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N. 0 140 . - - -, HOWARD FAST E O PARTIDO F 01 traduzido para o português o depoimento de Howard fast so- bre suas relações de escritor com o partido comunista. Em lança- mento da editora Saga, «O Deus N(«The Naked God»), que Osvaldo Peralva e Aloísio Medeiros traduziram, encontra a mesma receptividade que já o conver- teu em «best-sellern em inúmeros países situados no mundo livre. O depoimento do autor de «Freedom Road», sempre es- crito com segue, e embora revele por dentro o estrutura do partido comunista nos Estads-Unidos, não é ap-enas mais um livro na bibliografia erguida por in- . telectuais que romperam com a União Soviética. É um livro à margem, e pre- cisamente por ser singular, nessa bilio- grafia. Escrito por um norte-americano, que é um dos ficcionistas mais populares do nosso tempo, e ao contrário de tantos outros depoimentos - como os de André Gide, Silone, Stepha,n s.,end�,r-narra me- nos uma experiência pública e mais cs relações do escritor com o partido comu- nista. Não será, por isso mesmo, um pan- fleto. E muito menos um libelo. «The Noked God», no extremo, é uma confissão. Escrevendo como se estivesse a falar, oferecendo seu testemunho em seu passado comunista, Howard fast con- firma uma realidade que outras palavrs não definirão senão as suas próprias pa- lavras : «estamos em face de um terror cego, de uma brutalidade terrível, de uma ignorância aterradora». Lendo-o, nessas páginas que não serão contesta- das e que tantas vezes explicam o cres- cente conflito entre a inteligência e o partido comunista, lembrei-me de Ber- trand Russell ao denunciar o «terror cul- tural» como uma das mais violentas m- nifestações do movimento que se estru- turara com o objectivo de impor o jus- tiça social. Bertrand RusseH, rém, como o próprio Howard Fast, neste outro lado do mundo que o «terror cultural» "ão atingiu, puderam escrever e falar. O sim- ples facto de não poder fazê-lo os que estão do outro lado já prova o validade de «O Deus Nu». No levantamento histórico que faz do •••••••••••••«ESTUDOS ULTRAMARINOVai r distribuído o n. 0 3 da «Revta de tudo Ultramarinos», que será dedicado à Literatura e Ar do Ultramar Português. Constituindo vta panorã- m:ca da Literatura ricana de ex- pressão portuguesa, inrirá traba- lhos sobre a dança e a arte negr, uma bibliografia de ensaio e linguís- tica, uma antologia, vários documen- t sobre a tividade cultural ne- gra e tamm uma vasta análise à principais obras literárias publi- cadas nos último anos referidas nas províncias ultramarinas. Por ADONIAS FILHO partido comunista em nossos dias - ;eu livro constituindo uma peça indispensável qo processo de acusação - caracterizan- do-o através do relatório apresentado no Vigésimo Congresso do Partido Soviético, o escritor não hesita no rigor dos ter- mos: «bestia1!,ida,de, assassí,nio e desu- manidade do homem contra o homem». ÀfACÃ,., bos· VÂMÍÀ[o·s EM· . -T,O:M 1 A ti"{. ' ':,.\ .. ,, \ ;,";j M . E R EU ·oN;-s. tꝏa.C, . ·interesse _ -\ : e . ·o , . . ·. deviãl . aplauso , 9.,' .vimet® . . , que;· em· Tomar, reu1fiu' · i · _. . nu. r·eptesentação,. 6Q. · tp;i'enses qualifiads, de/e . se$ · ,da nê1ia,- 1ia Praça1 , '�elica; , 4 , , rstátua · d ildi Pats; . ue :.ameavà $!ls . ti _ :tuir; �r . U·m. iiafOtrí.s:; tico ·· ,elourinho destitUião de! ·lot histórico Ôu,'artisticd. ·, � Há dias, porém;- um dos nos-, S$ rdactores,.â uma ausên-a>' âe , ':Visifrn .a linda ci-: áe do. Na"(t ' e, quase. llteJ pttStou reconh�ê-la: é que. o ' pâi!alos iniciaram a sua · obra /de destruição, des/iquran-, do, à forca de cimento armado, âs, .. encantadoras características tradicionais da urbe. Acredita. mos. que os edifícios mais ati- gos ·e mais valios tenhan sí' poupados. Mas a verdade é que/ oconjunto sofre com essas in-,:. t e .r p o l a e õ e s arquittónicaf· pseuào-modernas acaba1ido por petder o encant · +r6prio.· ,:.·. , . É' evidente . qú, e. ·as . crescentes'; µigêim; ·urbanfatfcd tet"tnF 1 nam. · a construa ,, de na11-os, pí�' aprriaà\ edifio"ioi, rij �cmis e pifbliés:Nada · impe,1 (avia.:• · e, . rinetpaltte:tmma ctdade pequ -- qite- se.�. 1anieles eravadp _ no cjun- 1 . to,· ponto de o tonr tn:e- con1ivel. hírWo, . inest.éti, ·Sureende-nos que·: não ·:te ·.. nha havido, ·para ��te van}is. mci' muito mais '·grave, qUei afecta a feição plobál ga pidade, uma palavra de advertenctaJ das 600 persnalidades que, aliásJ com fundamento, diutiram a,. localiwção àe uma simples es-' tua e de um simples pelou- rjho•. A verdade que está no conteúdo do rela- tório, e talvez mais que o própria con- fissão de Howard Fast, revela por que o partido comunista se esvaziou de escri- j tores em seus quadros humanos. E in- forma· sobretudo porque, como diz Fast, o «partido comunista da União Soviético destruiu a literatura russa». As reg. cs , partido, se forçam por um lado a deser- ção da inteligência, eliminam pelo outro a possibilidade criadora em um sentido de autenticidade artística. A coacçõo so- bre a inteligência criadora, aliás, é o que expliq1 a deserção na base das relações 1 que loward Fast conformou como sendo a da submissão irremovível do escritor O «comissário» que é o sacerdote. / Esse critério comunista, que em seu parecer pode levar o escritor ao suicídro 1 1 ou oo. assassínio, e que fast configura psicologicamente como «uma combinação j de estu,pi'd'ez, d,�sp,rezo e arrogância», é que tange o inteligência como se os escri- tores - sempre marginais em sua solidão - não dependessem de sua personalidade e não escapassem ao rebanho. «The Naked (Continua na 7.• pág.) Vieira da Silva - Paliçada (Museu do Caramufo •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••os DE TR:IN'rA ANOS SOU PARTIDÁRIO DO ESTILO RIG10ROSO E DO DICIONÁRIO DAS CEM' PALAVHAS -DIZ-NOS JO·S CARDOSO J OSÉ CARDOSO PIRES trabalha em casa («Nunca consegui escrever no café ou na presença de al- guém»). Passa semanas e semanas sem redigir uma linha, «o que - comenta - é terrivelmente preudicial. Mas - acrescenta - sempre que me en- trego a um trabalho de criação faço-o por lo' ngo s períodos ininterruptos, dez, quinze dias, e mais. Nessa altura pos;o manter-me à secretária durante dez ho- ras sem qualquer cansaço». Escreve à mão, em papel sem linhas, com caneta de, tinta permanente. Como fuma excessivamente, tem natu- ral necesidade de beber: leite e chá. Não gosta de café e embora seja apre- ciador de álcool jamais o toma enquanto trabalha. Esboça um plano pormenorizado de trabalho. «Mas o plano - confessa - - é a todo o momento alterado e reac- tualizado por imperativos que natural- mente vão sendo postos no curso do con- vio com a verdade dos personagens. O Anjo Ancorado, por exemplo, foi total- mente reescrito e planificado de novo, depois de uma primeiro versão que or- çava pelo dobro daquela que foi publi- cada». Lê diàriamente, tomando notas de tru · balho - razão porque nunca lê senão em casa. «Em média, gasto nisso - explica - digamos uma hora, hora e meia, sem contar com os inevitáveis minutos o «ontes de adormecem. Não tem livros de cabeceira. «A melhor definição que conheço do exercíçio de escrever -diz, depois - é de um poeta e português: Alexand:e O'Neill. E é esta: «abandono vigiado». E porque a aceito tão incondicional- mente e a sentia antes de ele a ter dito 1 é que escrevo com tão sucessivos correc- çães e jamais de jacto. Faço uma ?ri- meira versão à mão, que depois passo à máquina, intruzindo-lhe nesse momento as alterações que me ocorrem. Sobre e trabalho a,purado, nova revisão à mão e, na melhor das hipóteses, é então que mando passar o texto em definitivo. Nunca publiquei nada que não fosse re- visto três e quatro vezes». Serve-se de dicionários, gramáticas, ol - manaques, encicliopédias, jornais, fotogra- fias ... «Tudo - esclarece - menos prvn- tuários». ( Concluído o trabalho, lê-o sé Car- doso Pires a alguém, antes de o publi- car? PIRES umca virtude que posso descobrir mim como escritor é não ter pressa». O autor de «O Anjo Ancorado» não frequenta cafés. Raramente vai a museus. A conferências - acrescenta-ainda me- nos: «Só às dos amigos, que já sei o que vão dizer». Viaja: «Mas não só no estrangeíro. Ainda me falta conhecer a aldeio onde nasci». Sente-se integrado numa geração? - Como todo o ser humano dei- tado a este mundo tive uma exפ- riência comum aos indivíduos da minha idade. Mas, como todo o ser humano que preza, tive também, sistema de deixar as coisas na gayeta «a aborae felizmen continuo a ter, a mi- nha exפriência soal, privada, do mmo modo que os meus irms em mpo e lugar htórico tiver a sua, deles, exפriência oal e privada. Ora, isto refuta a douta opinião do Morais (vê como consul- to dicionários?) que diz que gera- ção «é o conjun de indivíduos que viveram na mesma épa». Não fal- tava mais nada! Na mma a viveram Caim e Al e não sel quantos milhões de manos que davam como us com os anjos . .. Não. Na minha épa há sempre dois sujeitos da mea idade, mes- Versão de «As meninas» de Velazquez, executada por Pablo Picasso «Ler, eu? - exclama. - Nunca. Leio pessimamente. E raríssimos vezes entre- guei os manuscritos para que mos les- sem. Uso o sistema de deixar os coisas no gaveta «aboborar». Distanciado de- les pelo tempo, posso criticá-los com se- gurança passodos meses e até anos. A (Continua nas págs. centrais)

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N. 0 140

..... ... ;q - - -,

HOWARD FAST E O PARTIDO F 01 traduzido para o português o

depoimento de Howard fast so­bre suas relações de escritor com o partido comunista. Em lança­

mento da editora Saga, «O Deus Nu» («The Naked God»), que Osvaldo Peralva e Aloísio Medeiros traduziram, encontra a mesma receptividade que já o conver­teu em «best-sellern em inúmeros países situados no mundo livre. O depoimento do autor de «Freedom Road», sempre es­crito com segue, e embora revele por dentro o estrutura do partido comunista nos Estad-0s-Unidos, não é ap-enas mais um livro na bibliografia erguida por in-

. telectuais que romperam com a União Soviética. É um livro à margem, e pre­cisamente por ser singular, nessa bii>lio­grafia. Escrito por um norte-americano, que é um dos ficcionistas mais populares do nosso tempo, e ao contrário de tantos outros depoimentos - como os de André Gide, Silone, Stepha,n s.,end�,r-narra me­nos uma experiência pública e mais cs relações do escritor com o partido comu­nista. Não será, por isso mesmo, um pan­fleto. E muito menos um libelo.

«The Noked God», no extremo, é uma confissão. Escrevendo como se estivesse a falar, oferecendo seu testemunho em seu passado comunista, Howard fast con­firma uma realidade que outras palavr:is não definirão senão as suas próprias pa­lavras : «estamos em face de um terror cego, de uma brutalidade terrível, de uma ignorância aterradora». Lendo-o, nessas páginas que não serão contesta­das e que tantas vezes explicam o cres­cente conflito entre a inteligência e o partido comunista, lembrei-me de Ber­trand Russell ao denunciar o «terror cul­tural» como uma das mais violentas m:i­nifestações do movimento que se estru­turara com o objectivo de impor o jus­tiça social. Bertrand RusseH, porém, como o próprio Howard Fast, neste outro lado do mundo que o «terror cultural» "ão atingiu, puderam escrever e falar. O sim­ples facto de não poder fazê-lo os que estão do outro lado já prova o validade de «O Deus Nu».

No levantamento histórico que faz do

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«ESTUDOS ULTRAMARINOS» Vai ser distribuído o n.0 3 da

«Rev.:sta de Estudo.s Ultramarinos», que será dedicado à Literatura e Arte do Ultramar Português.

Constituindo uma vasta panorã­m:ca da Literatura Africana de ex­pressão portuguesa, inserirá traba­lhos sobre a dança e a arte negras, uma bibliografia de ensaio e linguís­tica, uma antologia, vário.s documen­tos sobre a actividade cultural ne­gra e também uma vasta análise à.s principais obras literárias publi­cadas nos último.s ano.s referidas às nossas províncias ultramarinas.

Por ADONIAS FILHO

partido comunista em nossos dias - ;eu livro constituindo uma peça indispensável qo processo de acusação - caracterizan­do-o através do relatório apresentado no Vigésimo Congresso do Partido Soviético, o escritor não hesita no rigor dos ter­mos: «bestia1!,ida,de, assassí,nio e desu­manidade do homem contra o homem».

ÀfAC:DÃ,., bos· VÂMÍi'À[o·s EM·. -T,O:M1 AR) ti"{. ' ':,.\ .. ,, \ ;,";j

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Há dias, porém;- um dos nos-, S$ rt:dactores,.âpóil uma ausên-� cja>'âe tinos, ':Visifrn .a linda ci-: llájle do. Na-Oâ"(t 'e, quase. llteJ pttS.tou reconh�ê-la: é que. o '. pâi!.([,alos já .a!í iniciaram a sua · obra /de destruição, des./iquran-, do, à forca de cimento armado, âs, .. encantadoras características tradicionais da urbe. Acredita. mos. que os edifícios mais. arrti-i, gos ·e mais valiosos tenha.rn sítki' poupados. Mas a verdade é que/ o conjunto sofre com essas in-.,:.t e .r p o l a e õ e s arquitectónicaf· pseuào-modernas acaba1ido por petder o encantÓ-· 11r6prio.· ,:.·. ,. É' evidente . qú,e. ·as . crescentes'; µigêncim; ·urbanfatfcd,S'" detet"tnF1 nam. · a construaão ,, de na.11-os, � púií�' aproipriaàQS\ edifio"ioi, resi•j�ticmis e pifb.lié.os:�Nada· impíie,1 (piifavia.:• ...:. · e, . >prinetpalmé'ltte�:� t.tmma ctdade peque,na ----, qite- se.�. 1ani.•eles encravadps" _no cQJt.jun-

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A verdade que está no conteúdo do rela­tório, e talvez mais que o própria con­fissão de Howard Fast, revela por que o partido comunista se esvaziou de escri- j tores em seus quadros humanos. E in­forma· sobretudo porque, como diz Fast, o «partido comunista da União Soviético destruiu a literatura russa». As reg. cs , partido, se forçam por um lado a deser­ção da inteligência, eliminam pelo outro a possibilidade criadora em um sentidode autenticidade artística. A coacçõo so­bre a inteligência criadora, aliás, é o que expliq1 a deserção na base das relações

1 que t-loward Fast conformou como sendo a da submissão irremovível do escritor O.l «comissário» que é o sacerdote. / Esse critério comunista, que em seu parecer pode levar o escritor ao suicídro 1

1 ou oo. assassínio, e que fast configura psicologicamente como «uma combinação j de estu,pi'd'ez, d,�sp,rezo e arrogância», é que tange o inteligência como se os escri­tores - sempre marginais em sua solidão - não dependessem de sua personalidadee não escapassem ao rebanho. «The Naked

(Continua na 7.• pág.) Vieira da Silva - Paliçada (Museu do Caramufo

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os DE TR:IN'rA ANOS

SOU PARTIDÁRIO DO ESTILO RIG10ROSO E DO DICIONÁRIO DAS CEM' PALAVHAS

-DIZ-NOS JO·S:É CARDOSO

JOSÉ CARDOSO PIRES trabalha em casa («Nunca consegui escrever no café ou na presença de al­guém»). Passa semanas e semanas sem redigir uma linha, «o que -

comenta - é terrivelmente prei,.udicial. Mas - acrescenta - sempre que me en­trego a um trabalho de criação faço-o por lo'ngos períodos ininterruptos, dez, quinze dias, e mais. Nessa altura pos;o manter-me à secretária durante dez ho­ras sem qualquer cansaço».

Escreve à mão, em papel sem linhas, com caneta de, tinta permanente.

Como fuma excessivamente, tem natu­ral necesidade de beber: leite e chá. Não gosta de café e embora seja apre­ciador de álcool jamais o toma enquanto trabalha.

Esboça um plano pormenorizado de trabalho. «Mas o plano - confessa -- é a todo o momento alterado e reac­tualizado por imperativos que natural­mente vão sendo postos no curso do con­vívio com a verdade dos personagens. O

Anjo Ancorado, por exemplo, foi total­mente reescrito e planificado de novo, depois de uma primeiro versão que or­çava pelo dobro daquela que foi publi­cada».

Lê diàriamente, tomando notas de tru · balho - razão porque nunca lê senão em casa. «Em média, gasto nisso - explica - digamos uma hora, hora e meia, sem

contar com os inevitáveis minutos elo «ontes de adormecem. Não tem livros de cabeceira.

«A melhor definição que conheço do exercíçio de escrever -diz, depois - é de um poeta e português: Alexand:e O'Neill. E é esta: «abandono vigiado». E porque a aceito tão incondicional­mente e a sentia antes de ele a ter dito

1 é que escrevo com tão sucessivos correc­çães e jamais de jacto. Faço uma ?ri­meira versão à mão, que depois passo à máquina, introduzindo-lhe nesse momento as alterações que me ocorrem. Sobre e trabalho a,purado, nova revisão à mão e, na melhor das hipóteses, é então que mando passar o texto em definitivo. Nunca publiquei nada que não fosse re­visto três e quatro vezes».

Serve-se de dicionários, gramáticas, ol­manaques, encicliopédias, jornais, fotogra­fias ... «Tudo - esclarece - menos prvn-tuários». (

Concluído o trabalho, lê-o �

sé Car­doso Pires a alguém, antes de o publi­car?

PIRES umca virtude que posso descobrir (,Ili

mim como escritor é não ter pressa». O autor de «O Anjo Ancorado» não

frequenta cafés. Raramente vai a museus. A conferências - acrescenta-ainda me­nos: «Só às dos amigos, que já sei o que vão dizer».

Viaja: «Mas não só no estrangeíro. Ainda me falta conhecer a aldeio onde nasci».

Sente-se integrado numa geração? - Como todo o ser humano dei­

tado a este mundo tive uma expe­riência comum aos indivíduos da minha idade. Mas, como todo o ser humano que se preza, tive também,

sistema de deixar as coisas na

gayeta «a aboborar»

e felizmente continuo a ter, a mi­nha experiência pessoal, privada, do mesmo modo que os meus irmãos em tempo e lugar histórico tiveram a sua, deles, experiência pessoal e privada. Ora, isto refuta a douta opinião do Morais (vê como consul­to dicionários?) que diz que gera­ção «é o conjunto de indivíduos que viveram na mesma época». Não fal­tava mais nada! Na mesma épo::a viveram Caim e Abel e não sel quantos milhões de manos que se davam como Deus com os anjos ...

Não. Na minha época há sempre dois sujeitos da mesma idade, mes-

Versão de «As meninas» de Velazquez, executada por Pablo Picasso

«Ler, eu? - exclama. - Nunca. Leio pessimamente. E raríssimos vezes entre­guei os manuscritos para que mos les­sem. Uso o sistema de deixar os coisas no gaveta «aboborar». Distanciado de­les pelo tempo, posso criticá-los com se­gurança passodos meses e até anos. A (Continua nas págs. centrais)

Page 2: N. - - HOWARD FAST E O PARTIDOhemerotecadigital.cm-lisboa.pt/EFEMERIDES/... · 2018-09-24 · ral necesidade de beber: leite e chá. Não gosta de café e embora seja apre ciador

JOSÉ CARDOSO PIRES:

« TODAS AS SEGUNDAS PROFISSÕES SÃO VINGANÇAS OU PR,EPOTÊNCIAS»

(Continuação do 1.0 pág..l

mo meridiano e mesma latitude que divergem. Se a divergência é polar­mente oposta, mal vai a coisa. � a história há-de ter casos de cap1taes de guerra civil saídos à mesma hora da mesma maternidade ... Se a c'i­vergência se situa dentro de �m mesmo quadrante de valores bas1-cos, óptimo. Temos uma pluralidade de experiências privadas que só en-�•••••••••••••••••

riquece a experiência comum. E isso que podemos verificar se olharmos alguns dos (escritores) «de trinta a n o s» - como lhes c h a m a - de maior i m n o r t â n c i a : Alexandre O'Neill, UÍ·bano Tavares Rodrigues, Augusto Abelaira, Fernanda Bote­lho David Mourão Ferreira ... Vozes dif�rentes, como _vê. Mas o facto Ge haver nelas o tom dominante de um tempo histórico não cherra para os reunir sob o rótulo de gerar:ão, no que isso envolve de compromisso de grupo ou de movimento.

- Para quem escreve? Para �;. para os outros escritores, para o leitor comum?

- Ninguém escreve para si, a nãoser as meninas-rebucado na fase cta primeira rastei.ra. Nenhum escriwr escreve para os outros escritores. Gertrude Stein? Ora, ora ... James Joyce? Viu-se que não. Irene Lis­boa? Havemos de ver. Mas há escri­tores que escrevem contra eles mes­mos. Camilo, por exemplo. E quanto ao leitor comum ... Que é o leitor comum?

- Crê desejável a profissionaliza­cão do escritor?

- Nem se pergunta.- Considera a seaunda profissão

um mal inevitável? Que lhe pare�epreferível: uma sequnda profiss5o totalmente alheia ao ofício das le­tras ou o recurso às actividad-?smenores da vida intelectual (tradu­ções, colahornr.ão e:n ior"ais e re­vistas, na Rádio e na TV)?

- Uma segunda profissão só porvingança. Ou por desnorto. ou por reeducação. Por exemp!o: convenço-

Nota hiohibliográf ica José Cardoso Pires nasceu em

Peso, a-Ideia do distrito de Cas­telo Branco. em 2 de Outui:>ro de 1925, mas tem vivido quase exclusivamente em Lisboa. Aban­donou a Faculdade de Ciências no início do curso. Foi depois angariador de publicidade. agen­te de vendas. apontador de cais. t' Nos últimos anos da guerra en­t!·ou na Marinha Mercante como

! praticante de piloto sem curso. Regressou em 1945 e foi sucessi­vamente funcionário da Inten­dência Geral dos Abastecimen­tos, empregado de escritório de um.a empresa comercial, -intér­prete, e funcionário duma com­panhia de aviação. Seguidamente trabalhou numa casa editora e depois na redacção duma revista. Entretanto escrevia artigos e conto1> para várias publicações e fazia traduções do inglês.

Publicou: «Os Caminheiros», «Histórias de Amor» e «o Anjo Ancorado». Dará este ano a pú­blico um ensaio («Cartilha do Marialva») e um romance («O Hóspede de Job»).

-me de que uns dias por mês comoescrivão não seria mau de todo.Aprender-se-ia o rigor da minúcia, aordem exacta do descritivo, o usodas palavras pobres e a simpatiapelo obsoleto. Sou partidário do es­tilo rigoroso e do dicionário das cempalavras. Razão porque tenho algumdesgosto de não ter concluído ocurso de matemáticas. Fora disso, acho que todas as segundas profis­sões são vinganças ou prepotências. Tive muitos empregos. Sei o que isso é... Ah, espere: tenho ainda uma excepção. «Barman»! Um «bar­man» é um sacerdote de virtudes e de tentações controladas. Mas, embo­ra isso seja em mim uma sedução antiga, retiro o que disse. o escritor que se faz voluntáriamente «bar­man» exerce ainda uma profissão li­terária ...