ser bem visto pelo autor francês, tendo vivenciado seu caráter desestruturador em sua própria família (Gahyva, 2001, p.11).

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marcante uma forte cultura cívica, fruto da herança puritana 3 dos que desembarcaram nas

treze colônias fugindo da perseguição anglicana na Inglaterra. Tal cultura expressava um

perfeito equilíbrio entre as instituições e a sociedade, pois a força estava colocada sobre o

capital social 4, que garantia a soberania popular. Este capital social forte era resultante de

leis, costumes e instituições.

Desta forma, a democracia em Tocqueville, conceito polissêmico que o autor francês disse se

referir a uma forma de ser da sociedade, como observou Jasmim (1998, p.37), caracteriza-se

por uma organização política centralizada aliada à descentralização administrativa, a um

Judiciário forte e a uma sociedade cuja cultura política formada a partir da matriz do interesse

mantinha em funcionamento suas instituições, através do equilíbrio entre as instâncias da

igualdade e da liberdade, fundamentais por Tocqueville. Enquanto a condição desigual era

estruturante das sociedades aristocráticas, a igualdade, nas sociedades democráticas, ataca

com golpe de morte a desigualdade outrora permanente, possibilitando a mobilidade social

através do princípio da igualdade de condições manifesto nos costumes, fator fundamental.

3 Com relação a herança puritana, Max Weber defende a tese no seu célebre livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo segundo a qual um dos fatores fundamentais para a moldagem do capitalismo moderno fora a ética puritana derivada do calvinismo, pietismo, metodismo e seitas batistas. Segundo Weber, havia uma forte afinidade eletiva entre o espírito do capitalismo e a ética protestante ascética, que possuía uma séria de preceitos dogmáticos que foram fundamentais para moldar uma conduta econômico-racional que tinha no conceito de vocação para o trabalho como forma de glorificação a Deus e certeza da salvação, seus pontos fundamentais. E esta ética teve como palco principal os Estados Unidos, com os puritanos que fugiam da perseguição anglicana.4 O conceito de capital social vai ser utilizado de maneira ampla por autores tocquevillianos como Robert Putnam. No seu influente Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna, Putnam demonstra que o desenvolvimento do norte da Itália é amplamente superior ao ocorrido no sul devido a seu forte capital social, ou seja, normas, confiança e cadeias de relações sociais capazes de criar bem público. O ponto fundamental do capital social para Putnam é a confiança interpessoal, fruto de um alto grau de civismo. O sul, como não o possuía, ficava numa situação de atraso frente ao norte desenvolvido. Certamente é uma análise interessante que, todavia, nos leva a sérios questionamentos quando o autor argumenta que o desenvolvimento do norte é resultado do “seu bom ponto de partida”. O atraso sulino também seria derivado do seu “mau começo”. Ora, mesmo que esta não seja a intenção de Putnam, ele deixa implícito no seu argumento que o mau começo do sul o levaria a um permanente atraso. Parece que ele constrói uma análise atávica da realidade sulina pois não vê espaço à mudança, como também ocorre em Roberto Da Matta, conforme vimos em nota anterior.

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A democracia moderna trazia, porém, como um complicador, segundo Tocqueville, o

surgimento do individualismo. Este faria com que cada sujeito estivesse apenas interessado no

próprio bem-estar, deixando de se preocupar com o interesse público. Esta acomodação frente

aos problemas de ordem pública resultaria no despotismo democrático. Diferente de outras

formas de opressão ocorridas na história da humanidade, como o despotismo oriental 5, este

não se legitimava pela ação violenta de um déspota. Ao contrário disto, legitimava-se de

modo opaco e intransparente aos cidadãos. O despotismo democrático caracteriza-se como

um poder intenso e tutelar, de caráter absoluto, que dominava os homens da tal forma que os

deixava num estado de infância, na medida em que agia como um único agente regulador,

fornecendo segurança, suprindo as necessidades, facilitando os prazeres (Tocqueville, 1987,

p.531), ou seja, garantindo todos os subsídios para que os homens pudessem ficar presos à sua

vida particular e não tivessem motivos para participar da vida pública. De acordo com Jasmim

(1998), o despotismo democrático resolvia o dilema entre o desejo de independência a e

necessidade de ser conduzido, que seriam as duas paixões fundamentais do homem moderno.

Para combater este individualismo de caráter predatório que estiolava a ação societal com sua

indiferença cívica fundamental e o despotismo dele resultante na modernidade democrática,

Tocqueville demonstra como a condição do interesse possuía um caráter fulcral:

Há muito tempo Montaigne disse: ‘quando eu não seguisse o caminho reto, por sua retidão, segui-lo-ia por ter concluído, pela experiência, que, ao cabo de contas, é esse comumente o mais feliz e o mais útil’. A doutrina do interesse bem compreendido não é nova, portanto; mas, entre os americanos de hoje, foi universalmente admitida; tornou-se popular: encontramo-la no fundo de todas as ações; ela penetra através e todos os discursos. Não a encontramos menos na boca do pobre que na do rico (Tocqueville,1987,p.401).

5 De acordo com Tocqueville (1987), é verdade que os imperadores possuíam um poder imenso e sem contrapartida, que lhes permitia entregar-se livremente aos caprichos dos seus pendores e entregar para satisfazê-los toda a força do Estado; muitas vezes, ocorrem-lhes abusar desse poder para arbitrariamente tirar de um de seus cidadãos os bens ou a vida; a sua tirania pesava prodigiosamente sobre alguns, mas não se estendia sobre um grande número; pretendia-se a alguns objetivos principais maiores e esquecia o resto; era violenta e contida. (p.530).

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Outro ponto gerador de inflexão democrática é o referente à tirania da maioria. Para que esta

não dominasse nos Estados Unidos havia a liberdade de associação fundamental, o que

impedia a formação do consenso majoritário sobre os interesses comuns (Gahyva, 2001). A

grande liberdade de associação levava à constituição de muitas associações criadas por várias

minorias, que controlavam qualquer ação majoritária.

Unida à tradição associativa representada pelo interesse bem compreendido, havia também a

ação da magistratura para a conservação da democracia sem sua metamorfose em despotismo

democrático e a tirania da maioria. Este poder tem para Tocqueville a função de manter as

tradições e ser um contrapeso aos excessos da democracia, com uma ação análoga aos corpos

intermediários do Estado aristocrático.

Esta exposição sobre alguns pontos essenciais do pensamento de Tocqueville é fundamental,

pois eles servirão como justificativa para a proposição do americanismo como via de

transformação do Estado brasileiro por Tavares Bastos. Além deste fator, ele será o fio

condutor do diálogo entre Oliveira Vianna, Tavares Bastos e Francisco Campos que

teceremos ao longo deste texto. Segundo a argumentação de Werneck Vianna (idem), o caso

americano foi resultado de um processo natural de transformação, o qual favoreceu a

conciliação entre as instâncias da igualdade e da liberdade. Ainda segundo Werneck, esta via

transformista demonstraria como a dimensão do interesse se constituiria em um novo

princípio dominante na estruturação do mundo.

A partir deste ponto, analisaremos a recepção do conceito de americanismo no pensamento

liberal de Tavares Bastos, com ênfase nos pontos principais da obra de Tocqueville

apropriados pelo autor de forma fundamental para a proposição das reformas com o intuito de

levar o país a vencer sua herança portuguesa e chegar à modernidade. Na seqüência,

examinaremos as proposições críticas de Oliveira Vianna ao pensamento de Tavares Bastos,

com sua proposição iberista de centralização político-admistrativa, além de apontarmos o

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caráter enviesado de suas críticas. Por fim, a crítica radical de Francisco Campos ao

liberalismo engendrada nos anos 1930 e sua singular proposta de uma via americanista para o

Brasil.

2. Tavares Bastos e o americanismo no Brasil.

A biografia de Carlos Pontes (1975) sobre Tavares Bastos torna-se leitura obrigatória para

aqueles que pretendem conhecer a vida do autor alagoano. Através dela, conseguimos

visualizar de forma clara a constituição híbrida de Bastos entre o pensador e o político que,

como Tocqueville, constituiu sua curta mas intensa carreira de intelectual, iniciada de forma

precoce, paralelamente à ação política. Sua frágil saúde o levaria à morte com apenas 36

anos, no início de sua maturidade intelectual, após a publicação de sua maior obra: A

Província.

Aos 20 anos, em São Paulo 6, Tavares Bastos tornava-se doutor em Direto tendo como uma

das ações fundamentais a luta pela construção de um pensamento político brasileiro

engendrado de forma autônoma, ou cosmopolita, como preferia dizer. Suas obras tiveram

como característica fundamental a luta contra o Estado patrimonial brasileiro qualificado por

ele como de feição asiática.

O pensamento de Tavares Bastos marcou-se desde os primeiros escritos por um realismo

político7. Este ponto ajuda-nos a compreender sua luta pela construção de um pensamento

6 Tavares Bastos inicia a faculdade de Direito na cidade de pernambucana de Olinda, 1854, com uma licença especial. Ele, no entanto, muda-se para São Paulo em 1855, devido à transferência que seu pai, juiz de direito, tivera para aquela cidade. Sua ida para São Paulo teve grande importância na medida em que ele encontrou nela nomes como Macedo Soares, Francisco Belisário, Tomás Coelho que, juntamente com ele, formariam um grupo de importantes intelectuais brasileiros da segunda metade do século XIX. (PONTES, 1975).7 Este importante fator é observado desde sua tese de Doutorado em 1859: “Não escolheu para a sua tese um assunto teórico, de fácil sedução: voltava-se para as questões práticas, de aparência árida, em que se revelavam as inquietudes do estadista do futuro. Versava ela os seguintes motivos: Sobre quem recaem os impostos

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cosmopolita no Brasil, justificada pela identificação feita por Tavares Bastos da falta de um

pensamento político que pudesse criar propostas consistentes para o enfrentamento dos males

brasileiros derivados de nossa herança ibérica. Como dissemos no início deste texto, Bastos

vai ser o fundador de uma linhagem cuja explicação para o atraso brasileiro tem de ser

buscada em nossa herança do Estado português, cujo despotismo assemelhara-se ao

despotismo oriental. Esta identificação do Estado patrimonial brasileiro vai nortear toda a

produção intelectual de Tavares Bastos. Através dela, o autor busca uma reforma nas

estruturas estatais que vencesse a malfadada herança portuguesa que impedia a chegada à

modernidade.

Para tal empreitada, Bastos escolherá como ideologia política a doutrinal liberal e os escritos

de Tocqueville 8 na proposição do americanismo como via das soluções dos problemas

brasileiros. Todavia, a utilização das idéias de Tocqueville feitas por Tavares Bastos é

marcada pela moderação, na medida em que ele sabia que não se poderia aplicar pari passo as

idéias de Tocqueville no Brasil tendo em vista a constituição diametralmente oposta dos dois

países. Sua remissão ao autor francês possui um caráter mais retórico do que de conteúdo

explicativo (Werneck Vianna, 1999). Assim como o pensador francês, Bastos utiliza a história

para ancorar sua filosofia política. Isto porque, assim como Tocqueville, ele identificava na

história um componente fundamental para entendermos o estado de atraso pelo qual passava

o Brasil na segunda metade do século XIX. Tavares Bastos identificou no Brasil uma

sociedade estamental, a qual só poderia ser vencida ou por grupos organizados ou pela ação

do próprio governo.

lançados sobre os gêneros produzidos no país? Sobre o produtor ou sobre o consumidor? O que sucede quando aos gêneros importados e exportados? (PONTES, 1975, p.63)”.8 De acordo com Luiz Werneck Vianna (1997), as reflexões de Tavares Bastos estavam mais próximas de O Antigo Regime e a Revolução: A inexistência da township americana não se constitui na sua variável explicativa central, substituída pela natureza do Antigo Regime e a sua restauração realizada pela chamada lei de Interpretação do Ato Adicional, de 1840, que veio a interromper a experiência liberal de descentralização do poder, iniciada depois da vitória obtida com a abdicação de D. Pedro I, ‘o príncipe estrangeiro’. (p.139)

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Como bem salienta Silva (2005), esta constatação de Bastos leva-o à exclusão da população

como sujeito de qualquer ação política, na medida em que a solução de nossos problemas teria

de ser feita a partir de uma via institucional. Só depois desta ação institucional a população

poderia florescer no Brasil. Esta, aliás, será uma forte crítica feita por Oliveira Vianna a

Tavares Bastos, a qual veremos mais à frente. Como vimos, ao contrário dos Estados Unidos

cuja sociedade civil nascera forte e atuante, no Brasil, para Tavares Bastos, não havia

sociedade. Este importante fator levaria o processo de americanização a ser implantado aqui a

possuir um caráter singular. O realismo de Bastos também marcaria suas análises por uma

recusa à explicação sociológica em favor da política como bem aponta Werneck Vianna

(1999):

Os ‘males do presente’ não se devem ao singular atraso social brasileiro, nem ao estado de dissociação da sociedade civil. Tavares Bastos inverte o problema: é o poder que corrompe, quem impede o indivíduo de se elevar à cidadania, como é ele quem, através de suas lições, inibe a iniciativa e enfraquece o espírito público.(p139)

Visto isso, algumas idéias fundamentais de Tocqueville são utilizadas por Tavares Bastos em

sua proposta de americanismo. São estas: utilização do método histórico como fator

explicativo; proposta de uma descentralização administrativa e ênfase nas reformas 9; a

separação entre público/privado. Em os Males do Presente e as Esperanças do Futuro, obra

de juventude de Bastos, há importantes comparações com os Estados Unidos, os quais

funcionariam como uma espécie de espelho de que poderíamos tirar proveito para

compreender nossas mazelas. Tavares Bastos argumenta que o espírito público americano e

sua falta no Brasil eram frutos de processos históricos.

Em Democracia na América, Tocqueville advoga a favor dos poderes locais cuja importância

ele considerou fundamental para a manutenção da democracia. Para Tavares Bastos, estes

9 É sempre bom deixar claro que a via reformista em Tocqueville passava pelo protagonismo da sociedade civil. Para Tavares Bastos, como esta não havia no Brasil, tal fato deveria ser engendrado através do protagonismo estatal.

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também possuíam importância fundamental, todavia, no Brasil, eram alvos de suas pesadas

críticas, pois serviam apenas aos poderes dos mandões locais. Isto era explicado por ele

devido ao caráter decadente do Estado herdado de Portugal. Portanto, para que pudesse haver

uma ação efetiva dos poderes locais no Brasil havia a necessidade de uma ação anterior do

poder central para descentralizar o país. Mais uma vez, a única saída teria de ser engendrada

pela via institucional.

A ação teria de ser feita pela monarquia brasileira e não por um Estado republicano como era

defendido por muitos liberais contemporâneos de Bastos. A diferença entre o monarquista

Tavares Bastos e os republicanos era que estes advogavam pela aplicação irrestrita das idéias

tocquevilleanas 10 no Brasil, ação que não era compartilhada por Bastos (Silva, 2005).

Referindo-se diretamente a Tocqueville, Tavares Bastos afirmava que a república nos Estados

Unidos fora possível pela instituição desde antes do processo de independência de fatores

como costumes, tradições e instituições democráticas (Bastos, 1975a p.42). Como estes

fatores não existiam entre nós, havia a necessidade de uma ação política partindo das elites

políticas (como dissemos acima). Esta ação é o motivo principal da publicação de A

Província:

Desgraçadamente, parecem os nossos adversários bem longe de abraçarem com decisão uma doutrina larga. Limitam-se a retoques e a concessões que, aliás, úteis e urgentes, penetram só a superfície do sistema, respeitando-lhe as bases. Quanto a nós, não bastaria despojar o poder executivo central de certas atribuições parasitas; fora preciso fundar em cada província instituições que eficazmente promovam os interesses locais. É o programa deste livro, inspirando por um estudo sincero do ato adicional (Bastos, 1975b, p.33).

De acordo com Silva (2005), a leitura de Tocqueville efetuada por Bastos o levaria a

defender as reformas como fio condutor das mudanças no Brasil:

10 Esta passagem de A Província ajuda-nos a aclarar tal desiderato: “são, com efeito, diversos tipos de governo descentralizado: o que pedimos para o Brasil não é, de certo, a soberania do reino de Santo Estevão, mas não é também a plena autonomia dos Estados anglo-americanos, cujas instituições passamos a descrever”(BASTOS, 1975b, p.34).

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Noutras palavras, qualquer idéia de revolução no Brasil estaria fadada ao fracasso e faria com que o país se assemelhasse ao restante da América, a América Espanhola, visto que as prováveis e possíveis lideranças atuavam, em sua maior parte, na ausência do espírito público. Daí ser muito mais sensato fazer-se uma reforma ao invés de alterar em vasto grau as estruturas políticas do país. Se, em Tocqueville, a revolução era indesejada por operar no acaso, ou seja, por não possuir condições de garantir seu fim, em Tavares Bastos, ao contrário, era a certeza de fiasco que o afastava de um movimento revolucionário (p.39).

Também, a falta de espírito público resultante do nosso estado patrimonial levava à

indistinção entre as esferas do público e do privado, fazendo com que estes dois elementos se

identificassem como coisa única 11.

Vimos, portanto, como Tavares Bastos construiu seu pensamento político estruturando pela

via tocquevilleana do americanismo como forma de mudar a situação parasitária do Estado

brasileiro, identificada pelo autor durante a segunda metade do século XIX. Como

procuramos deixar claro, Tavares Bastos pretendia para o Brasil mudanças paulatinas que

estivessem de acordo com a realidade brasileira. Todavia, como veremos em seguida, suas

idéias serão duramente criticadas por Oliveira Vianna. No entanto, como também

procuraremos deixar claro, Oliveira Vianna fará uma interpretação enviesada de suas idéias

liberais.

11 Este ponto é fundamental, pois este tipo de análise vai dominar de maneira avassaladora as explicações sociológicas sobre a sociedade brasileira até hoje. Luis Werneck Vianna em Weber e a Interpretação do Brasil (1999) faz um mapeamento da influência das análises de cunho patrimonialista sobre o Brasil, demonstrando como se estruturou este tipo de explicação entre nós, além de indicar a necessidade de rompimento com tal tipo de explicação. Interessante resslatr que, em pleno século XXI, marcado pela massificação da urbanização, aliada à globalização e à intensificação das relações de mercado, as ciências sociais brasileira de forma hegemônica ainda argumentem que os grandes problemas brasileiros são fruto da mesma sociedade vista por nossos ensaístas do século XIX como Tavares Bastos ou Oliveira Vianna. Como bem colocou Gildo Marçal Brandão em seu Linhagens do Pensamento Político Brasileiro (2005), essas análises vêem sempre a permanência do velho no novo. Isto nos leva a questionar se o patrimonialismo ainda possui o mesmo caráter estrutural para explicar nossos males contemporâneos como a corrupção política.

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3. Oliveira Vianna e a singularidade brasileira

Ao contrário da proposição de Tavares Bastos que, como vimos, creditava à transplantação do

Estado patrimonial português a grande raiz dos nossos males, calcando sua análise numa

visão que subordinava a sociologia à política, Oliveira Vianna parte de uma explicação

sociológica para os nossos males mas procurando exaltar nosso processo de formação

singular. Nossa situação de atraso era fruto de nossas relações sociais. De acordo com

Werneck Vianna (1997):

Nesse sentido, Oliveira Vianna, apesar e muito longe dos temas de uma cultura libertária, inscreve-se numa posição que o leva a valorizar positivamente a história do país e o seu próprio povo, malgrado sua adesão às teorias de superioridade racial, então em voga. A afirmação de que ‘somos distintos’, ponto de partida dos seus estudos de história social’, não soa como uma condenação – como nos americanistas -, e sim como uma orgulhosa declaração de princípios do iberismo do autor (p.145).

Oliveira Vianna (1987a) argumenta que a lógica de nossa formação (que marcaria nossa

singularidade) foi a deserção da vida urbana. Nossa constituição social seria marcada por

uma intensa dispersão social pelos grandes domínios rurais, os quais teriam uma função

desintegradora devido à colonização (Vianna, 1987 b), o grande problema do país. Isto fez

com que nós desenvolvêssemos uma cultura de clã, personalista. O atraso brasileiro não era

fruto de uma transplantação de um estado parasitário de feição oriental como argumentara

Tavares Bastos, mas das nossas relações sociais. Para que houvesse uma mudança seria

fundamental educar nossas elites a fim de que estas pudessem capitanear a ação civilizatória

no Brasil. Para resolução de nossos problemas, teríamos de engendrar a centralização político-

administrativa. Neste sentido, é que Brandão (2005) demonstra a inversão do argumento

liberal de Bastos feita por Vianna sobre a necessidade de descentralização administrativa em

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favor da centralização político-administrativa, fruto da tradição do pensamento conservador

que tem sua raiz em Visconde de Uruguai.

Vianna efetua em Instituições Políticas Brasileiras algumas comparações com os Estados

Unidos, assim como também o fez Tavares Bastos 12. Assinala fatores positivos nos

americanos como sua consciência nacional, herdada da Inglaterra. Isto levaria à excelência do

sistema político americano (Vianna, idem). Com esta característica fundamental, os Estados

Unidos constituíram uma cultura democrática. O Brasil, no entanto, herdou de Portugal uma

cultura personalista, de clã, que faria com que o interesse público nacional não fosse algo

fundamental entre nós. A partir desta inversão fundamental do argumento americanista de

Tavares Bastos, Oliveira Vianna estrutura suas análises sobre o mundo rural brasileiro 13.

O pensamento de Oliveira Vianna, todavia, passa por duas fases importantes. Durante os anos

1920, Vianna analisava sociedade e Estado como algo unívoco. Nesse momento, a solução

pensada pelo autor fluminense passa pela dominação tradicional como recurso contra a

anarquia, ainda não constituindo um projeto de sociedade futura. (Werneck Vianna, 1999,

p.155). Isto levaria Vianna a defender a singularidade brasileira demonstrando a incapacidade

da implantação do americanismo no Brasil como forma de chegarmos à implantação de uma

cultura anglo-saxã.

Essa visão de Oliveira Vianna terá uma importante mudança a partir dos anos 1930,

influenciada pela leitura da obra do sociólogo francês Émile Durkheim. Deste, Vianna

utilizará o caminho da solução corporativa, o qual seria responsável pela implantação de uma

ação estratégica para a modernização do Brasil, pois teríamos um Estado forte e atuante para

agregar o país e levá-lo ao desenvolvimento e à modernidade. Oliveira Vianna propunha a 12 Apesar de fazer comparações entre as realidades brasileira e norte-americana não há registro de leituras de Tocqueville feitas por Oliveira Vianna. (Werneck Vianna, idem)13 Segundo Luiz Werneck Vianna (1997): Pela perspectiva do que seria uma Sociologia histórica comparada, Oliveira Vianna, centrado nas relações do mundo agrário, pretende demonstrar, no terreno dos fatos, como uma experiência histórica particular deveria levar a uma institucionalidade política também particular. (p.147) Tal citação demonstra com clareza a definição do iberismo em Oliveira Vianna.

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expurgação do americanismo e a reforma de uma ideologia de Estado que reforçasse a Ibéria

(Werneck Vianna, idem). Esta proposição de Vianna de um Estado pedagógico nos faz

pensar, como Brandão (2005), se realmente haveria um depois nessa proposta.

Todavia, como dissemos acima, a visão crítica de Oliveira Vianna à obra liberal de Tavares

Bastos possui alguns importantes pontos de inflexão derivados de uma leitura parcial feita

pelo autor fluminense. Como vimos na seção anterior, para compreendermos o pensamento de

Tavares Bastos faz-se necessário uma leitura horizontal de sua obra, e não o privilégio de uma

publicação apenas como síntese de todo o seu pensamento (Silva, 2005).

Segundo as proposições de Oliveira Vianna, Tavares Bastos se filiaria ao grupo dos liberais

republicanos que defendiam uma implantação ipsi-literi do modelo americano no

Brasil.(Silva, Ibid.). Mas, de acordo com a argumentação de Silva (ibidem), as considerações

de Oliveira Vianna sobre as proposições de Tavares Bastos possuem um caráter equívoco na

medida em que se restringem à Província. Esta obra seria alvo de uma leitura seletiva feita

pelos republicanos e seguida por Vianna.

O argumento de Brandão (2005) vai ao encontro das críticas de Silva (2005) à leitura de

Tavares Bastos feita por Oliveira Vianna. Segundo Brandão (idem), Bastos realmente estaria

filiado a outros liberais como André Rebouças, Joaquim Nabuco e Ruy Barbosa. Bastos,

todavia, propôs a implantação de uma monarquia federativa como uma maneira de se fazer a

abolição e salvar a própria monarquia (Brandão, 2005, p.249). Esta passagem parece deixar

claro que as mudanças propostas por Tavares Bastos nada tinham de radicalismo na recepção

do americanismo de Tocqueville. Dos autores liberais, apenas Ruy Barbosa teve uma ação

mais radical, pois via a incompatibilidade entre monarquia e federalismo (Brandão, ibid).

Na próxima seção, analisaremos as proposições do americanismo de Francisco Campos e seu

constitucionalismo antiliberal. Este autor proporá uma versão singular da via americanista

para o Brasil, pois não utilizará como matriz fundamental as idéias liberais de Tocqueville.

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O americanismo em Tavares Bastos e a crítica ao liberalismo brasileiro

Ao contrário, ele se posicionará, nos anos 1930, como o grande opositor do liberalismo no

Brasil, fazendo com que sua proposição de americanismo se filiasse ao pensamento do jurista

alemão Carl Schmitt, grande ideólogo das ditaduras do século XX. Francisco Campos

adquiriu uma importância paradigmática para a história política brasileira na medida em que

foi ele o grande ideólogo do Estado Novo varguista, responsável pela modernização em

grande escala do Brasil.

4. Francisco Campos e o constitucionalismo antiliberal

Francisco Campos nasceu em família tradicional mineira, o que será um elemento

fundamental para sua carreira política. Passou o começo de sua vida em Minas Gerais, onde

atuou como deputado estadual entre os anos de 1919-1922. Ao lado de sua vida política,

Campos também demonstrava as suas proposições sobre a realidade brasileira. Assim como

Oliveira Vianna, o pensamento do autor mineiro foi marcado por fases, cujos diagnósticos

vão ser bem distintos sobre as mazelas brasileiras fruto do Estado liberal implantado em

1889.

Como aponta Losso (2000), Campos, durante os anos 1920, coloca-se como um crítico

conservador das instituições políticas, ao lado, portanto, da ordem institucional vigente. Nesta

fase, Francisco Campos defende a ação tutelar do Império sobre a República nascente com o

intuito de que o Império organizasse a República (Santos, 2007, p.295). Neste momento da

produção de Campos, sua ação conservadora em relação às mudanças bruscas aproxima-o das

proposições de Tocqueville e Tavares Bastos. Neste caso específico mais a Tavares Bastos

que era contrário a uma revolução no Brasil porque esta levaria o país à anarquia. Francisco

Campos também observava numa via brusca de mudanças a eclosão de sérios problemas.

Portanto, apenas a tutela da tradição imperial poderia salvar o regime liberal da anarquia,

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possibilitando a constituição de uma realidade presente que pudesse criar no futuro

expectativa (Santos, 2007).

Segundo Losso (idem), a obra de Francisco Campos pode ser divida em três fases: a primeira

entre os anos de 1914-1930, a qual constituiria o núcleo central de suas idéias; a segunda fase

seria constituída entre os anos de 1930-1942, caracterizada pela produção do ideólogo no

poder; a terceira e última fase, entre o final do Estado Novo e sua morte em 1968, marcada

por uma postura ativa anticomunista aliada ao conservadorismo.

Para os fins deste texto, nos concentraremos na segunda fase de Campos pela importância

paradigmática para a história política brasileira. Como vimos acima, o autor durante os anos

1920 foi um defensor da ordem constituída aliado a uma ação conservadora com a defesa da

tutela do passado. Todavia, seu pensamento sofrerá uma mudança fundamental nos anos

1930, que resultará na escrita da Carta de 1937 e na instituição do Estado Novo no Brasil. A

partir deste momento, Campos fará um ataque fundamental à doutrina liberal, a qual será

considerada por ele falida no século XX. Com isto, ele argumenta a favor do

constitucionalismo antiliberal. Este ponto sobejamente apontado por Santos (2007) alinhará as

proposições da década de 1930 feitas por Francisco Campos àquelas do jurista alemão Carl

Schmitt e não ao pensamento autoritário da Primeira República, expressando a afinidade entre

o Estado Novo ao ideário das ditaduras do século XX.

Assim como Tavares Bastos, Francisco Campos propõe um modelo americanista para o

Brasil, porém, de caráter diametralmente oposto ao americanismo em Tavares Bastos ou até

mesmo em Tocqueville. De acordo com Santos (ibid.): “Seu modelo de civilização radica na

recepção de um ponto de vista anglo-americano que não é o da Constituição de República de

1891, isto é, não diz respeito à descentralização, mas à unidade do poder político que, para

ele, lhe falta”(p.287).

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O americanismo em Tavares Bastos e a crítica ao liberalismo brasileiro

Os argumentos de Francisco Campos sobre o controle dos excessos do individualismo levam-

no a mais uma inversão do argumento liberal de matriz tocquevilliana. Para estes, como já

demonstrara Tocqueville, o controle dos excessos do individualismo tem de partir da

sociedade civil e de sua doutrina do interesse bem compreendido. Para Campos, só um

governo forte e jurídico poderia conseguir tal desiderato.

No texto Os problemas do Brasil e as Soluções do Regime, Campos argumenta que a

Revolução de 1930 representou forças renovadoras necessárias para o país em virtude da

incompatibilidade das instituições e todos os vícios do regime liberal. Os erros contidos na

ordem liberal levavam ao confronto com os protestos em virtude deste estado de coisas à

medida que o país ia se desenvolvendo (Campos,1940a p72). Estes fatores levaram, pois,

Francisco Campos a decretar a fatídica falência do regime liberal. Argumentava ainda que a

democracia liberal funcionava como repositório de apenas alguns grupos privilegiados e não

para a defesa dos interesses nacionais. Estes grupos estariam em uma posição diametralmente

oposta ao bem público.

Este fator se agravava pela própria constituição da máquina democrática com suas várias

instâncias, pois não abolia os privilégios. Portanto, o liberalismo representava o Estado sem

Estado (Campos, idem). A partir de sua constatação da falência do liberalismo e do seu

caráter antidemocrático, ele vai propor o conceito de democracia substantiva. Esta se

caracterizaria pelo esvaziamento do Parlamento – visto por Campos como estéril – e a

concentração da arena decisória nas mãos do presidente e de seu corpo técnico. Esta passagem

reforça o argumento proposto:

O art. 9º, conferindo ao Presidente da República a atribuição de decretar a intervenção nos estados, não divergiu do sentido do novo regime em relação à função presidencial. O presidente da República é o centro da nova organização estatal. Nele concentram-se as atribuições atinentes à garantia da unidade nacional, da segurança do estado e da estabilidade

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da ordem social. Em tais circunstâncias, deve caber logicamente ao chefe da Nação julgar a oportunidade de intervenção. (Campos,1940b p95)

Francisco Campos afirma ainda que o Parlamento não possui capacidade de ação nos assuntos

de ordem técnica e que a legislação não era função natural do Legislativo, uma ação

estratégica de Campos para legitimar o domínio do Executivo sobre as questões

administrativas. Como os argumentos expostos deixam claro, a proposição de uma

democracia substancial nada mais era do que uma justificação da ditadura, assim como

analogamente o fez Carl Schmitt com a República Weimar. O ponto fundamental da obra de

Campos é a legitimação desta pelo Direito através da Carta de 1937. O Estado para

Francisco Campos seria caracterizado pelo seu caráter antiliberal, plebiscitário e de massas,

diferenciando-se da proposição corporativa de Oliveira Vianna.(Santos, 2007).

Portanto, para que o americanismo do autor pudesse ser aplicado no Brasil como forma de

levar o país ao desenvolvimento e à modernidade era necessário romper com o liberalismo e,

conseqüentemente, com o americanismo proposto por Tavares Bastos. Nesse sentido,

podemos traçar um paralelo entre Francisco Campos e Oliveira Vianna, grandes opositores ao

pensamento liberal brasileiro e cultores entusiastas da ditadura varguista14 como única saída

para a resolução de nossas mazelas.

Considerações finais:

A análise de Tocqueville sobre a singularidade cultural americana resultou em importante

substrato para a compreensão do estado de atraso pelo qual passava o Brasil. Tocqueville

advogava a favor da transformação das demais nações tendo como espelho a sociedade

14 Tal fato pode ser comprovado pela atuação de Oliveira Vianna no Ministério do Trabalho, além da atuação de Francisco Campos nos Ministérios da Justiça e Educação.

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O americanismo em Tavares Bastos e a crítica ao liberalismo brasileiro

americana, que conseguiu através de uma forte cultura cívica manter a liberdade em equilíbrio

com a igualdade. Nesta linha, estudiosos brasileiros, como Tavares Bastos, defendiam que

para que os países que não possuíam uma cultura cívica como a americana, marcadamente os

países da América Latina, haveria como caminho fundamental seguir a via americanista.

O autor alagoano definia o país como um herdeiro de uma malfadada herança de Portugal,

que dominava a sociedade com seu atavismo e impedia que as forças renovadoras pudessem

capitanear uma via de desenvolvimento para o Brasil. Com seu diagnóstico sobre a condição

parasitária do Estado aliada à proposição de descentralização administrativa capitaneada pelo

ideal americanista, Tavares Bastos inseriria seu nome na história política brasileira como

grande autor da tradição liberal que atribuía ao Estado nossos grandes males. Esta corrente

terá como sucessores, no século XX, Raymundo Faoro e Simon Schwartzman.

Oliveira Vianna, por sua vez, construiu sua sociologia com o objetivo de romper com o

pensamento liberal no Brasil, especialmente com as idéias de Tavares Bastos quanto à

existência de um Estado Leviatã entre nós. Para Vianna, nós seríamos tributários de uma

singular formação social que seria a verdadeira fonte da explicação de nossos males. Por isso,

a saída para nossas mazelas, de acordo com o autor fluminense, não estaria na transplantação

de instituições e modelos ideológicos exógenos como pregava Tavares Bastos. A saída estaria

na valorização de nossa formação social através da via do iberismo.

Francisco Campos, ainda pouco lido no Brasil, mas de grande importância para a história

política brasileira, será o autor da Constituição de 1937 que fora responsável pela instauração

da ditadura varguista no país. Para o Francisco Campos dos anos 1930, não havia mais

compatibilidade entre a sociedade de massas e o sistema liberal. Este se mostra para o autor

falido no século XX. Com isso, apenas o caminho da ditadura antiliberal seria viável para

livrar o país do seu atraso.

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Como demonstra Werneck Vianna (1997), Tavares Bastos e Oliveira Vianna transformaram-

se, cada qual a seu modo, em dois grandes derrotados, devido à instauração de um

capitalismo por cima, sem um projeto de cunho popular, que passou a ser protagonizado pela

classe empresarial. Francisco Campos, por sua vez, teve suas idéias em voga durante o Estado

Novo e o Regime de 1964.

Como bem demonstrou Brandão (2005), a análise da história e de seus ciclos intelectuais

torna-se uma importante ferramenta para compreensão e enfrentamento dos nossos problemas.

Principalmente quando conseguimos visualizar com clareza nossas mais significativas

clivagens ideológicas. A partir de seu conhecimento, podemos tirar proveito para a leitura

crítica de nossa história e também da realidade atual, além da possibilidade de buscarmos

caminhos que possam ir ao encontro do Brasil real e de seus mais significativos dilemas.

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