Montaigne - Ensaios

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91 · 07ff7 Oa,los Jnt.erruu :io na s de Catalogação oa Publl caçio (C I P) Brasileiro Livro, SP  MontaJ11n e. Michí. I de. 1633 1692 . Ensalo. I / M lchel de MontaiJJne ; tradu\ãO df' ~ r g 1 M ll1et 5. t d - Sdo Pauto Nova Cul tural , 1001. - (O:. pcru.adore:i ; 18) lncluj vida r obra de M o ntai gne. DlbUQgnl(i.a I SBN 85-13 · 00231·3 1. ~tlca :?. Fil osofia fmncesa I M illic t , 8~rgio l l:l98 · 10trn . 11 Tltu lo. lll . Série. fuctlces .1>nra catálogo s is1 emático: l etfrn : Ftlo.' OflU 17() 2 f'i)tl 'l(>flU fral\1'< '3 194 Cl>D·l04 -170 MICHBLDB - 1 - ~ i 1  ~ L O O f MONT IGNB ENSAIOS Tradução de 1 1  MW ltt NOVACWUMI 1991

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91 ·07ff7

Oa,los Jnt.erruu:iona s de Catalogação oa Publlcaçio (CIP)(C4mara Brasileiro do Livro, SP  Bnuiil)

MontaJ11n e. M ichí. I de. 1633 1692 .Ensalo. I / Mlchel de MontaiJJne ; tradu\ãO df' ~ r g 1 M ll1et

5. t d - Sdo Pauto • Nova Cultural, 1001. - (O:. pcru.adore:i ; 18)

lncluj vida r obra de Montaigne.DlbUQgnl(i.a

ISBN 85-13·00231·3

1. ~ t l c a :?. Filosofia fmncesa I Millict , 8 ~ r g i o l l:l98·10trn .11 Tltu lo. lll . Série.

fuctlces .1>nra catálogo sis1 emático:l etfrn : Ftlo.' OflU 17()2 f'i)tl 'l(>flU fral\1'< '3 194

Cl>D·l04-170

MICHBLDB

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MONT IGNB

ENSAIOS

Tradução de MWltt

NOVACWUMI

1991

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DO UTOR O LEITOR

Eis aqui, leitor, um livro de boa-fé.Adverte-o ele de início que só o escrevipara mim mesmo, e alguns íntimos,

sem me preocupar com o interesse que poderia ter para ti, nem pensar na posteridade. Tão ambiciosos objetivos estão acima de minhas forças. Votei-o em partit·ular a meusparentes e amigos e isso afim de que, quando eu não for mais destemundo o que em breve acontecerá , possam nele encontrar alguns traços de meucaráter e de minhas idéias e assim conservem mais inteiro e vivo o conhecimento

que de mim tiveram. Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia eefeitado e me apresentaria sob uma orma mais cuidada, de modo aproduzir melhor1feito. Prefiro, porém, que me vejam na mi nha simplicidade natural, sem artfflciotlt? nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto. Vivos se exibirãomeus defeitos e todos me verão na minha ingenuidadefisica e moral, pelo menos1•11qua111 o permitir o conveniência Se tivesse nascido entre essa gentede quem

se diz viver ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, asseguro-teq11e de bom grado me pintariapor inteiro e nu.

Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente para que não empregues teus loures em assunto tão fútil e de tão mínimamiportância.

E agora, que Deu.s o proteja• . e Montaigne, em primeiro de março de 1580

• ..... .. • . • 1 ... ..

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72 MONTAIGNE

este, no seguinte: na escola um aluno que pos suía um capote curto demais deu-o a seucamarada menor e tomou o deste que era maiscomprido. O mestre fez-me jui i da contenda.Eu achei que se devia deixar as coisas como

estavam, porqUGnto parecia que cada q u ~ Iassim se via possuidor de um capote a seu feitio. Meu mestre mostrou-me então que assimjulgando cu não consultara senão a conveniência e que fora preciso antes ntcnuir para ajnstiça, a qual cstnbclec.e que ninguém seja des

pojado à força daquilo que lhe pertence . ECiro acrescentou que por esse erro de aprecu1-ção fora chicoteado tal qual o somos em Frnnça. nas nossas aldeias, quando nos enganamos

quanto ao tempo de um verbo grego. Meu professor poderia fazer-me urn inteiro discurso -  in gcnere demonstrativo" - sem conseguirpersuadir-me da superioridade de sua escolasobre essa. Os lacedcmônios quiseram cncur·tar o caminho e como as ciências, ainda que se

estudem seriamente s6 nos podem oferecer teorias acerca da prudêncin. da sabedoria na conduta e do espírito de decisão, sem nos levar àsua prática, procuraram c o l o c a ~ desde_ cedo .ascrianças em contato com a realidade. m1>trumdo-as não por palavras ma s pela ação, formando-as e as moldn.ndo rigorosa mente. por preceitos e frases sem dúvida, mas t;:.mbém eprincipalmente Por exemplos e obras, a fim de

que o saber não lhes enchesse apenas a ulmamas a ela se i n e o r p o r a ~ s e tornando-se compleição e hábito: e que nã o fosse uma aquisição mas uma propriedade natur:iJ. A propósito, perguntou-se a Ag1:3ilsu que deviam. na

sua opinião, as crianças aprender, ao que elerespondeu : o que terão de íuer quando crescerem. Não é de estrnnbar que semelhante educação tc11hn produz.ido tão admiráveis efeitos.Conta-se que se iam buscar em outr4S cidadesda Grécia retóricos. pintores. músicos e naLacedemônia os legisladores, os magiscrados ecomandantes dos e11ércitos. Em Atenas apren·dia-se a bem falar; Já, a bem fazer. Numa adiscutir nas controvérsias dos sofistas e epenetrar o verdadeiro sentido das frases artificialmente constituídas; noutra, a defender-se

conlra as tentações da volúpia e a encarrar

com coragem os reveses da sorte on a morte

que nos ameaça. Aqueles a discorrer. estes aagir; contínuo exercício de língua de um lado; e.

de outro, da alma. Não admira portMto que aAnúpater, que exigia cinqüenta crianças comoreféns. lhe respondessem, ao contrário do queteríamos feito, que preferiam dar o dobro de

homens íeitos, de tal modo ~ m i m que perdessem a educação da terra. Quando A&esilauconvida Xcnofonle a mandar os filhos paraEsparta. a fim de ai serem educados. não pretendia ensinar-lhes a dialética e a retórica. maso fazia para que aprendessem a mais bela dasciências, a do saber obedecer e mandar.

É divenido ver Sócutes caçoar. a seu modo,de Hípias, o qual lhe conta como ganhoudinheiro com o ensino, sobretudo em certasaldeias da Gália, enquanto em Esparta nãopegou um vintém. "Esses espartanos". diz lií pias. '' são uns broncos. incapazes de medir econtar, ignorantes da gramátic11 e dos ritmos,mteressados apenas na cronologia dos reb, nafundação e decadência dos Estados e outrastolices que tais." Quando terminou, Sócratesconvenceu-o a pouco e pouco da excolêncin desua forma de governo, da felicidade e da virtude de sua vid,a privada e sugeriu-lhe como conclusão a inutilidade das artes.

Ensinam-nos os uemplos do que se verifi·cou nesse governo e nos do mesmo tipo, que o

estudo das ciências amolece e efemina as coragClls mais do que as robustece e as tornaaguerridas. A nação mais poderosa que existeoeste momento é a dos turcos, povo ({ue igual·mente estima as armas e despreza as letras.Roma íoi mais valente antes de se tornar sábia.Os países mais belicosos de nossos dias

aqueles em que o povo é mais grosseiro e ii nOrante. Tem-se a prova nos ci tas, nos persas,emTamcrfao. Quando os godos saquearam a Grécia, o que evitou se incendiassem as bibliotcc&Afoi ter tido um de les a idéia de de ixar os livrosintatos a fim de que s.eus inimigos < O m eles sedistraíssem e neles encontrassem uma ocupa·çào sedentiriu e ociosa, capaz de afastá-los do

serviço militar. Quando nosso Rei Carlos VIIIse apoderou, quase sem desembainhar a espa·da, do reino de Nápoles e de boa parte d:i Tos·cana, os fidalgos de seu séquito atribuíram ainesperada facilidade da conquista ao foto de

os príncipes e a nobreza da JtáJia passllfem otempo antes nos trabalhos do csp{rito e no es·tudo da ciência quo em se esforçando por seLomarem vigorosos e guerreiros.

j

CAPITULO XXVI

Da educação das crianças

À Sra Diana de Folx Condessa de Gurson

Nunca vi pai, por corcunda ou tinhoso que

fosse o filho, deixar de dá-lo por seu. Não.c:ritretanto, por estar cego pela afeição e não se

aperceber do defeito. mas lia-somente porque

seu. Assim eu vejo melhor do que outro nio

haver aqui senão devaneios de homem que das

ciências 9Ó provou a casca em sua infância eapenas reteve delas um aspecto geral e informe; um pouco de todo e até nada de nada, àfrancesa. Porque, em suma, sei que há uma

medicina, uma jurisprudência, quatro portesna matemática, e, grosseiramente, o que visamelas. Porventura saberel ainda, do um modopra . qual seu objetivo e sua utilidade em

nossa vida. Mas , ir além, queimar as pestanasno estudo de Aristóteles, soberano da doutrina

moderna, ou me obstinar cm qualquer ciência,alo o fiz nunca. Nem há arte de que cu possa

-iuer expor as mais elementares noções. Bqualquer menino das classes médias pode

dizer-se mais erudito do que eu que não tenhocapac idade para examiná-lo sobre as primeiraslições ; dessa natureza pelo menos. Se me forçam a fazê-lo, vejo-me obrigado, assu inepta·mente, a tratar de algum assunto de caráter

ll ral pelo qual julgo sua inteligência natural.llatéria tão alheia a ele quanto a sua me é•ranha.

N'ao me enfronhei em nenhum livro sólidoltnio nos de Plutarco e Sêncca em cuja obro, allemplo das Danaides, busco sem cessar aqui

~ ~ u e l o g ~ entrego alhures. Em meus escritos~ m c o ~ s a fica; em mim quase nada. A bis·é mais de minha predileção, ou a poesiaJ:. tnh-0 em particular estima. Pois, corno

80C l ~ a n t e s assim como o som, prensado

estreito canal de uma trombeta, sai maistllldo e forte, assim se me afigura que o pensa·n g i ~ o pelas regras d.a poesia, se

CIDm • 1f 81s vivamente e me unpressionama10r intensidade.t a n ~ às faculdades naturais que aqui

lliahi a prova. sinto-as vergar sob a carga.S concepções e meus pensamentos só

.........:..::-· às apalpadelas, cambaleantes, aw.--.ar entre tropeços: e por mais longe que~

fico satisfeito; vejo tcrras aindtl além,

mas turvas e enevoadas e não as posso distin

guir. E. se me proponho falar à vontade de

tudo o que se apresenta à minha fantasia, nioempregando nisso senão os meus recursosnaturais, acontece-me não raro encontrar por

acaso nos bons autores os mesmos assuntosque procuro comentar, como vem de me suceder com Plutatco acerca da força da imaginação; e ao reconhecer-me diante deles tio fracoe insignificante, tão pesado c sem vida, tenhopiedade de mim mesmo, e desdém. Todaviasinto prazer em verificar que minhas opiniõestêm a honra de ir ao encontro das deles, às

vezes, e embora de longe, sigo-lhes as pegadas. E também tenho esta vantagem que nemtodos têm, que é conhecer a profunda diferençaque há entre mim e eles. E, no encanto, deixoos meus pensamentos correrem assim fracos epequenos., como os concebi, sem rebocar nemtapar os buracos que a comparação me n:velou. t preciso ter rins sólidos para andar emcompanhia dessa gence2 • 3 • Os escritores semdiscernimento de nosso tempo, e que cm seuslivros sem valor vão semeando trechos inteirosdos autores antigos2 • ' para se enfeitarem,faz.em o contrário; porque a infinita dessemelhança de brilho entre o que lhes é próprio e oque tomam de empréstimo dá um aspecto tão

pálido,desbolado e feio ao que é deles que perdem muito mais do que ganham.

Eis dois sistemas diferentes: Crisipo mistu

rava aos seus livros não someote trechos masrambém obras inteiras de outros autores. e emum desses seus trabalhos se acha reproduzida"in extenso" a "Medeia" de Eurípides; e dizia

Apolodoro que se lhe conassem o albejo ficava o papel 'em branco. Epicuro, ao contrário,nos tre2entos volumes que deixou nunca pôs

uma fiÍ citação.Aconteceu-me um dia destes dar com um

desses escritos: tinha-me arrastado penosa·monte até o fim de uma prosa francesa tão

2 . Mich aut n t e r p r e t a : ~ p r ~ u estar ~ u r de sipara ombreu coa i essa gente. (N. do T.)• • Obsc:tve-sc que Monr&igM não t priva de

fazê·lo.

.

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74 M O N T l l i N ~

exangue, tão descamada, tão vazia de substância e de sentido que não er,a, e?' verdade,mais do que palavras em frances, eis.que apóstão longa e aborrecida leitura d e ~ a r e 1 com umtrecho elevado, rico, erguendo-se as u v e n ~ .tivesse achndo a subida suave e a r a ~ ~ ª . f a c ~ ,tudo se desculparia, mas era u 11 p r ~ c t p ~ c w t a oabrupto, inesperado, que logo as se1s p n m ~ T apalavras verifiquei andar por outro a m i n hDali descortinei o ~ a l de ?nde v m ~ a ~ a obaixo e profundo que nao mais me a n u n ~ 1 a<lescer de novo. Se recheasse com esses

despojos um dos meus trabaJhos, com eles iluminaria por demais a tolice dos outros:

Censurar nos outros os meus próprios errosnão me parece mais, inconseqüente do que r: Jevar, como faço amiude, os dos outros em .mim.É preciso apontá-los onde quer que s t e J enão lhes dar asilo. Bem sei com que ousadia.eupróprio tento igualar-me por todos os_ meiosaos meus furtos e ir de par com eles, nao ~ ' 1a temerária esperança de poder enganar os JUizes que os examinam; mas não é 811to peloproveito que tiro de tais o o ~ ç < > e s quantopelo que pode resultar de vantajOSO _para asidéias propugnadas e de força para po-las emevidência. Ademais niio procuro lutar corpo a

corpo com esses velh?s a m p ~ e s ; lu t_9 porassaltos, ataques repettdos e rap1dos. Nao meobstino, não faço senão tocá-los e ~ u n c a vouaté onde desejaria ir. Se pudesse medir-me comeles seria homem de bem, pois só procuro imitá-los no que têm de melhor2 4 5

• Fazer o que vifazerem alguns que se revestem da couraça deoutrem, de forma a nem sequer mostrarem aponta dos dedos, e conduz.ir seu plano -como se permite aos cientistas em assuntocomum - à sombra das invenções antigaspilhadas aqui e acolá, procur:indo· as dissim?lar e tomar suas, ê desonestidade e covardiaantes de tudo, porquanto não tendo em si n a d ~que os realce prete.ndem valer pelo q ~ e e

alheio. Ademais, contentam-se em conquistarpor trapaças a ignorante a p ~ o v a ç ã o do vulgo esão mal vistos pelos entendidos, que torcem onariz. a esse trabalho, verdadeiro mosaico depeças e trechos tomados de m p ~ é s t i m o . Ora. olouvor destes é que pesa. Por minha parte, evito-o fazer. E s cito os outros é para melhordizer de mim. lsto não diz respeito aos centõesque se publicam como centões2 4 6

• Vi-os u i ~engenhosos outrora. entre outros um de Cap1-lupus, sem contar os antigos. São espíritos.quese distinguem nisso como em outras coisas,como Lípsio na douta e laboriosa composiçãode sua Po lítica".

2 • s No texto: - só os ataco pelo seu lado maisforte. N. do T .

Como quer que seja e quaisquer que s:j amas inépcias que me passam p e l ~ mente, nao asesconderei, como não esconderia meu relato seem vez. de jovem e belo me representasse calvoe grisalho como o sou, em r ~ a ~ e . Exponhoaqui meus sentimentos e op1n1oes, dou-os

como os concebo e não como os concebem o&

outros· meu único objetivo é analisar a mimm e s m ~ e o resultado dessa análise pode, amanhã. ser bem diferente do de_hoje, se n o v ~ sexperiências me mudarem. N.ao tenho autoridade para impor minha maneira de v ~ r , o

desejo, sabendo-me demasiado maJ mstnndopnra instruir os outros. .Alguém, depois de ler o ensaio precedente,

diz.ia há tempos em minha casa qoe eu medevia ter alongado um pouco mais sobre acação das crianças. Mas , Senhora, se eu _tivesse alguns conhecimentos do assunto nao osempregaria melhQr do que em fazendo _prcscn edeles a esse rapazinho que ameaça satr de vos(sois generosa demais para não co_meçardespor um varão), pois tendo tomado tao grandeparte na preparação de vosso casamento,tenho algum direito de me interessar pela gr .111-deza e prosperidade de.tudo o q ~ ~ ~ e l e provier.Por outro lado, os antigos priv1leg1os que ten·

des sobre mim, levam-mena t

uralmente a desejar honras, bens e melhorias em tudo o que vosdiz respeito. Mas na realidade s ~ o só entendoque a maior e mais importante dificuldade daciência humana pareee residir no que concerne

à instrução e à educação da criança.O mesmo acontece na agricultura: o que

precede à semeadura é certo e fácil; e tambémplanlar. Mas depois de brotar o .que se plan;ou,dificeis e variadas são ns manetras de trata-lo.Assim os homens: pouco custa semeá-los, 11ª5

depois de nascidos, educá-los e instruí-los e ta

refa complexa, trabalhosa e temível. O que serevela de suas tendências é tão tênue e obscuro

- incernos primeiros anos, e as promessas taotas e enganadoras que se faz. dificil assentar

um juízo seguro.Vede como Címon e Temístocles, e tantos

outros se desmentiram a si próprios. Os ~ 1 :tes de ursos e de cães mostram sua t e n d e  natural · os homens, porém, metendo-se d

' . 1 . dant oulogo em hábitos, preconce1tos, els. mu

se mascaram facilmente.

Certamente é muito dilicil modilicatpropensões naturais. Daí provém que, em ·rse tendo escolhido bem o cam inho a segui.:trabalha-se inutilmente muitas vezes e se predesam anos para i ~ s t r u i r as cr ianças a c e p é r ~ a EJO

coisas em que nao chegam a . iO ótodo caso nessa dificuldade a minha op1m ·si•

que as encaminhemos sempre para asc o ~ • -

2 8 melhores e m a ~ ~ p r o ~ e i t o ~ a - ~ ~ ~ , ~ ~ : ~ . 1

prognósticos que tiramos da inlancia. Platãom sua República parece dar-lbes importância

axcessiva.a ciência,,Senhora, um grande orn amento

e ferramenta de admirável préstimo, em parti

cular para as pessoas de vossa condição social.Não tem em verdade seu melhor emprego nas

mãos humildes e baixas. Orgulha-se muitomais em prestar os seus serviços na direção de

uma guerra, no governo de um povo, oa amizade de um príncipe, ou de um país estrangeirodo que em enunciar uma argu mentação dialética, em arrazoar um recurso ou receitar um

punhado de pílulas. Eispor

que vos

queroeJIPOr, sobre o assunto, idéias coutrárias à opinião vulgar. É tudo o que posso para vos servir

neste caso. E o faço porque estou convencidode que não esquecereis a ciência na educaçãodos vossos, vós que já lhe saboreastes a doçura

e pertenceis a uma família de letrados - poistemos ainda os escritos dos antigos condes deFoix, de que descendeis, vós e o conde; e vossotio Francisco de Candale eontinua a produz.iroutros que levarão aos séculos futuros oconhecimento dessa qualidade de vossa famí

lia.A tarefa do preceptor que lhe dareis, e da

escolha do qual depende todo o efeito da sua

educação, comporta vários aspectos importantes; mas não toco nas outras partes por nãoaaber dizer nada que valha a pena. Quanto ao

ponto em que proponho meus conselhos, elem acreditará no que quiser. Para um filho de

família que procura as letras, não pelo lucro(poisum fim tão abjeto é indigno da graça e do

favor das musas e, por outro lado, não dependee nós) nem tanto pelas vantagens exteriores

C( ae os oferece como pelas suas próprias, eira se enriquecer e adornar por deotro para

llftl rapaz que mais desejaríamos honesto do

que sábio, seria útil que se escolhesse um guia

oom cabeça bem formada mais do que exagereitamente cheia e que, embota se exigissem as

d ~ a scoisas, tivesse melhores costumes e inteliPncia do que ciência. Mais ainda: que exer

oesse suas funções de mane ira nova.Não cessam de nos gritar aos ouvidos, como

que por meio de um funil, o que nos queremt t oinar  o nosso trabalho consiste em repetir.

staria que ele corrigisse este erro, e desdelama acgundo a inteligência da criança, come= a indicar-lhe o caminho, fazendo-lhe pro-

as coisas, e as escolher e discernir por si~ i o , indicando-lhe por vezes o caminho- 10 ou lho permitindo escolher. Não quero.-:.fale sozinho e im que deixe também o dis

""l'UIO f a l a ~ por seu turno.Sócrates, e posteriormente Agesilau, obriga

  : 3 ~ p u l o a falarem primeiro e s o m ~" " " P O • falavam eles próprios. " Na mamr

parte das vezes a autoridade dos que ensinam énoc iva aos que desejam aprender»2. 7 • a bom

que faça trotar essa inteligência à sua frentepara lhe apreciar desenvolvimento e ver atéque ponto deve moderar o próprio andar, poisem não sabendo regular a nossa marcha tudoestragamos. uma das mais árduas tarefasque conheço colocar-se a gente no nível da

criança; e é característico de um espíríto bemformado e forte conde scender em tomar suas

as idéias infantis, a fim de melhor guiar acriança. Anda-se com mais segurança e firme·z.a nas subidas do que nas descidas.

Quanto aos que, segundo o costume, encarregados de ínstruir vários espíritos naturalmente diferentes uns dos outros pela inteligência e pelo temperamento, a todosministram igual lição e disciplina, não é deestranhar que dificilmente encontrem em dmamultidão de crianças somente duas ou três quetirem do ensino o devido fruto. Que não lhepeça conta apenas das palavras da lição, mastambém do seu sentido e substância, julgandodo proveito, não pelo testemunho da memóriae sim peJo da vida. É preciso que o obrigue aexpor de mil maneira.s e acomodar a outrostantos assuntos o que aprender, a fim de verifi·car se o aprendeu e assimilou bem, aferindo

assim o progresso feito segundo os preceitospedagógicos de Platão. indício de azia eindigestão vomitar a carne tal qual fe>i engolida. O estômago não faz seu trabalho enquantonão mudam o aspecto e a forma daquilo que selhe deu a digerir.

Nosso espírito, no sistema que condeno, não

procede senão por crença e adstrito às fantasias de outrem, servo e cativo de ensinamentosestranhos. Tanto nos oprimiram com as andadeiras que já não temos movimentos livres.

Vigor e liberdade extinguiram-se em nós:"nunca se dirigem por si. próprios"2 0

. Trateiintimamente em Pisa com um homem bom,mas tão aristotélico que o mais geral de seus

dogmas é que a pedra de toque e a regra detoda jnteligencia sólida e de toda verdade estãona dot•tri.nn de Arist6teles, fora da qual só há

quimeras e inanidade, pois tudo ele viu e disse.Essa afirmação, por ter sido interpretada comcerta amplitude e malícia, comprometeu durante muito tempo e muito seriamente seuautor junto à Inquisiçãoem Ro ma.

Tudo se submeterá ao exame da criança enada se lhe enfiará na cabeça por simples autoridade e crédito. Que nenhum princípio, deAristóteles, dos estóicos ou dos epicuristas,seja.seu princípio. Apresentem· se· l 1e todos emsua diversidade e que ele escoltia se puder. E se

2• Cí<:ero.

2 0 S ê n ~ c a .

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não o puder fique na dúvida, P ? i ~ _ li> os loucostêm certeza absoluta cm sua opm1ao.

'INào menos que saber, duvidar me

apraz;z o ."Porque se por reflexão P :ÓPriaçar as opiniões de Xenofonte e ~ l a t a o , elas deixarão de ser deles e se tornarao suas. Quemsegue outrem não segue coisa nenpuma; nemnada encontra. mesmo porque nao procura."Não estamos sob o domínio de um rei; quecada qual se governe a si próprio"2 50

• Que :_lctenha ao menos consciência de que sabe . Nao

se trata de aprender os preceitos desses filósofos e sim de lhes entender o espírito. Que os

e s ~ u e ç aà vontade, mas que os saiba

s s i m i l ~ .A verdade e a razão são comuns a todos e nao

pertencem mais a quem as diz ~ r i m e i r o do queao que as diz depois. Nao ê ma1.s s e g u n d ~ Platão, do que segundo eu mesmo, que tal coisa seenuncia. desde que a compreendamos e a veJa·mos da mesma maneira. As abelhas libaro flores de toda espécie, mas depois fazem o melque é unicamente seu e não do tomilho ou damanjerona. Da mesma forma os elementos

tirados de outrem, ele os terá de transformar emisturar para com eles fazer obra própria. isto

é para forjar sna inteligência. Educação, trabalho e estudo não visam senão a formá-la.Que ponha de lado tudo aquilo de ~ u e sesocorreu e mostre apenas o que produziu. Os

ladrões e os que vivem de empréstimos, fazemalarde de suas casas, de suas compras, não doque tomam aos outros. Não se .conhecem os

ganhos de um m a g ~ s t r a d o , v ê e m ~ s e os casamentos e as honrarias que arranjou para os

seus. Ninguém publica suas receitas e sim suas

despesas. O proveito de nosso estudo está emnos tornarmos melhores e mais avisados. É ainteligência, djzia Epicarmo, que vê e ouve; é ainteligência que tudo aproveita, tudo dispõe,age, domina e reina. Tudo o mais é cego,e sem alma. Certamente tornaremos a criança

servil e tímida se não lhe dermos a oportunidade de fazer algo por si. Quem jamais perguntou a seu discípulo que opinião tem da retóri·ca da gramática ou de tal ou qual sentença de

C í ~ e r o ? Metem·nas em sua memória bemarranjadinhas, como oráculos que devem_ serrepetidos ao pé da letra. Saber de nao ésaber: é conservar o que se entregou a memória para guardar. 0-0 que sabemos efetiva·mente dispomos sem olhar para o modelo,sem v ~ l t a r os olhos para o livro. Triste ciênciaa ciência purwnente livresca 2 5

, Que sirva deornamento mas não de fundamento, como

pensa Platão, o qual afirma que a firmeza, a

i o Dlliltc: he non tn che saper dubbiarm a g g ~ a d a .2 50 Sêneca.

1 • No texto "suffisance" que parece pejorativo,m 1 1 ~ sígnificava então. corno interpreta Michaut,s.1ber ou ciência. (N. do T.)

boa-fé, a sinceridade, são a verdadeira íilosofi.a, e que as outras ciências, com outros fins,não são mais do que brilho enganoso. Queriaver se Palnel e Pompeio, esses belos dançarinos de nosso tempo, seriam capazes de nosensinar suas cabriolas pela vista, sem nos fazermudar de lugar, como os que querem desenvolver nossa inteligência sem a excitarem; e sepodem ensinar-nos a montar a cavalo, manejaruma alabarda ou um a l a ú d e ~ cantar, sem exerclcio, como nos querem ensinar a bem julgar ebem falar sem nos exercitar nem a uma coisanem a outra. Ora, para exercitar a inteligência,tudo o que se oferece aos nossos olhos servesuficientemente de livro: a maHcia de um

pajem, a estupidez de um criado, uma con·versa à mesa, são, como outros tantos, novosassuntos. • , 1 d .

Por isso o comercio dos homens ,. e ev1-t • • ,

dente utilidade, assim como a v1s1ta a paisesestrangeiros; não para .nos informar, como ofaz.em nossos fidalgos franceses, acerca dasdimensões da Santa Rotonda, ou da riquezadas calças d Signora Llvia, dizer-nos se a cabeça de Nero em uma velha ruína qualquer émais comprida ou mai s larga do que em certasmedalhas, mas para observar os ~ s t u m c s e.ºespírito dessas nações e para lunar e pol rnosso cérebro ao contato dos outros, Gostarlll

que fizessem a criançav i l \ i ~

desd.e _Pequena.eem primeiro lugar pelos proses ~ ~ i n h o s ~ u J alíngua se afasta mais da nossa, pois_se ~ a o ahabituarmos a ela desde cedo, a ela nao seacostumará. .

Admite-se também geralmente que a cnançanão deve ser educada junto aos pais. A suaafeição natural enternece-os e relaxa-os m ~ ·siado, mesmo aos mais precavidos. Nao saocapazes de lhes castigar as maldades nem de averem educada algo severamente como convém, preparando-a_para as aventuras vida.Não suportariam ve-la chegar do cxercic10, emsuor e coberta de pó, ou vê-la montada em ca·valo bravo ou de florete em punho, contra umhábil esgrimista, ou dar pela primeira vez um

tiro de arcabuz. E no entanto não há outrocaminho: quem quiser fazer do menino urnhomem não o deve poupar na juventude nem

deixar de infringir amiúde os preceitos dosdicos: "q ue viva ao ar livre e no meio dos p e r ~gos"2 u Não baSta fórtalecer-lhe a ~ l m a ,preciso também desenvolver-lhe os muscuJoS.Terá de se esforçar demasiado se, sozi?hª: )}le.couber dupla tarefa. Sei quanto custa aa companhia de corpo tão frágil, tio . ' C n s i v ~que nela confia excessivamente. E véJO mu1t'vezes, nas minhas leituras, que meus ~ e s tem seus escritos põem em evidência feitos ntvalentia e firmeza de ânimo que decorre •muito mais da espessura da pele .e da durei

1 12 Horácio.

dos ossos. Vi homens, mulheres e crianças detal modo conformados que uma bastonada

JheS dói roemos do que a mim um piparote; enê o tugem nem mugem quando apanham.Quando os atletas imitam os filósofos empaciência, é de se atribuir a coisa mais aovigor dos nervos que ao da alma. O hábito dotrabalho leva ao hábito da dor:"O trabalho caleja para a dor" 2 5

• É preciso acostumar ojovem à fadiga e à aspereza dos exercícios afim de que se prepare para o que comportam

de penoso as dores tisicas, a luxação, as oólicas. os cautérios, e até a prisão e a tortura, que

nestas ele também pode vir a cair nos temposque correm, em que tanto atingem os bonscomo os maus. Estamos arriscados a elas.Todos os que combatem as leis ameaçam os

homens de bem com o chicote e a corda. Por

outro lado, a presença dos pais é nociva àautoridade do preceptor, a quaJ deve ser sober111a; e o respeito que lhe têm os familiares, oconhecimento da situação e da iníluência de

sua família, são a meu ver de muita inconveniência na infância.

Nessa escola do comércio dos homens, noteiamiúde um defeito: em vez de procurarmostomar conhecimento dos outros, esforçamonos por nos tomarmos conhecidos e mRis noscansamos em colocar a nossa mercadoria do

que em adqt.1irir outras novas. O silêncio e amodéstia são qualidades muito apreciáveis naconversação. Educar-se-á o menino a mostrar-se parcimonioso de seu saber, quando otiver adquirido; a não se formalizar com tolices e mentiras que se digam em sua presença,pois é incrível e impertinente aborrecer-se como que não ~ r a d a . Que se contente com corrilir·K a si próprio e não pareça censurar aosoutros o que deixa de fazer; e que não contrarie os usos e costumes: "pode-se ser avisadolem arrogância''2 4 • Que evite essas atitudesindelicadas de dono do mundo, e a ambiçãoPlleril de querer parecer mais fino por ser diferente; e não procure (o que não oferece dificul

dade) mostrar seu valor pelas suas criticas eOri&inalidades. As licenças poéticas não são

llermitidas senão aos grandes poetas; assim1alnbém somente as almas superiores e ilustrestini o privilêgio de se alçarem acima dos coslll1nes: "se Sócrates e Ari stipo nem semprel'Clpeitaram os usos e c-0stumcs de seu país,llO julaue que possa agír do mesmo modo:tn s divinos méritos lhes autorizaram tais

rtças"2 5 6 • Ensinar-lhe-ão a somente discor: e discutir quando encontrar al11uêm capaz

l'tSJ>Onder, e ainda assim a não empregarlodos os meíos de que disponha mas apenas os

mais apropriados a seu assunto. Que o tomemexigente na escolha e peneiramento de suas

razões, amigo da exatidão e, portan to, da brevidade. Que lhe ensinem sobretudo a ceder esustar a discussão ante a verdade, logo que aenxergue, surja ela dos argumentos do adversário ou de sua própria reflexão, pois não lhecabe desempenhar um papel prescrito e fala.rde cátedra; e se defende uma causa é porque aaprova; e não fará como aqueles que vendemem moeda sonante a liberdade de poder refletire reconhecer o erro:" Nenhuma necessidade oobriga a defender o que lhe prescrevem e

ordenam"2 6

·Se seu preceptor for com o eu, formar-lhe-á a

vontade para que sirva seu póncipe com lealdade, afeição e coragem; mas o desviará de seprender a ele senão por dever cívico. Além de

vários outros inc-0nvenientes dessas obriga\:&sparticularesque ferem a nossa liberdade, a opinião de um homem salariado a serviço deoutro ou é menos íntegra e livre, ou t a ~ h a d a de

imprudente e ingrata. Um cortesão não temdireito nem vontade de pensar senão bem dosenhor que , entre tantos milhares de súditos oescolhe, atende a suas necessidades e oengrandece 2 5 7 por suas próprias mãos. Os

favores e o interesse corrompem-lhe, não sem

razão, a franqueza.E

o deslumbram. Por isso éa linguagem dessas pessoas em geral diferentedas outras linguagens, e pouco digna de fé.

Que a consciência e a virtude brilhem emsuas palavras e que SÍ a razão tenha por guia.Ensinar-lhe-ão a compreender que confessar oerro que descobriu em seu raciocínio, ainda

que ninguém o perceba. é prova de discemimento e sinceridade, qualidades principais aque deve aspirar. Teimar e contestar obstinadamente são defeitos peculiares às almas vul gares, ao passo que voltar atrás, corrigir-se.abandonar sua opinião errada no ardor da

discussão, são qualidades raras, das almas for·tes e dos espíritos filosóficos.

Ensinar-lhe-ão que em sociedade deve prestar atenção a tudo, pois verifico que os primeiros lugares são muitas vezes ocupa.dos pelosmenos capaz.es e o bafejo da s orte quase nuoca

atinge os competentes. Tenho observado que,

não raro, .enquanto conversam à cabeceira da

mesa acerca da beleza de uma tApeçaria ou do

sabor do malvasia, bons ditos se perdem do

outro lado. Terá de sondar o valor de cada um:

boiadeiro, pedreiro ou viandante. Cada qualem seu domínio pode revelar-nos coisas interessantes e tudo é útil para nosso governo. As

2• Id.

2 • ' ~ l e v e r , não no sentido de edu<:ar como pensaram alguns commtarisuas, dado o tema do <:apítu·

lo, e sim de elevar na posiçio social. (N. do T )

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,,1

p r p ri as. tolices e fraquezas dos outros nos instruem. Observando as graças e maneiras detodos, será levado a imitar as boas e desprezaras más.

Que lhe incutam no espírito uma honestacuriosidade por todas as coisas; que registretudo o que haja de singular à sua volta: umedificio, uma fonte, um homem, um antigocampo de batalha ou o lugar por onde passaram César ou Carlos Magno: Qual o solo queenrija com o frio, qual o que se queima ao sol;qual o vento marítimo que conduz à ltália"2 58 • Que se instrua acerca dos costumes,dos recursos e alianças de ta l ou qual príncipe.É agradável aprender essas coisas, e muito útil

sabê-las.Nessa prática dos homens, entendo que se

inclua também. como extremamente importante, a freqüentaçào daqueles que só vivem namemória dos livros. Pela história, entrará naintimidade dos grandes homens dos mais belosséculos. Pode ser estudo vão, mas pode serigualmente estudo de fruto inestimável, e dizPlatão que era o único estudo que admitiam oslacedemõnios. Que proveito não tirará nesteassunto da leitura das vidas de Plutarco? Masque o guia desse menino se lembre do objetivode sua missão e que procure gravar menos noseu discípulo a data da destruição de Cartagoque os costumes de Aníbal ou Cipião; e menos

o lugar em que morreu Marcelo do que o fatode aí ter morrido porque faltou a seu dever.Que lhe ensine a apreciar os fatos mais do queos registrar. É a meu ver a matéria a que oespírito se aplica de mais diferentes maneiras.Li em Tito Lívio cem coisas que outros nãoperceberam, e Plutarco leu outrai; cem que eunão vi e talvez diversas das que concebeu oautor. Uns estudam a história como umgramático2 u outros como um lilósofo queanalisa e põe em evidência as partes mais diliceis de penetrar em nossa natureza. Há emPlutarco muitos trechos, e extensos, dignos deserem lidos, pois o considero mestre na matéria. Mas há mil assuntos em que apenas tocou

de leve e simplesmente aponta onde devemosir, se nos apetecer, contentando-se algumasvezes em fazer uma alusão no texto palpitantede uma narrativa. preciso tirá-la e realçá-la.Assim o que nos diz dos habitantes da Ásia,que sempre serviram a um só senhor por nãosaberem pronunciar a palavra " não '', foi semdúvida o que inspirou a La Boétie sua obra AServidão Voluntária". Mesmo quando citaapenes uma palavra, um ato sem importânciada vida de alguém, valem suas reflexões um

z2 S t

Propércio.Decorando.

t ra ta o. pena que as pessoas nte gentesgostem tanto da brevidade; por certo com issose valoriza sua reputação, mas nós perdemos,não aproveitamos tanto. Plutarco prefere queero lugar do saber lhe louvem o d i ~ c e m i m e n t o ;gosta mai·s de nos deixar desejosos do quesaciados. Sabia que mesmo quando tratamosde assuntos admiráveis em si podemos falardemais e que Alexandridas censurou justamente alguém que dava aos éforos conselhosbons mas demasiado longos: Ô estrangeiro,dizes o que é preciso. mas não como é precj.so . Os que são magros de corpo, engrossam.no com enchimentos; os que lém assunto frá-gil, incham-no de palavras.

Da freqüentação da sociedade tira-se maravilhosa clarividência para julgar os homens.Vivemos todos apertados, dentro de nós mes-mos, e não vemos um palmo diante do nariz.Perguntaram a Sócrates de onde era e ele nãorespondeu: de Atenas, mas: do mundo. Paraele, cuja inteligência mais vasta e aberta que ade outrem abarcava o universo dele fazia suacidade, o objeto de sua afeição era o gênerohumano; e não agia como nós que apenasolhamos em tomo de nós . Quando a vinha sequeima sob a geada em minha aldeia, o curaimagina que a cólera divina ameaça a humanidade e crê que já andam os can ibais mortos desede. Ao ver nossas guerras civis, quem nào

grita que toda esta máquina se subverte, que odia do juízo está iminente, sem refletir que jíse viram coisas piores e que, no entanto, oresto do mundo continua a divertir-se? Eu, cmsabendo que ponto alcançam neste momento alicença e a impunidade, admiro-me de as vertão suaves e brandas. Quem sente sobre a cabeça cair chuva de pedra, logo supõe que todoo hemisfCrio sofre tormenta e tempestade. Poisnão dizia o camponês saboiano que "se e s ~tolo rei de França tivesse sabido governar obarco era homem para chegar a mordomo doduque"? Sua imaginação não bastava para queconcebesse grandeza mais elevada que ade seu

senhor. Todos caímos nesse mesmo erro, de

conseqüências grandes e perigosas. Só mede ascoisas segundo sua verdadeira granúeza, quemse representa, como num quadro, essa grandeimagem da madre natureza na plenitude de su•majestade; quem lê em sua face uma varicdadOinfinita de formas em constante t r a n s f o r m • ~çâo; quem nela vê, não sua ínfima pessoa malum reino inteiro ocupar o espaço de um ri5'0de alfinete.

Este mundo tão grande, que alguns amplia•ainda, como as espécies de um gênero,espelho em que nos devemos mirar paraconhecermos de maneira exata. Em sum:quero que seja esse o livro do nosso aluno.

1 n r ~ n ~ ª a v ~ r s a a ~ e de costumes, se tas, u zos,opin1aes, leis ensina-nos a apreciar sadiamenteos nosso.s, a reconhecer suas imperfeições eíraquezas naturais, o que já não é pouco. Tantes revoluções nos diferentes países, lantasmudanças nos destinos públicos, induzem-nos•1 não encarar como extraordinários os nossos.Tantos nomes, tantas vitórias e conquistascat.crradas no esquecimento tomam ridícula aesperança de etem zar o nosso nome pela captura de dez archeiros e de uma piolheira1 •oconhecida tão-somente pelos que dela seassenhorearam. O fausto orgulhoso de tantascerimônias estrangeiras, a exagerada majestade de tantas cortes e grand ezas fazem-nos cé·

ticos e permitem à nossa vista sustentar o brilho das nossas sem nos deslumbrarmosTantos ~ i l h a r e s de ho;"lens que nos precede:ram no rumulo encoraJam-nos a não temer irao encontro de tão boa companhia no outromundo. E assim o resto.

Nossa vida, dizia Pitágoras, assemelha-se àg ~ a n d e e populosa :1ssembléia do s jogo s olímP_J ºS Uns se exercitam para conquistar a glória; outros levam sua mercadoria para vendera ganhar. <?utros, e não ~ ã o os piores, nadaquerem senao ver o porque e o como de cadacoisa e ~ e r .espectadores da vida dos outrospara assim Julgarem e regularem a sua . Aosa x e m ~ l o s se pode ão sempre adaptar as mais

proveitosas r e ~ e x ~ e . s da filosofia, em cujas re~ ~ d e v e ~ msprrar-se as ações humanas.D i r ~ o ao Jovem: ','o q_ue se deve desejar, quel t i l i d a ~ e tem o dmhc1ro dificil de ganhar o

eiugem de nós a pátria e a família, o ~ u equJS Deus fosse o homem sobre a terra, quelugar lhe assinalou na sociedade, o que somose para ciue nasccmos"2 8 , o que significam~ e 1goor3 ' (objetivo nosso estudo), o• valt;ntta, moderaçao, justiça, servidão&uJeiçao, licença e liberdade, como se reco

nhece a verdadeira e duradoura alegria, atéque P < > n ~ cumpre temer a morte, a dor e a verIODha e como evitar e suportar as afll.vÕes"2 12 , . . 1

da • que movets nos impelem e a causa

tantos impulsos diferentes em nós. Porque

re c e que os primeiros raciocínios de que

• em embeber o espírito são os que develbe r c g ~ f a r - _ l o s os c-0stumes e os juízos, os quelllorr nsmarao a conhecer-se, a saber viver e

er bem.llOeBntre artes liberais comecemos pela quehr faz livres. Todas contribuem cm verdade

"a nossa instrução e a satisfação de nossas

ª'•°-. texto "pouillier"- piolheira, ninho de pio-. _ _ 0 °Caso, ' i g ~ ou fortificação de nenhum intca11 ..' ~ p o r t a n c i a . (N. do T.)t 11 .-.crs10.

Virgílio.

necessidades., como aliás todas as coisas emcerta. medida. Mas ela2 63 passa antes dasdemais, porquanto influi mais díretamente emnossa vida e ajuda-nos a orientá-la.

Se soubéssemos restringir as necessidadesde nossa existência a justos e naturais limitesveríamos que a maior parte das ciências err:uso é u t f ü ~ a d e para nós. E mesmo nas quenos sao proveitosas existem pontos supérfluosou obscuros que fora melhor abandonarmos,atendo-nos, C O f 1 ~ c; ueria Sócrates, ao queco 11portam de u ~ : ?usa ser avisado; quemadia a hora de viver e como o camponês queespera que o rio acabe de correr· mas elepassa, e passará rolando eternamente': • .

É de um grande simplismo ensinar aosmeninos o sentido dos Peixes, do Leão~ e s p l e n d o n t e , ou Capricórnio que se banha nasaguas da Hespéria 2 6 a ciência dos astros eos Oovimentos da oitava esfera antes de lhesabrir os olhos para os próprios sentidos: quetenho a ver com a Plêiade e a estrelaboieira?2 6 6" '

Anaxímenes escrevia a Pitágoras: Comoposso preocupar-me com o segredo das estrelas, quando tenho sempre presente a meusolh?s a m o ~ t e ou a, escravidão?" (Preparavamenla? os reis da Persia a guerra contra a suaf.áltla.) Cada um d e v ~ dizer a mesma coisa:

assaltado pela ambiçao, a avareza a temeridade, a superstição, e com tantos outros inimigos ~ e n t r o de mim, como hei de pensar nomov1mento dos mundos?"

Depois que lhe tiverem dito o que convémp r ~ o m a ~ mais avisado e melhor, falar

da Lógica, Física, da Geometria, daRetónca; e como Já terá a inteligência formada,. ogo a p r ~ a ciência que escolher. Oensmo devera ser ministrado ora por conversas, o ~ a por l ~ i t ~ r a s ; ora o preceptor lhe apresentara o pmpno texto do autor mais adequado ao fim da educação, orá lhe fornecerásomente o miolo, a substância. E se, de simesmo, ~ s s e preceptor não for tão familiarcom os hvros para neles descobrir o materialnecessário à sua missão, poderão juntar-lhe

algum letrado que, no momento certo, lhe forneça ,os. a l m ~ n t o s precisos que depois lhecabera d1su1bu1r ao seu aluno. O ensino assimdado será mais fácil e natural do que com ométodo preconizado por Gaza. Este enurtciapreceitos em excesso, prenbes de dificuldades epouco compreensíveis; emprega palavras so·

n ~ r a s e vazias que não se entendem e não suscitam nenhuma idéia; no nosso método a alma

2 u Montaigne, como se iuduz do trecho que precede imediatamente, refere-se à filosofia.ª H Horácio.* Propérclo.ª • • Anacreonte.

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11

acha a que se apegar, com que se alimentar. Oque dele tirar o jovem será maior e maisdepressa amadurecerá.f: estranho que em nosso tempo a filosofia

não seja, até para gente inteligente, mais doque, um nome vão e fantástico, sem utilidadenem valor, na teoria como na prática. Crei9que isso se deve aos raciocínios capciosos ecmbrufüados com que lhe atopetaram o caminho. Faz-se muito mal em a pintar comoinacessível aos jovens, e em lhe emptest ar umafisionomia severa, carrancuda e temível. Quemlhe pôs tal máscara falsa, lívida, hedionda?Pois não _há nada mais alegre, mais vivo e diria

quase mais divertido. Tem ar de festa e folguedo. Não habita onde haja caras tristes eenrugadas.

Demétrio, o gramático, encontrando umgrup() de filósofos sentados junto ao templo deDelfos, disse-lhes: Ou muito me engano, oudiscorreis de assunto elevado, tanto vos mostrais calmos e alegres." Ao que lhe resix>ndeuHeracleu de Mégara: São os que sabem se overbo lançar2 6 7 se escreve com s ou com ç, edeblateram acerca da etimologia dos superlativos pior e melhor que franzem a testa em seentretendo de sua ciência predileta. Os estudosfilosóficos alegram e satisfazem quem osempreende, e não o entristecem nem o põem

carrancudo: 'pelo rosto que os reílete igualmente percebem-se os prazeres e os tormentosn 68

. A alma em que se aloja, a filosofiafaz com que o corpo participe de sua saúde.Leva ao e.cterior o brilho de seu repouso e desua serenidade; modela o aspecto do corpo e oreveste de graciosa segurança, dá-lhe umaspecto ativo e alegre, um ar de satisfação ebonomia. O mais visível sinal de sabedoria éuma alegria constante. O sábio é sempre sereno. São o arroco e o aralipton2 69 que tornam seus adeptos sujos e ressequidos; não afilosofia, JX>is mal a conhecem de oitiva. Mas ooficio da filosofia é serenar as tempestades daalma e ensinar a rir da fome e da febre, não

mediante um epiciclo imaginário qualquer,mas ix>r meio de razões naturais e sólidas.Tem ix>r fim a virtude, a qual não está, comoquer a Escolástica, colocada no cimo de algummonte alcantílado, abrupto e inacessível. Osque dela se aproximaram afirmam-na aocontrário, alojada em bela planície, fértil e flo rida, de onde se descortinam todas as coisas.Pode-se ir até lá em se conhecendo o local, JX r

caminhos ensombr.ados, cobertos de relva e

2 • Em grego no texto. Não se traduzíu literalmente, optou·se por uma equivalência. (N. do T.)2 68 Juvcnal.2 0 Vocábulos que então designavam duas dasdezeuove formas de silogismo,

suavemente floridos, sem esforço e por umasubida fácil e lisa como a da abóbada celeste.

Por não terem freqüentado essa virtudesuprema, bela, triunfante, amorosa, tão deliciosa quanto corajosa, inimiga declarada einconciliável do mau humor, do desprazer, dotemor e do constrangimento, e que tem porguia a natureza e por companheiros a felicidade e a volúpia, foi por não a freqüentaremque, na sua ignorância, a julgaram tola, triste,disputadora, aborrecida, an1eaçadora e a colocaram sobre um rochedo afastado, dentro domato, a fim de espantar as gentes como umfantasma.

Meu preceptor, que sa be dever criar no espírito de seu discipulo mais afeto do que respeitopela virtude, dir-Jhe-á que os poetas seguem asopiniões vulgares e tornar-lhe-á evidente queos deuses puseram maiores obstáculos nocaminho de Vênus que no de Palas. E ao despertar para o amor, apresentar-lhe-á, para queescolha amante, Bradamante ou Angélica,aquela, beleza natural, ativa, generosa, vigorosa mas não machona; esta, beleza mole, afetada, delicada, artificial. Uma fantasiada derapaz, com brilhante capacete à cabeça; outravestida de rapariga, penteado alto guarnecidode pérolas.E verá se o amor confirma a educação viril, em sendo a esoolha contrária à doefeminado pastor da Frígia. E lhe dirá tambémque a recompensa e a grandeza da verdadeiravirtude estão na facilidade, utilidàde e prazerdo seu exercício; que ela apresenta tão poucasdificuldades que nela são igualmente fortes ascrianças e os homens, os simples e sutis; e fazse pela moderação e não pela força. Sócrates,seu 11,depto favorito, proJX>sitadamente rccu·sou-se a impô-la pela força, e passou a contarcom a simplicidade e a brandura para fazê-lavencedora. É a fonte dos prazeres humanos.Tomando-os legít,imos, toma-os seguros ebelos; moderando-os, conserva-lhes a disposição; cortando os que recusa aguça-nos para osque nos permite; e deixa-nos com larguezatodos os prazeres naturais, até à saciedade,maternalmente, mas não até o cansaço, pois amoderação, que faz parar o bebedor antes da

embriaguez. o comedor antes da indigestão e olascivo antes do esgotamento, nunca foi ininii·ga do prazer. Se não tem a fortuna vulgar,pensa-a e fabrica outra inteiramente sua nemflutuante nem r o d a n t e ~ 7 0 • Sabe ser rica, poderosa e sábia e deitar-se em colchões almiscarados. Ama a vida, a beleza, a glória, a saúde.Mas sua função própria é saber usar esses bcJIS

moderadamente e perdê-los sem fraquejar , fun·

2 'º Alusão à imagem da Fortuna. sobre uma roei•ali Ida

çio bem mais nobre do que penosa, sem a qualdecorre a existência fora das regras da natureza na agitação e na confusão. E então ix>de se falar de escolhos, sarças e monstros comque depara quem não a conhece.

Se o aluno for de tão estranho temperamento que prefir.a ouvir histórias à narrativade uma bela viagem ou à de sábios propósitos;que, ao som do tambor que excita o jovementusiasmo de seus camaradas, se volte paraquem o convida a ver histriões; que não achemais agradável e reconfortante regressar, em-

poeirado e vitorioso de um combate do quevencedor na péla ou na dança, não vejo outroremédio senão que o preceptor o estrangulelogo, em não havendo testemunhas, ou que ocoloque como pasteleiro - ainda que sejafilho de duque - em qualquer das nossas boascidades, pois ensina Platão que é preciso colocar as crianças, não de acordo com as possesdos pais mas segundo as faculdades de seupróprio espírito.

Posto que a filosofia é a ciência que nos ensina a viver e que a iMância como as outrasidades dela pode tirar ensinamentos, por quemotivo não lha comunicaremos? '' Enquantoúmida, a argila é mole; apressemo-nos, e que aroda ágil em girando a mode(e2- 71

."

Ensinam-nos a viver quando passa da a vida.

Centenas de estudantes contraem doençasvenéreas antes de chegarem a aprender o queAristóteles diz da temperança. Cícero afirmava que, embora vivesse duas vidas dehomem, não gasta ria tempo em ler os poetas líricos; os dísputadore.s de nossos dias sãomuito mais desoladoramente inúteis. Nossojovem tem mais pressa: não deve ficar entregueaos pedagogos senão até aos quinze ou detes·seis anos; o resto é da ação. Empregue-se, pois,esse tempo que é curto no ensino do necessário. Deixem·se de lado todas as árduas sutileJzas da dialética, ilusórias e sem efeito sobre avida; tomem-se os mais singelos preceitos dafilosofia, escolham-nos com cuidado e tratemnos bem: são mais simples de entender que um

COnto de Boccaccio. Uma criança os aprende,ao sair da ama., mais facilmente do que a ler ee c:rever. A filosofia tem regras para os recémDascidos como para os decrépitos.

Estou de acordo com Pl'utarco quando dizqu Aristóteles ocupou menos seu aluno2 7 2m a arte do silogismo ou com os princípios

8B e o m ~ t r i a do que com bons preceitos sobre

Valentia, a coragem, a magnanimidade, a~ e r a ã o e o destemor. E com este cabedal oltl;iou, ajnd_a moço, à conquista do império doqu l\do apoiado apenas em trinta mil infantes,

atro mil cavalos e quarenta e dois mil escu-

1'6rsio.Alexandre, o G rande.

dos. Ãs outras artes e ciências, acrescenta. Plu·tarco, honrava-as Alexandre e reconhecia oque neJas havia de bom e agradável, mas opouco prazer que delas tirava não nos permitecrer que as quisesse exercer.

"Buscai nela2 73 , jovens e velhos, um objetivo para vosso espírito; um viático para quando tiverdes encanecido2 7

.

É o que diz Epicuro no início de sua carta aMeniceus: Por moço que seja, que ninguém serecuse a praticar a filosofia. e que os velhosnão se cansem dela." Quem procede de outromodo parece dizer que ainda não é tempo deviver feliz, ou que já o não é. Mas para tais

e ~ s i n a m e n t o s não quero que prendam o jovem;nao quero que o abandonem ao mau humor e àcólera de um mestre-escola furioso; não querocorromper-lhe o espírito torturando-o com trabalho, como o fazem a outros, catorze a quin·ze horas por dia, a exemplo de um carregador.Não acharia bom tampouco se, inclinado portemperamento para a solidão e a melancolia, emanifestando demasiado amor aos livros. lheincentivassem esse gosto; isso os torna inaptospara a vida da sociedade e os afasta de melhores ocupações. Quantos homens de meu tempotenho visto embrutecidos por uma temeráriaavidez de ciência

Carnéades andava tão obcecado por ela que

mal tinha tempo para cortar o cabelo e asunhas. Não quero estragar suas generosasdisposições com os processos bárbaros deoutrem. Dizia-se outrora que a sabedoria francesa começava cedo mas durava pouco tempo.Convenhamos em ·que ainda agora não hánada mais interessante do que as crianças francesas; mas, em geral, não realizam o que delasse espera e depois de grandes não revelamexcelência nenhuma. Ouvi dizer por pessoassensatas que é porque as mandamos para oscolégios, que temos em tão grande número; eque assim se atoleimam.

Para nosso jovem, um gabinete, um jardim,a mesa e a cama_ a manhã e a tarde, todas ashoras e lugares lhe servirão; em toda parte

estudará pois a filosofia, que será sua principalmatéria de estudo; como formadora da inteligência e dos costumes.tem o previlégio de semisturar a tudo.

Pedindo-se a Isócrates, o orador, que falassede sua arte em um banquete, assim se houvecom aplauso geral: Nào é hora de fazer o quesei, e não sei fazer o que cumpre- se faça nomomento." Com efeito, discorrer ou divagaracerca e temas de retórica em uma assembléia que se reúne para rir e comer seria 111istu·ra de má inspiração. E o m s ~ n o se dirá dequalqner arte ou ciência. Só a fi osofia, na

2 7 3 A filosofia.1

'

Pérsio.

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parte em que trata do homem, seus deveres eobrigações; não deveria ser recusada nem nos

festins nem nos jogos como assunto de conver·sação. E essa é a opinião de muitos sábios.Convidou-a Platão ao seu Banquete e vemoscomo ela entretém os convivas de maneira

suave, adequada ao tempo e ao lugar, embora

suas teses figurem entre as mais salutares e de

maior alcance desse fiJ6sofo: 4 igualmenteútil aos pobres e aos ricos; desprezá-la prejud ica igualmente jovens e velbos''2 7 s.

É provável que nessas condições nosso

jovem ficará menos inútil do que os outros.Mas como os passos que damos quando pas·

seamos numa galeria não nos cansam tantoquanto em um caminho determinado, aindaque sejam três vezes mais, assim também nossas lições. dadas ao acaso do momento e do

lugar, e de entremeio com nossas ações, decorrerão sem que se sintam. Os exercícios e até os

jogos, as corridas, a luta, a música, a dança, acaça. a equitação, a esgrima constituirão boa

parte do estudo. Quero que a delicadeza, acivilidade, as boas maneiras se modelem aomesmo tempo que o espírito, pois não é umaalma somente que se educa, nem um corpo, éum homem: cabe não separar as duas parcelasdo todo. Como diz Platão. é preciso não educar uma s m a outra e sim conduzi-las de par,

como uma parelha de cavalos atrelados aomesmo carro. E parece até dar mais tempo ecuidado aos exercícios do corpo, achando queo espfrito se exercita ao mesmo tempo, e nãoao contrário.

Seja como for, a essa educação deve proceder-se com firmeza e brandura e não como é depraxe, pois, como o fazem atualmente. emlugar de interessarem os jovens nas letras.desgostam-nos pela tolice e a crueldade. Deixem-se de lado a violência e a força: nada ameu ver abastarda mais e mais embrutece uma

natureza generosa. Se quereis que o jovemtema a vergonha e o castigo não o calejeis nele.Habituai-o ao suor e ao frio, ao vento, ao sol,aos acasos que precisa desprezar; tirai-lhe amoleza e o requinte no vestir, no dormir, no

comer e no beber: acostumai-o a tudo. Quenão seja rapaz bonito e efeminado, mas sa?io evigoroso. Menino, homem velho, sempre tive amesma maneira de pensar a esse respeito. Adisciplina rigorosa da maior parte de n o s ~ scolégios sempre me desagradou. Menos prCJUdiciais seriam talvez se a inclinassem para aindulgência. São verdadeiras prisões para cativeiro da juventude, e a tomam cínica c debo·chada antes de o ser. Ide ver esses o l ~ g i o s nas

horas de estudo: JÍ:J ouvireis gritos de criançasmartirizadas e de mestres furibundos. Linda

2 1• Horácio.

maneira de acordar o interesse pelas liçõesnessas almas tenras e tímidas, essa de ministrá-las carrancudo e de chicote nas mãos Quemétodo iniquo e pernicioso E observa muitobem Quintiliano que uma autoridade que seexerce de modo tão tirfuiico comporta as maisnefastas conseqüências, cm particular peloscastigos. Como seriam melhores s classes e

juncadas de flores e folhas e nao de varassanguinolenias Gostaria que fossem atapetadas de imagens da alegria, do júbilo, de Florae das Graças, como mandou fazer em sua es-cola o filósofo Espeusipo. Onde esteja o proveito esteja também a diversão. Há que pôr

açúcar nos alimentos úteis à criança e fel nosnocivos. admirável como Platão se mostraatento em suas "Leis" à alegria e aos divertimentos da juventude da cidade e como se atarda na recomendação das c o r r i d ~ dos jogos,das canções, dos saltos e das oanças cujopatrocínio e orientação se confiaram aos·pró·prios deuses: Apolo, as Musas, Minerva. Alonga-se cm m iJ preceitos sobre os ginásios.enquanto pouco discorre acerca das letras epBiece não recomendar particularmente a poesia, a não ser musicada.

preciso evítar, como inimigas da sociedade todas as particularidades e oríginalídadesde' nossos usos e costume&. Quem não se

espantaria com a compleição de Demofonte,mordomo de Alexandr.e, que suava à sombra etiritava a o sol? Já vi quem fugisse do cheiro demaçã mais do que de tiros de arcabuz;.º u e ~se amedrontasse com um rato ou vonutasse avista de nata; e quem ao ver revolvcre"colchão de penas sentia náuseas. E Germamconão podia suportar nem a vista nem ? cantodos galos. Tais fenômenos podem ~ o v 1 r de alguma predisposição natural que ignoramos,mas a meu ver obviaóamos a esses m l e ~ emos atacando desde cedo. Assim o coosegu1 emmim pela educação, com_ dificuldade? certo,mas atualmente, à exceçao da cerveja, meupaladar acomoda-se indiferentemente a t u ~ o o

que se come e bebe. Enquanto o corpo a.mdamaleável, cumpre habituá-lo a toda espécie deusos e costumes. E desde permaneç se-

nhor de seus apetites e de sua vontade, sehesite em tomar o jovem capaz de frequentai'qualquer sociedade, no estrangeiro como :Sua terra· e que mesmo, se necessário, sar

' . Q suasuportar desregramentos e excessos. ue saconduta se acomode aos costumes e q.ue pos sfazer todas as coisas mas goste de fazerboas. Os próprios fi16sofos não a p r _ ? v ~ e rCalístenes que caiu em desgraça por naoquerido acompanhar seu senhor, A l e x a n ? r ~ .Grande, na bebida. O nosso jovem d e v c ~ abrincar e dar-se a excessos com o seu pnnc

quero que até na devassidão suplante seuscompanheiros e que não faça o mal por faltade vontade e não por carência de forças ouinformação, pois "é muito diferente não quererfazer o mal e não saber fazê-lo":z. 1 6

• Poi pensando cm prestar homenagem a um senhor (o

m s afastado, em França, desses excessos)que perguntei em certa reunião quantas vezesse embriagara na Alemanha por conveniênciados neg6cios do rei. Tornou nesse sentido apergunta e respondeu que o fiz.era três vezes eas contou. Conheço quem se tenha visto embaraçado no trato dos negócios com esse país,por não ter igual qualidade. Muitas vezes notei

com grande admiração amaravilhosa naturezade AlcebJades, a qual lhe permitia adaptar-se

facilmente a tudo, sem prejuízo da saúde, oraultrapassando o suntuosidade dos persas, ora aausteridade e a frugalidade dos lacedemônios;tão puritano em Esparta como licencioso em

Jônia. "Aristipo soube satisfazer-se com todasas situações e fortunas••2 1

7 •

Assim desejaria formar o nosso jovem:"Admiraria quem não se envergonhe de seusrrapos nem se espante com a riqueza e de5empenhe ambos os papéis de bom grado"2 711 •

Eis as minhas lições. Aproveita-as melhorquem as pratica do que quem apenas as sabe.Para aquele, ver é ouvir e ouvir é ver. "Graças

a Deus" , diz alguém em Platão, "filosofar nãonem muito aprender nem tratar das artes.""Foi muito mais nos costumes do que nos

escritos que os filósofos aprenderam a maiorde todas as artes: a de bem viver" 2

Leão, príncipe dos fliásios, pcrgumou aHcracl idcs do Ponto, que ciência ou arteprofefisava, ao que ele respondeu: não conheçolrtc nem ciência. sou filósofo. CensuraramDiógenes pelo fato de que se metesse a ftlosofar ignorante como éra; e ele respondeu: rnaiswna razão para isso. E pediu-lhe Hegésias que

lesse um livro. "Sois divertido", disse oil6sofo, "quando tendes figos por escolher,

~ l h e i os verdadeiros, os naturais e não os

Plhtados: por que não escolheis igualmentep . ~ discutirdes os assuntos reais, da natureza,•nao os escritos?"E s t a . lições, o jovem as traduzirá em ações,1

as aplicará aos atos de sua vida. Ver-se-á~ ~ se éprudente em seus cometimentos, se é~ s e justo no seu proceder; se é sensato elrlcioso no seu falar; se tem ânimo na doença,~ s t i nos jogos, moderação nos prai.eres,oo ácil no que concerne aos manjares, sejae ou peixe, e no que respeite às bebidas,.

1 , Sêneca.• , . Horácio.•h ld.

CIQ ro.

seja vinho ou água; "se seus conhecimentos lheservem, não para mostrar o que sabe mas para

ordenar seus hábitos; se se domina e obedece asi pr6prio"28 º. O verdadeiro espelho de nossopensamento é a maneira de vivermos.

Zeuxídamo, a alguém que lhe perguntavapor que os lace<jemônios não punham por

escrito o regulamento da valentia e o davam aler aos jovens, re JX>ndeu que era porque queriam antes acostumá-los aos feitos do que às

palavras.Ao fim de quinze a dezesseis anos compa

re-se o nosso jovem a um desses latinistas decolégio que terá levado o mesmo tempo a

aprender a falar O mundo é apenas tagarelicee nunca vi homem que não dissesse antes maisdo que menos do que devia. E nisto gastamosmetade da vida. Obrigam-nos durante quatroou cinco anos a aprender palavras e ajuntá-las

em frases, e outros tantos a compor um longQdiscurso em quatro ou cinco partes; e maiscinco pelo menos a aprender a misturá-las e acombiná-Ias de maneira rápida e mais ou

menos sutil. Deixe-se isso a quem o faz por

profissão.Indo um dia a Orleães encontrei na planície,

aquém de Clcry, dois professores de colégioque se dirigiam a Bordéus e marchavam acetca de cinqüenta passos um do outro. Pouco

atrás deles percebi uma comitiva , à frente daqual ia o falecido Conde de La Rochefoucauld.Um de meus criados indagou do primeiro professor quem era o fidalgo que vinha atrás. Oprofessor, que não vira a coroitrva e pensavaaludissem a seu companheiro, deu-nos esta resposta divertida: "Não é um fidalgo, é umgramático; quanto a mim, sou um logicista."Nós que não queremos formar .uem um gramático, nem um logicísta, mas um fidalgo, deixemo-lo a seus lazeres; temos o que fazeralhures.

Se nosso jovem estiver bem provido de

conhecimentos reais, não lhe faltarão palavras;e virão por mal se rião quiserem vir por bem.

Há quem se desculpe por não poder exprimiras coisas belas que pretende ter na cabeça elastime sua falta de eloqüência para as revelar:é mistificação. Quereis saber o que isso significa, a meu ver? É que entrevê algumas vagasconcepções que não tomaram corpo, que não

pode destrinçar, e esclarecer, e por conseguinteexpressar. Não se compreende a si próprio.Contemplai-o a gaguejar, incapaz de parir, vereis logo que sua dificuldade não está no partomas na concepção, e anda ainda a lamber um

embrião. Acredito, e Sócrates o diz formalmente, que quem tem no espírito uma ídéiaclara e precisa sempre a podo exprimir, quer de

n o Cícel'o.

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um modo quer de o utro, por mímica a t ~ se fôrmudo: "Não falham as palavras para o que seconcebe bem"21 1 • Ora, como diz um outro, demodo igualmente ~ l i c o embora em prosa:"Q uando as coisas ec: assenhora m do espíritoas palavras ocorrem"2 2

; ou ainda:"As coisas

atraem as palavras" 2u . Pode ignorar ablati·vos, conjuntivos, substantivos e gramiticas,

quem é dono de sua idéia; o que se verificacom um lacaio qua.lqocr ou repari&• do ..PetitPont" , que sio capazes de nos entreter do que

quisermos sem se desviarem muito mais das

regras da língua que um bacharel de França.

Não sabem retórica nem começam por captar

a benevolência do leitor in&ênuo e nem se

preocupam com isso. Cm verdade, todos essesbelos adornos se 1pa1am onte o brilho de uma

verdade simples e natural. Esses rcquebros ser·vem apenas para divertir o vulgo incapaz de

escolher alimento mais substancial e fino,como Afer o demonstra claramente em Tácito.

Os embaixadores de Samos Unham-se apre·sentado a Cleômcnes, rei de Esparta, com u ma

bela e longa arenga a tim de convencê-lo n ir àguerra contra o tirano Polícrates. Depois de os

ter deixado falar à vontade, ele respondeu: " De

vosso exórdio já não me lembro, nem mereco rdo do meio . Quanto à conclusiio, não me

interessa." Eis. pa rece-me, uma boa resposta

aos discursadore11 bem documentados.Há outra: os atenienses deviam escolherentre dois arquitetos um para a construção deum arande edificio. Apresentou-se o primeiro,muito afetado, com um belo discu rso cuidadosamente preparado acerca do trabalho que iaexecuta r, e já o povo se manifestava seufavor quand<' o segundo pronunciou apenas

estas palavras : "Senhores atenienses. o que

este acaba de dizer cu o farei ..Pasmavam se muitos ante eloqüência de

Cícero no auge de sua força. Catão ri a-se tão-

somcme: "Temos", dizia, "um cônsul diverti·do ." Antes o u depois, uma sentença útil, uma

frase boo1ta vem a calhar: ainda que não se

enquadrem no que precede nem no que segue,valem por si. Não sou dos que pensam que

bom ritmo faz o bom poema; alonguem seassim o entenderem uma sílaba breve, se as

idéias são nele agradáveis, se há espírito eInteligência, direi que o poeta 6 bom, emborapossa acrescentar que ~ t a m b é m mau versifica·dor: "Seus versos são duros mas seu gosto 6sutil" 28 4 • Ti rem·se ele uma obra, diz Horácio,todas as suas ligações e medidas ("Trocai oritmo e 11 medid11, invertei a ordem das pala·

v r a ~ . encontrareis o poeta nesses trechos

ª Hor8cio .>u Séneca.

Cíceto.Horácio.

dispersos''2 • 6), não se destruirá com isso: os

próprios fragmentos continuarão belos. Foinesse sentido que respondeu MenlJ\dro a quemrepreenderam porque não começara ainda umacomédia prometida para tal dia : "E stá composta e pronta, falta s6 juntar os versos."Desde que Ronsard e Ou Bellay dcraJTI relevoà nossa poesia francesa. n io há aprendiz quenão sr: inche de palavras e as cadencie i modadeles: "em tudo isso hi mais ruído do quescntido"21 •. Para o vulgo nunca houve tantospoetas Mas se lhes foi fácil copiar o riono

daqueles mcStrcS, incapaies se mostraram de

imitar as ricas descrições do primeiro e 1 delicada fantasia do segundo.

Mas que fará o nosso jovem se o apertaremcom a sofistica sutil de algum silogismo, comoeste. por exemplo: o presunto raz beber, beberestanca a sede, logo o presunto estanco a sede?Rir·se·á, que mais vale rir que responder. Podeainda tirar de Aristipo a divertida respostadada em semelhante ocorrência: "por que oresolverei, se não resolvido j í me embaraça?"

A alguém que propunho a Cleantes essas fiouras dialêticas, disse ele: " Vai divertir as crianças com essas peJoticas. nõo desvies de c u spensamentos um homem s6rio." Se essas tolosargúcias - sofismas retorcidos e espinhu·sos2 8 1 tiverem por fim convencê-lo de uma

mentira serão perigosas; mas não terão conseqüências se forem simples farsas, e não vejopor que devam preocupâ·lo. Há co los capazesde se desviarem do caminho por um bom dito:uns ''não aplicam as palavras às co isas a q uepertencem e vão buscar coisas que possamaplicar as palavras" 2 u ; outr0s, "a ftm decolocar uma frase, embicam por assuntos deque não pensavam ttatar"2 u . Prefiro amoldara frase a meu pensamento a modificar rn1nh1idéia para engastar . Cabe às p a l a v r ~adaptarem ao que se quer exprimir e se o fran·cês não o pode fazer, empregue-se o gascào.Quero que o pensamento a ser comun icado do·mine e penetre a imaginação de quem ouve.ponto de que não mais se lembre das palonas.Gosto de uma linguagem simples e pura .escrita como a falada, e suculenta, e r v o ~breve e concisa, não delicada e louçã, rnu veemente e brusca:" Quea expressão c s s i o  e será ccrta"29 º. Uma linguagem IV'tes dilic1ldo que aborrecida, sem afe tação, ous&d.,desregrada, descosida, expressiva em todos osseus aspectos, não uma linguagem a n l ~fradesca, ou de advogado, mas de preferenc11

11 • ld., . • Séneca.z• 1 Cícero.za• Qointiliano.t Sêneca.1 • 0 Luc:aoo.

soldadesca como Suetônio qualifica a de JúlioCé ar, embora cu não perceba muito bem porque.

De bom grado tenho imitado a maneiraexcêntrica de se trajarem os jovens de hoje:auinto de banda, capa ao ombro, ma.1 esticada

meia, pois assim se dão ares de altivo desd6m pelas modas estrangeiras e seus artifícios.Semelhante atitude no modo de falar me aarada ainda nt:Us ~ u e r afetação, sobretudocom a alegna e a liberdade francesas, vaj mala homem de corte, e em um.a monarquia

todos devem ser educados como cortesaos,1mdo portanto recomendável que nos incline

mos um pouco para o na tural e o desdenhoso.Não aprecio os tecidos em que aparecem

arama e as costuras. e cm um corpo bem feitoaio se devem ver os ossos e as veias· " a verdade P r ~ i falar uma linguagem l c s sem

arttlicios; e quem fala com afetação, quem fa la

com artifícios senão aquele que pretende falar

a f e t a d a m c n t e A e l o q ~ ê n c i a que atrai por

11 mesma prejudica as coisas. Assim como 6p e q u ~ de espírito querer-se distinguir por

m111c1ras estranhas de trajar, na linguagem or e ~ u s c a m e n t o . , a procura de expressões origi·iw s e de vocabulos pouco conhec idos decorrem de uma ambição escolástica e pueril.Pudesse cu usar sempre e unicamente a lingua·

pm que se emprega no s mercados de ParisErrava o gramático Arist6fanes em criticarEpicuro por causa da simplicidade das pala·

was. bem como em seus discursos a perfeitadarcza da expressão. Imitar alguém cm sua

maneira de falar é fácil, qualquer pessoa o faz' "'esforço; majs árdua é a imitação da inteli·1mc1a e da imaginação. Em geral quem encon·Ira vesrimcnt.a igual pensa erroneamente que

• o mesmo corpo; no qual se engana muito.força e s nervos não se tomam de emprb·

aúno: enfeites e capas. sim. A maior pane daspe aoas que freqüento faJ como eu nos

Bnsaio?._ ma s não sei se pensa do mesmoIDOdo. us atenienses, diz Platão, falam abun~ t e m e n t e e com elegância: os lacedemônios

11o. lacônicos; os cretenses tém a i inq inaçàol i ~ · ~ fecunda do que a linguagem· e são os= d ~ a d o . ~ e n ã o dizia que tinha dua s cspé..,.,,, d1sC1pulos: uns, a que chamava

•uo14;>gos", gostavam de aprender as co isas

s1 e eram seus preferidos; aos o utros cha·"'ava " logófil " - ·lOm 1os , e nao se 1mportavRm senão

1 as i:ialavras. Não ê que o bem Íalllt niio.....,. bonito e bom, mas não ê tanto como o;r::.oam, e lamento que toda a vida se passe1 n · ~ s e j a r em primeiro lugar co nhecerllllo ª minha hngua e em seguida O > dos viz1

1 com quem tenho mai s relações. O latim e

Sênideca - reuniram-se as duu c i l ~ s porade tipográfica.

o &rego são sem dúvida belos o rnamentos mast a ~ caro ~ m a i Po is direi aqu i o modo de

adqum-los. ma.is barato que de co stume, modo

c s ~ experimentado por mim mesmo. Quemquu1er que o adote.

Meu falt;eido pai. tendo procurado por

todos os me.os, entre homens de saber e imeli·1 ê n ~ i 1 m ~ l h o r forma de educação, pcrabia

os m c o n v e r u c n ~ do método en tão cm lllO

Disseram-lhe que o tempo que l e v á v a m oaprender as línguas que a gregos e romanos

nada haviam custado era o úniro motivo por

que não podíamos alcançar a grandcu de

alma e os conhecimentos dos antiaos. Nãoque essa seja • única cau sa, mas o que

unporta no caso é a solução que meu pai

encontrou. Loao que desmamei, antes que seme destravasse a língua, confio u-me a um ale·mão,.que morreu médico famoso em França eque ignorava completamem.e o frances mas

possuía perfeitamente o latim. Esse alemão,que meu pai mandara vir de propósito e paga·va mui to caro, ocupava-se continuamente de

mim . Dois o utros menos sábios do que eleacompanhavam-me sem cessar quando- folgavao pr imeiro. Os três só me faJavam em latim.Quanto aos outros de casa, era regra inviolflvelque nem meu pai, nem minha mãe, nem cr ia·

dos .ou criadas, d i s s c em minha presençaas palavras latinas que haviam apren·dido para se entenderem comigo. Excelente foio s u l ~ o . Meu p ~ j e minha mãe lldquiriramconhcc1rnento su ftc1erne dessa língua pa ra um

caso de necessidade e o mesmo aconteceu comas outtu pe$$0as que lidavam comigo. Emsuma, lal to nos latinizamos que a coisa se

c s t ~ d c u a.s aldeias circunvizinhas o nde ainda

ho1e se conservam, pelo uso, vários nomes lati·nos art.ificcs_e ferramentas. Quanto a mim,

aos seis anos nao compreendia mais o francêsou o dialeto da terra do que o árabe. Mas semmétodo, sem livros. sem gramática, semregras, sem chicote nem ~ r i m a s . aprendera

um latim tão puro quanto o do meu professor,por9uanto nenhuma noção de o utra lingua 0podia p e r t u r b ~ . Se por exemplo queriam da r·me um tema, a moda dos colégios. tinham que

o dar cm mau latim, a fim de q ue o ve ncssepara o bom. E Nicolau Gronchi, que escreveu"De comit'atis ro manorum", Guilherme Gue rcnte. que comentou Aristóteles, ~ o r g e Bucbanan , o grande poeta escocês, Marc AntoineMurct, reconhecido na França e na Itáliacomo o melhor orador da ~ a e que foramtod?s Teus preceptores, dizem todos que cu'8.b11 tao bem o meu lntim que temiam discutircomigo. Buchanan, que Ví mais tarde no

quito do falecido Marechal de Brissac, disse

m.. que enava escrevendo sobre a educação

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das crianças e que tomava a minha comoexemplo. Estava entâl) encarregado da eduea·ção do Conde de Brissac, que depois vímos tão

valoroso e bravo.Quanto ao grego quase não o compreendo.

Meu pai tentou ensinar-me com método masnão como habitualmente, antes sob forma. dejogo e folgnedo. Inscrevíamos as declinaçõesem pedacinhos de papel que dobrávamos epregávamos ao acaso, à maneira dos queaprendem aritmética ou geometria. Porqueentre outras coisas lhe tinham aconselhado que

me levasse a amar as ciências e o dever não

pela força, mas por minlia própria vontade, eque me educasse pela doçura e sem rigor nemconstrangimento, dando-me inteira liberdade.E ísso até a superstição, porquanto em sustentando alguns que perturba o cérebro tenro da

criança acordá-la em sobressalto e arraMá-la

ao sono, mais profundo nelas do que em nós,de repente, bruscamente, mandou que me acordassem ao som de algum instrumento, e nuncafaltou quem o fizesse.

Este exemplo basta para julgar do resto, epara pÔr em evidência, também, a prudência ea afeição de meu pai, tão hom e que não teveculpa de não colher fruto que correspondesse a

tão requintada cultura. Duas foram as causas:a primeira, o campo estéril, e impróprio, poisembora tivesse boa saúde e fosse de temperamento brando e fácil, era tão lerdo, mole e apá tico que não me podiam arrancar da ociosidade nem para brincar. O que eu via, via bem.E sob o aspecto pesado nutria pensamentosousados e opiniões acima de minha idade. Mas

tinha o espírito lento e que oo trabalhava quando o excitavam. Minha compreensão era tardia, a inspiração sem vigor, e sobretudo carecia por completo de memória. Com tudo isso,não há como espantar não obtivesse meu paialgo que valesse a pena. Por outro lado, como

aqueles que têm um ardente desejo de se curar

seguem toda espécie de conselhos, esse excelente homem, temeroso de não poder levar acabo a coisa que tanto desejava, acabou por se

deixar influenciar pela opinião comum quesegue sempre os que vão na frente, corno os

grous, e obedecer ao costume, por já não ter aseu lado os que lhe tinham dado as primeirasindicações na ltália. E por volta dos seis anosmandou-me para o Colégio de Guyenne, o melhor então em França. Não fora possível juntar

mais cuidados aos que meu pai teve em dar-meprofessores particulares e atentar para minhaalimentação em mais de um pormenor contra

as regras do colégio. Contudo era um colégio.Meu latim. do qual perdi o hábito por falta de

exercício, abastardou-se logo. E o modo inédito ~ u c havi2m empregado para 1no ensinar

serviu apenas para me fazer pular as primeirasclasses. De maneira que com treze anos tinhaconcluído o meu curso, como dizem, mas na

verdade sem qualquer fruto que seja agora deutilidade.

Meu gosto pelos livros nasceu do prazer quetive à leitura das fábulas das Metamorfosesde Ovídio. Aos sete ou oito anos mais oumenos fugia para as ler, desprezando quaisquer outros divertimentos; e como a língua eraminha língua materna29 2

, era o livro maisfácil que eu conhecia e o mais adequado peloassunto à minha idade. Quanto aos Lançarotesdo Lago, aos Amadis, aos Huões de Bordéus, eoutras obras do mesmo gênero, com que divertem as crianças, não as conhecia sequer pelostítulos e não lhes conheço ainda o conteúdo,tã6 forte foi a minha obediência às proibiçõesque me eram impostas. Com essa paixão metornava mais descuidado no estudo das outrasmatérias, mas felizmente encontrei um homeminteligente e cônscio de seu deve r de preceptorque soube tirar partido desses excessos e deoutros semelhantes. De modo que devorei defio a pavio a Eneida , e Terêncio e Plauto, eas comédias italianas, sempre levado pelo queess<1.s obras têm de agradável. Se tivesse tido amania de mo impe<lir, creio que s :J houveratrazido do colégio ódio aos livros, como acon

tece com quase toda a nossa nobreza. Procedeu com inteligência, fingindo nada ver,aguçando-me a curiosidade com deixar-me lertão-somente às escondidas tais livros e obrigando-me a trabalhar, quanto ao resto, semexagetada autoridade, pois a s principais qualidades que buscava meu pai naqueles a quemme confiava eram a benevolência e a bondadede espírito. Por isso mesmo não tinha eu outrodefeito senão indolência e preguiça. Não corriao risc-0 de fazer mal, e sim o de não fazer nada.Ninguém presumia que me pudesse tornarmau; mas inútil, sjm. Previam em mim a ociosidade, não a maldade. Reconheço que foi oque sucedeu. As queixas com que me eJJchernos ouvidos são deste gênero: preguiçoso; frionas relações de amizade e parentesco; desinteressado dos negócios públicos. Os mais maldosos não dizem: por que tomou? por que nãopagou? mas sim: por que não faz talconcessão? por que não dá isso ou aquilo?

Agradeceria muito que não me pedissemmais do que devo, mas exigem injustamente oque não devo e com bem maior rigor do queempregam em exigir deles próprios o quedevem. Com tais exigências apagam todo omérito da ação e a gratidão que pudera ganhar

:r ea O latim, posto que o aprendera , como espaindano berço.

e que devera ser tanto maior quanto o quefaço, faço-ti de boa vontade, não tendo nenhuma obrigação de fazê--lo. Tenho tanto maiorl j ~ r d a d e de disPor minha fortuna quantonao ª devo a 11mguem; e de mim, porquantosou independente. Entretanto, se quisesse encarecer o que faço, ser-me-ia fácil responder aessas censuras. E a muitos mostraria que

c ~ e m à inveja e se ofuscam menos com quenao faça bastante do que com a possibilidademinha de fazer mais.

Contudo, meu espírito não deixava aomesmo tempo de ter resoluções firmes, juízosseguros e claros sobre objetos de seu conhecimento; e digeria-os sozinho, sem iníluênciaalheia, e era incapaz de me submeter à força eà vjolêncía.

Direi ainda desta qualidade que tinha emcríança: uma segurança na expressão, uma ve>z

e um gesto flexíveis que me permitiam desem·penhar qualquer papel? Antes da idade normal( mal entrava eu então no ano doze 293)representei as primeiras personagens das r g é ~dias de Buchanan, de Querente e de Muretque d i g n m ~ n t e se montaram no Colégio de

Guyenne. Ntsto, como nas demais funções deseu cargo, foi André de Gouveia  94 nossodiretor, o maior diretor de França· e eu seu

Ih ' • , 'or interprete. E este um exercício que não

deuco de louvar nos jovens de boa família; vi

29 3 Virgílio.29

• Humanista português (1497-1555).

depois principes nossos entregarem-se a ele aexemplo dos antigos, e o fazerem muito b e ~ .

Grécia até as pessoas de categoria o podiam fazer como profissionais: revela seuplano ao ator trágico r i s t o n , homem de berçoe fortuna; sua profissao em nada o diminuíaposto que nada tinha de desonroso na Grécia 2 11 6

Sempre acusei de impertinência os que condenam tais distrações, e de. injustiça os querecusam a entrada de nossas cidades aos

comediantes dignos, privando o povo de um

prazer público. Os bons governos tratam de

unir os cidadãos, de os juntar, tanto nos deve~ e s sérios _da devoção como nas festividades eJogos; assim se aumentam a solidariedade e aamizade. E não se poderia ademais coocedcr·lhes p s s ~ t e m p o s preferíveis a esses a quetodos .ass1stei;n na presença do magistrado.Acharia raioavel que este e o príncipe, à sua

cus.ta: o dessem algumas vezes ao povo, coma f e ~ ç a o e bondade paternal, e que nas cidades

m a 1 0 ~ e s houvesse lugares destinados a taise s p e t ~ c u l o ~ que, por vezes, poderiam desviarde mas açoes para cuja execução se escondemos homens.

Para voltar ao assunto, direi que o melhor éatrair a vontade e a afeição, sem o que se con

s e ~ u e m apenas asnos carregados de livros.

Dao-lhes a guardar, com chicotadas um sacod ; ciência, a qual, para que seja de' proveito,nao basta ter em casa: cabe desposar.

29 6 Tito Lívio.

CAPITULO XXVII

Da loucura de opinar acerca do verdadeiro e do falso

unicamente de acordo com a razão

e· Não é s ~ m m ? t i ~ o que ~ t _ r i b u í m o s à simplit idade e a 1gnoran,c1a a facilidade coin que cer  pessoas acreditam e se deixam persuadir,r1s pens? ter ,aprendido outrora que acreditar~ assim dizer o resuHado de uma espéciec e ~ m p r e s s ã o sobre a nossa alma, a qual a reine t a n t ~ r ; l e l ~ o r quanto mais tenra e de

p e n ~ o r res1stenc1a: .'-ssim ~ º . 1 1 º o peso faz

O~ r . a balança, assem a evidencia determina

espmto  2 9 s Q . , .llad · .uanto mais a alma e vazia eCidª tem como contrapeso, tanto mais ela

a ee f a ~ i l m e n t e à carga das primeiras impresD l u ~ h Eis por que as crianças, o povo, as

eres e os enfermos são sujeitos a serem

i Cícero.

conduzidos pela sugestão  9

7 • Por outro lado étola presunção desdenhar ou condenar c o ~ o

f a l . s ~ tudo o que não nos parece veros$ímil,defeito comum aos que estimam ser mais dota·dos de razão que o homem normal. Esse defeito eu o tive outrora. Se ouvia falar de almas do

o u t ~ o mundo, presságios, encantamentos, feitiçaria, ou de outra coisa em que não acredi

t a ~ s e : s o n h . o ~ visões mágicas, milagres, feiticeiras, apariçoes noturnas e outros prodígiosde Tessália 98

• sentia pena desse pobre pov.ode que abusavam com tais fantasias.

u 7 No tcxlO par les oreilles . pelo q ~ e ouvem.N.doT.)

, Horácio.

l ' N 1Y1VJ"f J I U U J''llC t i . N ~ A I U : -   JYI

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CAPfruLO X

Dos livros

Bem sei que me ocorre não raro falar de co isa.s que sio melhor e mais precisamentecomentadas pelos mC trCS do oficio. O que

escrevo resulta de minhas faculdades naturais

e nio do que se adquire pelo estudo. E quem~ ~ g u m erro atribuível à minha ignoranc1a nao fará grande descoberta, pois nãoposso dar_a ou trem garantias acerca do queescrevo, nao estando sequer satisfeito comigomesmo. Quem busca. sabedoria, que a busqueonde se aloja; não tenho a pretensão de

possuí-la. O que aí se encontra é produto de

mínha fantasia; não viso explicar ou elucidaras coisas que comento, mas tão-somente mos·trar-me como sou. Talvez. as venha a conhecera fundo um dia, ou as tenha conhecido, se poracaso andei por onde elas se esclarecem. Mas

já não as recordo. Embora seja capaz de tirarproveito do que aprendo, não o retenho na

memória: daí não poder assegurar a exatidãode rninha.s citações. se veja nela s, apenas,o grau de meus coohec1mcntos atu ais.

Não 3C preste atenção à escolha das matérias que discuto, mas tão-somente à maneira

que as trato. E•. no qne tomo de cmpréstuno aos outros, VCJ&m unicamente se soube

~ l h e r al10 capu de realçar ou apoiar aidéia que desenvolvo, a qual. sim. é sempre

minha. Nio me inspiro nas citações; valho-med ~ l a s para corroborar o que digo e que não seitao bem expre sar , o u por insuílciéncia da lín-gua ou por fraqueza dos sentidos. Não me

preocupo com quantidade e sim com a quali·

dade das c1taçoes. Se houvesse querido tiverareunido o d_obro. Provêm Lodas, ou quase, dos

autores ant1gos que hão de reconhecer embora

não os mencione. Quanto às razões, às compa

rações e aos argumentos que transplanto para

j ardim, e confundo com os roeus, omitimuitas vezes, voluntariamente, o nome do sautores, a ílm de pôr um freio nas ousadiasdesses criticas apressados que se eapojam nasobras de escritores vivos e escritas na língua detodo mundo, o que d6 a quem queira o direitode. as lacar e insinuar que planos e idéiasSCJam tao vulgares quanto o estilo; e eu queroque dêem um piparote nas ventas de Plutarcopensando du oaa minhas, e que insultem Sêne-ca de passaaem. Preciso esconder minha fra-

queza sob essas grandes reputações, m u de

bom grado veria alguém, clarividente e 1vu1 ·do, arrancar-me as plumas com que me ador·nei, distinguindo simplesmente pela diferença

de força e beleza as minhas das alheias Se porfalta de mem6ria oio consigo deslindar lhes asorigens, sei reconhecer entretanto que minhaterra é pobre demais para produzir as ricu flores que entre elas se acham desabrochadas eq_ue.apes_ r dos maiores esforços não as igualanaJama.tS.

Respondo porém pela confusão e erros dem ~ u s r i ~ s quando, por mim mesmo, porvaidade ou mscnsatez, me mos1ro incapaz decorrigi-los porque não os percebo ou niio os

sinto, ainda que mos apontem. Efetivamente' .s vezes certos erros nos escapam; o mal está

em não os admitir quando no-los mostram. Averdade e a ciência podem alojar-se em n o ~ s o

e ~ p í r i t o ~ embora sem que as saibamos ju lgar ed1sccrntr, como pode a razão nele habitar sema companhia daquelas qualidades. Sftbcr reco·nhecer nossa ignorância é mesmo uma dasmais belas e seguras garantias de que nio carccemos da faculdade de julgar. S6 o acaso guiameus passos na escolna de meus assunto  . Namedida cm que meus devaneios tomam corpoeu os agrupo: ora chegam aos magotes, ora deum em am. Quero que me contemplem aonatural, na atitude que assumo hab itualmente,por desordenada que seja, sem esforço nemartificio . Não falo senão de coisas que ni n·guém ignora e de que é Ucito tratar com liber·dade e sem preparação especial.

Gostaria por certo de possuir, acerca do quecomento, um conhecimento comple10, mas,para o adquirir, não quero pagar o elevadopreço que custa. Tenho a intençio de vivertnmqüilamente, sem me aborrecer, durantetempo que me resta, e não desejo quebrar a ca·beça com o que quer que seja, nem mesmo

com a ciência que muito prezo.Não busco nos livros senão o prazer de um

honesto passatempo; e nesse est udo não meprendo senão ao que possa desenvolver eJOmim o conhecimento de mim mesmo e m

auxilie a viver e morrer bem, "ena meta parionde deve correr o meu corcel"12

12 Propércio.

As dificuldades com que deparo lendo, nãome preocupam exageradamente; deixo-as delado após tentar resolvê-las uma ou duas

vezes. Se me detives.se nelas, perder-me-ia eperderia meu tempo, pois meu espírito é de talíndole que o que não percebe de imediatomenos entende cm se obstinando. Nio soucapaz de nada que nio me dê pra:ier ou qae

exija esforço, e atardar-me demasiado em um

assunto. ou nele me concentrar demorada·mente, perturba minha mteliaêocia, cansa-a eme entristece. Embacia-se-me a vista e seenfraquece, de modo que tenho de mterromper

a leitura e repeli-la. como quando queremos

perceber o brilho de certos tecidosº. e preci·samos olhá-los várias vezes e de vários modos.Se um livro me entedia, pego outro e s6 me de-

dico à leitura quando não sei que fazer; e o enfado me domina. Qu ase não leio livros novos;

preliro os aotigos que me parecem mais s érios

e bem feitos; não procuro tampouco os autoresgregos, porque meu espírito não pode tirar par-tido do conhecimento insignificante que tenhoda língua grega.

Bntre as obras de mero passatempo, agrada m-me entre os modernos o "Decamerom" de

Boccaccio, Rabelais e " Os Beijos" de Jean

Second, se é que este último, escrito em latim,pode incluir-se entre os modernos. Quanto ao  >

Amadis e outros romances do gênero, não me

interessaram seqner quando os li cm criança .Direi mesmo, o que há de parecer ousado ou

temerário, que meu espírito envelhecido nioaprecia mais a leitura, nio somente de Ario tomas ainda do bom Ovídio. Sua imaginação .sua facilidade, que outrora me encantavam,

nio me distraem mais agora.

Exprimo livremente minha opinião acercade tudo, mesmo daquilo que. por ultrapassarmeus conhecimentos intelectuais. considerofora de minha alçada. O meu comentino tementretanto por fim revelar meu ponto de vista,

e não juJgar do mérito das coisas. Se digo queo "Axioco" de Platão me enfada, por se tratar

de obra fraca. dado o valor e a força llo autor,não o faço convencido da infatibilídade de meujuízo; não tenho a pretensão de contestar aautoridade de tantos outros j uizes de renomeda antignidade, que considero meus mestres.dian te dos quais me inclino e com os quaisdesejara enganar-me. A mim mesmo me con·dcno, pois, ou terei julgado superliciolmentc,não penetrando profundamente a obra, ou aterei encarado de me u ângulo. Contento mecom não me deixar perturbar. nem ser impc

0 Ascarlate, 110 ccxto. o que . ••( :: ~s1gnií1Catia um tecido e: oio .,_ · '

lido ao devaneio; quanto à fraqueza de meujuízo, reconheço-a e a confesso. Penso dar uma

interpretação justa às aparências que apreondo, mas como são enganosas, imperfeitas1Emsua maioria as fábuJas de Esopo apresentamvários sentidos e significações. Os que as interpretam mitologicamente palmilham por certo

um terreno bem adequado à fábula; mas é permanecer à superfície; há outra interpretaçãomais viva, essencial e interior, a que não puderarn chegar os eruditos.

Prossigamos, porém. Sempre pensei que,entre os poetas, Virgílio, Lucr&:io, Catulo e

Horácto se situam longe dos outros, em pri ·meiro plano. Em particular, Vi rgílio, cujas"Gcórgicas" são a meu ver a obra poéticamais perfeita: se a compararmos com a"Eneida", percebemos que há neste poema ccr·tos trechos que o autor houvera retocado se

tivesse tido tempo. O livro quinto da " Eneida"é o que considero ma is acabado. Gosto tam ·bém de Lucano e o leio com grande prazer,menos pelo est ilo do que pelo alcance de suasopiniões e juízos. Quanto ao bom Terêncio, emquem. deparo com todas as elegâncias e as gra·ças da língua latina. julgo-o admirável qu J dotrata dos sentimentos e descreve com vivacidade os nossos costumes. A todo inst811te eu o

recordo e por mais que o leia sempre descubronele alguma beleza nova.

Lamentavam os contemporâneos de Virgílioque o comparassem, alguns. a Lucrécio. Tam ·bém eu acho a comparação infeliz, mas não aconsidero tio desacertada quando me detenhocm algum trecho mais belo de seu êmulo. Se secontrariavam com o paralelo, que diriam dos

que hoje o comparam tola e ignorantemente a

Ariosto? E que pensaria o próprio Ariosto?..O' século grosseiro e sem gosto ' •Sou deparecer que mais razão tinham ainda os antigos de lamentar os que equiparavam Plauto aTerêncio (este muito mais nobre). Para j ulgardo mérito de Terincio e da preferência que lhedevemos dar , devemos atentar para o fato de

Cícero, pai da eloqüência romana , o citar

constantemente, o que não faz com ninguémmai s. E também a crítica severa que Horácio,

o maior crítico dos poetas latinos, dirige a

Plauto.

Muitas vezes pude constatar quanto. emnossa época, os que escrevem comédias (comoos italionos, felizes no gênero) se inspiram em

Terêncio e Plauto. a quem tom a i de cmprt1-timo três ou quatro eon:doa para mqlli... . um

dOt IOUI. E auinl procDdom p ~ cmm~ 1 a . r . u n i D d e _ _.a6cian .1111..._

· ·

em vôo reto, poderoso e firme; no segundo o maneira de escrever, bem diferente da dos

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ou aeis contos seus. O receio de não poder sus·tentar o interesse das peças com seus própriosrecursos é que os leva a procurar algo sólidocm que as 11sentar.E não o podendo tirar de si

próprios. querem que nos divirtam as peripé·cias. O contrário ocorre com Terêncio: a per·feiçio e 1 beleu de seu estilo nos indutem aesquecer o tema; sua delicadeza e sua graça

cativam-nos cm todas as cenas; é um autor tãoagradável, "tão fluido e semelhante a uma

água Umpida"' •; e nos seduz a tal ponto com

seu donaire que mal percebemos o assunto de

suas comédias.Estas observações levam-me a.inda a notar

qoe os bons poetas da antigujdade evitaram aafetaçio e o rebuscamento, não somente das

fantasias exageradas que se encontram nosespanhóis e nos pecrarquisw, mas t m ~ mdas graças mais atenuadas que se deparam nas

obras poéticas dos ~ u l o s seguintes. Assim ocritico competente lamenta observá-las porventura nos antigos, e admira mais a perfeiçãodo acabado, a doçura perp6tua, e a beleza flo·

rida dos epigramas de Catulo que todos os sar·

casmos das sátiras de Marcial. E o que disseacima t m ~ m o disse Marcia l de si próprio:"não era mister que se esforçasse; o assuntosubstituía o espírito".

Os antigos poetas, os que brilham pelaimaginaçio, logram o efeito visado sem se agitar exageradamente nem se picar para se excitarem; têm com que provocar o riso sem e c e ~sidade de áx:egas; os outros precisam de ajudaestranha; quanto menos espírito têm, mais precisam de corpo e montam a cavalo porque não

podem sustentar-se sobre as pernas. Assim, em

nossos bailes públicos, esses cavalheiros debaixa extraçio e que ensinam a dançar, na

impossibilidade de exibir uma nobre e decenteatitude, tentam valorizar-se com saltos perigosos e outros movimentos extravagantes, àmaneira dos acrobatAs. E as damas mostram·

se mais dcsenvoltAs nas danças que comportam figurações e balanceios do que nas cerimônias em que lhes cumpre apenas andar,

conservando sua atitude e graça naturais.Observa-se igualmente que os palhaços queexercem sua profissão com talento tiram todopartido possível de sua arte, mesmo quandovestidos com seus trajes co tidianos, enquantoos aprendizes, de menor competência, precisam enfarinhar a cara, mascarar-se, gesticular.e fuer caretas para nos obrigar a rir. Minhaopinião se esclarecerá melhor se compararmos

a "Eneida" com "Orlando Furioso". No primeiro poema mantém-se o poeta nas alturas.

'1 Horácio.

autor borboleteia saltitante, de episódio emepisódio, como se, não confiando em suasasas, pulasse de galho em galho, de medo deperder o fôlego, de carecer de forças: "tenta

apenas pequenas corridas", como diz Virgílio.Eis os autores que mais me agradam nesses

gêneros.Quanto às minhas demais leituras, as que

me instruem e deleitam ao mesmo tempo. uque me ensinam a pensar e a conduzir-me,tiro-as de Plutarco, na tradução francesa, e de

Sêneea. Ambos apresentam a vantagem, dado

o meu temperamento, de me oferecer os ensi

namentos que neles busco. de um modo fragmentário e por conseguinte não exigente de leituras demoredas de que sou incapaz.. Os

opúsculos de Plutarco e as epéstola.s de Sênecaconstituem a parte mais formosa de seus escritos, e também a mais proveitosa. Para empreender tais leituras nio se faz mister umgrande esforço, e poSso sustá-tu quandoquero, pois nenhuma ligação existe entre os

capítulos dessas obras. Esses dois autores, queconcordam oa maioria de suas idéias funda·mentais, têm ainda outros pontos em comum:viveram no mesmo século, foram ambospreceptores de imperadores romanos, nasce·ram ambos em países estrangeiros, foram

ambos ricos e poderosos. Suas lições são damelhor filosofia e se apresentam da maneiramajs simples, com competência. Plutarco é em

geral mais ignal, Sêneca mais variado. Este seesforça. se retesa, tenta defender a virtude con ·tra a pusilanimidade, o temor, o vício; o outro

não parece preocupar-se com esses inimigos,

não apressa o passo para fugir do perigo. Plutarco é da escola de Platão, suas idéias estãoisentas de exqero e se acomodam à sociedadetal qual é. o outro, que é da escola dos estóicos e dos epicuristas, elas se afastam mais doque se admite na vida comum, mas são ao meuver mais cômodas para o individuo e impreg·nadas de firmtta. Sêneca parece ter feito algumas concessões à tirania dos imperadores desua época. pois creio que foi por imposiçãoque condenou a causa desses homens generosos que mataram César. Plutarco conservasempre sua independência. Sêneca abu.nda em

comentários e criticas, ao passo que em Plu·tarco predominam os fatos. O primeiro comovemais entusiasma; o segundo dá mais satisfa·ção e compensa melhor o tempo que lhe consagramos; este nos guia, o outro nos empurra.

Quanto a Cícero, as obras que mais oonvérnao fim que me propus, sio as obras filosólicasque tratam da moral. Mas, para di2er a verda·de, e por mais ousado que se afigure. sua

precedentes, parece-me aborrecida. Seus prefá·cíos, suas definições, suas classificações, suas

etimologias, ocupam efetiva e inutilmentequase toda a obra; o que nesta há de vivo enervoso é abafado por esses excessos preliminares. Se passo uma hora a lê-lo - o que já édemais para mim - e recapitulo tudo o quedele tirei de substancial e nutritivo, não cncon·tro a maior parte das vezes sen io vento, poisainda oào cheguei nem às razões, nem aos

argumentos relativos ao íundo do problema.Para mim, que não procuro ampliar o meusaber ou a minha eloqüência, essa exposição

lógica, obediente às regras de Aristóte les, éinadequada; gostaria que começasse pelo fim.Sei muito bem em que consistem a mone e avolúpia, para que se divirtam em as analisarminuciosamente em m111ha intenção. Procurode imediato as razões ~ r i a s e certas que mereconfortem pelo esforço que me cabe suportar. Nem as sutilezas caras aos gramáticos,nem o engenhoso arranjo das frases e da argumentação me ajudam a gostar. Quero pcnsa-mentos que desde o início ataquem o ponto

principal do problema, e os seus arrastamcm tomo da questão. São para a escola, otribunal, o púlpito onde temos tempo <le cochilar e ainda reatar o discurso ao despertarmos

um quarto de hora depois. Assim 6 que se falaaos magistrados quando se deseja ganhar uma

causa, com ou sem razão ; ou às crianças, ou à~ u l t i d à o , às quais é preciso tudo dizer e repetir para que entendam alguma co1sL Mas eunão quero que me gritem c inqüenta vezes:"ouça bem isto".

Os romanos diz iam cm suas orações litúrgi·cas: "hoc age" e n6s "sursum corda". São

palavras inúteis para quem, como eu, eSlá disposto a escutar. Condimentos e molhos nãome agradam pois gosto de carne crua. E em

vez de provocar o apetite, css:s preâmbulos mecansam e me desencantam. Será a licença de

~ o s S l l época uma desculpa para que ache

igualmente tediosos, exaustivos os diálogos dopróprio Platão? Lamento o tempo que perde,cm vãs interlocuções preparatórias. umhomem que tinha tanta coisa importante adizer. Minha ignorância justificará sem dúvidao desprazer que me causn seu estilo. Em geralpreílro os livros em que me encontro com oconhecimento daqueles que o explanam. Plutarco, Sêneca, Plínio, o Velho, e outros não

nos dizem "hoc age"; têm eles por leitores os

que se advertem a si mesmos. E. se chnmamp o r v e ~ t l r a a nossa atenção. é para pontosessenc1a1s.

Leio de bom grado as epístolas a Ático, de

Cícero, porque nos fornecem m u i t o ~ pormeno-r ~ s acerca da história de seu tempo e maisainda porque nos esclarecem a respeito de sec8 áter e, .  ?1 disse alhures, é gr1.U1de

mim a curiosidade pela alma e o ei.pírito dosa ~ t o r e s que leio. Somente sua capacidade, e

seus c o ~ t u m e s nem ele próprio. podemosJUigar pela leitura de suas obras.

Mil vezes lamentei que a obra de Brutosobre a virtude não tenha chegado nté nós·fora admirável aprender a teoria com quembem a praticou. Contudo como quem prega eº  que prega, são coisa.s diferentes, p r c i ~ oainda ver Bruto pintado por Plutarco a vê-lo

assinalado por si mesmo, mas gostat1a ante)saber exatamente de que assuntos se entrelinhacom seus amigos íntimos, na vésper1 de uma

batalha, do que os discursos feitos ao cx c11odepois do combate; e antes o que fazia em seuquarto e cm seu gabinete do que na praça pú .blica e no Senado.

Quanto a Cícero, participo da opinião geral:fora de seu saber, seu caráter, de muitos pontos de vista, não era perfeito. Era bom cidadãoindulgente, como a maioria dos homenH gor'

dos e alegres, mas no fundo havia nele certacarência de fibra, muita vaidade e ambição.Não posso ellplicar de outro modo o apreçoem que tinha sua poesia, pois, se não constituidefeitO grave escrever versos maus. era fra·queza sua não sentir quanto os que fazia er11mindignos de seu renome. Sua eloqüência era

incomparável e, creio, ninguém Jamais poderi

ombrear com ele na ane de falar. Cícero. oJovem, seu filho, que do pai só tinha o nome,oomandavn um exército na Ásia. e uma feitareuniu à sua mesa vários estrangeiro:.. entre osquais C ~ t . i o , que se achava em uma das ponw. como urn intruso. Cícero indagou quemera: mas , distraido, não ouviu a resposta e tor·nou a perguntar duas ou três vezes. O criado.para não repetir sempre as mesmas palavras ea fim de fixar a atenção <lo anfitrião cm alguma particularidade, acrescentou : "e aqueleCéstio de quem já nos disseram que nio fazgrande caso da eloqüênci1t de vosso pat com·

parada à dele mesmo". Irritado, Cícero ordenou que prendessem Céstio e o 1tçu1tassem na

presenç,a de todos. Eis um anfitrião bem poucodelicado

Mesmo entre os que julgavam sua eloqüência incomparável, alguns houve ~ u e nio

deixaram de aponlar certas imperfeições. Ogrande Bruto, seu amigo, dizia que era uma

eloqüência descosida e sem vigor. Os oradoresposteriores censurarllJTl-lhe o curioso afã decerta cadência exagerada no final dos períodos, bem como as palavras de "efeito" que tão

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seguidamente empregava. Apesa r disso, embora raramente, não era muito eufórico comopude verificar nesta frase: "em verdade, quanto a mim, preferiría envelhecer durante menostempo do que antes do tempo''.

Os historiadores constituem meu passatempo predileto. Sua leitura é-me fácil e agradável. Em seus livros encontro o homem queprocuro penetrar e conhecer, apresentado commaior nitidez e mais completamente do quealhures. Sua maneira de ser neles se projetacom mais relevo e verossimilhança, tanto nospormenores como no conjunto. Assim, também, seu caráter formado por um complexo dequalidades e defeitos, bem como pelos acidentes a que se expõem. Entre os historiadores, osque se atêm menos às ocorrências do que àscausas, e ponderam mais os móveis a que obedecem os homens do que lhes acontece, s.ão os

que me agradam particularmente. Eis por que ,cm todos os pontos de vista, Plutarco é meu

autor predileto.Sinto muito não termos uma dúzia de Dió

genes Laércio ou que sua obra não seja maisextensa ou mais inteligentemente composta,pois me interesso tanto pela vida dos grandeseducadores quanto por seus dogmas e suasidéias. Quando nos dedicamos a estudos histó

ricos desse gênero, precisamos folhear inúmerós autores, velhos ou novos, escritos em bomou mau francês, a lim de conhecermos os diferentes pontos de vista sob os quais cada coisase apresenta.

Maís do que os outros, César merece serestudado, a meu ver, não somente pela históriamas por si mesmo. Tão grandes são a sua perfeição e superioridade que o colocam acima detodos os outros, mesmo de Salústio. Eu o leiocom um respeito e uma concentração de espí ríto maiores do que em geral se dedicam àsobras humanas, atentando para a pureza e ainimitável correção de seu estilo superior ao detodos os demais historiadores, como diz Cícc

to e por vezes ao do próprio Cícero.Com tanta sinceridade julga seus adversários que, salvo as falsas aparências de quereveste a causa que defende e a pestilência desua ambição, só se lhe pode criticar o fato denão falar bastante de si mesmo, pois tão grandes coisas não podiam ter sido realizadas, sesua parte não fosse maior do que afirma tersido.

Entre os historiadores, aprecio os que sãomuito simples - ou os excelentes. Os que sãosimples, não podendo acrescentar algo de seuao que contam, recolhem com cuidado e exatidão tudo o que chega a seu conhecimento,tudo registram de boa-fé, sem selecionar, sem

nada fazer que po.ssa influir no nosso julgamento, na descoberta da verdade. Assim é, porexemplo, o bom Froissart, o qual em sua obrase mostra tão franco e ingênuo que, se cometealgum erro, não deíxa de o reconhecer, retificando o trecho assinalado. Todos os boatosem curso, ele os anota com as possíveis variantes: consigna todas as versões que obtém; sãomaterial bruto e informe cjue colige e servirá aquem lhe suceder.

Os historiadores perfeitos têm a inteligêncianecessária para discernir o que merece passarà eternidade. São capazes de distinguir, entredois relatos, o mais verossímil. Da situação em

que se encontram os príncipes e de seu caráter,induz.em os móveis que ditam suas determinações e põem em sua boca as palavras .adequadas às circunstâncias. São levados a impor-nossua maneira de ver, mas isso é peculiar tão-somente a um pequeno número deles.

Os que ocupam um lugar intermediário - amaioria - estragam tudo. Querem mastigaros fatos para nós; pretendem julgar e falseiama história de acordo com o que dela pensam;pois uma vez que se julgou num dado sentidonão há como deixar de deturpar os fatos ou osapresentar de maneira a comprovarem a idéiapreconcebida. Selecionam o que imaginam sedeva conservar e escondem muitas vezes tal ou

qual palavra, tal ou qual ação particular queesclareceriam a situação; eliminam, por incrível que pareça, o que não compreendem.emesmo o que não sabem exprimir em francesou em latim. Que desenvolvam tão ousada eeloqüentemente quanto puderem suas deduções, que julguem como pensam dever fazêlo, mas que nos d.eixem a possibilidade de também julgarmos depois deles Que nada alteremnem suprimam a pretexto de serem concisos eexatos e que nos apresentem seu material semfalsificação, na íntegra.

Escolhem-se, geralmente, para historiógrafos - sobretudo em nossa época - indivíduos medíocres, somente porque sabem falarbonito como se fosse para aprender gramáticaque precisássemos de suas obras. Quanto aeles, tendo sido escolhidos unicamente porcausa de sua tagarelice com isto se preocupam; e, recheadas de belas frases e boatosouvidos nas praças das cidades, compôem assuas crôoicas-

As únicas histórias valiosas são as queescreveram os que dirigiam os negócios JlO

eles relatados, ou outros do mesmo género. Eo caso de quase todos os historiadores gregosou romanos, pois se várias testemunhas c o l ~ -res escrevem sobre o mesmo assunto (ocorriafreqüentemente , então, encontrarem-se reuni-

dos altos cargos e saber) e que haja erro, este~ e " ' que ser somenos ou referir-se a algumiuc1dente duvrdoso_ Que esperar de um médicoque fala de guerra ou de um estudante que disserta acerca dos desígnios do príncipe? Um só

exemplo bastará para mostrar a que ponto osromanos eram exigentes nesse domínio.

Asínío Pólio assinala nos próprios comentários de César alguns erros que seriam devidosao fato de não ter ele podido ver pessoalmentetudo o que acontecia nos exércitos, ou ter acreditado em pessoas que lhe narravam coisasinsuficientemente verificadas, ou ainda não

estar, no momento, a par dos relatórios de seuslugar-tenentes a respeito das manobras realizadas durante a sua ausência. Por í se percebequanto essa procura da verdade é delicadaporquanto não podemos confiar sequer

quem dirigiu, organizou, fez, nem nos soldados, a menos de confrontar os testemunhos eouvir as objeções, antes de admitir como provados os menores detalhes de cada fato. Oconhecimento do que se passa em nossa épocaé bem mais vago ainda, mas o assunto foimuito bem tratado por Bodín, e de acordo como meu ponto de vista.

A fim de remediar um pouco as traições deminha memória, tão fraca que me aconteceu

mais de uma vez. voltar, como se não os conhecesse, a Hvros lidos anos antes com atenção eanotando, habituei-me de uns tempos para cá aescrever, no fim dos volumes que não pretendotornar a consultar, a data do término da leitura, e, ern grandes caracteres, a impressão sentida, ao menos para ter a qualquer momentouma i d ~ i a geral do que li Eis algumas dessasanotaçocs.

á dez anos mais ou menos em meu Guích,ardin (qualquer que seja a língu11 dos lívros,eu lhes falo na minha), eu escrevia: Historíógrafo cuidadoso, no qual se pode, melhor doque em qualquer outro, colher a verdade acerca dos negócios de seu tempo, na maior parte

do_s quais desempenhou um papel honroso.Nao me parece que, por ódio, condescendência ou vaidade, tenha deturpado algumacoisa. Pode-se vê-lo pela imparcialidade deseus juízos sobre o.s grandes, particularmenteos que, como o Papa Clemente VII, o empregaram e o promoveram nos· cargos que ocupou. Prevalecem em sua obra as digressões eos discursos, e os há muito bons e enriquecidosc?m belas tiradas, mas neles se compraz demasiado. E a lim de nada esquecer, embora o

a ~ s u n t o em si já seja muito amplo, ele o diluíaU lda ao infinito e seu estilo degenera em falatório escolástico. Observei também que, embora aprecie muito homens e coisas, a c o n t e c i

mentos e resoluções, nunca atribui nada àvirtude, à religião, à consciência, como se issotudo não existisse neste mundo. Todas asações, por mais belas que sejam na aparênciaele as atribui sempre a alguma causa v i c i o s ~ou ao partido que o autor pode tirar delas. Éentretanto impossível admitir que nessa infinidade de fatos nenhum se depare cuja causaseja louvável. A corrupção não deve ter sidotão g e n e ~ a l i z a d a que ninguém lhe escapasse.Isso me induz. a crer que carece de senso crítico e talvez haja julgado os outros por simesmo.

No meu Commines, escrevi: Eis uma linguagem doce e agradável e extremamente simples. A ?arração isenta de circunlóquios,a boa-fe do autor e manifesta .Fala de simesmo sem vaidade, e dos outros sem parcialidade nem inveja. Seus relatos e cometltáriosevidenciam uma autoridade e seriedade quedemonstram trata r-se de um homem de famíliailustre, familiarizado com negócios importantes.

Nas memórias dos Srs. Ou Bellay: É sempreagradável ler coisas escritas pelas pessoas quepor experiência viram como manejá-las. Mas éevidente que nesses senhores observa-se umafalta grande de franqueza e da liberdade quefora de desejar como a que brilha nos antigos

cronistas em Joinville, por exemplo, daCorte de São Luís, Eginard, ministro de CarlosMagno, e mais recentemente Filipe de Commines. A obra cm questão é mais uma defesa doRei Francisco I contra o Imperador CarlosQuinto do que uma história. Não quero crerque, quanto ao fundo, tenham os autoresmodificado os fatos que relatam, mas os apre·sentam não raro erroneamente, sob um aspectofavorável a nós, omitindo tudo o que há departicularmente delicado na vida de seu senhor. Trata-se sem dúvida alguma de t r ~ b a l h oencomendado. As desgraças dos Srs. de Montmorency e de Brion não são mencionadas, nemse lê o nome de Madame d'Etampes. Pode-se

admitir que se ' silenciem as coisas secretas,mas calar acerca do que todo mundo conhece,ignorar o que tamanha imponância teve nosnegócios públicos é indesculpável. Em suma,se me acreditam, convém que se dirijam a outros se ·quiserem ter um completo cónhecimento do Rei Francisco I e das ocorrências desua época. O que se lê com proveíto é a narrativa das batalhas e feitos de guerra a queassistiram esses lidalgos, algumas palavras eatos da vida privada de certos príncipes, asgestões e negociações levadas a efeito pelo Sr.de Langeais em que se consignam muitas cotsas que merecem divulgação e se acompanhamde reflexões notáveis.

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recolhem os animais e hospitais ern que os tr a· ções latinas, pensava Bufiuel que, com algum.a brilhante desse ponto de vista, que não creio

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tarco desse erro, é também honrosa para osanimais; não era o gato ou o boi, por exemplo,que os egípcios adoravam e sim. os a t ~ ~ b o t . o sdivinos que simbolizavam: no boi a p a c 1 e n c 1 ~ ;no gato a vivacidade; ou como entre os borgu1·nbões e os alemães, o gosto pela liberdade queeles colocavam acima de lido o que vinha de

D e ~ s .'JUando encontro em autores muito sensatos

dissertações tendentes a provar certa seme·lhança entre os animais e nós, quanto partici·pam de nossos próprios privilégios e quantotemos em comum, torno-me muito menos presunçoso e abdico sem dificuldade e s s ~ r c ~ l e z aimaginária do homem sobre as demais cnatu-

r a s ~ f a s ainda que tudo isS O seja discutível,cumpre-nos ter certo respeito não somentepelos animais, m a ~ t a i n b é ~ por. tudo o queencerra vida e sentunento, 1nclus1ve árvores eplantas. Aos homens devemos u s ~ i ç a às.demais criaturas capazes de lhes senttr os efeitos,solicitude e benevolência. Entre elas e nós existem relações que nos obrigam r e c i p r o c a m e n ~ e .Não me envergonho de confessar que sou taoinclinado à ternura e tão infantil a esse respeitoque não sei recusar a meu cão .as festas intempestivas que me faz, nem as que me pede.

tam. Os romanos alimentavam a e x p e n s a s . ~ otesouro os gansos que tinham salvo o Cap1tolio. Os atenienses haviam decidido quemulas e os burros empregados na construçaodo templo de Hecatompedon seriam deixadosem liberdade e pastariam onde quisessem semque ninguém os pudesse impedir. Os agrigentinos tinham por costume corrente enterrarcerimoniosamente os animais queridos, cavalos dotados de alguma qualidade rara, cães epássaros úteis ou simplesmente divertidos. Arjquez.a e a quantidade dessas sepulturas, quese ·admiraram ainda sécuJos depois, não fica

vam atrás das que lhes eram peculiares emtudo. Os egípcios enterravam os lobos, osursos, os crocodilos, os cães e os gatos emlugares sagrados. Embalsamavam-nos e u.sa·vam luto em soa memória. Címon deu honrosasepultura à éguas com que ganhou três vezes

consecutivas as corridas olímpicas. Xantipo, oAntigo, enterrou seu cão em um promontório,no mar que desde então teve seu nome. E o

próprio Plutarco teve e s c r ú p u ~ o s diz-nos, emvender com algum lucro, e enviar ao matadouro, um boi que lhe fora útil durante muito

lempo.

CAPÍTULO XII

Apologia de Raymond Sebond

em verdade a ciência coisa imporlante eútil. Os que a desprezam dão prova de e s t u ~ i -dez. Não considero entretanto seu valor taoelevado quanto o imaginam alguns, como o

fil6sofo Herilo,por

exemplo, que a encaracômo o soberano bem e lhe atribui o poder quenão tem, a meu ver , de nos tornar s e o s ~ t o s esatisfeitos. Ou como outros que nela veem amãe de todas as virt1Jdes, resultando da igno

rância todos os vícios.Se assim é, cabe interpretá-lo.Minha casa esteve sempre aberta aos ho

mens de ciência, e eles a conhecem bem. Meupai, que a dirigiu durante mais de c i n q ü e n t ~anos, animado por es.se entusiasmo do ReiFrancisco 1pelas letras, procurou sempr.e comcuidado e grande interesse a companhia ~ o sdóutos. Recebia-os como se fossem santos, i.ns-

pirados na sabedoria divina. Recolhia seuspreceitos e discursos como oráculos e comtanto maior reverência c fé quanto não e stavaà altura de os julgar, não tendo tido, como nãotiveram seus avós, íntimo contato com as

letras. Eu também os aprecio muito, mas nãoos adoro.

Entre os que recebeu meu pai figura PierreBuiiuel homem de grande reputação e que se

. M · ' ºeemorara alguns dias em onta1gne , comoutros sábios. No momento de partir presenteou-nos com uma obra intitulada "TeologiaNatural ou Livro das Cr iaturas", de Raymo.ndScbond. Meu pai conhecia perfeitamente o ita·tiano e o espanhol, e sendo a obra escritaúltima língua, embora mesclada com termina·

'0 9 No castelo.

ajuda, ele a pudesse ler e dela tirar proveito.Recomendou-lhe o livro por ser muito útil eapropriado às circunstâncias, pois estávamosna época em que a Reforma de Lutero começava a expandir-se e a abalar em muitos paísesas antigas crenças. A esse respeito Buiiuelmostrava-se clarividente, prevendo, simplesmente pelo raciocínio, que esse princrpio dedoença degeneraria logo em execrável ateísmo.e isso porque o vulgo, não sendo capaz de jul gar as coisas em si, se atém às aparências.Quando se tem a temeridade de, por uma vezque seja, incitá-lo a desprezar e controlar asopiniões ante as quais respeitosamente se inclina, porquanto implicam em sua salvação;quando se põem em dúvida certos pontos desua religião, submetendo-os a seu julgamento,ele aca >a muito rapidamente por sentir amesma incerteza para com todas as suas demais crenças, pois as que licam têm menosautoridade e fundamento do que aquelas deque o despojaram. Liberta-se, então, como deum jugo tirânico. de todos os princípios querecebera com apoio nas leis ou nos antigoscostumes, poís calcamos os pés de bomgrado aquilo que mais veneramos ' , e decide desde logo não mais aceitar o que não tenhaantes examinado e aprovado.

Dias antes de morrer, tendo meu pai poracaso encontrado o livro sob· um monte depapéis abandonados, pediu-me que o vertessepara o francés. tarefa das mais fáceis tradu·7:ir autores como esse, em quem o fundo étudo; já o mesmo não ocorre com os que sacr i·ficam muito à graça e à elegância do estilo,

principalmente quando nos devemos expressarem uma língua mais pobre que a do original.Para mim tratava-se de trabalho inédito, masocorrendo, por felicidade, ter então algunslazeres, e nada podendo recusar ao melhor dospais, riz o possível e terminei a tradução. Meupai ficou satisfeitíssimo e quis que a obra seimprimisse, o que se foz depo.is de sua morte.

Achei belas as idéias do autor, sólida aestrutura da obra e piedosa a sua inspiração.Como muitas pessoas se distraem em sua leitura, entre as quais senhoras a quem devemosobrigações, não raro me foi dado ajudá-tas,destruindo as duas principais objeções quefaz.em ao livro.

O objetivo deste é ousado e corajoso. pois sepropõe estabelecer e provar, contra os ateus,todos os artigos de fé da religião cristã,baseando-se unicamente em razões humanas enaturais. E, em verdade, acho-o tão firme e tão

11 0 Lucrécio.

:;eja yossível conseguir ~ a i s nem penso quealguem o tenha conseguido. Parecendo-me aobra demasiado ríca e bela para autor tãopouco conhecido e de quem nada sabemos,senão que era médico, espanhol, e residira emTolosa há cerca de duzentos anos, indaguei desua importância junto a Adriano Tournebusque tudo sabe. Este respondeu-me que, a seuver, podia muito bem tratar-se de uma quinta·essência tirada de Santo Tomás de Aquino,cuja infinita erudição e sutileza de espíritoeram as únicas capazes de tais idéias. Comoquer que seja (e a hipótese de Toumebus não

bastapara

despojar Sebond), trata-sepor

certode um homem eminente que escreveu belís·simas páginas.

A primeira objeção ao livro é que os cristãos se enganam em querer sustentar comargumentos puramente humanos uma crençaque ó se concebe pela fé e lJOr intervençãoparticular da graça divina. Parece-me que talobjeção provém de uma exagerada piedade,por isso mesmo convém refutá-la com tanto

maior delicadeza e respeito. E é neste espíritoque gostaria de responder. Seria tarefa paraalguém mais versado em teologia do que eu,que a ignoro. Entretanto, julgo que em umacoisa tão elevada e divina, que sobrecxcede a

inteligência humana. como essa verdade comque a bondade de Deus houve por bem ilumi·

nar-nos, cumpre que Ele nos continue a auxiliar, e que ó por um favor especial de Suaparte podemos coocebê--la e ponetrn-la. Abandonados unicamente à nossa inteligência, nãose.remos capazes, pois se assim não fosse, muitos espíritos superiores e privilegiados como osque floresceram nos séculos passados teriamchegado à fé por intermédio da razão.somente a fé que nos revela os inefáveis misté·

rios de nossa religião e nos confirma a sua verdade; o que não significa não seja bela e louvá·vel empresa põr a serviço des sa fê os meios deinvestigação que o homem recebeu de Deus. E

não há como duvidar um momento sequer sejaeste o emprego mais digno que nos caiba dar anossas faculdades mentais, nem CJCista ocupação e objetivo mais elevados para um cristãodo que os de orientar scos estudos e medita·

~ e s no sentido de embelezar, estender eampliar os alicerces de sua crença. Não noscontentemos com colocar ao serviço de Deusnosso espírito e nossa alma; devemos tambémprestar-Lhe uma homenagem física, pois todosos nossos órgãos, todos os atos e a t i t u ~ e s concorrem para a Sua glorificação. Nossa razãodeve agir do mesmo modo e dedicar-se aamparar nossa fé, sempre po.rém sob a reserva

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les, que é uma secreção proveniente do sanguee a última a expandir-se pelos membros; outros vêem nessa secreção sangue cozido e justificam sua opinião com o fato de por vezes aparecerem gotas de sangoe no pênis quando há

por demais esforço cm suas funções, e é ahipótese rnais plausível, se algo pode ser pla1,1-sível nessa infinidade confusa de opiniões.

E quantas idéias di ferentes acerca da maneira por que atua esse sêmen Aristóteles eDemócrito acham que a mulher não segregaesperma, mas tão-somente um suor resultantedo calor que desenvolve nela o prazer, suorque não teria aliás nenhum papel na fecunda

ção. Ao contrfu-io, Galeno e seus discípulospensam que essa fecundação só se efetua quando o que provém do homem se mistura ao quevem da mulher.

Finalmente, qual o tempo da gestação?Nesta questão os médicos, os filósofos, os

jurisconsultos e os teólogos voltam-se para amulher. No que me concerne, posso apoiar os

que sustentam durar a gravidez on ze meses.Assim , em tais divergências assenta o

mundo Eis assuntos a cujo respeito qualquermulherzinha daria um palpite e no entanto sãoobjeto de contestações infmdáveis

Basta isso para mostrar que o homem sabetão pouco de seu corpo quanto de sua alma.

Submetemo-lo a seu próprio julgamento, paraver onde o conduziría sua razão. Parece-meque provamos suficientemente a que pontoentende pouco de si mesmo. E quem não entende de si, de que há de entender? "Como sequem ignora a própria medida pudesse sequermedir alguma coisa" 3 o ). Na verdade, Protágoras mostrava-se fantasista ao escolber ohomem para medida de todas as coisas, ohomem que j amais conheceu sua própr ia medida. Por outro lado sua dignidade não permjteque outorgue tal vantagem a outra criatura.Como está cm contradição permanente consigo mesmo, e suas apreciações se destroemmutuamente, propô-lo como medida não pode

passar de brincadeira, porquanto nos levarianecessariamente a concluir pela incapacidadedo compasso e de quem o manuseia. Tale$,achando que o conhecimento do homem pelo

homem é muito diJici1, mostra ser-lhe impossível o conhecimento de qualquer outra coisa.

Dei-me ao trabalho de, contra meus hábitos,estender-me a esse respeito por vossa:Jo 4

causa, mas v6s não deveis deixar de defenderas propo$íÇÕes de Sebond com a argumentaçãohabitnaJ e que se encontram nas instruções quecotidianamente recebeis. Isso exercitará vosso

3 3 Plínio.1 4 Mar11vidade Valois.

espírito e vos parecerá um objeto interessantede estudo. Quanto ao método de discussão quevenho e m p ~ g a n d o cumpre só recorrer a eleem última instância; é em caso de desesperoque largamos nossas próprias armas para usaras do adversárjo; é golpe secreto que cabe utilizar raramente e com discrição. Perder-separa levar alguém à pcrdíção é coisa temerária, não se deve querer morrer a ftm de assegurar uma vingança, como fez Gobrlas: em lutacorpo a corpo oom um nobre persa, ao verDario acorrer de espada em punho, gritou-lheque desfechasse o golpe embora os matasse aambos. Vi considerarem iníquos duelos cujas

condições e armas empregadas levavam necessariamente a um resultado fatal e à morte deambos os adversários. Os portugueses ~ a v i a maprisionado vários turcos no mar das fndias.estes ansiosos por se libertarem resolveram

incendiar os navios, destruindo com o mesmoseus senhores e eles próprios, e o fizeram comdois pregos esfregando-os um no outro até quea faísca atingisse um barril de pólvora.

Alcançamos assim os limites da ciência.Como a virtude, ela falha nesses pontos extremos. Ficai no caminho habitual, não vos convém tanta sutileza e finura. Lembrai-vos a propósito do provérbio: "quem sutilizademasiado, pulveriza-se 3 0 · Aconselho-vos

moderação e reserva nas op iniões que emitis, enos raciocínios tanto quanto nos costumes;evitai a novidade e a originalidade; tudo o queé extravagante, irrita-me. Vós que, pela autoridade de vossa condição social e, mais ainda,pelas vant agens que vos outorgam vossas qua lidades pessoais, podeis mandar em quem voscompraz, fora preferível que houvésseis confiado a tarefa por mim cumprida a alguém que

fizesse da literatura sua ocupação normal. Ele

vos teria, muito melhor do que eu, informado edocumentado a respeito. Contudo já se me afi.gura suficiente, para o vosso fim, o que se fez.

Epicuro dizia, das leis, que mesmo as pioresnos são tão necessárias que sem elas os ho

mens se devorariam entre s i. E Platão confirma que sem leis viveríamos como bichos .Nosso cspÍrito é um instrumento descontrolado, perigoso e temerário; édificil usá-lo comordem e medida. Não vemos em nossa época,os que são superiores aos outros, ou possuemalguma vivacidade excepcional. desmandarem-se em licenças nas suas opiniões e em seusatos? Só por milagre se encontra alguémmoderado e sociável. é justo oporem-se aoespírito humano as barreiras ntais estreitaspossíveis; nos estudos a que ele se entrega,como no resto, cumpre regular-lhe o passo. 1

3C) • Petrarca.

preciso delimitar·lhe com arte o terreno dacaça. Freiam-no, amarram-no, com a religião,as leis, os costumes, a ciência, os preceitos, oscastigos, e as recompensas passageiras e eter·nas; escapa, assim mesmo, a todos os obstáculos pela facilidade que tem de se mover e iludir. É um corpo sem consistência que não

podemos segurar, reter; um corpo de múltiplasformas mal definidas e que não apresenta por

onde se pegar.Há por certo bem poucas almas, tão disci

plinadas e fortes, e nobres, em cuja condutapossamos confiar e que, entregues a seu pró-prio juízo, sejam capazes de navegar com

prudência, sem temeridades, fora das idéiascomumente aceitas; é mais garantido tutelálas. o esp.ÍJ'ito perigosa adaga, mesmo paraquem o possui, se dele não se utiliza com oportunidade e prudência; não há animal que melhor justifique a necessidade de tapa-olhos,para que veja por onde C4Jl)inha e não saia da

trilha que os usos e as leis traçaram. Por isso,o que quer que se alegue, será sempre preferível seguir a estrada batida a lançar-se nessasdiscussões que acarretam graves licenças. S e,no entanto, algum desses novos doutoresempreendesse brilhar a expensas de vossa salvação e da dele, para vos desfazerdes dessaperigosa peste que hoje tudo contagia na

Corte, os argumentos que vos apresento poderão servir de paliativo, impedindo que o veneno vos atinja, a v6s e aos vossos.

A liberdade e a ousadia de que se valiam os

antigos nas obras do espírito fizeram que,naturalmente, lfárias seitas se constituíssem na

filosofia e em todos os ramos da cJência humana, cada qual se outorgando o direito de julgare escolher. Mas agora que todos seguem igualcaminho, "presos a certos dogmas de que não

podem livrar-se, todos são obrigados a defender-lhes as conseqilências, ainda que os nãoaprovem,.ªº•; agora que as questões relativas

às artes30 1 são reguladas por ordenações, aponto de se submeterem as escolas todas a um

só orientador, e que tais instituições estãosujeitas a determinada disciplina, não se olhamais o que vale e pesa a moeda, mas tão-somente se está em circulação. Não se discute seé falsa ou não, mas apenas se a aceitam. Eassim oco rre com tudo. O ensino da r;nedicinanão se discute mais do que o da geometria;nem tampouco se discutem as mágicas dos

prestidigitadores, o comércio com as almasdos mortos, as práticas da astrologia, e atéessa ridícula procura da pedra filosofal ; tudose admite hoje sem oposição. Basta-nos saber

3 • Cícero.3 o Ao ensino, em part Clllar da filosofia.

que Marte se local iza no triângulo fonnadpelas linhas da mão, Vênus, no polegar e erºcúrio, no mindinho: se a linha do destinoprolonga até a protuberância do indicador 6sinal de crueldade; se pára no pai-de-todos; alinha da cabeça faz com a da vida um ângulo àmesma altura, é sinal de morte violenta· se na

mufüer essa linha da cabeça não cruza linhada vida, tem-se um indício de sua inclinaçãopau os prazeres da carne. Com uma tal ciêucia, tomo-vos como testemunha, um homemnão pode deixar de adquirir reputação e serfavoravelmente recebido na sociedade.

Dizia Teofrasto que o saber do homem guiado pelos sentidos podia até certo ponto discernir as causas das coisas; mas que se remontasse às causas primeiras e essenciais deviaparar. em virtude de sua fragueza e das dificuldades com que depararia. é mais agradável aopinião intermediária segundo a qual nossosabêr pode levar-nos ao conhecimento de certas coisas, mas nossa perspicácia tem limitesalém dos quais é-lhe temerário aventurar-se.uma maneira de ver plausível e proposta porgente sensata. Mas não é fác il assinar limites anosso ~ s p í r i t o ele é curioso e Avido, e considera nao dever deter-se a cinqüenta passos emlugar de mil, porquanto a experiência lhe mostrou que se um se malogra outro vence; que o

que era desconhecido em dado século , conhe·cido se tol'I)ou n.o século seguinte; que as artese as ciências não se moldam de uma só vez,mas se constituem aos poucos e tomam formacm sendo sem cessar manuseadas e polidas;assim o faJhote do urso se forma em sendo semcessar lambido pela ursa. Não deixo de sondare verificar o que minha capacidade não consegue descobrir; e, em amassando essa matérianova, virando-a e aquecendo-a, dou a quemvem depois certa facilidade em tirar dela p Uiido, fazendo-a mais flexível e manuseável:" assim a cera do Himcto que amolece ao sol e,amassada pelo polegar, toma mil formas e torna-se mais manuseável pelo uso"to•. Omesmo fará o segundo para. o terceiro, e dissoresulta que não devo desesperar de minha incapacidade, a qual é somente minha.

O homem e capaz de tudo e de nada. Se confessa, çemo Teofr11,Sto, sua ignorância das causas primeiras e dos princípios, que renuncie àciência, pois, em lhe faltando a base. seu raciocínio ruirá por terra. Discutir e lnvewtigar niotêm outi:o objetivo senão os princípios; se não

os atinge, tudo redunda em i n o e r t ~ a "umacoisa não pode ser mais compreendida o que

outra, porque a c o m p ~ c e n s l o u m ~ IÓ puatodas;•3011. Se a alma tivesse conhecimento de

3 1 Ovídio.3 9 Cícero.

alguma coisa, é provável que seria primei.ra alguma, quaisquer que sejam o objeto e as nossos órgãos se apossam dessa opinião e por bem; e, estando diferente, diferentes são mi

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mente dela mesma; se conhecesse algo c11terior

a ela, seria antes de tudo seu corpo, seu estojo;e, no entant o, até a.gora os deuses da medicinaainda lhe discutem a anatomia: '1se Vulcanoera contra Tróia, Tróia tinha a seu favorApolo ', 0 • Até quando deveremos esperarque se ponham de acordo Estamos mais pró·ximos de nós que a brancura da neve ou o pesoda pedra; se o homem não se conhece a simesmo, corno pode conhecer sua força e porque se encontra na terra? por acaso quetemos e.1guma noção da verdade, e como éigualmente por acaso que o erro penetra nossa

alma, não somos capazes de distinguir o certodo errado, nem escolher e.ntre um e outro.

Eram os acadêmicos mais prudentes em seuju(zo aéerca de nossa ignorância. Achavamdemasiado categórico dizer que não é maisprovável ser a neve branca do que preta . nemque não tivéssemos mais certeza do movimento de uma pedra que atiramos do que da

oitava esfera. Para obviar a essa dificuldade,que não pode realmente alojar-se em nossaimaginação, embora estabelecessem que éramos absolutamente incapazes de saber o quequer que seja, e que a verdade se enterra nosmais profundos abismos, onde a vista humananão penetra, reconheciam que algumas coisas

podem apresentar maior aparência de verdadedo que outras; por isso admitiam que houvessepreferência, mas não solução. Os pitrônicoseram mais ousados em sua opinião e ao

mesmo tempo pareciam mais próximos da verdade; pois que significa essa propensão dosacadêmicos a preferir uma proposição a outra,

senão que há aparência maior de verdadenuma mais do que na outra? Ora, se nossoespfrito é capaz de perceber a forma, os traços,a estatura da verdade, pode vê-la inteira tantoquanto pela metade, em embrião e imperfeita.Essa aparência de verdade, que nos induz atomar antes pela direita do que pela esquerda,ampliemo-la; essa onça de probabilidade que

já fez útclinar a balança, multipliquemo-la porcem ou mil, e a balança desequilibrar-se-ádefmitivamente e nossa escolha se fará porquea verdade há de aparecer em seu todo.

Mas como podem admitir a verossimilhançase ignoram o que seja a verdade? Como saberse uma coisa se assemelha a outra cuja essência desconhecemos? Ou podemos emitir um

juízo preciso ou não o podemos absolutamente. Se falta a base de nossas faculdadesintelectuais e suscetíveis de sentir, se elas não

assentam em nada, se Qutuarn ao sabor dos

ventos, n.osso juízo não nos conduzirá a coisa

110 Ovídio.

aparências. O mais certo e seguro seria AUe

nosso er1tendimento se mantivesse sereno einflexível: "entre as aparências verdadeiras ou

falsas, nada determina o assentimento daalma "3 ' 1• Que s coisas não se alojam em nós

com sua forma e sua essência, impondo-se porsi mesmas e com sua autoridade, bem o sabemos; pois se assim fosse tudo produziria emtodos a mesma impressão; o vinho teria omesmo gosto na boca de um doente e de um

homem são, quem tivesse os dedos adorme-cidos pelo frio acharia o ferro que maneja tão

duro quanto quem não os tivesse. As coisas

exteriores a nós alojam-se pois em nós comonos compraz recebê-las. Por outro lado, se oque recebemos o aceitássemos sem o alterar;se os meios de que dispõe a humanidade fossem suficientes para apreende.rmos a verdadesem recorrer a elementos estranhos; em sendoesses meios conhecidos de todos, a verdadetransmitir-se-ia de mão em mão, de uns aoutros, e aconteeeria que, em tão grande número, urna coisa houvesse ao menos em que, porconsenso universal, todos acreditassem. Ora, ofato de não haver proposição que não seja discutida e controvertida ou não o possa ser, mostra muito bem que, abandonado a si mesmo,nos so julgamento não ai>reende claramente o

que apreende, porquanto o meu julgamentonão consegue que o de meu vizinho o aceite, oque prova nitidamente que o concebo por outros meios que não os decorrentes de umaforça de concepção de que a natureza nos houvesse a todos dotad o igualmente.

Deixemos de lado essa infmita confusão deopiniões, encontradiça entre os próprios filóso-fos, e essa perpétua e u n i v e ~ s a l discussão acerca do conhecimento que temos das coisas, poisé evidente que os homens. e os mais sábios esinceros, e os mais capazes; não estão de acordo acerca de nada, nem mesmo em que o céuse encontra acima de nossas cabeças, porquanto os que duvidam de tudo duvidam distotambém. E os que negam possamos compreender o que quer que seja-  negam quecompreendamos estar o céu nessa posição. Eessas duas opiniões, consistindo uma em d\lvi

dar e outra em negar, são as mais fortes. Alémdessa inumerável diversidade de opiniões, éfácil ve.rificar, pela confusão em que nos joga ea incerteza que todos sentem, que nosso julgamento não tem fundamento sólido. Quantasvezes julgamos diversamente as coisas? Quantas vezes mudamos de idéias? O que hoje admito e creio, admito e creio na medida do possível; todas as nossas faculdades. todos os

Clcero.

ela respondem quanto podem; não poderiaaceitar outra verdade nem a conservar commaior convicção; a ela dei-me por inteiro. Masnão me aconteceu, e não uma vez porém cemou mil, e diariamente, ter aceito do mesmomodo alguma coisa que posteriormente considerei falsa? Que ao menos nos tomemos sensatos a expensas nossas Se tantas v ~ e s fui traído por meu julgamento, se essa pedra de toqueé em geral defeituosa, se a balança está malregulada, que garantia a mais posso ter destavei.? Não será tolice deixar-me enganar por

semelhante guia? E no entanto, ainda ·que o

destino nos leve a mudar quinhentas vezes deidéia, a última, a atual será a verdadeira, ainfalível. Por esta sacrificaremos nossos bens,a honra, a vida, a salvação: "11 última nos desgosta da primeira e a desacredita em nossoespírito"3 ' 2 • O que quer que nos preguem, oque quer que aprendamos, é sempre precisolembrar que o homem o dá e o homem o recebe; a mão de um mortal oferece e a mio de um

mortal aceita. S6 as coisas que vêm do çéu têmdireito de persuasão e a indispensável autoridade; só elas trazem a marca da verdade, masnossos olhos não as distinguem s não as obtemos por nossos próprios meios. Essa santa egrande imagem não elegeria domícíl'io em tão

miserável barraca, se Deus por especial favornão a houvesse preparado para isso, não ahouvesse transformado e fortificado com Suagraça. Nossa condição, tãô sujeita a desfalecimento, deveria inspirar-nos mais moderação ediscrição em nossas variações; deveria.moslembrar que, quaisquer que sejam as impressões de nossa inteligência. muitas vezes sãocoisas falsas e que as percebemos com essesmesmos instrumentos que amiúde se enganam.E.não bá como estranhar que se enganem, poisas menores cx:orrências os falseiam e embotam. e certo que nossa compreensão, nossojulgamento e as faculdades de nossa alma so·

frem de conformidade com o corpo e suas con tínuas alterações. Não temos o espírito maisatilado, a memória mais viva, o raciocíniomais rápido, quando a saúde é boa? A alegrianão nos predispõe a aceitar as impressões de

maneira diferente da tristeza? Crede que os

versos de Catulo ou de Safo agradem a um

velho avarento e rabugento tanto quanto a um

jovem vigoroso e entusiasta7Cloômenes, filho de Anaxandridas, estava

doente. Seus amigos censuravam-lhe a disposição de espírito e as idéias novas, que não lheeram habituais. "Naturalmente", respondculhes, pois não estou como quando me sinto

3 1 2 Lucr6cio.

nha s opiniões e idéias."A gente da chicana. n< > tribunal, diz comu

mente, falando de um cnminoso que se apresenta a um uii bem-humorado: que aproveitea sorte" B ceno que sentenças são porvezes mais severas e ngorosas e por vezesmenos duras, atendendo a circunstâncias atenuantes. E não há dúvida de que o julgamentode quem as profere e sofre da gota, ou andaciumento, ou acaba de ser roubado, se ressenteda disposição de espírito do juiz. O Areópago,venerável senado , julgava à noite de medo quea presença das partes influenciasse a justiça. O

próprio estado da atmosfera e a serenidade docéu fazem que varie o nosso julgamento, o queconstata este verso grego, citado por Cícero:o estado de espírito dos homens, de dor ou de

alegria, varia cada dia que Júpiter lhes dá .

Não são apenas as febres, a bebida, os acidentes graves que nos abalam o juízo; as coisasmais insignificantes o perturbam; e não se deveestranhar, embora não o percebamos, que, se afebre contínua nos enfraquece a alma, altera-atambém a febre intermitente, guardadas asproporções; se a apoplexia apaga totalmente aluz de nossa inteligência. um deíluxo incontes·tavelmente a t ransforma. Por conseguinte, malse depara uma hora na vida cm que oosso

juízo é normal. A tal ponto está nosso corposujeito a constantes mudanças, e é movido portantas molas, que na opinião dos médicosmuito dificilmente ocorre não haver nenhumaem mau estado.

E, para cúmulo, a menos q1 1e esteja no apogeu e já sem cura, não é fácil descobrir essadoença que oblitera nosso julgamento, tantomais quanto a razão, sempre tão falha emane.a, se acomoda à mentira como àverdadeio que faz. que seja difícil saber quando se des regula e quando podemos confiar nela. Dou

esse nome de razão a essa aparência de juízoque cada um forja em si mesmo e que a res-peito de um mesmo assunto pode levar a cemapreciações diversas e contraditórias, instru

mento feito de chumbo e cera, que estica edobra e se ajeita a todas as circunstâncias, atodos os compromissos, e que um pouco dehabilidade basta para levar a a m o k l ~ s e aquaisquer moldes. Por melhor que ICJ• suaintenção, se não se examinar de perto._' quepouca gente faz, um juiz pode ser solicitadopela benevolência (para com um amlao ou

parente) tanto quanto J?d• id ia deSem ir tão longe, uma simplff tendinc1a lnstin-tiva o impele a um•. r e ~ l e ç i o ~ ° l h o r .sem razão, entre doas objetos idiaticos, umimperceptível impulso qualquf podesobre seu julgamento • 0 pred apor favoravel

ou desfavoravelmente a dada causa, forçando indiferente defender esta ou aquela causa. Se o dade não podem exercer-se sobre nós sem que de nossa alma, sem lhe dar 8 Possibilidade de

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a balança a pender para um lado ou outro.

Eu que me analiso, a fundo, .e tenho os olhossempre voltados para mim mesmo, como quem

não tem muito que fazer alhures, "que não mepreocupo em absoluto com saber que rei tudoabalou algures ou com qoe se alarma Tiridates"313. mal ouso dizer as falhas e fraquezasque percebo cm mim. Tenho o pé tão poucoseguro. fraqueja tão facilmente, titubeia tãosem motivo, e minha vista é tão desregulada,que em jejum me sínto melhor do que depoisde comer; se estou satisfeito com minha saúde,se faz bom tempo, eis-me um homem amável;

se um calo me d6i, fico aborrecido, desagradável, inabordável; um cavalo cujo andar não

var ia parece-me ora duro ora suave; o mesmocaminho parece-me curto por vezes e por vezeslongo; segundo a hora , a forma de um objetoser-me-á agradável ou não ; quero e não queroempreender alguma coisa e o que me apeteceagora, contraria-me depois. Mil agitaçõesinoportunas e acidentais verificam-se em mim;ou sou tomado de melancolia ou de cólera; cmoutro momento é a tristeza que me e n ~ o l v emas logo a seguir a alegria vence. Quando

pego um livro, certos trechos que consideroexcelentes me impressíonam e encantam; de

outras feitas folheio esse mesmo livro e procu

ro em vão algo que me deleite, tudo se me afigura informe. Nos meus próprios escritos nemsempre redescubro o meu pensamento, não seimais o que desejei exprimir e não raro me

esforço por corrigi-lo, modificá-lo, pois osignificado primeiro, por certo mais interessante, me escapa. Não faço senão r e vir. Meujulgamento não segue uma linha reta, ílutua aoléu: ' 'como um frágil barco surpreendido emalto mar por um vento furioso" 3 4

• Muitas

vezes, o que faço de bom grado como exercíciodefendendo uma tese contrária à minha opinião, absorvo-me a tal ponto na tarefa, que

não mais percebo as razões de minha verdadeira idéia e a abandono. Empurro-me, por

assim dizer, para o lado de minhas tendências.E deixo-me lever por elas.

Todos poderiam dizer o mesmo. se se estudassem como eu. Os que falam em públicosabem muito bem que a emoção os induz aacreditarem no que afirmam. Quando estamoscom raiva, aplicamo-nos melhor .na defesa denossa idéia; encarnamo-la cm nós, abraçamola com veemência e a consideramos mais justa

do que quando estamos calmos e de sanguefrio . Ex.pomos uma questão a um advogado;sentimo-lo hesitante e sem convicção: é-lhe

3 u Horácio.31 • Catulo.

pagamos bem para se colocar do nosso lado,começa a interessar-se. E se sua vontade seaquece, eis que se aquecem ao mesmo temposua razão e seu saber e a verdade aparentedeixa de lhe inspirar a menor dúvida. Persuade•se de que assim é e o crê. Não sei mesmo seo ardor que nasce do despeito e da obstinaçãoque experimentamos ante a opinião a violência do magistrado, a excitação causada pelaameaça do perigo, ou ainda o desejo de ganhar

prest.ígio , não terão levado certo personagem(que poderia apontar) a subir à fogueira para

sustentar sua opinião, pela qual, em liberdade

e no meio de seus amigos, não se expusera aqueimar um dedo.

Os abalos e golpes que atingem nossa almapor causa das paixões do corpo atuam fortemente sobre ela. Maiores ainda sã.o os que lhe

provêm de suas próprias paixões, as quaistanto a instigam que qu ase poderíamos afirmarque, sem elas, permaneceria inerte, como um

navio em pleno mar quando o vento o não

assiste. Quem, a exemplo dos peripatéticos,defendesse essa tese. não nos traria prejuízos,pois é sabido que cm sua maioria as belasações da alma procedem de nos.sas paixões eprecisam de seu impulso. Não sustentamos quea valentia se manifesta melhor sob a influência

da cólera? "Ajax. foi sempre bravo, e maisbravo ainda em seu furor"3 1

6. Não é quandonos zangamos que melhor perseguimos o malfeitor ou inimigo? B há quem pense que os

advogados provoquem a cólera dos juízes tãosomente para obter ganho de causa.

O desejo imoderado da s grandes ooisas,meta de Temístocles e de Demóstenes, foi oque induziu os ft16sofos a trabalhar, viajar porpaíses longínquos, e é o que nos conduz àhonra, ao saber, à saúde, a tudo o que é útil. Acovardia da alma, que faz que suportemos otédio e o desprazer. dá à nossa oonseiência apossíbilidade de se arrepender, de se resignarante os flagelos que Deus nos envia para nos

punir e ante os que resultam de uma administração corrupta. A compaixão predispõe àclemência; a prudência de que nos valemospara atender à nossa conservação e nos dirigir,é despertad a em nós pelo temor. E quantasbelas ações se devem à ambição1 Quantas àalta opinião que temos de nós mesmos Emsuma, não há virtude mais ou menos elevada eadmirável sem alguma agitação desordenadada alma. Não seria essa uma das razões pelasquais os epicuristas isentaram Deus de quaisquer cuidados com os nossos negócios humanos? Tanto mais quanto os efeitos de sua bon-

3 1 5 Cícero.

perturbem o repouso de nossa alma com amovimentação de nossas paixões, as quais sãocomo picadas estimulantes que a incitam llOS

atos virtuosos. Ou terão esses fi16sofos pensado de outro modo e considerado as p ~ õ e scomo tempestades que, uma vez desencadeadas, desviam orgulhosamente a alma de

sua quietude? "Assim como entendemos por

mar calmo a ausência do menor vento sobresuas ondas, também consideramos que a alma

está serena quando nenhuma paixão a comove"3 1 • .

Que diferenças de sentido e razão apresen

tam nossas paixões cm sua diversidade e quantas idéias dessemelhantes disso resultam? Que

segurança nos oferece uma coisa tão instável,tão imóvel, sobre a qual a confusão reina, que

s6 se movimenta por imposição alheia? Se

nosso julgamento depende até da enfermidade,e das p e r t u r b a ç õ ~ s que experimentamos; se épreciso que seja presa da loucura para recebera impressão das coisas, como poderemos confiar nele?

Parece-me demasiado temerário assegurar afilosofia que os homens não produzem suasmaiores obras, as que mais os aproximam dadivindade, senão quando fora de si e furiosos.Assim nos aperfeiçoamos peJa privação da

razão, ou seu embotamento 1 Os caminhosnaturais que levam ao gabinete dos deuses sãopois a loucura e o sono 1Linda constatação

pela desordem da s paixões que nos tomamos

virtuosos, pelo seu aniquilamen1o na loucuraou no sono que nos transformamos em profetas e adivinhos 1 Nunca estive tão inclinado aacreditá-lo. Cedendo à inspiração irresistívelda verdade santa, o espírito ftlos6fico vê-se

forçado a reconhecer, contra o que sustentava,que a tranqüilidade, a calma, a saúde que se

esforça por dar à alma, não constituem para

ela seu melhor estado. Acordados, estamosmais adorme<:idos do que se dormíssemos;nossa sabedoria é menos sábia do que a loucu

rà; nossos SOf1bos valem mais do que nossosraciocínios; o pior lugar que podemos ocupar

está em nós mesmos. Mas não pensa a filosofia, por outro lado, que podemos ima.ginar quea voz que toma o espírito, quando separado do

corpo, tão lúcido, grande, perfeito, enquantomergulha nas trevas quando encarnado, não éa v.oz que parte do espírito do homem terrenoignorante e privado de luz? Logo, como confiar nela?

Como sou mole por temperamento, e pesado, não tenho grande experiência dessas violentas agitações que se apoderam subitamente

31• Cícero.

se reconhecer. M a ~ e ~ s a pabcão que d izem serprovocada pela oc1os1dàde e atinge os jovens,e n : i ~ r a se desenvolvendo lentamente, dá bema 1de1a aos que procuraram opor-se 8 seu pro·

g r e s ~ do a l c ~ c e da mudança e alteração quee x p e r o n e n t ~ o JUlgament_ o. Esforcei-me outro-ra por conte-la e b ~ t e em mim , pois não

me comprazo nesse V1c10 e só cedo quando mearrasta. Sentia essa paixão nascer e desenvolver:se. desabf:ochai:-seemmlm e me possuir. oefeito produz1a-se a maneir a da embriaguez: 0aspeeto das coisas mudava; e via as dificuldades do empreendimento se acertarem e setomarem fáceis de vencer; minha razão eminha consciência cederam. Em seguida, extinto o fogo, de imediato, com a rapidez dorelâmpago, minha alma revelava outros objetivos, modificava-se, meu julgamento mudava·as dificuldades em voltar atrás pareciaO:aumentar e tomar-u invencíveis; as mesmascoisas tinham outro gosto, e aspecto, diferentesdaqueles que sob a influência do desejo antesapresentavam. Qual desses estados é maisverdadeiro? Pirro dec.lara não o saber.

Nonca estamos inteiramente isentos de

enfermidades. O fogo da febre alterna com ofrio dos tremores; dos efeitos de uma ardentepaixão, caímos nos de outra excessivamente

fria. Quanto mais nos lançamos à frente tanto

mais recuamos a seguír: "assim o mar em seuduplo movimento, ora se precipita em direçãoda costa. cobre o rochedo de espuma e se

expande ao longe pelas praias; ora recua carregando os seixos que trouxera, e foge , deixandoa praia descoberta"3 1

·

Conhecendo a instabilidade de meu julgamento, reagi e, excepcionalmente, cheguei auma certa continuidade de opinião, conservando mais ou menos intatas as que a princípio tivera. Pois, qualquer que seja a apatênciade verdade que pode ter a novidade, não mudode medo de perder na troca. lncapu de escolher por mim mesmo, confio na escolha de ou

trem e atenho-me às condiçõe.s em que Deusme colocou, sem o que não poderia impcdirme de v.ariat amiúde. Assim é que, com a.graç.a de Deus, conservei inteiras, sem inquie·tações nem casos de consciência, as antigascrenças de nossa religião, a despeito de tantas

seitas e divisões observadas em nosso século.As obras antigas, refiro-me às boas obras, sé-rias e de conteúdo, atraem-me e influem gran·demente em mim. A que tenho à mio é semprea que me interessa mais; .acho que cada uma

por sua vez está com a verdade1 mesmo quan-,do as teses são antagônicas. Essa facilidade

• ' Virgílio.

  ' e pv:s:>ucau us oons aurores ae tomar verossúniJ o que apresentam - e não há nada que

estupidez. Não se deve confiar em todos, diz amãxima, porque todos são capazes de dizer

sucessores, e se não provi.vel que esse grandecorpo denominado o «mundo" seja bem dife

dos, B uma tal usertíva ele a houvera feitocom mais segurança ainda se lhe tivesse sido

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não se esforcem por pintar com cores suscetíveis de ludibriar uma simplicidade igual àminha - mostra de maneira evidente a fra-

queza de suas provas. O céu e as estrelasforam durante três mil anos considerados em

movimento. Todos acreditaram, até que Cleantes de Samos ou, segundo Teofrasto, Nicetas

de Siracusa, se lembrou de sustentar que aterra é que girava em tomo de seu eixo,seguindo o círculo oblíquo do zodíaco; e emnosso t m ~ Copérni co demonstrou tão bemesse principio, que dele se vale em seus cálculos astronômicos. Que concluir, senão que não

tem<>s que nos preocupar com saber qual dossistemas é o verdadeiro? Quem sabe se daqui amil anos outro sistema não os destruirá aambos? "Assim, o tempo modifica o valor dascoisas; o objeto apreciado cai em descrédito,enquanto o desprezado passa a ser apreciado;desejam-no dia a dia mais, é .admirado e ocupa

o primeiro lugar na opinião dos homens 3 8 •

Temos, portanto, quando se apresenta uma

nova doutrina, ruões de sobra para desconfiare lembrar que antes prevalecia a doutrinaoposta. Assim como esta fo i derrubada pelarecente, no futuro uma terceira substituiráp.rovavelmente a segunda. Antes que os princípios de Aristóteles tenham tido çr.édito, outros

existiram que também davam satisfação àrazão humana. Que carta de recomendaçãotrazem os últimos? Que privilêgio .especial lhesgarante que as nossas invenções os preservarão eternamente? Não estão ma is a sa lvo deserem rejeitados quanto os outcos. Quando meatiram um argumento novo, ponho-me a pensar que o que não pude resolver, outro reso lverá e que dar fé a todas as aparências de quenão nos podemos defender é grande simplicidade. Isso levaria o comum dos mor tais - enós todos o somos - a ver sua fé girar detodos os lados como um cata-vento, porquantoa alma maleável e plástica receberia impressões sucessivas. apagando sempre a últtma os

vestígios das precedentes. Quem se considerase m argumentos diante das doutrinas novas,deve responder, como é de uso, que vai consu ll r seus conselheiros ou reportar-se aos maissábios dentre os que o educaram.

Há quanto tempo existe a medicina? Afirma-se, entretanto, que um inovador chamado

Paracelso modifica -e destrói as regras antigas~ s u s t e n t a que até hoje só serviram para matar.Sreio que provará facilmente suas afirmações,n as confiar-lhe minha vida para que ateste a>uperioridade de seus métodos seria grande

' • Lucrécio.

qualquer coisa que lhes passe pela cabeça. Umhomem assim predisposto a inovar e reformardentro do terreno da fisica, dizia-me, não fazmuito, que os antigos se hav iam enganadoacerca da natureza e dos efeitos dos ventos, oque me provaria se o quisesse escutar. Depoisde ouvi-lo pacientemente desenvolver argumentos muito plausíveis, indaguei: Como

então os que navegavam aplicando os princípios de Teofrasto consegu iam ir para o Ocidente quando os ventos sopravam em direçãodo Oriente? Iam de lado ou recuando? - Efeitos do acaso, respondeu. O que é indiscutível é

que laboravam em erro. - Pois então, repliqueí, prefiro os efeitos ao raciocínio." Ora, são

coisas não raro antagônicas. Afirmaram-meque em geometria (ciência que pretende teralcançado o mais alto grau de exatidão) hâdemonstrações incontestávei.s que con tradizemtudo o que a experiência declara verdadeiro.Ass im é que Jacques Peletier me dizia, emcasa, haver descoberto duas linhas que emborase dirigissem uma na direção da outra, aproximando,se sem cessar, jamais se encontrariam,nem mesmo no iofmito, o que demonstrava.Em tudo empregam os pirrônicos unicamenteseus argumentos e seu raciocínio para combater as aparências sob as quais se apresentam, e

é maravilhoso ver até onde a sutileza de nossarazão obedece ao desejo de lutar contra aevidência; eles demonstram que não nos mexe·mos, não falamos, que o peso e o calor não

existem; e isso com um vigor de argumentação

que nos convence da veracidade das coisasmais inverossímeis.

Ptolomeu, que foi personagem de realce,determinara os limites de nosso mundo; os

filósofos ant igos pensavam nada ignorar a esserespeito acerca do que existia, salvo al_gumasilhas longínquas que podíarn ter esca_pado àssuas investigações; e, há mil anos, fora agir

como os piirônicos pôr em dúv ida o que entãoensinava a cosmografia e as opiniões aceitas

por todos; referir-seà

existência de antipodasera heresia. E eis que neste século se descobreum continente de enorme extensão, não uma

ilha, mas uma região quase igual em superflcicàs que conhecíamos. Os geógrafos de nossotempo não deixam de afirmar que agora tudo éconhecido: "pois uos comprazemos com o quetemos, o que nos parece superior ao resto"3 ' • .

Pergunto então se, visto que Ptolomeu se enganou outrora acerca do que constituía o pontode partida de seu rac iocínio, não seria tolice

acreditar hoje resolutamente nas idéias de seus

' ' • Lucrk>o.

rente do que julgamos?Platão sustenta que sua fisionomia se modi

fica de todas as maneiras: que o céu, as estrelas, o sol mudam por vezes inteiramente omovimento que os vemos realizar, tornando-seo Oriente, Ocidente. Os sacerdotes do Egitocootarjll ll a Heródoto que desde seu primeirorei, onze mil e tantos anos atrás e mostra·vam -lhe efígies e estátuas deles, executadas no

tempo .em que viviam) a órbita do sol vai'iaraquatro vezes; que o mar a terra se

formam alternativa e reciprocamente; que acriação do mundo é indeterminada, o que tam

bém dizem Aristóteles e Cícero. E é também aOJlinião de um dos nossos sábios, o qual,apoiando-se no testemunho de Salomão eIsaías, apresenta o mundo como tendo sempreexistido, sujeito à morte mas renascendo apóstransformações; o que responde à objeção de

que Deus fo i em certos momentos um criadorsem criaturas. que por vezes permaneceu no

ócio, deste saindo para retocar Sua obra eestando assim Ele próprio sdjeito a mudanças.

Na mais famosa escola da Grécia o mundo

é considerado um deus, criado por outro deusmais poderoso. Constitui-se de um corpo e de

uma almá; esta ocupa o centro de onde se

e.xpancle para a periferia cm obediência às mes

mas leis que regulam os acordes musicais; essemundo tem os apanágios da divindade, é feliz,grande, sábio, eter no; nele se encontramoutrosdeuses: a terra, o mar, os astros, os quais se

mantêm em perpétua e harmônica agitação,espêcie de dança divina, ora se encontrando,ora se afastando, escondendo-se e se exibindo,mudando a ordem em que perambulam, ora

uns à frente dos outros, ora atrás. Heráclitoconsiderava o mundo um braseiro incandescente, destinado a inflamar-se e consumir-seum dia, p_ara renascer novamente.

Quanto os homens. diz Apuleio, são mortais romo indivíduos e imortais como espécie.Alexandre enviou à sua mãe a narrativa de um

sacerdote egípcio, tirada dos monumentos, quetestemunhava a antiguidade da nação, a qual

se perde no infinito, e relatava a origem autêntica e o desenvolvimento de outros países. Cí·cero e Diodoro dizem que ern seu tempo os

caldeus tinham documentos que 1lmontavam aquatrocentos e tantos mll anos. Aristóteles,Plínio e outros, que Zoroastro vivera seis milanos antes de Platão. Este último afirma queos habitantes de Saís possuem arquivos de oito

mil anos e que a construção de Atenas ocorreumil anos antes da de Saís. Epicuro acha que oque observamos ua terra existe igualmente eem idênticas condições em muitos outros mun ·

dado conhecer o novo mundo das lndiasOcidentais, tio semelhante ao nosso de hoje ede outrora.

Em. verdade, considerando o que sabemosde diversas práticas em curso nesta terra, fi-

quei muitas vez.es maravilhado com ver queem tempos e luaares remotos se encontrem, em

número tão grande, opiniões populares e costumes e crenças selvagens tão semelhantes,embora não pareçam ter origem no estadoatual de nossa inteligência. O espÍrito humano

realiza realmente grandes m i l a g r ~ s mas essa

correlaÇ-ão tem ainda algo mais estranho pela

similitude de certos nomes e de mil outras coi·sas; pois neste mundo novo, vêem-se povosque nunca onviram falar de nós, e entre os

quais se pratica a circuncisão. Alguns há cµjogoverno cabe às mulheres., e entre eles observam-se o jejum e a quaresma, bem como a castidade. Descobriram-se outros que possuíam acruz como símbolo; outros honram os mortos;outros, ainda, usam a cruz de Santo Andrécomo proteção contra as alucinações noturnase a colocam sobre os leitos das crianças para

que as proteja contra feitiços; cm certa naçãono interior das terras, encontrou-se uma grande cruz de madeira e que era adorada comodeus das chuvas. Observaram-se práticas peni

tenciárias exatamente igu•is às nossas, o usode mitras, o celibato eclesiástico, a arte da

adivinhação pelo exame das vísceras dos animais sacrificados, a abstinência etn matêria de

carnes, e peixes, o emprego pelos sacerdotes de

um.a lingna especial. Observou-se também aexistência da idéia de urn primeiro deus expulso por seu irmão mais moço, bem como a queos homens foram criados no goz.o de todas as

comodidades imaginárias, de que depois se

viram privados em virtude do pecado; a de queforam expulsos do território que ocupavam,tendo piorado as suas condições; a de queoutrora foram submergidos por uma inundação provocada pelas águas do c6u e l> algu

mas famílias escaparam subindo ao alto dasmontanhas e refugiando-se em cavernas com

an imais de diversas espécies, tapando as entradas para se salvarem. Quando perceberam queas chuvas tinham cessado, fizeram os cães saírem, os quais voltaram limpos e molh Klos,deduzindo eles que as águas não haviam baixado ainda. Pouco depois soltaram outros quevoltaram enlameados; saíram então eles próprios a fim de repovoar o mundo que eneontraram cheio de serpentes unicamente.

Entre alguns povos existe a crença no juízo

final; por isso, sentiam-se profundamente ofendidos quando os espanhóis, escavando os

emitérios, a fim de arrecadar tesouros, disper pria submissão, seus súditos apresentam-se vezes cesse de se enganar e que no século atuaJ males: tua vara e teu bastão consolaram

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savam os ossos dos túmulos, pois esses ossos,spalhados ao acaso, dificilmente se juntariamse reconstituiriam .O comércio 8Á se pratica por meio de trocas

e x i s ~ m feiras e mercado com lAI objetivo.Anões e indivíduos disformea sio empregadoso divertimento dos príncipes. A c1ça com falões ou púsaros aníJoaos praticada. Há

mpostos abusivos. A arte dajardinaaem decoativa é conhecidL E conhecidas são as dan as. as peloticas, a música instrumental, os

os jogos de bola, de dados e de aur , aue te c:ntreaam apaixonadamente, a pon to de

ogarem a própri1 libcrdede. A prática daedicina compreende exclusivamente at os deagi.a e euc1ntamento . A escritura compõe.see hierógl ifos. Encootra-ac a crença em um

eus que desceu à terra e viveu na castidlde,

ejuando e fazendo penitência, pregando a leiatural e a observincia do culto, e que desapaeceu sem ser atingido pela morte que a todostinge. Acreditam em gigantes. Usam bebidas

de provocar a e m b r i a g u ~ e bebemté o estado de inconsciência. Dispõem de

relígiosos com imagens de caveiras ede água benta, de mantos e fazem asper

s e servidores disputam a honra

e morrer com o marido ou senhor. O primo

herda tudo o que possui o pai; os outrosada percebem e devem obedecer. ê costumeos que se designam para o desempenho de

.ais ou quais cargos mudem de nome. Asperas crianças recém-nascklas com um

ouco de cal, dizendo: vens do pó, .o pó voltaás. Praticam a arte dos augúrios.Esses vagos simul1cros de nossa religião,

se observam em ccnos exemplos, bem'°ª dignidlde e divindldc. Não

penetrou as nações infiéis de nossomisfério que a imit.atam em parte, mas aindabárbaros, como por inspiração 10brenatural

leva espalhar·tc pelo mundo inteiro.ncontra-se até a noção de purga&6rio, mas

forma: o que entregamos ao fogo, aíentrega ao gelo e esses povos im aginam que

almas sio punidas e puriíteldas com oimento do frio. Isso me recorda outra

nas idéias, assaz divertida : encertas tribos apreciam a circuncisão

omo os maometanos e judeus, outras, ao::ontrário, com a .Uuda de cordÕes f'l.xados àpele, esticam o prepúcio até que cubra a extre

idade do pênis como se temessem o contatoo ar. Outra divergência se not1 nos festejos e

homenagens aos reis. Em tais circunstâncias ,' nfeitamo-nos com nossas vestimentas maisnobres. Pois cm alauns p.Sses, a ftm de eviden

a r e m a s uperioridlde do 10berano e sua pró-

vestidos de miseráveis trapos, e ao entrar no

palácio cobrem suas roupas com um manto

rasgado, ressaltando assim a personalidade do

senhor, resplendente entre os demais. Mascontinuemos.

Se a natureza encerra, como o faz comtodas as coisas. dentro de suas rearas natura.is.as crenças, os juízos, as opin iões dos homens;se suas evoluções são determinadas, se têm seumomeoto, se nascem e mom:m como os repolhos; se o céu os agita e varre à vontlde, que

autoridade segura e permanente 1hu atribuiremos? A experiência prova-nos que a nossa

organização decorre do ar, do clima, do luaarde nascimento ; que não somente nossa let., anossa estatura, a nossa compleiçio, oossosmeios físicos disso dependem mas ainda as

faculdades de nossa alma; ..o clima não contri ·bui apeou para o vigor do corpo, porém igualmente para o do esp{rito  , diz V e g ~ i e por

isso escolheu a deusa que fundou Atenas umclima em que os homens se tomam mais sábios, como o ensinaram a S61on os sacerdotesegípcios: o ar de Atenas é leve, o que d6 ao satenienses mais finura; o de Tebas é pesado,por isso têm os seus habitantes mais vigoroso

o espirito 3 0• Por conseguinte, assim como

os animais apresentam diferenças desde o

nascimento, os homens nascem mais ou menosbelicosos, justos, temperantes, dóceis; aquiamam o vinho, alhures o roubo e a libertinagem; aqui propendcm para a superstição; athu·res para a incredulidade ; aqu i aprecialll aliberdade, alhures a servidão; aio sábios ou

artistas, grosseiros ou espirituosos, obedientesou rebeldes. boos ou mau s segundo a in·íluência do lugar oode vivem. Se os transplan·tam, su.as tendências modificam-se como ocorre com as árvores. Por esse motivo Ciro o ioautorizou os persas a abandonarem seu p.Ssduro e montanhoso a rim de emigrar para

outro su.ave e plano, di.ie.ndo que as terrasfecundas e fáceis engendram homens C1TI ener·

gia, espíritos estéreis. Quando vemos eob algu·ma influência celeste florescer uma detetmi·nad.a arte, uma crença substituir-se a outra, talséculo produzir tai s temperamentos e predispor a humanidade a tomar tal ou qual partido.o espírito humano mostrar-se ora vigoroso, ora

estiolado, como se observa com as terras decultura, onde as prerrogativas de que nos ja c·tamos? Se um sábio pode ter desilu IÕes, cemhomens e nações inteiras o podem também, e,cm verdade, a meu ver , o gênero humano intei·ro se engana há séculos acerca disto ou daqui·lo. Que certeza podemos alimentar de que por

no Cícero.

nio esteja laborando em erro?

Entre outros testemunhos da fraqueza denosso espírito um não deve ser omitido:mesmo quanto ao que deseja, o homem nio

sabe escolh.er. Não é apenas quando estamos

de posse de aJ1uma coisa que nio sabemos oque nos satisfaz; é também quando nossaimaginação trabalha JOZinba e que nos bast1desejar. Deixemo-la cortar e costurar à vont1-de, nio chqará sequer •designar o que ambiciona: ..sabe• razio o que deve temer ou cSe e..

ju ? Quando. jamais, concebeu algo de que

não se arrependesse mais tarde, mesmo se os

fatos atendem ao qu e esperava? U' luo faz.iaSócrates pedir somente aos deuses o que elessabiam ser-lhe útil. E a prece dos laccdemô

.nios, pública ou privad a, viS1va simplesmenreobter o bom e o belo que bem entende sem os

deuses. Pedimos uma esposa e queremosfilhos; mas só Deus sabe como devem ser essesfilhos e essa esposa   32 1 • Nas suas súplicas.diz o cristão a Deu s: seja feita a vossa vontade  , e ass im evita a desventura que os poetasatribuem a Midas. Este pedira aos deuses quetudo o que tocasse se transformasse cm ouro.

Deus quis, e seu vinho virou ouro, e seu p io foide ouro, até as penas de seu leito e sua camisa,e s uas vestes, e ele se acabrunhou com a satls·

fação dada a seu desejo; po is o pre sente cu

insuportável . Foi-lhe neccsw io suplicar novamente a fim de que oessaMCm os efeitos de sua

solicitação a ~ d i d a : espantado com mal tão

inesperado. rico e indigente um tempo, qu iso-ra fugir às suas riquez.as e 1C horrorizava como objeto de suas súplicas >n.

Eu mesmo, na mocidade.. pedi ao desúno,

eritre outros favores, a Ordem de São Miauel;era então a mais insigne condecoração da

nobreza francesa e muito raramente cunc:cdi ·dL Deu-ma o destino, mas cm condiçõesdivertidas; em vez de fuec com que me elevasse para obtê·IL trouu-a a m im e mesmomais baixo.

Cléobis e Bitoo, Trofônio e Agamcdes,tendo pedido, os primeiros a sua deusa e os outros a seu .deus, uma recompensa digna de sua

devoção, receberam como presente a morte.Eis como o que pensam as potências divinasde nossa felicidade, difere muito do que imaginamos 1 Deus poderia outorgar-nos riqueza .honrarias. vida e até saúde, e isso nos ser por

vezes prejudicial , pois o que nos agrada nemsempre nos é saJuta.r. Se cm vex de nos cura r ,envia-nos a morte ou uma aaravaçio de nosaos

u Juvenal .> ld.U> r . . . .

vnu

me '32 4 assim o faz porque é o que cm sua

sabedoria lhe dita sua providência, a qual sabeexatamente o que nos falta. E nós nio o pode·mos saber. E o devemos ter em muito boa

conta, vindo de mão tão sábia e bondosa: "sequeres um bom conselho, deixa aos deuses ocuidado do que te convém e te é útil; queremmais ao homem do que este a si mesmo º•.Pedir-lhes honrarias. cargos. é pedir-lhu quenos joauem na batalha ou em uma partida de

dados ou em qualquer outra coisa cajo resultado descoobecemose seja duv idoso.

Nio hí assunto que provoque controvérsias

mais violentas entre os fil§sofos do que o eol»rano bem. Em que consiste? Varro afirma que

duunw e oitenta e oito seitas a s c ~ n u n dessaquestão. Ora, desde que nio oonoordemosacerca do soberano bem, nossas opiniõesdivergirão a respeito de toda a filosofia  ªª •.

Parece-me ver três convivas de gostos dife·rentes; que lhes da r? Que não lhes dar ? Privasum do que ele aprecia e o que ofereces aos doisoutros lhes desagrada 3 z 7• Eis a resposta quea natureza deveria dar a suas discussões. Unsacham quo nosso bem soberano está na virtu·de; outros na volúpia; outros que ele consisteem deixar que a natureza opere; outros oencontram na ciência; outros na ausência de

sofrimento; outros em não se deixar levar pelasaparências. A esta última maneira de ver,liga-se aquela do tempo de Pitâgoru: nlda

admirar. Numício, é quase o único meio de

assegurar a felicidade 32 1, objetivo visadopela seita de Pirro. Aristóteles qual iíica de

magnitude nada admirar; e Arcesilau dizia queo bem consiste em ter um julgamento reto einflexível, junto a tudo o que contribui par aassim o manter. E que ovício e o mal r'C$Ultam

das conceSJÕes e aplicações que lhes detenninamos. a verdade que, apresentando e.ss.asproposições como isentas de dúvida, Arcesilaufugia ao procedimento ha bitual dos pinôni<:os.Quando estes diz.em que o soberano bem é a

ataraxia, isto é, a calma pcrfejta. a imobilídldedo julgamento, não o querem afirmar demaneira absolutL O mesmo estado de espíritoque os impele a evitar um precipício, preservar-sc do frio da noite. leva-os a emitir essaidéia e rechaçar u t r ~ ; a afirmação carece para

eles de conseqüência.Como eu desejaria que, enquanto vivo.

aJgu6m, Justo Lípsio, por exemplo. o homem

32 • almo X X I I S 

u • Juvenal.• Cícero.

u HMác:io.au ld .

mais sábio que possuímos, cul<o, judicioso, variegadas cores e a transformam segundo

~ N S A l U S-

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primo-irmão, desse pon<o de vista. de meuTournebus, tivesse vontade, saúde e lucres

para coligir e classificar, por categorias, comtoda a sinceridade, as opiniões dos filósofosantigos acerca de nosso ser e nossos costumes,bem como as controvérsias de que foram objeto, o crédito de que gozaram. E também comoseus autores aplicaram tão memoráveis e edifi·cantes preceitos em sua vida. Seria uma obra

bela eÚtilA que confusão chegaríamos se buscás

semos em nós mesmos uma orientação para anossa conduta O que a razio aconselha, e

com aparência de verdade, é que cada qualobserve as leis de seu país. é a opinião de Sócrates, inspirada, diz ele, pela divindade. E quequer esta dizer com isso, sen.ão que nossodever se subordina ao acaso? Se o homemconhecesse a justiça e certo, se tivesse emmir.a tipos reais, se os pudes.se representar emsua essência, não os faria consistir na obediência a tais ou quais costumes; não seria na

fantasia dos persas ou Indianos que se con·substanciariam. Nada mais do que as leis está

sujeito a variações contínuas. Desde que nasci,vi mudarem três ou quatr-0 vezes as dos ingleses, e não somente quanto à política interna,que se admite não ser fu.a, mas t ambém com

referência ao ponto mais importante de todos:a religião. Sinto-me envergonhado e despeitado, porquanto nossa religião já teve ligaçõescom esse país e em minha fanu1ia ainda sobram vestígios de antigo parentesco com essepovo. Em nossa província, aqui mesmo, vi atos

que constituíam crimes passíveis de pena de

morte tomarem-se legais. E atualmente, obedientes a um partido, estamos expostos, segundo os azares da guerra, a nos tomarmos um

dia criminosos de lesa-humanidade e dívindade. Pois se o partido adverso triunfasse, asidéias contrária s prevaleceriam e nossa justiçapassaria a ser injustiça. Não podia aquele deusda antiguidade mais claramente mostrar a que

ponto o homem ignora o ser divino, e ensinarlbe que sua religião era produto da imaginação, útil apenas à consolidação da sociedade,quando declarava aos que o consultavam "queo verdadeiro culto consiste em que cada qualobedeça aos usos e costumes locais". Quantodevemos ser gratos à bondadi: de nosso soberano Criador por nos haver esclarecido acercada tolice de nossa fé em tais cultos e por terfeito que nossa crença assente hoje no alicercede Sua palavra sagrada

Ne.ste ponto capital a filosofia dí.z-nos que

sigamos as "leis de nosso 11aís'', isto é, essemar agitado das opiniões de um povo ou de

um príncipe que pintam a justiça com tão

suas paixões. Meu juízo não tem Oexlbilidadebastante para aceitar tal solução. Em que cc>nsiste esse bem que amanhã já o não será e quea simples travessia de um rio modifica? Que

verdade será essa que é uma aquém e outraalém das montanhas? São divertidos s que. afün de outorgar maior autenticidade às leis,dizem que as há imutáveis, perpétuas, a quechamam leis naturais, as quais seriam inatasno homem e em número de três, segundo uns, ede quatro segundo outros; e ou tros afirmamque existem mais, e outros menos, sinal revelador de ser a dúvida permitida, aqui como alhu

res . Infortunados Pois não posso qualificarsenão como infortúnio o fato de, nesse númeroinfmito de leis, não haver ao menos uma porventura que o consenso geral aceito como universal. São tão desgraçados, que dessas três ou

quatro leis escolhjdas nenhuma só há que não

seja controvertida e negada, e não apenas por

um povo mas í'°.r muitos. Ora, a aceitação detodos seria a unica caracteóstica a invocar-secomo prova da existência de leis naturais, poiso que a na tureza nos tivesse realmente ordenado, nós o observaríamos de comum acordo,

porque qualquer povo, qualquer homemmesmo, se sentiria constrangido e violentadopor quem agisse em sentido contrário.

Protágoras e Aóston consideravam comoorigem da justiça das leis a autoridade e a opinião do legislador ; fo ra daí, o bem e a honestidade não são mais qualidades, mas vãs denominações de coisas indiferentes. Trasímaco,em Platão, julga não haver outro direito quenão o vantajoso para o superior. Nada maisheterogêneo no mundo do que os costumes e asleis. Tal coisa, que se recomenda alhures, éaqui abominável. Como por exemplo na Lacedemônia a esperteza do roubo. Os casamentosentre parentes próximos são terminantemente

proibidos entre nós; entre outros povos sãorecomendáveis: "dize m que há povos e,m que amãe se une ao filho, e o pai à Cilha, crescendo

o amor em virtude do parentesco"3 29

• Mataros filhos, matar o pai , emprestar as mulheres,comerciar com objetos roubados, poder entregar-se a toda espéc ie de prazeres, tudo emsuma, por absurdo que seja, ou pareça. epermitido em alguma nação.f possível que haja leis naturais como ocor

re com certos animais, mas oós as perdemos,porque nossa bela ra do humana em tudo semete para dominar e comandar, perturbando econfundindo a fisionomia d.as coisas a seutalante, segundo sua vaidade e sua incons·tância: "nada sobra que seja nosso; o que

l OvfdiO.

chamo no.sso produto artificiat"no. s coisas apresentam-se em condições e sob aspectosdiversos. o que constitui a primeira causa dadiversidade de opiniões. Um povo encaradeterminada coisa por um de seus aspectos, oqual fixa suas idéias, outro a vê de modo diferente e por este se guia.

Nada me parece mais horrível à imaginaçãodo que um filho comer o pai. Os povos entre osqua is esse cos tume existia outrora encaravamno entretanto como prova de devoção e afeição, pois visavam dat aos seus progenitores amais digna e honrosa sepull:Ura, alojando por

assim dizer na medula dos próprios ossos oque restava do corpo de seus pais, reavivandoº• regenerando-o através da transmutação da

carne morta em carne viva pela digestão. Éfácjl imaginar que crueldade pareceria, e queabominação, a esses homens supersticiososenterrar os despojos dos parentes na terra.onde iriam apodrecer e transformar-se em alimento para os vermes.

Lícurgo considerava que no furto, a vivacidade, a ligeireza, a ousadia, a habilidade quese empregam em surripiar alguma coisa ao

vizinho, são úteis à coletividade, porquantoobrigam o indivíduo a cuidar do que é seu.Achava que do ponto de vista da disciplina

militar (principal ciência e virtude essencialque desejava inculcar em seu povo) haviamaior vantagem em desenvo Ver essas tendências para o ataque e a defesa do que o inconveniente resultante da desordem e injustiça de seapropriar do bem alheio.

Dionísio, o Tirano, ofereceu a Platão umatoga como a usavam na Pérsia, longa, bordadade ouro e prata, e perfumada; Platão recusou-adizendo que tendo nascido homem não lheconvinha vestir-se à moda das mulheres. Essamesma toga aceitou-a Aristipo, observandoque "nenhum adorno pode corromper quemestá resolvido a conservar a castidade". Seusamigos censuravam-no por não se haver se-quer magoado com o fato de o tirano Ih.e tercuspido no rosto: "os pescadores", respondeulhes, "resignam-se, a fim de pegar um simpleslambari, a molhaNe dos pés à cabeça". Diógenes limpava uns repolhos quando, ao verpassar esse mesmo fil6sofo, gritou: "se paraviveres te contentasses com repolhos, não adularías o tirano". Ao que o outro re<orquiu: "sesoubesses viver entre os homens, não limpariasrepolhos".

Bis como a razão dá às coisas as mais diver·sas aparências: é uma marmita Que se pega orapor uma asa ora por outra. "O terra que me

hospedas, pre.ssagias a guerra; teus corcéis

u C í ~ r o

estão armados para o combate e o combateque nos fazem temer; oo entanto, esses nobresanimais andavam outrora atrelados aos aradose marchavam fraternalmente sob a canga.Toda esperança de p8 ainda não está perdida.pois331».

Censuravam a Sólon fato de verter lágrimas impotentes e inúteis sobre o cadáver do

filho. "E justamente por isso que as verto, porserem impotentes e inúteis  ' A mulher de Sócrates assim se desesperava: "que injustiçacometem esses malvados juízes que o condenam " - "Preferirias", replicou o filósofo,"que isso fosse justo?"

Usamos furar o lóbulo das orelhas, o que osgregos consideravam sinal de escravidão.Escondemo-nos para possuir nossas mulheres;os indianos possuem-nas em público. Os citasimolavam os estrangeiros em seus templos;alhures os templos são asilos. "Cada paísodeia as divindades dos países vizinhos, por·que cada um considera seus deuses os únicosverdadeiros. Daí o furor cego das multidões"u 2.

Ouvi falar de um juiz que, quando encontraya entre Bartole e Ba1dus333 algum conflitoárduo de resolver e algum assunto que apresentasse diliculdades, escrevia, à margem do

livro: "questão para o amigo", o que significava que a verdade era tão confusa e controversa que em semelhante causa lhe seria fácilfavorecer qualquer das partes. Com algumespírito e um pouco de ciência, pudera escreversua frase em tudo. Em todos os processos,advogados e juízes de nosso tempo achammeios para chegar ao resultado que bem entendem. Em ciência tão extensa, dependente deopiniões que faz.em lei, e nas quais o arbítriodesempenha pa.pel importante, uma extremaconfusão deve naturalmente verificar-se nassentenças. Por isso não há processo, por claro

que seja. a cujo respeito as opiniões nãovariem. O que julga um tribunal é por outroreformado. Acontece atê que o mesmo tribunal, julgando de novo, julgue diferentementeda primeira vez. Esses fatos se observamcomumente, em virtude do abuso, tão prejudi·cial à dignidade da autoridade e ao prestígioda justiça, de não se conformarem com o julgamento e de apelarem para todas as jurisdições a fim de se pronunciarem elas sobre amesma causa.

Quanto à liberdade de que usam os filósofosem se referindo ao vício e à virtude, é ponto acujo respeito não convêm estender-se e que deu

n 1 Virgílio.n a Juven il.J 3 ' Bartnle e Bllldua, juri&COOsullOs rivais do 6cv·loXIV.

 

margem a opiniões que, em atenção aos espíri minamos honestidade fazer às escondidas o

BNSAIOS-l l 269

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tos fracos, é melhor calar. Arcesilau dizia queem matéria de impudicícia o mal independe do

culpado e da maneira por que é cometido:"quanto aos prazeres obscenos, Epicuro pensa

que, se a natureza os solicita, não há como

olhar a raça, a origem, ou a condição social e•. - • t

sim tao-somcntc a beleza, a idade, o aspec-to"33 •. "Os amores elevados não se proíbemao sábio" 35

•. "Vejamos até que idade devemos amar os jovens"u •. Estas duas últimasproposições emanam dos estóicos e mostram,como aliás a censura dirigida contra Platãopor Dicearco, a que ponlo a Cilosofia maisesclarecida tolerava ~ g e r a d a s licenças ao

que oomumcnte se praticava.

A autoridade das leis provém de existirem eterem passado para os costumes; é perigosofaze-las retomarem à sua origem. Como os

rios que se avolumam com o rolar das águas,elas adquirem importância e consideração cm

se aplicando. Remontai-lhe o curso até a nascente e vereis um insignificante filete de água.Investigai os motivos que no início deramimpulso a essa torrente de 1eis o costumes, hojeconsiderável e cheio de dignidade, temor cveneração. V6s os achareis tão frágeis, tãopequenos, que não é estranho que esses fil6so

fos que tudo perscrutam, que tudo submetemao exame da razão, nad a admitindo sem auto

ridade, os julguem tão diferentemente do restodo mundo. Tomam por modelo a imagem pri-meira da natureu e não há como nos espantarmos de que, na maioria de s uas opiniões, sedesviem do caminho comum. Poucos, entre

eles, Por exemplo, teriam ap rovado as condiçõ s restritivas de nossos casamentos; queriam, em geral, que as mulheres fossem detodos, sem obrigações para co m ninguém erecusavam-se a observar aquilo a que chama

mos conveniências. C rlsipo dizia que, mesmosem calças, um filósofo faria em público uma

dúzia de piruetas, por uma dúzia de azeitonas.

E nem tivera procurado convencer Clístenes denão dar sua fúha Agarista a Hipóclides que

vira "plantando uma bananeira" em cima da

mesa. Metrocles, um tanto indiscretamente,dera um peido quando dissertava, cercado deseus discípulos. Envergonhado, fechou-se emcasa. até que Crates, indo visitá-lo, juntou oexemplo às consolações e raciocínios e o livrou de seus escrúpulos, levB.Qdo-o ainda aaderir à seita dos estóicos, seita mais francaque a dos peripatéticos, a qual era mais requintada e que Mctroc les seguira até então. Deno-

U •

n a. ícero.ld.

Sê:neca .

que não fazemos a descoberto. Esses filósofo sa isso chamavam tolice, e vício ao c&Jar acercado que a natureza, os costumes e os desejosproclamam. Se lhes parecia loucura celebraros mistérios de Venus fora do santuário reservado de seu templo, e expô-los às vistas detodos, era porque tai s jogos, sem cortinas, perdem seu sabor; e a vergonha é fardo por demais pesado. Velá-los, e moderar-se na sua

prática, emprestam-lhes maior valor. Achavam os filósofos que a volúpia se enobrecia denão se prostituir nas rua s, de não se depreciar

aos olhos de todos, de não ser espezinhada, oque ocorreria com a supressão dos locais especiais que lhe são reservados. Daí dizerem al-guns que suprimir os bordéis públicos era nãosomente expandir a impudicícia, mas ainda

incitar os vagabundos e os ociosos com o ch amariz das dificuldades: "Outrora marido de

Aufldia, eis-te, hoje, Corvino, seu amante, hojeque ela é a mulher daquele que antes foi teurival. Ela te desagradava quando era tua, por

que te agrada agora depois que pertence aoutro? tu impotente quando nada tens atemerJ'  · Mil exemplos demonstram queassim é, que as dificuldades excitam nossosdesejos: " Não houve, Ceciliano, quem quisesse

tua mulher gratuitamente , quando era livre;agora que tu a vigias e guardas, os adoradores

são legião.& realmente um homem hábil " 1   • .

Perguntaram o que fazia a um filósofosurpreendido no momento da cópula. " Plantoum homem", respo ndeu friamente. tão pouco

envergonhado como se plantara alhos.

Um de nossos maiores autores relig_iosossustenta, em termos mui dignos e comedidos, ede meu agrado, que a práti<:a desse ato exigetanto que nos escondamos e tenhamos pejo

1

que pode acreditar se realizasse na licençados an1cos. Pensa que se rescringia então amovimentos lascivos destinados a dar satisfação à impudência dessa escola. E que para

chegar ao fim. que a vergonha impede e inibe,deviam procurar não ser vistos. Não se aprofundara por certo na devassidão deles.

Diógenes, masturbando-se cm público, lamentava perante a turb4 de que oio pudessedar gozo ao ventre, em o roçando. A quern lheperguntava po r que comia na rua e não buscava lugar mais apropriado, respondia: "é porque tenho fome na rua". As mulheres miadas aessa seita entregavam-se aos m6sofos em qualquer lugar, e à discrição. Hipárquia só foiadmitida na companhia de C rates sob a condição de seguir em tudo os usos e costumes da

u 7 MarcialU Jd .

j seita. Devam a maior importância à virtude es6 se conduziam pela moraJ; entretanto, emtodos .os seus atos obedeciam ao sábio que

escolbl8Dl como chefe de escola e cuja opinjio

er_a soberana e mais acatada do que as leJt. Bnao_conheciam oulro limites a seus prazeresaenao os da moderaçao e da liberdade alheia.No fato de o vinho parecer amargo aos doentes e qradávcl aos sãos; de o remo parecer

~ r t o mergulhado na água e re to aos que oveem fora dela; de muitas ooisas assim se mostrarem sob aparências antagônicas, Heráclito eProtágoras apontavam a prova de qoe cada

q u ~ traz cm sj a causa das aparências. Assimo vinho encerra um princípio amargo, que otoma amargo aos doentes. o remo um princtpio tono cm relação com quem o vê na águaetc . O que equivale a dizer que tudo está

todas as coisas e por conseguinte nada emnenhuma, pois não há nada onde bá tudo.

Essa opinião recorda-me o que ocorre emn6s. Não há sentido real ou aparente, amarao

ou ~ · reto ou sinuoso, que o espírito humano nao descubra nos escritos que examina deperto. De quantas falsidades ou mentiras uma

fra&e clara. pura e perfeita quanto possível éponto de partida1QuaJ a heresia que nela nloa c h ~ u um testemunho suficiente para que seexibisse e se sust.cntasse? Por isso os autoresde ta.is erros não querem nunca renunciar àsprovas, tiradas da interpretação dada aos te:1-tos e que ~ m ~ a v o ~ c c ê , . J o s Um aJto perso-nagem, deseJandoJustificar a pesquisa a que seentregava, da pedra falosofaJ.. citava-me ultimamente cinco ou seis trechos da Bíblia nos

~ u a i s se b a ~ ~ a _  p r ~ á p i o a fim de tr..:iqüihzar a consciencia (pois eclesiástico). B, em

v ~ d a d e o que encontrara não era somente ori·gmal, mas se aplican muito bem à defesadessa bela ciência.

dessa maneira que as fibulas dos 8divinhos ganham crédito. Nio há adivinho de al-guma a.utoridade, que, cm lhe folheando' a obra

e_exammando af ~ o

asa l a v r ~

não se façad12er o que se queira, como às sibilas. Há tantas m a n e i r ~ s de interpretar, que é difícil, qualquer que SCJ• o assunto, um espírito engenhosonão descobrir o que lhe c:onvcnba. Por issomesmo o estilo equívoco e obscuro se usou

d e s d ~ s c ~ p r e e freqüentemente. Que um autorconsiga mteressar •_posteridade, o que podeacontecer ou em razao de seu valor real ou da

predileção de que goze no momento o assuntotratado; que por estupidez ou esperteza sejaseu estilo c o ~ ~ e e ~ s c a d o ; pode sossegar:numerosos espintos, ag1tando-o e peneirandoº· tirarão dele inúmeras idéias, ou idênticu àspróprias, ou algo semelhantes, ou absolutamente contrárias e, todas, o honrarão. Alcan·

ç ~ i •flim o êxito por intermédío de teusdlsdpolos, como os profeisoros se enriquecemcom o dinheiro do Landitu•.

'.:'oi o que valorizou muitu coisu sem valore posem evidência alguns escritos que se interpretaram àvontade, de mil e uma maneiras.

Será admisaívcl que Homero tenha dito tudoo que lhe fizeram dizer? Que voluntariamentese tenha prestado a tio numerosas e diversasi n t c r p m ~ que os te61ogos os legisladores,os guerreiros. 01 filósofos. e out101 que C ocu  ~ das ciências, por diversos e opo$t<>S que

SCJam seus temas, nele se apóiem, a ele serefiram?

P.ara todos ele o grande mestre em tudoofícios, obras, ciências. o conselheirotodos os empreendimentos. Quem atenta para

oriculos e predições, encontra o que quer. Um~ i g ? ° eu, sábio personagem, nele descobriu t n d 1 c a 9 _ > C r e ~ c n t e admiráveis cm prolde nossa rchg1ao. Tao maravilhosa é a coisa

~ u e e l ~ não pode deixar de acreditar que folmtenc1onal da parte de llomcro o qual lhe éde resto tão familiar quanto quaiquer autor denosso século. Mas é possível que o que encontra em Homer o fav-0rável a nosso culto muitos, na antiguidade, o encontraram favor,vel à

sua religião.Vede como estudam e aprofundam Platão

cada qual se vangloriando de o ter a seu ladoo interpretando a seu modo. Passeiam-no portodas a& opiniões do século e obrigam-no atomar part ido. Forçam-no mesmo à contradição segundo as idéias cm voga. Fazem-no

~ ~ ~ v a r o s ~ c o s t u m e s aceitos em sua época, seJa nao o sao agora, e isso com tanto maiorautoridade e nitidez qll&lto mais autoritário edireto o espírito do intérprete. Dos mesmosfatos que haviam levado Heráclito a emiUrctta opinião: "toda as coisas têm cm si as

aparências que apresentam", Dem6crito tiravaconcluaõcs opostas: "as coisas nada têm do

que nelas encontramos". E do fato de ser o meldoce para uns e amargo para outros, deduzianão ser ele nem dooe nem amargo. Os pirrô-nicos teriam dito não saberem se é doce ou

amargo, se não é doce nem amargot ou se édoce e amargo, pois chegam sempre a conclusão de Que o ponto litigioso se presta a dúvi·das . Os cirenaicos sustentavam q ue não percebemos nenhuma sensação exterior, que s6 as

sensa9ÔC internas nos são perceptíveis. Ass ima dor e a volúpia. ~ a o admitiam o som ou acor, mas tão-somente as sensações que noscausam e de que provém o julgamento dohomem. Protigorasconsiderava que a verdade

u • Praentea que os alunos davam aos ftlCltres por

ocuiio da de Wodit i IV ...C

é para cada um o que lhe parece. Os epicu sem enxergar nem ouvir; quem nos diz que a

: : - 

271

carência de sentido, cuja falta faz que em sua

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ristas localizavam o julgamento nos sentidospelos quais adquirimos o conhecimento das

coisas e sentimos as sensações que provocam.Platão queria que esse julgamento, que nospermite discernir a verdade, e a própria verdade, proviessem não dos sentidos e idéiaspreconcebidos, mas do espírito e da reflexão.

Esta dissertação induziu-me a considenr ossentidos como a grande causa e a prova. a um

tempo, de nossa ignorância. Tudo o que seconhece, conhece-se pela faculdade de conhecer do indivíduo. Isso é incontestável, porque

sendo o julgamento um ato de quem julga, énatural que empregue, em julgar, seus melhores meios e sua vontade; que não seja forçadoa reportar-se a outrem, como ocorreria se oonhecimento das coisas se impusesse pela sua

atureza própria. Ora, esse conhecimento chega-nos pelos sentidos, que são nossos mestres:são as vias pelas quais a evidência penetra no

santuário do espírito humano". Por eles se iniia a ciência e com eles se afirma. Afinal,

seriamos ignorantes como uma pedra, se Jlàoonhecêssemos a existência do som, do odor,a luz, do sabor, da medida, do peso, da molea, da dureza, do amargor, da cor, do tato, da

argura, da profundidade, o que constitui a.

base e o princípio de toda ciência. Tanto assimue, para alguns ciência é sensação. Quempuder me levar a contradizer os sentidos ter

e-á em suas mãos, pois são o começo e o fimos conhecimentos humanos: "vereis que aoção do verdadeiro nos vem dos sentidos; seu

testemunho é irrefutável, pois que guia merecerá mais do que eles a nossa confiança'?" 3 'ºPor menos que lhe atribuam, será sempreecessário confessar que tudo o que sabemos

vem deles ou por seu intermédio. Diz Cíceroue Crisipo, tendo tentado diminuir a força e

as faculdades de seus sentidos, encontrou em simesmo tais argumentos C-Ontrários à sua tese, etão veementes, que nãopôde atingir seu objetivo. O que levou Carnéades a dizer, na polêmica que então mantinha contra ele, e na qualse vangloriava de usar as próprias armas doadversário; " Infeliz, tua força mesma te perdeu " Nada mais absurdo, a meu ver, nada

mais excessivo que afümac que o fogo não

aquece, a luz não ilumina, o ferro não pesa,nem é duro, coisas cujo conhecimento nos vem_

dos sentidos; ou que nenhuma crença podecomparar-se ao que se ensina.

Uma primeira observação farei a respeitodos sentidos: a de que não me parece seja ohomem provido de todos os que existem nanatureza. Vejo animais que vivem muito bem

3 •o Lucrécio.

n6s não faltam também um, dois, três e até vários sentidos'? Pois se algum nos falta não há

como percebê-lo. É privilégio dos sentidosconstituírem o limite máximo de nossa perspícácia; nada, fora deles, nos pode ajudar adescobri·los. Nem um sentido pode revelaroutro. "Pode o ouvido retificar a vista, ou otato, o ouvido? Pode o paladar suprir o tato? Eo olfato ou a vista corrigir os erros dos

demais ?"3 '1 São em verdade os limites mais

recuados de n.ossas faculdades: "cada qual temseu poder, cada qual sua própria força"3 42

• é

impossível fazer cóm que um homem natuTalmente cego deseje ver e lamente a ausência do

sentido de que carece. Portanto não. devemosvangloriar-nos da satisfação de nossa almacom os que temos, p o ~ ela não pode sentir suaimperfeição, se a tem. E impossível, pelo raciocínio, a analogia ou a similitude, fazer que aimaginação de um cego adquira a menornoção do que venham a ser a luz, a cor, a vista.Nada nele pode induzi-lo a uma idéia do senrido que lhe faltA Quando um cego de nascençaafirma que desejaria ver, não o faz porcompreender o que exprime;di-lo, aponta cfei·tos e conseqüências, mas ignora, em verdade, oque seja, não o concebe, nem muito nempouco.

Conheço um fidalgo de boa estirpe, cego denascença ou pelo menos cego desde quandonão sabia ainda o que fosse a vista. Tem tãopouca consciência do que lhe falta que emprega como nós locuções que servem para exprimir o que vemos, mas as aplica de maneiramuito particular, muito sua. Apresentaram-lheuma criança de que era padrinho. T omando-a

nos braços, e11clamou: "Meu Deus, que lindacriança Bela de se ver Como seu rostoesplende de alegria " Dirá como nós: "destecômodo tem-se uma bela vista; lindo sol "Mais ainda: como a caça, o tiro de arcabuz, ojogo da bola, são exercícios que praticamos,ele os apre<:ia e no assunto se compraz apaixonadamente, embora deles participe somentepelo ouvido. Gritam-lhe, quando estão em ter·reno plano sobre o qual pode andar à vontade:"Olha a lebre " E cm seguida: "ei-la morta". Eele se mostra tão orgulhoso da coisa q11anto os

outros. No jogo de bola. toma-a com a mãoesquerda e lança-a com a raqueta em quaJquerdireção. Com o arcabuz atira ao acaso e acredita quando lhe afirmam que atirou alto demais ou ao lado do alvo.

Como saber se o gênero humano não comete tolices análogas, em virtude de alguma

J .. ld.3 42 ld.

maioria as coisas não se mostrem tal qual são?

Quem sabe se não provêm disso as dificuldades que sentimos em entender certas obras

da natureza? Quem sabe se certas coisas executadas pelos animais e que ultrapassam nossas possibilidades não são resultantes de dadasfaculdades? Quem pode dizer se por isso não

têm uma vida mais plena e satisfat6ria do que

a nossa? A maçã excita a maior parte de noss s sentidos: é vermelha, lisa, tem perfüme, édoce. Talvez tenha outras virtudes, como secare restringir, que nossos sentidos não percebem.

Não é provável que as propriedades a que chamamos ocultas e que observamos em muitasco isas, como no ímã a de atrair o ferro, devemcorresponder a faculdades de sentidos naturaiscuja incapacidade de perceber nos induz àignorância de sua essência'? provavelmenteem conseqüência de algum sentido específicoque galos distinguem a hora, pela manhã e ànoite, e cantam. E que as galinhas temem ogavião, antes de qualquer experiência e nãoreceiam nem o ganso nem o pavão de estaturamuito maior; e que os frangos sabem da hostilidade do gato e não desconfiam do cão, tremendo ante o miado harmonioso e não ante olatido áspero; e as formigas, as abelhas e os

ratos escolhem sempre o melhor queijo semantes o provar; e o veado, o elefante, a serpenteconhecem ervas que curam.

Não há sentidos que não sejam de grandeimportância; e os conhecimentos que devemosa cada wn deles são em número infinito. Se ainteligência dos sons, da harmonia e da v z

viessem a faltar-nos, haveria incnvcl confusãoem todo o resto de nossa ciência, pois, além doque se prende aos efeitos de cada sentido, tiramos inúmeros argumentos, conseqüências econclusões da comparação de um com outro.Imagine um entendido o gênero humanodesprovido, desde sempre, do sentido da vista,e pesquise a que ponto a confusão conduziriatal lacuna. Quanta treva e cegueira em nossaalma 1 Julgar-se-á por aí quanto importa aoconhecimento da verdade a privação de um ou

mais sentidos. Concebemos a verdade sob umaspecto para o qual contribuem nossos cincosentidos. Talvez. para que seja a verdadeira, eque tenhamos a certeza de apreender integralmente, careçamos de oito ou dez.

As seitas filosóficas que contestam a ciênciahumana sublinham, em particular, a incertezae a fraqueza de nossos sentidos, porquantotodo conhecimento nos alcança por seu intermédio. Se falham em seus relatórios, se se corrompem, ou alteram o que nos comunicam, sea luz que por eles se introduz. em nossa alma seobscurece em caminho, não temos mais em

que confiar. Dessa extrema dificuldade surgiueste aforismo: Tod1.1 coisa encerra em si tudoo que nela ach_amos; e nela não há nada do quepensamos encontrar." E .mais este, dos epicu.ristas: "O sol não é maior do que a nossa vistao considera; as aparências, que nos impelem aver maior o corpo mais próximo e menor omais longínquo, são todas verdadeiras"; oucomo diz Lucrécio: "se contudo não convimosem que nossos olhos nos iludem, não imputemos nossos crTos ao espírito". E, o que é maisousado: "nossos sentidos não se enganam,estamos na sua dcpendéncia e é preciso buscar

alhures as razões suscetíveis de ex.plicar /1S~ i f e r e n ç s e contradições que constatamos;inventar mesmo uma mentiTe ou um devaneiode nosso espírito, de preferênc ia a acusar ossentidos" 3 u .

Timágorasjurava que por mais qne piscasseou esfregasse o olho nuuca via cm dobro a luzda vela e que essa ilusão provém de um erro daimaginação e o.ão de um defeito do órgão. etodos os absurdos, o mais absurdo, para os

epicuristas, consistia cm negar o poder e os

efeitos dos sentidos: " As i n d i c ~ dos lentidos são sempre verdadeiras. Se a razão niopode explicar por que o que vê quadrado, deperto, vê comprido de longe, é melhor ainda,

sem solução verdadeira para esse duplo fenômeno, dar uma faJsa, de preferência a deixarescapar a evidência, a mentir à fé primeira edestruir os fuudamcntos da credibilidade cmque assentam nossa conservação e nossa vida,pois os interesses da razão não s ão aqui os únicos em jogo. A própria vida só se conservacom o apoio dos sentidos; é em vista de :iCu

testemunho que evitamos os precipícios e ou

tras coisas nocivas  ª ' • .

Este conselho desesperado e tão pouco filosófico não significa senão que a ciência sópode existir na medida em que lhe emprestamos a ajuda de uma razão desarrazoada ,maluca, obstinada; e que, para satisfação da

vaidade do homem. mais vale ainda isso ouservir-se de qualquer fantasía, do que confessar a sua estupidez; o que não honra demasiado a humanidade.

O homem não pode impedir que os sentidosnão sejam os soberanos mestres dos conhecimentos que possui ; mas estes não oferecemcerteza e sempre podem induzi-lo em erro.preciso insistir nesse ponto. Na falta do quedeveria dar-lhe força, ele o supre com a obstinação, a temeridade, a impudência. Se os

epicuristas estão certos, isto é, "se a ciêncianão existe visto que as aparências comuni-

H' Lucrécio .l • • Lucrécio.

cadas pelos sentidos são falsas", e se o que incorreta os seus escritos, se pôs a sapatear e a

b N ~ l U ~pernas e as coxas, apesar da distância ba.stantc Virgílio. O objeto de nossa afeição parece-nos

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dizem os est6icos é igualmente verdadeiro,"que as aparências transmitidas pelos sentidossão tão falsas que não podem criar nenh11maciência", somos levados a concluir que não há

ciência.Quanto ao erro e à incerteza das operações

dos sentidos, não faltam eJ1emplos à mão, tãoabundantes são essas falhas e ilusões. Em virtude do eco no vale, o som da trombeta parecevir de frente quando na realidade vem de trás."As montanhas que se erguem acima do marparecem-nos de longe uma s6 massa, embora

cm verdade sejam distantes umas das outras.As colinas e camp<>s que margeamos, parecemfugir em direção a popa do navio em que navegamos. Se o cavalo pára no meio de um riacho, parece que caminha obliquamente, correnteza acima, como impelido por estranha

força" 3 4 6• Se manuseio uma bala de arcabuz

com os dedos entrelaçados, é preciso violentar-me para admitir que não sejam duas.

Que os sentidos dominam muitas vezes arazão e nos impõem sensações que ela sabeserem falsas é coisa que se vê comumente.DeiJ o de lado o tato, que tem funções maisimediatas, vivas e substanciais e que, pela dorque pode provocar, desmente as resoluções

estóicas e força a gritar quem está com cólicas,embora proclame este o dogma de que a cólica, como qualquer outra doença ou dor, é indiferente e não tem o poder de diminuir em nada

a felicidade que a virtude outorga ao sábio.Mas não há coração, por mais efeminado queseja, que o som de nossos tambores e trombetas não entusiasme; nem o há tão duro que amúsica não desperte e amoleça; nem alma tãoríspida que não se sinta comovida na sombriaimensidade de nossas igrejas, com seus ornatose cerimônias; ou que, ouvindo os órgãos, nãose eleve misticamente; mesmo os que entramnesses edifícios com desdém, impressionam-see experimentam uma espécie de temor supersti

cioso que lhes abala a opinião. Quanto a mim,não me considero bastante forte para permanecer insensível aos versos de Horácio ou Catu·lo, recitados com inteligência por jovens ebelos lábios. A voz, dizia Zenão, é a flor da

beleza.De uma feita -quiseram persuadir-me de que

um homem que todos conhecemos, me impressionara com seus versos somente por causa da

voz. Diziam. que não eram tão bons comopareciam e meus olhos julgariam diferente·mente de meus ouvidos, tanto a dicção valoriza as obras. Não andou portanto errado Filóxeno quan do, ao ouvir alguém ler de maneira

3 5 Lucrécio.

espezinhar os tijolos3 4 0 do importuno, dizendo: "Quebro o que te pertence como quebras oque meu." Por que razão as pessoas queordenam a própria morte viram a cabeça paranão ver o golpe? E os que, doentes, desejam epedem que os sangrem ou cauterizem nãopodem suportar a vista dos preparativos do

cirurgião, se a vista não influi na dor? Nãoprovam esses exemplos o domínio dos sentidossobre a razão? Embora não ignoremos que acabeleira do pajem ou do lacaio é falsa, que orosado vem da Espanha, a palidez brilhante se

deve a produtos exóticos, nossa vista, contratoda razão, compraz-se na contemplação do

objeto. "Somos seduzidos pelo adorno; o ouroe a pedraria escoodem os defeitos; a jovemmesma é a menor parte do que nela nos apraz.Não raro temos dificuldade em achar o queamamos sob tantos ornatos; ê sob essa égideopulenta que o amor engana os olhos " 3 " 7 • Eque poder emprestam os poetas aos sentidosquando nos mostram Narciso enamorado dese1 1 reílexo "Admira tudo o que é admirável.Insensato Deseja-se a si próprio; é a si mesmoque aprecia e aspira; queima-se com a paixãoque ele próprio acende"3 48 • Por Isso, mostram-nos também Pigmllleào com o espírito

perturbado pela impressão que lhe causa avista de sua estátua de marfim, a que anta e daqual se torna escravo como se ela fosse anima-

da: "cobre-a de beijos e imagina ser correspondido; abraça-a freneticamente; pensa sentirnos dedos o estremecimento da carne e receia,ao c l)cá-la, dei.xar uma impressão lívida".

Ponha-se um ftl6sofo em uma gaiola de

arame fino e pendure-se no alto das torres deNotre-Dame. Verá de maneira evidente quenão pode cair e apesar disso, a menos de estarfamiliarizado com o ofício de pedreiro, nãoevitará o medo, transido de pavor pela vista da

altura. Já nos é difícil sentirmo-nos à vontadeà beira dos terraços de nossos campanários,mesmo quando de pedra; e certas pessoas nãoo suportam sequer em pensamento. Jogue-seentre as torres da catedral uma tábua suficien·temente larga para passarmos; não haverásabedoria filosófica, por mais admirável queseja, capaz de nos infundir a coragem de andarem cima dela como o faríamos se a tábuaassentasse no chão. Não raro senti nas montanhas dos Pireneus, e embora não me assustefacilmente, que não podia suporlar a vista desses abismos imensos sem que me tremessem as

3 • • T a m ~ m chamados"tijolos de wgila", em qucucrr-

viam os Mti&os t Cs o papiro.

• • Ovídio.

• • ld.

em que me encontrava da beirada e de saberque uma queda s6 fora possível se voluntariamente me expusesse ao perigo. Observei tam·bém que uma árvore ou um rochedo, a.inda quepequenos, servindo como ponto de repousopara a vista, me tranqtiilizavam, cQmo se, emcaso de queda, nos pude.ssem ser úteis. Mas os

precipícios sem ob.stáculos, não os podemosolhar com segurança: somos tomados de verti·gem, como diz Tito Lívio. E eis uma evidenteimpostura dos olhos.

Foi o que levou esse belo filósofo a vazar os

próprios olhosª4 9

a fim de se isentar dasimpressões desregradas que provocavam, im ·

pedindo-o de filosofar livremente. Mas, desse

rnodo, também deveria ter tapado os ouvidos

com algodão, pois são, no dizer de Teofrasto,

os no ssos órgãos mais perigosos, suscetíveis,

pela violência das impressões, de confundir e

alterar nossas idêias. E deveria afinal privar-se

igualmente de todos os outros sentidos, isto é,do próprio ser, da vida, pois todos exercem

iníluência em nossa razão: "Acontece não raro

que tal ou qual espetáculo, voz, canto impres"

sionam vivamente nos90 espírito; muitas vezes

t m ~ m a dor e o medo produzem os mesmos

efeitos" 3 so.Pretendem os médicos que certas pessoas se

agitam até à loucura sob a ação de certos sons .

Conheci quem não pudesse ouvir os cães roe-

rem um osso embaixo da mesa sem perder a

paciência. Poucas pessoas não são incomo

dadas pelo ruído agudo e penetrante da lima

trabalhando o ferro. Assim também, o ruído

dos maxilares masligando ou o falar anasalado

irritam à cólera e ao 6dio. E para que servi·

ria o tocador de flauta que acompanhava

Gr aco em Roma, atenuando ou ampliando a

voz do tribuno, se os sons não tivessem a

propriedade de comover e influir no espíritodos ouvintes? Em verdade, não há como nos

vangloriarmos tanto de nossa faculdade de

julgamento, se um simples sopro a atinge e

modifica

Se os sentidos nos Induzem em erro, enganam-se também por seu turno. Nossa alma tem

por vezes seu revide. Mentem eles uns aos

outros. O que vemos e ouvimos sob o donúnio

da cólera, não nos aparece como é realmente:

"vêem-se então dois s6is e duas Tebas", diz

3 4• Demócrito, ao que dittm.

•° Cícero.

mais belo do que na realidade é: "muitas vezes

vemos a deformidade e a feiúra receberem

homenagens "3 5 1. E mais feio é o objeto de

nossa animosidade. A um homem aborrecido e

aflito, a claridade do dia se afigura tenebrosa.

Nossos sentidos não somente se alteram mas

ainda se estupidificam totalmente, sob o efeito

das paixões. Quantas coisas olhamos sem ver

se nosso espírito se acha ocupado alhures

"As coisas, mesmo a.s mais expostas à vista, se

nelas não aplicamos o espírito, são como per·

didas na noite dos tempos•• 3 u. Dir-se-ia quea alma se esconde dentro de nós e se diverte

em abusar dos sentidos. Assim, o homem é,por dentro e por fora, fraqueza e mentira.

Os que compararam nossa vida a um sonho

foram mais judiciosos talvez do que pensavam.

· Em nossos sonhos nossa alma vive, age, exerce

todas as suas faculdades, tal qual quando está

acordada. Admitamos que o faça de um modo

menos eficiente e visível, a diferença ain da não

será tão grande quanto entre um dia de sol e a

noite, mas apenas como entre esta e o crepúsculo. Se ela dorme durante o nosso sono cochí·

la mais ou menos quando estamos acordados.

Em um e outro caso, permanecemos nas t revas

mais profundas. Durante o sono, não vem os

com nitidez. mas acordados não é tampouco

perfeita a claridade. O sono profundo apaga

por vezes os nossos sonhos; despertos, nunca o

estamos bastante para nos livrarmos de todos

os devaneios que são sonhos de gente acordada e piores do que os verdadeiros. Rece

bendo nossa razão e nossa aJma as idéias e os

sentimentos que nascem em nós enquanto dor

mimos, e prestando-se a eles, como o faz com

o que concebemos de dia, como duvidar de

que, em pensando e agindo, sonhamos? E estar

acordado seja uma forma particular do sono?Se os sentidos são os juízes aos quais nos

devemos r ~ p o r t r em primeiro lugar, não são

apenas os nossos que devemos consultar.

Nesse ponto os dos animais têm os mesmos

direitos que os nossos, senão maiores. Pois ê

certo que alguns têm o ouvido mais sensível,outros a vista, outros o olfato, outros o tato ou

o paladar. Demócrito dizia que as faculdades

pelas quais experimentamos as sensações são

mais perfeitas nos deuses e nos Há

•1 Lucrkio

a u Id.

. .: r ,t ',

em verdade enorme diferença entre os efeitos postos entre nós e as tochas e tudo o que existe •l N ~ A l U : S -  

fazemos, toma-se osso, sangue, carne, pêlo, ou são, se estiver acordado ou cochilando.

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dos sentidos nestes últimos e em nós. Nossa

saliva, por exemplo, que limpa e seca as nossas

chagas, mata as serpentes. Entre tais efeitos étão grande a diferenço, que o que é alimentopara uns é veneno mortal para os outros.

Assim a serpente, em contato com a saliva

humana, definha e se devora a si p.rópria 3 53•

Que qualidades daremos então à saliva, as

que concebemos ou as que a serpente o n ~ b eQuem nos dirá de sua essência?

Plínio afirma que há nas índias certas lebres

marinhas que constituem um veneno para nós,e reciprocamente. Basta que a toquemos para

que pereçitm. QuaJ desses efeitos devemos

classificar como veneno? Em quem acreditar?No peixe ou no homem? O homem é envene

nado por um certo ar que não ataca o boi; tal

outro que não nos prejudica, não o suportaeste. Qual dos dois é realmente pestilencial?

As pessoas que sofrem de icterícia tudo vêemsob um aspecto amarelado. "Tudo parece

amarelo a quem tem icterícia", diz Lucrécio.

Os que são atingidos pelo que os médicos

denominam hiposfagma, que consiste em um

derrame de sangue sob a pele3, vêem tudo

vermelho. Essas disposições que modificam oque vemos, terão iguais efeitos nos animais?

Pois entre eles os há com olhos amarelados ou

vermelhos e épossível que não vejam as coisas

com as cores que vemos. Quem estará com a

verdade? E não se diga que a essência das coi

sas ó aos homens importa. Nada o prova. Adureza. a brancura, a profundidade, o azedu

me, interessam-lhes tanto quanto a nós mes

mos. A natureza outorgou-lhes o uso, como a

n6s. Quando calcamos o olho, vemos os obje-

tos mais compridos e largos; muitos animaistêm o olho assim feito; esse comprimento que

atribuímos aos corpos no caso em apreço talvez seja o verdadeiro. Se comprimimos o olho,apertando-o por baixo, vemos as coisas dupli-

cadas. As lâmpadas têm dupla luz, os homens

duplo corpo e rosto'' 3 6. Se temos os ouvidos

tapados ou semi-obstruídos, percebemos diferentemente os sons; os animais que possuemorelhas peludas, ou apenas um pequeno orifí

cio, não devem pois ouvir como ouvimos.

Vemos nos teatros e festas vidros de cor inter·

s u Lucrécío.

'4 Na realidade , equimo iC no olho. (N. doT.)

• s • Lucr6cio.

nesses lugares assim iluminados parece verde,

amarelo, ou violeta: "assim ocorre com essesvéus amarelos, vermelhos e cinzentos pendura·

dos em nossos teatros e ílutuando no ar. Seu

brilho móvel reflete-se nos espectadores e no

paJco; os senadores, as mulheres, as estátuas

< os d e u ~ tudo se tinge à luz cambiante"1 s 6•

É provável que os olhos dos animais vejam as

coisas de acordo com sua cor.

Para julgar as operações de nossos sentidos

fora necessário portanto que estivéssemos de

acordo com os animais e também entre nós.Ora esse acordo não existe. Disputamos sem

pre acerca do que um ouve ou sente, e é dife

rente do que o outro ouve ou sente; da mesma

forma estamos divididos a respeito da diversi

dade das imagens que nossos sentidos nos

comunicam. Em condições normais, nma

criança ouve, vê c sente de maneira diversa de

um homem de trinta anos, e este· diferentemente de um sexagenário. Em 1.lns os sentidos

estão mais embotados, em outros mais agudos.

Percebemos as coisas segundo as nossas con

dições ou o que elas nos parecem ser. E o que

nos parece é tão discutível, incerto, que temos

o direito de declarar que vemos a neve branca,

mas não o podemos assegurar. Com tão limitada certeza no ponto de partida, toda ciência

reduz-se a nada. E precisaremos demonstrar

que nossos sentidos se contradizem? Uma pin

tura que se diria em relevo à vista, parece

plana ao tato. O almíscar agrada ao olfato eofende o paladar. Há ervas e unguentos que

convêm a certas partes do corpo e irritam

outras. O mel é bom de gosto e feio de se ver.Bsses anéis em forma de pena que se usam em

brasões -   penas sem fim" - e cuja largura

o olho não sabe discernir, porquanto parecem

engrossar de um lado e afinar de outro, mesmose as enrolamos no dedo, ao tato se afiguram

regulares em todas as suas partes. Houveoutrora quem, a fim de alcançar maior volú

pia, se servisse de espelhos deformantes que

ampliam os objetos neles reOetidos. Qual d.e

seus sentidos lhe dava maior satisfação? A

vista, exagerando-os, ou o tato, diminuindoos? Silo nossos sentidos que comunicam às

coisas essas diversas condições, e terão elasuma só? O pão que comemos é unicamente

pão, e, no entanto, segundo o uso que dele

u ld.

unhas: os alimentos, infiltrando-se pelo corpotodo, perecem e mudam de natureza"  6 1 osuco que as raízes das árvores absorveram

transforma-se em tronco, folhas e frutos. O ar

é um só; entretanto a trombeta o traduz em mil

sons diversos. São, indago, os nossos sentidos

que mudam de maneira análoga as condiçõesdiversas das coisas ou são estas assim? Diante

desta dúvida, como julgaremos sua verdadeira

n.atureza? Há mais: se em caso de doença,devaneio ou sono, as coisas nos aparecem dife

rentes do que quando estamos com saúde, emplena posse de nós mesmos, é provável que em

nosso estado normal as vejamos de conformi

dade com as nossas condições_ Não as encara

mos então de uma maneira igualmente particular? Por que o moderado não as veria sob um

aspecto específico, como ocorre a quem o não

é? Quem tem o estômago perturbado acha

insosso o vinho; o são acha-o saboroso; o

sedento, excelente. Acomodando-se as coisas

às nossas condições, como estas se transfor

mam. Não conhecemos a verdade a seu respei

to, pois sempre as temos alteradas ou falsificadas pelos sentidos. Quand o o compasso, a

régua, o esquadro são falseados, todas as

medidas o são também, e os edifícios com tais

instrumentos construídos são forçosamente

defeituosos e pouco sólidos. Da mesma forma.

a insuficiência de nossos sentidos torna insufi

ciente tudo o que produzem: "Se na construção de um edificio, a régua usada fo i falseada,se o esquadro desvia da perpendicular, se o

nível falha, ocorre necessariamente ser todo o

edilicio viciado, fora de equilíbrio, sem graça.

nem boas proporções. Uma parte pode amea-

çar cair, e cair mesmo, por ter sido mal i r i ida. Assim, se não pudermos confiar inteira

mente nos sentidos, todos os julgamentos Kirâoilusórios"3 18 • Mas a quem caberá jutaar as

diferenças? Dizemos que quando se trata de

controvérsias religiosas seria necessário um

juiz neutro, isento de preconceito ou preferên

cia, o que não se encontra entre os cristãos. O

mesmo fato repete-se aqui. Se o juíz é umancião, não pode imparcialmente julgar o q ue

sente a mocidade, estando ele pr6prio interes

sado no debate. Se é um jovem, idêntico é ocaso; como idêntico o será se o juiz for doente,

3 • 7 Lucrécio.Ge ld.

Fora preciso alguém qúe nunca tivesse estadoem nenhum desses casos para que se pronun

ciasse sem prevenção por uma ou outra dasdiversas opiniões em presença. Ora, um juíz

desse tipo não existe.

Para aquilatar das aparências das coisas,precisaríamos de um instrumento aferidor;para controlar esse instrumento necessitaríamos de experiências e mais um instrumentopara comprová-las. E eis-nos em um impasse.Se os sentidos não podem decidir serem imper

fei tos, é preciso que a razão decida. Masnenhuma razão se aceitaria sem que outra lhedemonstrasse a validez; e eis-nos de volta ao

ponto de partida.

Nossa imaginação não se exerce diretamente sobre as coisas que estão fora de nós: élevada a elas pelos sentidos; estes não se ocupam do que lhes é estranho, mas somente do

que é objeto de suas impressões. E como aimaginação e a aparência que concebemos dascoisas não vêm destas, mas sím dos nossossentidos. e estas sensações siio variáveis, ooorre que quem julga pelas aparências julga poroutra coisa que não o próprio objeto.

Diremos que as impressões dos sentidos for

necem à alma uma imagem fiel dos objetos.Mas como podem a alma e os sentidos assegurar -se da exatidão da semelhança? Não estiloeles próprios em relação com os objetos?Quem não conhece Sócrates e lhe vê o retratonão pode dizer se é parecido. B mesmo quemquisesse julgar pelas aparências não o poderiafazer por todas. Elas se neutralizam, em verdade, pelas contradições e diferenças que apresentam, como no-lo mostra a experiência. Serápois somente por algumas, a serem escolhidas,que seu julgamento se exercerá. Mas, quandohouver escolhido uma; será necessário escolheroutra para verificar a primeira; uma terceiraem seguida para controlar a segunda e assimpor diante, indefmidamente. Em suma, nósmesmos e os objetos não temos existênciaconstante. Nós, nosso julgamento, e todas ascoisas mortais, seguimos uma corrente que nosleva sem cessar de volta ao ponto inicial. Desorte qu·e nada de certo se pode estabelecerentre nós mesmos e o que se situa fora de n6s,estando tanto o juiz como o julgado em perpétua transformação e movimento.

Nada conheceremos de nosso ser, porquetudo o que participa da natureza humana estásempre nascendo ou morrendo, em condiçõesque ó dão de nós uma aparência.mal definidae obscura; e se procuramos saber o que somosna realidade, é como se quiséssemos segurar aágua; quanto mais apertamos o que é íluido,

IVJVl'C 11"\.IUl'C.C

tanto mais deixamos escapar o que pegamos. ontem, amanhã assinalará a de hoje. Nada é creveu: "Vil e abjeta coisa o homem, se não se porque s6 pode ver com seus olhos e apreender

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Por isso, pelo fato de toda coisa estar sujeita àtransformação, a razão nada pode apreenderna sua busca do que realmente subsiste, poistudo, ou nasce para a existência e não está

inteiramente formado, ou começa a morrerantes de nascer.

Platão dizia que os corpos nunca têm existência; nascem somente. Considerava queHomero, fazendo do Oceano o pai dos deusese de Tétis a mãe, quisera mostrar que tudo está

sujeito a vicissitudes, transformações e variações perpétuas, opinião essa de todos os filóso

fos anteriores a Platão, com exceção deParmênides que negava o movimento dos corpos, caro ao Mestre; Pitágoras achava quetoda matéria é móvel e sujeita a mudanças; os

estóicos, que o tempo presente não existe eque, o que assim designamos, não pass.a do

ponto de junção do passado com o futuro.Heráclito dizia que nunca um homem atravessou duas vnes o mesmo rio; Epicarmo, quequem pediu um dia dinheiro emprestado não setorna devedor, e quem foi à noite convidadopara a refeição da manhã seguinte, e se apre·senta, chega sem ser convidado, porquantonão são mais os mesmos, e sim outros; "que

toda substância perecível não se encontra duas

vezes no mesmo estado, porque, por mudançasrepentinas e inapreensíveis, ora se evapora, ora

se condensa; vem e vai; de sorte que o que começa a nascer não se toma jamais um ser perfeito. Pode-se mesmo diz.er que seu nascimentonão termina e nem pára em um fim; desde sua

concepção, vai-se transformando e passandode um estad o O ltro. O germe humano, porexemplo, toma-se inicialmente, no ventre da

mãe, um fruto informe; em seguida uma criança nitidamente c-0nsiltuída; depois, ao ser parido, uma criança de peito, que se transformaem menino, e sucessivamente em adolescente,homem, homem maduro e ancião decrq,ito, de

maneira que a idade e a geração seguinte desfaz.em e estragam a geração que precede: "Otempo muda a face do mundo; uma ordem decoisas substitui outra, necessariamente. Nada

é estável, tudo se transforma e a natureza está

em contínua metamorfose"' 59 •

"E nós, tolos que somos, tememos uma

forma particular da morte quando já conhecemos tantas outras; pois, como ressalta Heráclito, não somente a morte do fogo engendra oar e a do ar engendra a água, como o podemosver de maneira mais evidente pelo que se verifica em nós, mas também a Oor da idade morreao chegar a velhice, a infância ao surgir aadolescência, etc. Hoje assinala a morte de

• * Lucréci.o.

imutável. Admitamos com efeito que sejamos epermaneçamos o que somos; como se explicaria que nos alegremos ou nos entristeçamoscom a mesma coisa segundo o momento?Como explicar que gostemos de coisas contrá·rias, que as detestemos, e as louvemos? Se

demonstramos sentimentos diferentes diante de

uma mesma coisa, é porque nosso pensamentose modifica, pois não é verossímil que semmudança em nós variem os sentimentos. O quea mudança afeta já não é mais o mesmo. Cessando de se·r idêntico a s i mesmo, cessa pura e

simplesmente de existir, torna-se outro. Portanto, os sentidos mentem e se enganam acercada natureza das coisas, quando tomam a apa rência pela realidade, e não sabem o que sejaesta.

"Que há então que seja realmente tal qual ovemos? Somente o que é eterno, isto é, o quenunca teve começo e não terá fim; o que não

muda sob o efeito do tempo, pois o tempo émóvel e surge como uma sombra arrastandoconsigo a matéria fluida, instável, sempre emtransformação. Ao tempo se aplicam estaspalavras: 'Antes ou depois', 'foi ou será', asquais já mostram à evidência que não se trata

de uma coisa que é, porque seria tolice dizerque é algo que ainda não éou já não é mais. Aidéia que temos de tempo exprime-se nestaspalavras: 'Presente, instante, agora', as quaisparecem constituir-lhe a base. Mas que a razão

se detenha nela e de imediato o conjunto rui;

desde o primeiro instante a razão o destrói,repartindo-o em passado e futuro e recusandose a aceitar qualquer outra div isão. O mesmose dá com a natureza que se mede; nada há

nela tampouco que permaneça, subsista. Tudoo de que se compõe foi ou está nascendo ou

morrendo. Eis por que seria pecado dit.er quesó Deus é, foi e será, porque são termos queimplicam mudanças, transformações, vicissitudes próprias ao que não dura e cuja existência não é contínua. Daí dever-se concluirque 'só Deus é', não segundo uma medidaqualquer do tempo, mas segundo a eternidadeimutável e fixa, que não é função do tempo enão está sujeita a variações. Nada O precedeu.,nada se Lhe seguirá, e nada é mais novo erecente; Ele é realmente, agora e sempre, o que

para Ele são a mesma coisa. Nada a não serEle existe verdadeiramente, de que se possadizer 'foi e será', porquanto Ele não teve começo e não terá run.''

A essa conclusão tão religiosa de um pagão,acrescentarei apenas para terminar tão longa eaborrecida digressão sobre assunto em verdadeinesgotável, isto que disse outro filósofo pagãoe que apresenta afinidade com o que se trans-

eleva acima da humanidade " Eis uma reflexão inspirada em bom sentimento e no desejode ser útil, e no entanto absurda. com efeitoimpossível e contrário à natureza. um punhado

maior do que -0 punho, uma braçada maior doque o braço, um passo maior do que a perna.Não pode tampouco ocorrer que o homem se

eleve acima de si mesmo e da humanidade,

com seus próprios meios. Elevar-se-á, se Deuslhe quiser dar a mio. Elevar-se-á sob a condição de abandonar seus meios de açio, derenunciar a eles e d.e se deixar erguer e elevarse unicamente pelos meios que lhe vêm do céu.é nossa fé cristã, e não a virtude est6ica dos

fdósofos, que pode operar essa divina e milagrosa metamorfose.

CAPITuLO XIII

e como julgar a morte

Quando julgamos do ânimo que alguêmdemonstra no momento da morte - o maisimportante por certo d vida humana - devemos levar em conta que raramente pensamoster chegado a nossa hora. Pou cas pessoas morrem convencidas de que estejam nos últimosinstantes, e nada há a cujo respeito a esperançanos iluda tanto. Não cessa de nos soprar aosouvidos: "outros estiveram bem pior, e nãomorreram; a coisa não ê tão desesperada C()mopensam; ademais, Deus fez outros milagres''.Disso se deduz que damos excessiva importância a nós mesmos; é como se tudo sofresse,de algum modo, com o nosso desaparecimento, e se apiedasse de n6s, pois nossa visãoperturbada faz-nos ver as coisas diferentes do

que realmente são. Parece-nos que elas se afastam de nós, quando nossos olhos équ e fraquejam. Assim, para os que viajam por mar, as

montanhas, os campos, as cidades, o céu e aterra também se· afiguram em movimento:"saímos do porto; a terra e o mar parecemafastar-se " 3

•0

• Quem jamais viu a velhice não

louvar o passado, não criticar o presente,imputando ao mundo e aos costumes de suaépoca sua miséria e sua tristeza? "Sacudindo acabeça calva, o velho lavrador suspira; compara o presente ao passado, louva a felicidade de

seu pai e fala sem cessar da moral dos temposantigos •  

Tudo vemos em relação a n6s mesmos, daídarmos à nossa morte grande importância,pensarmos que não pode ocorrer facilmente esem solene consulta aos astros: "Quantos deuses incomodados com a vida de um só

3 Virgílio.3

• 1 Lucrécio.

homem1" 3 92 E assim faumos porque nos estimamos demasiado: •tpois tanta ciência se perderia e tão grande prejuízo não seria objeto departicular atenção do destino? O desaparecimento de tão bela atma, e tão exemplar, não

valerá mais do que o da mais inútl1? Esta vida

que tantas outras sustenta, pela qual tantos se

interessam, com tantas funções e cargos, deverá ser deitada fora como qualquer outra insignificante?" Nenhum de oos imagina suficientemente que não passa de uma unidade. Daí

estas palavras que César dirigiu ao piloto deseu barco e mais inchadas de vaidade que omar grosso: "Se o cé\I se recusa a conduzir-teàs costas da Itália, segue sob meus auspi'cios.Se tens medo é porque ignoras quem o n d u z e s ~com o meu apoio, enfrenta sem receio a

tempestade"' 93 • Estas outras decorrem damesma idéia: "César julga enflm o perigo à altura de sua coragem: terão os deuses necessidade de tão grande esforço para me destruir?Jogam o furor do J.Jlar contra a minha frágilembatcação"3 • • . Assim também a loucura deum povo a exigir que durante l m ano inteiro o

sol se enlute por causa de sua morte:"participou igualmente da desgraça de Roma ecobriu-se com um véu de luto "3 • 6• E mil outros exemplos poderiam invocar-se da ilusão

do mundo a pensar que seus interesses perturbem os céus: "a aliança entre nós e o céu não

é de tal ordem que os astro s devlllll extinguirse com nossa morte"ª • 8

3 • 2 Sêncca.3 0 L .cano.3 4 ld .3

• • Virgílio.3

• • Plínio.