Modulo 1 AD - Drogas e Sociedade

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DA COERÇÃO À COESÃO ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UNIVERSIDADE ABERTA DO SUS – UNASUS FLORIANÓPOLIS UFSC 2014 Módulo Drogas e Sociedade

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Curso

Transcript of Modulo 1 AD - Drogas e Sociedade

  • DA COERO COESO

    LCOOL EOUTRAS DROGAS

    TTULO DA DESCRIO DO MATERIAL

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UNIVERSIDADE ABERTA DO SUS UNASUS

    FLORIANPOLISUFSC2014

    Biblioteca Virtual do Ministrio da Sadewww.saude.gov.br/bvs

    MduloDrogas e SociedadeGoverno

    Federal

  • GOVERNO FEDERALPresidncia da RepblicaMinistrio da SadeSecretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade (SGTES)Diretoria do Departamento de Gesto a Educao na SadeSecretaria Executiva da Universidade Aberto do SUS

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINAReitora Roselane NeckelVice-Reitora Lcia Helena PachecoPr-Reitor de Extenso Edison da Rosa

    CENTRO DE CINCIAS DA SADEDiretor Srgio Fernando Torres de FreitasVice-Diretora Isabela de Carlos Back GiulianoChefe do Departamento de Sade Pblica Alcides Milton da SilvaCoordenadora do Curso Ftima Bchele

    GRUPO GESTORAntonio Fernando BoingElza Berger Salema CoelhoKenya Schmidt ReibnitzSheila Rubia LindnerRosangela Goulart

    EQUIPE TCNICA DO MINISTRIO DA SADEAlexandre Medeiros de FigueiredoAna Carolina da ConceioDaniel Mrcio Pinheiro de LimaGraziella Barbosa BarreirosJaqueline Tavares de AssisMauro Pioli RehbeinMnica Diniz DuresPatrcia Santana SantosPollyanna Fausta Pimentel de MedeirosRoberto Tykanori Kinoshita

  • EQUIPE TCNICA DA UFSCDouglas KovaleskiFatima BcheleMarta VerdiRodrigo Otvio Moretti Pires Walter Ferreira de Oliveira

    ORGANIZAO DO MDULOWalter Ferreira de OliveiraHenrique Carneiro

    AUTORIAHenrique Carneiro (unidade 1)Francisco Cordeiro (unidade 2)

    REVISORAS INTERNASMaria Tais de Melo Renata de Cerqueira Campos

    REVISORAS FINAISGraziella Barbosa BarreirosJaqueline Tavares de AssisMarcia Aparecida Ferreira de Oliveira

    COORDENAO DE TUTORIAFernanda Martinhago

    GESTO DE MDIASMarcelo Capill

    EQUIPE DE PRODUO DE MATERIALCoordenao Geral da Equipe Marialice de MoraesCoordenao de Produo de Material Andreia Mara FialaDesign Instrucional Master Jimena de Mello HerediaDesign Instrucional Agnes SanfeliciDesign Grfico Fabrcio SawczenDesign de Capa Rafaella Volkmann PaschoalProjeto Editorial Fabrcio Sawczen

    REVISOReviso Ortogrfica Flvia GoulartReviso ABNT Jssica Natlia de Souza dos Santos

  • MD S

    FLORIANPOLISFLORIANPFLORIANPFLORIANPFFFF OOOORRRR AAAANNNNUFSC2014

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UNIVERSIDADE ABERTA DO SUS UNASUS

    DA COERO COESODA COERO COESO

  • Catalogao elaborada na fonte

    C289a Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Cincias da Sade. Curso de Atualizao em lcool e Outras Drogas, da Coero Coeso.

    lcool e sociedade [Recurso eletrnico] / Universidade Federal de Santa Catarina; Walter Ferreira de Oliveira; Henrique Carneiro [orgs.]. - Florianpolis : Departamento de Sade Pblica/UFSC, 2014.

    63p.: il.,grafs.

    Modo de acesso: https://unasus.ufsc.br/alcooleoutrasdrogas/

    Contedo do mdulo: O uso de drogas na sociedade. Representao social do uso de drogas, do usurio e do cuidado.Inclui bibliografiaISBN:

    1. Sade mental. 2. lcool. 3. Drogas. 4. Sistema nico de Sade. 5. Educao a distncia. I.UFSC. II. Oliveira, Walter Ferreira de. III. Carneiro, Henrique. IV. Cordeiro, Francisco. V. Ttulo.

    CDU 616.89

  • Abertura do MduloCaro aluno,

    Este Mdulo abre o curso lcool e Drogas, construdo para provocar reflexes sobre crenas e valores que determinam o comportamento de usurios de drogas e agentes do cuidado (principalmente trabalha-dores da sade) e que interferem diretamente na relao do cuidado (ou do descuido).

    Neste mdulo, buscamos reafirmar a complexidade do fenmeno do uso de drogas a partir de uma perspectiva histrica e antropolgica, apon-tando a banalizao, fragilidade e superficialidade de grande parte das avaliaes, propostas e intervenes, o que tem resultado em uma foca-lizao no consumo problemtico, no comportamento abusivo, levando muitas vezes a negligenciar o sujeito em sofrimento e a generaliz-lo ao considerar que todo consumidor necessita ateno de sade.

    Tambm temos a inteno de tir-lo do foco concreto de suas ativida-des no mbito de um atendimento de sade mais rotineiro e lev-lo a refletir sobre os contextos mais gerais que envolvem os diferentes usos de drogas e os seus significados em outros momentos histricos e em outras sociedades.

    As situaes complexas que envolvem os consumos das mais diversas substncias psicoativas representam no s os casos problemticos, mas formas integradas e no abusivas, assim como usos muito dife-renciados com significados culturais e at religiosos. O enfoque menos reducionista do assunto deve comear por abdicar de se referir dro-ga no singular. Existem muitas drogas e muitos usos diferenciados, e o atual modelo vigente de distino entre substncias lcitas e ilci-tas vem sendo objeto de enorme questionamento.

  • A abrangncia histrica e antropolgica da questo importante para a compreenso da natureza da controvrsia hoje colocado em escala global sobre o proibicionismo, a legalizao e as formas de regulamen-tao em debate.

    O aprofundamento dos significados sociais e culturais dos problemas de sade pblica deve ser um instrumento de aperfeioamento profis-sional e um meio de aprimorar a compreenso das questes colocadas diante do uso e do abuso de drogas.

    A atividade de agente de sade exige coragem para enfrentar estes desafios intelectuais e profissionais!

    Bom estudo!

    Walter Ferreira de Oliveira Henrique Carneiro

  • Objetivo do MduloApresentar a construo histrica do uso de drogas em diferentes so-ciedades e suas distintas repercusses na construo da poltica e na representao social do uso de drogas e do usurio, abrangendo os usos teraputicos, sagrados, recreacionais e de aumento de desempe-nho e suas representaes histricas.

    Problematizar aes que envolvem respeito, acolhimento, vnculo e confiana entre usurios e demonstrar a importncia da atuao in-terdisciplinar.

    Carga Horria15 horas.

  • Sumrio

    Unidade 1 O uso de drogas na sociedade ....111.1. Introduo .................................................................................................... 111.2. Os aspectos mltiplos dos usos de drogas psicoativas

    na Histria ....................................................................................................131.3. O uso de drogas nas sociedades ............................................................151.4. A histria das drogas no Brasil ............................................................201.5. O incio do proibicionismo ...................................................................231.6. Vcio e compulsividade como mal-estar da civilizao

    contempornea ...........................................................................................261.7. Resumo da unidade ..................................................................................321.8. Leituras complementares ......................................................................33

    Unidade 2 Representao social do uso de drogas, do usurio e do cuidado ....... 35

    2.1. Introduo ..................................................................................................352.2. Representaes sociais sobre uso de substncias

    psicoativas e pessoas que usam substncias psicoativas .............382.2.1. Representaes sociais sobre o cuidado a pessoas

    que usam substncias psicoativas ...............................................................462.3. Resumo da unidade .................................................................................522.4. Leituras complementares ......................................................................53

    Encerramento do mdulo .................................... 54Referncias ..................................................................56Minicurrculo ..............................................................61

  • 01O uso de drogas na sociedade

  • O uso de drogas na sociedade

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    Unidade 1 O uso de drogas na sociedadeAo final desta unidade, voc ser capaz de:

    analisar a construo histrica do uso de drogas na sociedade e suas diferentes repercusses na construo poltica.

    1.1. IntroduoO uso de drogas ou substncias psicoativas (SPA) condio histrica estruturante da maior parte das sociedades e as formas de consumo problemtico ou abusivo so menos frequentes do que os usos para interaes sociais construtivas e integradas.

    Atualmente, a maioria dos consumidores de drogas, lcitas ou ilcitas, o faz de forma so-cialmente integrada, sem uso problemtico e sem querer abandonar o seu hbito. Isso ocorre com a maioria dos usurios de lcool e maco-nha. Mesmo o tabaco, que um grande nmero de pessoas quer deixar de usar, para muitos um hbito apreciado, ainda que conheam suas consequncias danosas para a sade. Drogas de maior impacto de danos e de maior incidncia de usurios compulsivos, como a cocana no deixam de ter tambm usurios ocasionais. Pesquisas1 demonstram que menos de um sexto das pessoas que experimentam cocana se tornam dependentes.

    igualmente importante ressaltar que no se observa um padro de pessoas e contextos que nos autoriza a uniformizar a proposta de cuidado. Ou seja, aquelas pessoas que apresentam problemas/neces-sidades relacionadas ao consumo de lcool e outras drogas no so

    1 Pesquisa nos EUA mos-trou que do total das pes-soas que experimentaram lcool, cerca de 15% se torna dependente, e de cocana 16%, in Wagner, F. A. e An-thony, J. C. From first drug use to drug dependence; de-velopmental periods of risk for dependence upon can-nabis, cocaine, and alcohol. Neuropsychopharmaco-logy, 26:479-488, 2002.

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    iguais, nem esto em contextos idnticos ou sequer respondem da mesma forma aos que lhes ofertado. Por apresentarem esses proble-mas ou necessidades no perdem sua natural singularidade. Antes, o que se tem observado, que exatamente esta pluralidade, esta sin-gularidade dos sujeitos o terreno mais frtil para fomentar cuidado adequado e efetivo. Assim, h que trabalhar a superao da ideia de que o cuidado adequado e efetivo deve ser pautado na internao fe-chada, na conteno e na tutela. importante tambm a discusso de que a abstinncia compulsria no deva ser uma condio sine qua non para o cuidado e para o ganho de qualidade de vida dos usurios. Neste sentido, importante discutir questes relativas autonomia e organizao poltica dos usurios, searas pouco exploradas em nos-sos espaos de cuidado.

    Buscaremos tambm analisar aqui as consequncias do entendimento de que pessoas com problemas relacionados ao consumo de lcool e outras drogas perdem inevitavelmente a capacidade de conduzir suas prprias vidas de forma adequada, que se tornam impreterivelmente escravos, dominados pela droga, em um movimento de inverso onde a coisa (droga) torna-se sujeito e o sujeito (pessoa que usa droga) coisificado. Tal entendimento sustenta uma atuao a partir da qual as pessoas pre-cisariam ser tuteladas ou contidas. Essa posio constitui um retrocesso histrico frente Reforma Psiquitrica e ao cuidado implantado.

    O consumidor de drogas, mesmo em situao problemti-ca, no deixa de ser um cidado com todos os seus direi-tos. Certamente, da alada da Sade Pblica cuidar das pessoas com necessidades decorrentes do uso de lcool e outras drogas sem, contudo, centrar sua atuao na con-dio moral ou jurdica deste consumo.

  • O uso de drogas na sociedade

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    1.2. Os aspectos mltiplos dos usos de dro-gas psicoativas na HistriaA humanidade na Pr-Histria dedicava-se caa e coleta e nesse processo foram descobertas as plantas teis para a humanidade. Essa utilidade estava no s nas que podiam alimentar ou fabricar arte-fatos, mas tambm nas que tinham propriedades farmacolgicas. As drogas surgiram do conhecimento da flora por parte dos povos pr--histricos que buscavam no apenas se alimentar, mas tambm obter efeitos teis no combate dor, no aumento do estmulo para as ativi-dades e na obteno de estados de xtase que se tornaram manifesta-es do sagrado.

    A resina da papoula, que o pio, servia para neutralizar as dores, a tosse, a febre e a diarreia. As flores da cannabis sativa, nome cientfico da maconha, tambm eram usadas para fins medicinais, como seda-o, contra espasmos, para amenizao da ansiedade e tambm para se obter estados de meditao e tranquilidade.

    Com a agricultura, que foi desenvolvida h cerca de dez mil anos atrs, durante a chamada revoluo neoltica, as plantas teis passaram a ser plantadas e selecionadas nas suas melhores variedades. Esse o significado da expresso latina sativa que quer dizer cultivada.

    A importncia das substncias psicoativas (SPA) , portan-to, inestimvel e os psicofrmacos no apenas cumprem o papel de remdios excepcionais em todas as vertentes das medicinas tradicionais como caracterizam prticas religiosas de inmeros povos.

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    Quando chegou poca moderna, com as grandes navegaes dos s-culos XV e XVI que ligaram os continentes do mundo, as drogas foram alguns dos principais produtos buscados no Oriente e nas Amricas. As especiarias, o pio, o acar, o tabaco, o caf e outros produtos se tornaram consumo massivo, marcando a era mercantil moderna da unificao planetria. No sculo XVII tambm se deu a grande expan-so do lcool destilado assim como do tabaco, das bebidas excitantes e de outras substncias.

    Para se compreender a importncia econmica, cultural e cientfica das drogas indispensvel um olhar histrico que desvende os ne-xos e os interesses que buscam regulamentar socialmente o consumo destas substncias que assumem importantes papis culturais como veculo de devoo, de cura, de identidades tnicas, de gnero e na-cionais, entre outras. Os povos se definem, assim, por suas predilees alimentares e de drogas. Mediterrneos europeus tomam vinho, euro-peus do norte tomam cerveja, japoneses tomam saqu e esses hbitos fazem parte da cultura de cada povo.

    As bebidas fermentadas foram algumas das drogas mais antigas des-cobertas pela humanidade. O processo de fermentao, pela ao de microfungos chamados leveduras, permitiu a fabricao no s das bebidas alcolicas, como do po e dos produtos lcteos fermentados, como iogurte e queijos. Cada regio do mundo desenvolveu o cultivo de alguns alimentos bsicos, entre os quais os cereais.

    O arroz na sia, o milho nas Amricas e o trigo e a cevada na Europa e Oriente Mdio foram os alimentos mais importantes e tambm a fonte de drogas psicoativas, as cervejas de cereais.

    Os vinhos so os fermentados de frutas e as cervejas os fermenta-dos de cereais, assim desenvolveram-se as culturas indgenas com o cauim de mandioca no Brasil, a chicha de milho nos Andes e o pulque de Agave no Mxico, o qual, destilado, se torna a tequila.

  • O uso de drogas na sociedade

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    As bebidas fermentadas eram alimento, um po lquido, e tambm uma forma de se obter uma bebida bem mais potvel do que a gua corrente, quase sempre contaminada de micro-organismos daninhos. Os usos das cervejas fizeram delas produtos considerados divinos. Alm de alimentarem, deixavam o esprito alegre e promoviam o en-contro festivo da comunidade, servindo como um lubrificante social, na expresso do socilogo francs mile Durkheim.

    Por isso, na Europa do Norte, especialmente na Alemanha e Holanda, a cerveja foi durante muitos sculos a primeira refeio do dia, ou seja, o caf da manh era com uma cerveja caseira em que se acrescenta-vam vrios produtos suplementares, como ervas, temperos, restos de po, e outros. A sua denominao j mostra a crena na sua vitalidade, pois cerveja uma palavra que vem do latim cerevisia, que significa a fora do cereal.

    Alm dos fermentados, obtidos de quase toda matria orgnica, as plantas com usos medicinais foram as drogas mais importantes desde pocas pr-histricas, por fornecerem meios de cura, analgesia e con-solo das dores, enfermidades e desconfortos.

    Os usos teraputicos, devocionais, festivos, estimulantes, celebrat-rios ou recreacionais de bebidas e outras drogas se enraizou nas cul-turas tnicas e nacionais, elevando bebidas condio de smbolos de identidade nacional, como o caso do braso nacional brasileiro que contm os ramos floridos do tabaco e frutificados do caf.

    1.3. O uso de drogas nas sociedadesExiste uma universalidade dos usos de psicoativos desde a pr-hist-ria e sua identificao, localizao, preparo e consumo so caracters-ticas estruturantes das formas de sobrevivncia a partir da seleo da flora para identificao de plantas teis.

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    H uma grande importncia das drogas tambm na produo dos es-tados de xtase e devoo em diversas tradies religiosas. Essa natu-reza sagrada dos usos tradicionais e ritualizados em diversas culturas pode ser exemplificada pela atribuio de uma origem divina tanto ao vinho como cerveja. O vinho foi encarnado nas figuras dos deuses Dionsio na Grcia e Baco no mundo romano, e seu culto associa-se ao culto da deusa Demter ou Ceres, da agricultura e dos cereais. As cervejas eram o sangue dos deuses na mitologia germnica, e a huma-nidade as teria conhecido a partir dessa origem divina.

    Em todos os continentes vamos encontrar cultos e prticas religiosas e de cura ligados utilizao, respectivamente, do tabaco, da maconha, do ch, dos cogumelos, dos cactos, do cip ayahuasca, etc.

    A medicina sempre teve nas drogas alguns dos seus mais eficientes recursos. Alm da dieta e da cirurgia, a farmcia o instrumento fun-damental da cura. O repertrio da natureza forneceu o consolo para os sofrimentos, o tratamento das doenas e das leses.

    Das plantas medicinais, talvez a mais til tenha sido a papoula (Pa-paver somniferum) que tem uma resina extrada do seu bulbo que o pio, usado como um remdio milenar por suas virtudes analgsicas, antitussgenas, antifebris e antidiarreicas.

    A moderao era uma das virtudes mais importantes, uma virtude cardeal, ao lado da prudncia, da coragem e da justia. Todas essas vir-tudes eram consideradas como o ponto de equilbrio entre o excesso e a carncia. Ambos, excesso e carncia, eram mal vistos, pois saiam da justa medida que deveria governar todas as aes humanas no sentido do equilbrio e do caminho do meio.

    O modelo clssico de controle da ingesto das drogas (as-sim como dos alimentos, do sexo e outras atividades) era o da temperana. Essa palavra significa moderao.

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    Plato, por exemplo, em seu livro As Leis, considerava que o vinho era til para aferir o carter das pessoas. Quem soubesse beber ade-quadamente, poderia merecer a confiana pblica, enquanto os que se excediam perdiam sua reputao e credibilidade. Da a noo presente na Antiguidade de que no vinho se encontra a verdade, como no pro-vrbio In vino, veritas No vinho, a verdade.

    Essa tica clssica de se usar a moderao em tudo e de se evitar tanto o excesso como a abstinncia, no s das bebidas e alimentos, mas em todas as coisas, foi um ensinamento duradouro que influenciou toda a histria da filosofia. Voltaire, por exemplo, o filsofo francs do sculo XVIII, afirmou que preciso ter moderao em tudo, especialmente na moderao. Uma moderao exagerada deixa de ser moderao.

    Por isso, a abstinncia, ou seja, a noo de que preciso evitar todo e qualquer consumo alcolico, foi uma atitude muito rara e que s floresceu em sociedades muito repressivas e militarizadas, como foi o caso dos espartanos, na Grcia antiga, mas, em geral, a maioria das sociedades admitiu o uso de bebidas e de drogas, combatendo apenas os seus excessos.

    As drogas foram usadas tradicionalmente com controles sociais que determinavam os locais e os momentos adequados para o seu consu-mo e muito poucas foram as sociedades que praticaram a abstinncia. A maior parte das civilizaes praticava e defendia o ideal da tempe-rana, que significa moderao, condenando assim, no as drogas e bebidas em si, mas o seu uso excessivo.

    O comrcio do vinho e de muitas plantas psicoativas teis, como o pio das papoulas, por exemplo, vai ser uma atividade muito impor-tante na histria econmica de muitos pases.

    Essa importncia econmica das drogas vai crescer especialmente na histria moderna, quando os ciclos mercantis das especiarias, do a-car, das bebidas alcolicas fermentadas e destiladas, dos excitantes

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    cafenicos (caf, ch, chocolate, chimarro, guaran) e do pio e do ta-baco vo ser eixos articuladores da atividade comercial e da obteno de rendas fiscais pelos estados na tributao desses produtos.

    A prpria era das navegaes, com a descoberta da Amrica por Co-lombo em 1492 e do Brasil por Cabral em 1500, foi impulsionada pela busca dessas drogas, como as especiarias asiticas. Mesmo sem en-contrar o caminho da sia, Colombo descobriu um continente que iria se especializar no fornecimento de drogas para o mundo, constituindo verdadeiros ciclos econmicos em torno do comrcio do acar, da aguardente, do tabaco, do caf, etc.

    No perodo da revoluo industrial, iniciada na Inglaterra, o consumo popular de excitantes como o ch e o caf se expandiu muito por au-xiliarem o desempenho laboral e mesmo dos soldados. A partir do s-culo XIX, alm dos extratos vegetais passaram a existir no mercado as substncias puras, os princpios ativos extrados das plantas em labo-ratrios como a morfina do pio, a cocana da coca e a cafena do caf.

    Os usos militares de morfina como analgsico levaram a um aumento dos consumidores dependentes. Da mesma forma, a maior disponibi-lidade de lcool destilado criou um padro de ingesto alcolica mais forte do que as culturas anteriores dos fermentados, aumentando os casos de consumo agudo e tambm padres de consumo crnico, que passaram a ser descritos como alcoolismo.

    Outros produtos, como tnicos, elixires e xaropes tambm inundaram o mercado de bebidas no alcolicas, mas com acar e excitantes como cafena e cocana. A mais conhecida dessas bebidas juntou em seu nome e em sua frmula as duas drogas estimulantes mais famosas da Amrica e da frica: a folha de coca e a noz de cola.

    No sculo XX, o nmero de molculas sintticas psicoativas aumen-tou para muitas centenas. Surgiu todo um novo campo de experimen-taes ao redor dos chamados psicodlicos, dos quais o dietilamida

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    do cido lisrgico (LSD), descoberto acidentalmente em 1943, foi o mais famoso. Essa substncia, juntamente com a mescalina do cacto - peiote e a psilocibina dos cogumelos foi til em diversos processos teraputicos e de expanso da criatividade, sendo usada por artistas, filsofos e msticos, dos quais o mais famosos foi o escritor ingls Al-dous Huxley, que escreveu o livro As portas da percepo, a respeito de sua experincia com tais substncias que ele ajudou a batizar pelo nome de psicodlicos (que manifestam o esprito).

    O professor de psicologia de Harvard, Timothy Leary foi um apologis-ta do uso dos psicodlicos, sofrendo demisso, perseguio e priso por esse motivo. O movimento psicodlico levou toda uma gerao experimentao, mas causou um pnico moral que fez o governo estadunidense proibir o LSD em 1966.

    No final do sculo XX, outra droga se tornou de moda. O metileno-dioximetanfetamina MDMA, conhecido como ecstasy, foi usado ini-cialmente em psicoterapia e depois, com a proibio, em 1985, passou a ser popular o uso em festas com msica eletrnica. Mais recente-mente, essa substncia vem sendo usada nos Estados Unidos da Am-rica (EUA) para o tratamento do estresse ps-traumtico, por seus efeitos chamados de empatognicos, ou seja, produtores de simpatia mtua entre pessoas.

    Muitas novas substncias so criadas a cada ano, as chamadas de-signer drugs, grande parte em laboratrios clandestinos, muitas vezes buscando substncias de efeitos anlogos as que so proibidas. A ine-xistncia de um controle pblico torna o uso de drogas sintticas uma loteria, pois nunca se sabe exatamente o que elas contm, havendo adulterantes muitas vezes mais perigosos do que a prpria droga que se supe consumir, com dosagens tambm nunca calculveis de for-ma precisa.

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    1.4. A histria das drogas no Brasil A histria das drogas no Brasil comea com o uso pelos indgenas de muitas plantas medicinais e psicoativas, incluindo o tabaco, e dos cauins, fermentados de mandioca e de frutas. A ipecacuanha, a copa-ba, a quina, a jurema, so algumas dessas plantas de usos tradicionais.

    O grande impacto do contato com os europeus foi a especializao do Brasil no plantio e processamento das drogas que fizeram os ciclos eco-nmicos da histria brasileira: cana-de-acar, tabaco, e caf. Produtos de monocultura destinados ao abastecimento do mercado metropolitano.

    A constituio do chamado sistema sul-atlntico de comrcio triangu-lar foi um meio dos imprios europeus obterem renda plantando culti-vos alimentares e psicoativos nas Amricas com o uso da mo-de-obra escrava tirada da frica. Mais de dez milhes de seres humanos trazi-dos do continente africano para as plantaes e engenhos americanos de cana-de-acar, as fazendas de caf ou de tabaco. O prprio tabaco e a aguardente serviam de moeda de troca para o escambo na frica entre esses produtos e os escravos que iriam continuar a produzi-los.

    A ocupao holandesa do nordeste brasileiro e de Angola objetivava o controle desse mercado, de acar e de escravos, para esse imprio na-val que j dominava o caf, o tabaco e o lcool destilado. As guerras co-merciais modernas entre os estados europeus visaram o controle desses fluxos de produtos psicoativos, desde o vinho do Porto ao ch da China, do caf brasileiro ao tabaco cubano, do pio indiano ao rum do Caribe.

    Enquanto o tabaco indgena se tornava uma droga de difuso global, por meio de sua consagrao entre soldados e religiosos, outras de m-bito mais regional, ficaram restritas na sua circulao. A erva-mate (Ylex paraguaiensis), por exemplo, se tornou um importante produto das Misses jesuticas e depois do circuito comercial do Paran, man-tendo at hoje uma enorme influncia no sul do Brasil, no Paraguai e na bacia do Rio da Prata.

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    O guaran, conhecido tradicionalmente pelos ndios Maus, do Rio Negro, tem uso como estimulante restrito regio Norte, embora seu uso como aromatizante e denominador de refrigerantes o tenha torna-do uma bebida tpica do Brasil. J houve at um senador amazonense que quis trocar o tabaco no braso nacional pelo guaran!

    Drogas de uso predominante entre os escravos, como a maconha, foram perseguidas pelos senhores de escravos, dando origem a sua estigmatizao como substncia dos afrodescendentes, dos pobres e dos moradores de favelas. Mesmo havendo um uso farmacutico dos cigarros de maconha para asma e muitas outras afeces, estes eram importados da Europa e chamados de cnhamo indiano. O uso popular da maconha, termo que vem do idioma africano quimbundo da regio Banto de Angola, se disseminou em camadas populares das grandes cidades e reas do interior do pas e s veio a ser proibida nacionalmente a partir do ano de 1932, embora desde o sculo XIX j houvesse registro de perseguies ao pito de pango dos escravos.

    A maconha tambm teve um uso industrial muito importante como matria-prima de tecidos, papel e leo para iluminao. As cordas e as velas dos barcos tambm eram de fibra de cnhamo, o nome da maconha industrial. Esse uso foi substitudo em quase todo o mundo no sculo XX pelo papel de celulose e pelos tecidos de fibras sintticas, que foram setores industriais que tambm fizeram presso pela inter-dio do cnhamo.

    Um uso tradicional do xamanismo indgena, de misturar duas plantas, um cip, o jagube, e uma folha, a chacrona, numa bebida de efeito alucingeno conhecida no Brasil pelo nome de origem quchua aya-huasca, tambm foi adaptado e desenvolvido em religies mestias e sincrticas. Surgidas na Amaznia no incio do sculo XX, se propa-garam depois para as grandes cidades e inclusive para outros pases sob a denominao de Santo Daime. O uso religioso da ayahuasca foi reconhecido pelo Estado brasileiro como direito de prtica religiosa e protegido por meio de tombamento como patrimnio imaterial.

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    Saiba Mais

    Conhea mais sobre a ayahuasca no Brasil acessando o site do Ncleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos. Disponvel em: http://bit.ly/L6MV4d.

    As drogas mais importantes na histria econmica, social e cultural brasileira foram e ainda so, certamente, as bebidas alcolicas, espe-cialmente a cachaa e a cerveja, e o tabaco e o caf. O Brasil se tornou o maior produtor mundial de caf, posio que mantm at hoje. Essa especializao econmica levou a desastres, como em 1929, quando ocorreu a crise econmica mundial e as safras foram queimadas.

    O tabaco tambm ocupou um importante papel na histria econmica nacional e vrias regies do pas, como o sul da Bahia e regies do Rio Grande do Sul se especializaram nesse cultivo que tambm faz do pas o maior exportador mundial.

    Mais recentemente, cresceu enormemente o mercado da indstria psico-farmacutica com um uso muitas vezes tambm inadequado e excessivo.

    As bebidas alcolicas formam um produto importante dos engenhos, na forma da aguardente denominada cachaa e, a partir do sculo XIX, comeou a fabricao nacional de cervejas. Hoje essa indstria se tornou to grande que constitui a maior empresa brasileira e seu proprietrio o homem mais rico do pas!

  • O uso de drogas na sociedade

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    1.5. O incio do proibicionismo O proibicionismo foi a adoo de medidas de interdio e represso do consumo de certas substncias psicoativas que passou a ocorrer desde o final do sculo XIX no mundo ocidental, especialmente nos Estados Unidos e que, a partir do sculo XX, se tornou uma poltica mundial por meio de acordos e tratados internacionais.

    Algumas drogas so mais relacionadas s situaes problemticas, tais como o uso de lcool e acidentes automobilsticos ou situaes de vio-lncia domstica.

    Na tentativa de amenizar os males do uso de drogas e para melhor controlar a disciplina do trabalho nas fbricas e no lazer, houve ini-ciativas de proibio dessas drogas em alguns pases desde o incio do sculo XX. A mais conhecida foi a Lei Seca nos EUA entre 1920 e 1933. Por meio de uma emenda constitucional proibiram-se todas as bebidas alcolicas no pas e at mesmo o cigarro em alguns Estados.

    Os resultados foram pssimos. O controle do mercado passou para mos de criminosos, levando a um aumento da violncia; a qualidade dos produtos deixou de ser fiscalizada pelo Estado, levando a adulte-raes e mortes por envenenamento e a renda enorme desse comrcio passou a circular clandestinamente, sem pagamento de impostos, en-riquecendo grupos criminosos. Isso levou ao crescimento das mfias, como a de Al Capone.

    A sociedade reagiu com protestos exigindo o direito de se tomar uma cerveja e, finalmente, em 1933, essa lei foi revogada e as bebidas e o cigarro voltaram a ter uma produo e um comrcio regulamentados e taxados pelo Estado.

    Outras substncias, entretanto, foram proibidas no lugar das bebidas, e o mesmo problema voltou a ocorrer com os derivados da maconha, da coca e do pio.

  • Unidade 1

    Henrique Carneiro24

    Na poca da guerra do Vietn, nos anos de 1970, o governo Nixon, esten-deu a denominada guerra s drogas a todo o mundo, criando, em escala mundial, os mesmo problemas que a proibio do lcool j causara.

    Com a proibio, grupos criminosos se apossaram do controle desse mercado, pois os riscos eram compensados pelo enorme aumento da lucratividade. Com a ausncia da regulamentao estatal houve muita adulterao e contaminao das drogas, devido ausncia de qual-quer vigilncia sanitria.

    A ausncia do Estado tambm acarretou que todos os conflitos en-tre traficantes ou cobranas de dvidas de consumidores passassem a ser resolvidos pela violncia. O aprisionamento em massa por crimes ligados ao consumo ou trfico de drogas causou um inchamento do sistema penitencirio, agravando a superlotao e colocando pessoas sem vnculos com redes criminosas ou prticas de violncia em conta-to com o crime organizado passando, inclusive, a recrut-las.

    Na poca do governo Ronald Reagan, nos EUA, a guerra s drogas se tornou uma estratgia de dominao geopoltica continental, levando a intervenes como a captura do presidente do Panam, Noriega, ao Plano Colmbia, que foi uma enorme ajuda militar a esse pas, e a uma exigncia de erradicao de todos os cultivos de coca, fumigados com agentes her-bicidas e fungos transgnicos que causaram crises ecolgicas na Colm-bia e no Peru que afetaram camponeses e cultivos tradicionais.

    A situao insustentvel da proibio e suas consequncias sociais vm levando inmeros setores da sociedade internacional a defende-rem a legalizao das drogas. Vrios ex-presidentes latino-americanos (inclusive o brasileiro Fernando Henrique Cardoso) e atuais mandat-rios passaram a propor o fim da guerra s drogas. A OEA (Organiza-o dos Estados Americanos) tambm passou a indicar aos seus pases membros a adoo de polticas de despenalizao do consumo pessoal de drogas atualmente ainda ilcitas e a Suprema Corte argentina jul-gou inconstitucional sancionar penalmente o uso de drogas.

  • O uso de drogas na sociedade

    Mdulo Drogas e Sociedade 25

    Mais recentemente, aps a aprovao do uso medicinal da Cannabis em 18 estados norte-americanos e a legalizao plena em dois (Colo-rado e Washington) aps plebiscito em 2012, acelerou-se o questio-namento do sistema vigente e o presidente Pepe Mujica, do Uruguai, passou a defender a legalizao e estatizao da produo e do co-mrcio de maconha no pas. O ex-presidente do Mxico, Vicente Fox, chegou a defender que o seu pas se torne um exportador legal de ma-conha e declarou que ele prprio, como fazendeiro, gostaria tambm de plantar e participar desse negcio.

    O negcio da maconha teraputica legal na Califrnia, por exemplo, j maior que qualquer outro agronegcio e grandes executivos e em-presrios esto em vias de passar a investir no mercado de maconha, que tende cada vez mais a se tornar um produto normal do comrcio, como uma commodity (mercadorias cotadas e negociadas em bolsas).

    Vivemos o momento histrico de mudana de um para-digma, quando o velho sistema ainda no foi desarticu-lado, mas j demonstra sua insustentabilidade. Por outro lado, as novas formas de regulamentao internacional ainda no esto definidas e objeto de disputas qual ser o tipo de empresa, se pblicas ou privadas, com qual sis-tema de tributao e, principalmente, com qual novo qua-dro internacional de tratados e normas reguladoras.

  • Unidade 1

    Henrique Carneiro26

    Link

    Um dos levantamentos mais amplos do consumo de drogas pelos estudantes do ensino fundamental e m-dio o realizado pelo CEBRID, com entrevistas an-nimas de mais de 50 mil estudantes. O ltimo levan-tamento, de 2010, pode ser consultado no link: http://bit.ly/1f9pTTy.

    1.6. Vcio e compulsividade como mal-es-tar da civilizao contemporneaA noo, hoje comum, de vcio ligado s drogas caracterstica de uma poca mercantil e industrial capitalista, na qual a compulsividade se tornou a regra, com uma incitao ao consumo excessivo, de drogas, de alimentos e de outras condutas passveis de excessos, como o jogo, o uso de TV e computadores e at mesmo o uso obsessivo de celulares, por meio da promoo sistemtica do consumismo pela propaganda.

    O resultado uma crise civilizatria, produzindo comportamentos aditivos (que criam dependncia) em relao a objetos e bens de con-sumo. Refrigerantes, por exemplo, so consumidos abusivamente, causando problemas pelo excesso de acar e de sdio. A OMS (Or-ganizao Mundial da Sade) calcula em cerca de 180 mil o nmero de mortos a cada ano em todo o mundo por doenas causadas pelo excesso do acar dos refrigerantes!

    Existe, portanto, dependncia de um uso excessivo de TV, da Internet, de jogos, de fazer compras, e outros, alm dos usos exagerados de drogas e alimentos. O vcio, como comportamento de consumo compulsivo, no uma ex-clusividade das drogas, mas afeta quase todas as merca-dorias e hbitos que podem se tornar obsessivos, compul-sivos e problemticos.

  • O uso de drogas na sociedade

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    Existem diferentes representaes sociais do uso de drogas e do usu-rio na atualidade, que exercem sua influncia no processo de cuidar e na complexidade deste cuidado. Drogas psicoativas circulam em trs circuitos distintos: drogas da indstria farmacutica, drogas recreacio-nais lcitas e drogas recreacionais ilcitas.

    As diferenas entre estes trs tipos de circulao se refletem nas suas representaes. O consumidor de maconha, por exemplo, taxado de criminoso, mesmo que faa um uso ocasional. Mas o consumidor de ta-baco, que em muitos aspectos provoca mais danos sade do que a ma-conha, visto apenas como algum que precisa de sua droga e que, no mximo, pode incomodar aos outros se consumir em lugares fechados e pblicos. O alcoolista visto como um doente, mas o apreciador de vinho, cerveja ou usque considerado um gastrnomo ou um gourmet.

    Quem usa remdios psicoativos da indstria farmacutica, mesmo que excessivamente, no visto como um drogado, mas algum que toma remdios.

    As novas drogas sintticas trouxeram novas conquistas, mas tam-bm novos usos problemticos, no s das substncias proibidas, mas tambm dos medicamentos da indstria farmacutica, muitas vezes consumidos em excesso, como o caso atual dos benzodiazepnicos (remdios calmantes), das anfetaminas (usadas tanto como emagre-cedores, como para uso infantil e juvenil no tratamento de supostos casos de Transtorno do Dficit de Ateno e Hiperatividade-TDAH) ou dos antidepressivos receitados para uma enorme gama de sinto-mas muitas vezes reduzidos a um diagnstico unilateral e medicado apenas sintomaticamente.

  • Unidade 1

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    Reflexo

    O consumidor de remdios, o consumidor de drogas festivas lcitas ou de drogas ilcitas podem ter os mes-mos problemas em relao ao seu consumo excessivo, mas tambm podem no ter esses problemas e serem consumidores moderados e ocasionais. A diferena est nas substncias ou no seu tipo de circulao? Se a droga comprada no bar ou na farmcia, isso significa que ela necessariamente melhor ou menos perigosa que a droga ilcita?

    Na poca da proibio do lcool nos Estados Unidos da Amrica, todo dono de bar era um traficante. A diferena hoje em dia est no fato de que a circulao legal evita o domnio do crime. Ningum est trocando tiros para disputar pontos de venda ou cobrar dvidas dos consumidores de cigarros ou de cerveja, mas se esses produtos fossem proibidos, certa-mente haveria muitos traficantes violentos controlando esse comrcio.

    O aumento do consumo do crack tambm est ligado proibio da cocana, o que levou ao desenvolvimento de um produto mais barato e contaminado, feito para ser uma cocana dos pobres. Mesmo se no houvesse o crack os moradores de rua continuariam a usar aguardente ou cheirar cola de sapateiro, se no tiverem assistncia do Estado para emprego, moradia e cuidados mdicos.

    O conceito de estigma o que identifica o preconceito e a excluso dos direitos sociais dos consumidores de certas drogas, dando a elas um sentido pejorativo e at criminoso. A diferena de um tabagista, um maconheiro e um cervejeiro que o primeiro e o ltimo no so vistos como criminosos, mas no mximo pessoas com problemas e que precisam de ajuda.

    importante ampliar discusso social sobre as causas e consequn-cias da ilegalidade de algumas drogas psicoativas e a regulamentao e o controle daquelas consideradas legais.

  • O uso de drogas na sociedade

    Mdulo Drogas e Sociedade 29

    Reflexo

    Os consumidores de drogas no devem ser estigma-tizados, ou seja, considerados como negativos apenas pela droga que consomem. Exatamente para se evitar abordagens reducionistas desta temtica, que pre-cisamos nos perguntar, como muitos outros pases j vm fazendo: Quais so as razes pelas quais umas drogas so lci-tas e outras ilcitas? O que a histria j nos mostrou sobre isso? O que no queremos como consequncia do consu-mo de drogas? O que determina estas consequncias indesejadas?

    A droga consumida? O como, onde, quando ou por quem so consumidas estas drogas? O simples consumo?

    O que podemos fazer para definitivamente evitar-mos estas consequncias indesejadas? Quais evidncias cientficas foram produzidas sobre efeitos, modos e consequncias do uso de cada subs-tncia psicoativa?

    Quando falamos em oferta de cuidado ou tratamento, estas questes anteriormente levantadas ganham ainda maior relevncia. Ocorre que um tema trabalhado de forma reducionista, tanto com relao ao pen-samento corrente sobre este, como com relao cincia que subsi-dia a atuao profissional ou ao contexto no qual est mergulhado o usurio, resulta em oferta de cuidado igualmente reduzida, limitada e, consequentemente, ineficaz.

  • Unidade 1

    Henrique Carneiro30

    Como diz o psiquiatra Gabor Mat, quem tem uma dependncia, em geral no tem nessa prtica uma doena em si mesma, mas ela mui-to mais uma tentativa de remediar um problema mais de fundo, que pode ser um sofrimento psquico, um trauma infantil ou a condio de desassistncia, abandono e desamparo dos muito pobres.

    A droga que uma pessoa consome no exatamente a sua doena, mas muitas vezes o remdio improvisado de quem sofre e busca ame-nizar suas dores. preciso identificar e sanar as origens dos proble-mas em cada pessoa, por meio da assistncia e da adeso voluntria a tratamentos. O tratamento coercitivo, forado, raramente consegue resultados duradouros, pois so impostos contra a vontade e s vezes at mesmo com restries e castigos fsicos que s pioram e aprofun-dam a revolta e os traumas dos usurios problemticos.

    Nos dias de hoje importante problematizar questes tais como: as formas de acessibilidade; propaganda das drogas legais; locais onde permitido consumir ou no, como forma de se garantir ao mesmo

    Como j afirmamos, o cuidado ou tratamento, especial-mente aquele ofertado no mbito das aes de sade pblica, no pode ser baseado em julgamento moral ou na droga consumida. So os agravos sade que esto no centro da atuao dos profissionais. Estes so o foco principal. As diferenas de tratamentos entre pessoas que usam tabaco ou maconha no residem nas drogas de es-colha e, sim, nas necessidades de sade das pessoas em cuidado. As substncias em si no definem gravidade ou qualificam o tipo de consumidor. Ajudar as pessoas a conquistarem o autocontrole e a autonomia sobre si, por exemplo, o esforo necessrio para combater as formas de consumo destrutivas.

  • O uso de drogas na sociedade

    Mdulo Drogas e Sociedade 31

    tempo o respeito pela diferena e a tolerncia de estilos de vida e o resguardo do espao pblico, no que diz respeito incitao ao uso. Devemos debater o exemplo das polticas antitabagistas e de controle do uso do lcool, em contraste com as polticas relativas a outras subs-tncias. As campanhas com divulgao cientfica dos riscos potenciais e as polticas de reduo de danos, por exemplo, so pertinentes con-traposies s propostas de abstinncia compulsria.

    As drogas devem ser tratadas como hbitos culturais e, quando os usurios apresentarem necessidades de sade decorrentes de seu consumo, o poder pblico, em especial as reas de sade e assistncia social, deve oferecer ajuda adequada.

    A necessidade de se buscar um padro de uso moderado, sem depen-dncia nem usos abusivos e excessivos, uma condio de proteo da sade tanto no que se refere s drogas lcitas como s ilcitas.

    A abstinncia, que pode ser uma alternativa necessria para consumi-dores compulsivos, no pode ser uma proposta geral para todos, pois uma sociedade sem drogas no possvel nem desejvel. S um Esta-do totalitrio poderia impor a abstinncia obrigatria a todos.

    Os estudos tm demonstrado que os tratamentos ofertados s pessoas com problemas decorrentes do consumo de lcool e outras drogas ob-tm sucesso com a adeso voluntria, e h uma enorme parcela de usurios que no querem ou no precisam ser tratados. Polticas de drogas que enfatizem a preveno e a educao devem ter esse fato em vista para no construir generalizaes indevidas, nem estigmati-zaes perniciosas.

  • Unidade 1

    Henrique Carneiro32

    Link

    Voc poder obter um panorama histrico mais amplo sobre os psicoativos por meio do Ncleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP), que h mais de dez anos rene pesquisadores, artigos, te-ses acerca desse tema. Consulte o seu site: http://bit.ly/1aFtLyN.O Congresso Internacional de Drogas CID-2013 uma iniciativa de envergadura indita no Brasil, ideali-zado para fomentar o intercmbio entre autoridades governamentais, ex-chefes de Estado, especialistas internacionais de diversas reas do conhecimento e representantes da sociedade. As palestras e os debates desse evento podem contribuir para a sua compreen-so do tema: http://bit.ly/1gnsq1Q.

    1.7. Resumo da unidadeVimos nesta unidade como o fenmeno do consumo de drogas anti-go e ocorre nas sociedades humanas para diversas finalidades que as tornaram as substncias mais importantes ao lado dos alimentos. Os usos integrados, teraputicos ou recreacionais prevalecem, mas o con-sumo abusivo e dependente afeta uma parcela dos usurios, especial-mente a partir da poca moderna, quando a indstria farmacutica, do lcool e do tabaco se consolidam.

    O uso problemtico de drogas tambm inseparvel de outras condu-tas de compulsividade que se tornam caractersticas numa sociedade de crescente idealizao do consumo como valor por excelncia.

    preciso, assim, compreender as drogas na multiplicidade das substn-cias, tanto lcitas como ilcitas, levando em conta que vivemos um mo-mento histrico de reviso do paradigma proibicionista internacional que vem sendo questionado com propostas de legalizao e regulamentao.

  • O uso de drogas na sociedade

    Mdulo Drogas e Sociedade 33

    E, finalmente, devemos evitar o reducionismo das pessoas humanas a um aspecto de sua existncia, recusando o estigma, o preconceito e a discriminao e buscando a conquista da autonomia dos prprios usurios sobre seus corpos e hbitos como melhor forma de aplicar polticas pblicas de assistncia e insero social dos consumidores e de educao da comunidade.

    1.8. Leituras complementaresLABATE, B. C. et al. (orgs). Drogas e cultura: novas perspectivas Sal-vador: EDUFBA, 2008. Essa obra traz os resultados de um simpsio acadmico na USP com enfoque maior nas cincias humanas. Dispo-nvel em: http://bit.ly/1evvxhg .

    SEIBEL, S. D. (Ed.). Dependncia de drogas. 2 ed. So Paulo: Atheneu, 2010.

    Trata-se de uma coletnea de mais de mil pginas com artigos cient-ficos sobre diversos aspectos do fenmeno das drogas.

  • 02Representao social do uso de

    drogas, do usurio e do cuidado

  • Representao social do uso de drogas, do usurio e do cuidado

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    Unidade 2 Representao so-cial do uso de drogas, do usu-rio e do cuidado

    Ao final desta unidade, voc ser capaz de:

    avaliar criticamente as diferentes representaes sociais do uso de drogas e do usurio na atualidade, sua influncia no processo de cuidar e a complexidade desse cuidado.

    2.1. IntroduoO ttulo desta unidade carrega em si algumas constataes bsicas, por exemplo: o consumo de drogas existe. Esta afirmao encontra eco e provas robustas tanto na realidade atual quanto em outros mo-mentos histricos como visto na unidade anterior. Mas fundamental tambm que faamos as necessrias distines sobre os padres de uso de drogas, afinal as pessoas usam drogas com frequncias diferen-tes (uso espordico, uso frequente, uso nocivo, dependncia), segundo conceitua a Organizao Mundial da Sade (OMS) (WHO, 2014).

    Outras constataes contidas no ttulo so mais complexas e abrem discusses interessantes e importantes. A segunda a de que as pes-soas que usam lcool e outras drogas esto na sociedade. Tambm verdade, certamente. Mas quais so os espaos da sociedade reserva-dos a estas pessoas que usam substncias psicoativas? As cracoln-dias? As periferias? Os banheiros das boates? Os apartamentos e casas dos condomnios fechados? Os presdios? Os bares? Esta lista muito maior, mas certo que estes locais fazem parte da sociedade. E mais que isto, como a sociedade compreende este grupo que usa substn-cias psicoativas?

  • Unidade 2

    Francisco Cordeiro36

    A ltima constatao reside na complexidade do cuidado. Tema no menos relevante, pois vive-se atualmente numa busca desenfreada de uma soluo nica ou fcil para a dependncia de drogas (espe-cialmente do crack). A complexidade que caracteriza o consumo de drogas encontra um espelho no campo do cuidado para estes casos, tambm complexo.

    Estes temas esto sendo discutidos pela sociedade brasileira de forma mais aprofundada nos ltimos anos. Uma das possibilidades de acesso s formas de compreenso e das percepes de grupos populacionais sobre este tema atravs das representaes sociais. Este conceito, segundo Moscovici (1978), entendido como uma forma de conheci-mento que elaborado cotidianamente pelo indivduo e que tem, ao mesmo tempo, origem e consequncia na produo de comportamen-tos e na comunicao entre indivduos.

    interessante avaliar a compreenso e a representao que os dife-rentes segmentos da sociedade brasileira do, por exemplo, ao uso de substncias psicoativas. H uma clara distino entre as substncias lcitas e ilcitas, fortalecendo cada vez mais a oposio entre drogas legais e ilegais.

    Da mesma forma, importante mencionar que represen-tao social entendida por pesquisadores brasileiros como pensamentos, aes e sentimentos que expressam a realidade em que vivem as pessoas, servindo para ex-plicar, justificar e questionar essa realidade. (Gomes, 1994. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Neto OC, Gomes R. Pes-quisa Social. Editora Vozes, 1994).

  • Representao social do uso de drogas, do usurio e do cuidado

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    Pesquisas de opinio pblica realizadas no Brasil sobre o tema da le-galizao ou descriminalizao de todas as drogas ou somente da ma-conha, por exemplo, revelam direes majoritariamente contrrias a qualquer discusso de proposta que tenha o vis de regulamentao deste consumo. Levantamento feito pelo Datafolha (REPORTAGEM LOCAL, 2008) aferiu que 76% dos pesquisados era contrrio legali-zao da maconha no Brasil. Sem dvida, a opinio pblica influen-ciada por variveis mltiplas, sejam elas pessoais ou coletivas.

    No entanto, importante frisar que existe uma compreenso corrente, como veremos adiante, presente em vrios segmentos da sociedade (mdia, parlamento, segurana pblica, religio) que tem como base a ideia de que o usurio de drogas ilcitas o responsvel central de todos os problemas, e a consequente percepo de que necessrio buscar alternativas para se livrar do crime (consumo de drogas?) e dos criminosos (um mundo livre de pessoas que usam drogas?). Drogas ilcitas, que fique bem entendido, pois at o momento parece nunca ter se visto nenhuma pesquisa perguntar a opinio das pessoas em tornar ilegal o lcool (que a droga mais consumida no mundo inteiro e que tambm causa diversos problemas de sade) ou mesmo os me-dicamentos psicotrpicos (que tem sua utilizao teraputica bem de-finida, mas que podem tambm induzir dependncia e causar danos).

    Essas compreenses reduzem as possibilidades de realizar um debate mais racional sobre o tema das substncias psicoativas de uma forma geral e que leve em considerao constataes reais de que um mundo sem drogas lcitas ou ilcitas no ser possvel construir.

  • Unidade 2

    Francisco Cordeiro38

    2.2. Representaes sociais sobre uso de substncias psicoativas e pessoas que usam substncias psicoativasAlguns autores tm se debruado mais sistematicamente em inves-tigar as representaes sociais relacionadas ao uso, ao usurio e ao cuidado ofertado para pessoas com necessidades decorrentes do con-sumo de lcool ou outras drogas. Coutinho et al (2004) encontraram distintas avaliaes de estudantes universitrios de 3 reas diferentes: sade, tecnologia e direito. Quando perguntados sobre a postura assu-mida frente a um usurio de maconha obteve-se respostas classifica-das como favorveis, desfavorveis e neutras. Os estudantes de sade e tecnologia explicitaram respostas mais favorveis (44% e 60%, res-pectivamente); j os estudantes da rea do direito, 60% se colocaram de forma desfavorvel. Como forma de exemplificar estes posiciona-mentos no discurso de cada grupo, os autores apresentaram alguns trechos das entrevistas, que revelam o viver de forma normal dos usurios de maconha, na opinio dos estudantes que tiveram respos-tas mais favorveis; por outro lado, trecho apresentado por um estu-dante de direito acentua o carter do usurio de maconha como in-frator e fora da lei (p. 474).

    Numa investigao entre estudantes de psicologia, Fonseca et al (2007) encontraram diferenas de representaes sobre a maconha a partir da perspectiva de gnero e da idade dos participantes. Os participantes do sexo masculino apresentaram opinies mais vinculadas ao prazer e a efeitos positivos sobre o consumo da maconha; j as mulheres enfatiza-ram aspectos negativos relacionados sade (vcio, dependncia, doen-a). Em relao s opinies separadas por grupos etrios, os mais jovens (18 a 20 anos) tenderam a se posicionar de forma mais negativa, o que incluiu a palavra crime como consequncia do consumo da droga. J os participantes mais velhos (24 a 26 anos) chamaram a ateno para as-pectos relacionados sade (dependncia, danos fsicos), mas tambm incluram meno ao preconceito sofrido pelos usurios de maconha.

  • Representao social do uso de drogas, do usurio e do cuidado

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    A perspectiva de gnero dentre pessoas que usam drogas foi pesqui-sada por Oliveira et al (2006). Os participantes eram profissionais de sade de um servio de tratamento para pessoas que usam drogas em Salvador. As autoras encontraram resultados importantes tanto das representaes sociais relacionadas ao consumo de drogas por mu-lheres e suas consequncias para a organizao dos servios de trata-mento, mas tambm das relaes deste consumo com o cumprimento dos papis social e culturalmente atribudos s mulheres na sociedade atual. Chama ateno a compreenso dos entrevistados de que o uso de drogas por mulheres mais estigmatizado pela sociedade do que o uso entre homens, o que pode explicar a diferena entre os tempos de procura por tratamento seria interessante ressaltar que o que se ob-serva no cotidiano dos servios que as mulheres chegam mais tarde e mais graves para tratamento, em funo destes valores sociais em questo. O estudo tambm identifica que o incio do consumo de dro-gas entre mulheres pode estar ligado manuteno de relao com o parceiro. A interpretao dos resultados obtidos sugere que o consumo de drogas entre mulheres e a chegada destas mulheres aos servios de tratamento inaugura a necessidade de elaborar intervenes de sade especficas e que leve em conta a perspectiva de gnero.

    Representaes sociais de agentes comunitrios de sade sobre a maconha e o lcool foram temas pesquisados por Arajo et al (2006) e Castanha e Arajo (2006). As duas pesquisas mencionadas tm os mesmos participantes e permitem comparar os resultados, pois so apresentadas de maneira muito semelhantes. Quando agrupadas as respostas encontradas sobre as causas do uso da maconha e do lcool, os autores encontraram diversas categorias. As categorias prazer e diverso somadas foram referidas por 28% como causa para usar maconha; j para o lcool, este percentual chegou a 41%. Interessante notar como estas caractersticas positivas esto mais presentes em re-lao ao lcool, droga socialmente aceita e que guarda pouca relao com consequncias negativas na percepo dos entrevistados, embora seja a de resultados mais problemticos. Ao passo que a maconha, dro-

  • Unidade 2

    Francisco Cordeiro40

    ga ilegal, avaliada como negativa em vrios aspectos como j vimos acima. As respostas relacionadas categoria disponibilidade uma categoria que coloca as duas substncias em lados opostos, dado o status legal diferenciado de ambas. 9% referiu a disponibilidade como causa para usar maconha; diferente dos 33% relacionado ao lcool.

    Campanhas relacionadas ao uso e aos usurios de drogas no Brasil e mundo afora tm sido veiculadas com objetivo de enfrentar o estigma e de garantir os direitos das pessoas que usam drogas. A Organizao das Naes Unidas veiculou em 2009 uma srie de vdeos contra o estigma e o preconceito dirigido a alguns grupos populacionais e que incluiu usurios de drogas. Os vdeos esto disponveis na internet e enfatizam a ideia de que as pessoas que usam drogas so cidados. Da mesma forma, organizaes no-governamentais tambm advogam pelo respeito aos direitos das pessoas que usam drogas.

    Na Inglaterra, a Organizao No Governamental (ONG) Release vei-cula uma campanha intitulada Pessoas legais usam drogas (Nice people take drugs) para reduzir o estigma associado s pessoas que usam drogas e que torna quase impossvel haver um debate razovel sobre o tema.

    Link

    Veja o que a campanha contra o preconceito e o estig-ma que a ONG inglesa Release: Leia mais em: http://bit.ly/1mT891H.

    No Brasil existem algumas iniciativas de ONG que tem trabalhado em direo semelhante. A ONG Viva Rio veiculou uma campanha com foco na mudana da lei de drogas, cujo argumento central o uso de drogas, especialmente na indistino do usurio e do traficante de acordo com a lei de drogas brasileira (BRASIL, 2006).

  • Representao social do uso de drogas, do usurio e do cuidado

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    Link

    A ONG Viva Rio brasileira veicula esta campanha na internet, pedindo alteraes na Lei de Drogas: http://bit.ly/1evuyhg.

    A lei em questo a n. 11.343/2006. Ela institui o Sistema Nacional de Polticas Pblicas sobre Drogas Sisnad; prescreve medidas para preveno do uso indevido, ateno e reinsero social de usurios e dependentes de drogas; estabelece normas para represso produo no autorizada e ao trfico ilcito de drogas; define crimes e d outras providncias.

    Saiba Mais

    Conhea a Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 na ntegra, acessando o endereo: http://bit.ly/Mba2eR.

    O estudo das representaes sociais da mdia sobre o tema tambm contribui para anlise mais ampla do fenmeno. Santos et al. (2012) analisaram matrias veiculadas em jornais pernambucanos sobre o crack. O crack e consequentemente o seu consumo incontrolvel foi vinculado dependncia, fissura e morte. Desta forma, estabele-ce-se uma classe nica de pessoas que usam crack: os dependentes. Concordamos com Medeiros (2010) quando diz que: muito difcil perfilar o grupo usurio de crack (p. 182). Prova disto que j existem relatos de uso controlado de crack (OLIVEIRA E NAPPO, 2008), em-bora em nmero limitado.

    As duas casas legislativas nacionais, Cmara Federal e Senado da Re-pblica, so, tambm, locais em que este tema est sendo debatido, devido proposta de alterao da Lei brasileira sobre drogas. Os de-bates e votaes relacionados ao uso e s pessoas que usam drogas ilcitas refletem e projetam as compreenses sobre este fenmeno na sociedade. Por oportuno, foram compiladas algumas frases proferidas

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    por deputados e deputadas federais para comentar aspectos conside-rados relevantes.

    1) A internao involuntria , sem dvida nenhuma, uma sada para vrias famlias que esto em situao de risco, porque o usurio est colocando todo mundo em risco. () A nica alternativa aprovar uma nova poltica para o combate s drogas. Quem no quiser continue de-fendendo os drogados e os craqueiros da vida. (Deputado Federal Ar-naldo Faria de S durante a sesso nmero 133 de 2013 da Cmara dos Deputados, realizada no dia 22 de maio de 2013 e que debateu o Projeto de Lei n. 7663/2010).

    Reflexo

    Em relao ao usurio, h, supostamente, uma causa-lidade cristalina entre ser usurio de drogas e colocar a famlia em risco. Ser que este raciocnio aplicvel a todas as pessoas que usam drogas? Por outro lado, se algum se ope aprovao de uma nova poltica, est defendendo os drogados e craqueiros. A per-gunta que pode ser feita : os drogados e craquei-ros deixam de ter direitos por usarem drogas?

    2) H drogas lcitas que fazem mal, como o lcool. H pessoas que fa-zem uso do lcool e tm problemas; outros no tm. H pessoas que fu-mam e tm problemas e h os que fumam e no tm problemas. Logo, h usurios de drogas lcitas e ilcitas sem problemas e usurios de drogas lcitas e ilcitas com problemas (Deputado Federal Paulo Teixeira, du-rante a sesso nmero 133 de 2013 da Cmara dos Deputados, realizada no dia 22 de maio de 2013 e que debateu o Projeto de Lei 7663/2010).

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    Reflexo

    Como abordado na Unidade anterior, o cerne desta interveno a avaliao de que existem diferentes padres de consumo de qualquer substncia, seja ela lcita ou ilcita, conforme prev a Organizao Mun-dial da Sade (OMS). Orientao muito diferente do que se percebe nos debates relacionados ao crack, onde a partir da primeira pedra, segundo a percepo equivocada do senso comum, instala-se a dependn-cia. Oliveira e Nappo (2008) mostraram que esta tese no se confirma.

    3) (...) No podemos ficar perdendo tempo aqui, porque na verdade ns queremos acabar com as drogas (...) (Deputado Federal Arnaldo Faria de S durante a sesso n. 133 de 2013 da Cmara dos Deputados, realizada no dia 22 de maio de 2013 e que debateu o Projeto de Lei n. 7663/2010).

    A posio de querer acabar com as drogas retrica. Embora seja um dis-curso convincente, no encontra base na realidade, pois historicamente, como visto na unidade anterior, a humanidade sempre as utilizou.

    4) (...) Temos 50 mil homicdios ao ano no Brasil. Isso significa 35 mil envolvimentos desses homicdios diretamente com as drogas. Isso sig-nifica 4 homicdios por hora. Ns estamos h 8 horas discutindo este projeto, ou seja, cerca de 30 pessoas neste Pas j morreram com en-volvimento, venda ou consumo de drogas(...) (Deputada Federal Rosa-ne Ferreira durante a sesso n. 133 de 2013 da Cmara dos Deputados, realizada no dia 22 de maio de 2013 e que debateu o Projeto de Lei n. 7663/2010).

    Novamente aparece a suposta causalidade entre consumo de drogas e a ocorrncia de crimes. Desta vez, apoiada em estatsticas descontex-tualizadas.

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    As discusses apontadas acima contribuem para construir uma viso atualmente defendida por uma parte da sociedade (como vimos ante-riormente) onde todas as pessoas que usam drogas so criminosas, des-controladas, perigosas e que precisam ser internadas involuntria ou compulsoriamente. No raro, qualquer ponto de vista contrrio a esta compreenso - independentemente dos argumentos utilizados -, ou que incorpore tambm outros elementos nesta discusso (outras formas de cuidado, garantia de direitos humanos fundamentais para este grupo populacional - moradia, educao, renda, lazer) so desconsideradas sob justificativas emocionais e/ou carentes de base concreta.

    Uma reflexo geral possvel de ocorrer nesta situao. Por um lado, h uma clara fuso de dois elementos: pessoa que consome droga (il-cita) e substncia ilcita. Como consequncia, desumaniza-se a pessoa que usa droga ilcita, tornando possvel assumir um mandato integral para tomar conta da situao em nome destes.

    O que parece existir uma induo desumanizao das pessoas que usam drogas. Os argumentos de que eles no conseguem distinguir o certo do errado ou eles no tem mais vontade prpria os aproxi-ma de animais desprovidos de direitos, de desejos, de intenes e de sofrimento. Ou seja, suspende-se, de um grupo humano especfico, caractersticas universais de todos os seres humanos, para torn-los, por assim concluir, menos humanos. Desta forma, justifica-se a im-

    Reduzir uma pessoa que consome drogas ilcitas subs-tncia que ela consome perigoso sob qualquer aspecto que se analise esta ao. Suspendem-se caractersticas humanas devido a um determinado comportamento, des-considerando que a caracterstica que aproxima todos os seres humanos a diversidade e no a uniformidade.

  • Representao social do uso de drogas, do usurio e do cuidado

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    plantao de proposies de grupos governamentais e no-governa-mentais que se baseiam na violao de direitos humanos deste grupo, que deixou de ter estes direitos garantidos.

    Toda esta gama complexa de relaes e opinies sobre o consumo de drogas e dos usurios de drogas tambm se apresenta quando o tema do cuidado ou da forma de tratar estas pessoas discutido. Mas antes de entrarmos no tratamento, necessrio fazer algumas relaes so-bre o que vimos acima e o cotidiano dos servios de sade.

    Os profissionais que fazem parte das equipes dos servios de sade mental da Rede Ateno Psicossocial (RAPS) podem comungar ou no, a depender de suas preferncias pessoais, com os resultados das pesquisas que foram apresentadas. No entanto, indispensvel reco-nhecer que esse julgamento pode influenciar decisivamente a relao do usurio com este profissional e com o servio de uma forma geral.

    Reflexo

    Dependendo da substncia utilizada, a disposio do servio e da equipe diferenciada? Concretamente falando, uma pessoa alcoolista mais bem tratada do que uma pessoa que usa crack? Isto se d mais por conta das caractersticas pessoais apresentadas por cada um ou o fato de uma pessoa utilizar uma dro-ga lcita e a outra, ilcita, tambm influencia na forma como estas duas pessoas que buscaram auxlio so atendidas? As representaes sociais dos profissionais que com-pem a equipe e que formam a identidade institucio-nal dos servios, podem se constituir como barreira de acesso utilizao dos servios? possvel que os ser-vios escolham seus usurios a partir das caracters-ticas da equipe que compe um determinado ponto de ateno da RAPS em detrimento da cobertura uni-versal? De que maneira estas aes podem contribuir para a produo de estigma, em vez de confront-lo?

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    Todas as questes acima mencionadas, e tantas outras, fazem parte do cotidiano dos servios e da atuao dos profissionais que compem a equipe. Trazidas em forma de provocao podem ser discutidas a partir da realidade dos servios onde se atua, no sentido de contribuir ao aperfeioamento da funo e do perfil do servio onde se trabalha. importante avaliar de forma contnua a atitude do servio frente sua responsabilidade tica e tcnica de prover servios de sade s pes-soas que usam drogas.

    2.2.1. Representaes sociais sobre o cuidado a pessoas que usam substncias psicoativas A expresso pessoas que usam drogas exige que as discusses, sejam elas clnicas ou de formulao de polticas de sade, incorporem a di-menso do humano e da garantia de direitos. No se pode, de maneira nenhuma, torn-las invisveis, refns de intervenes autoritrias ou restringir sua participao na construo de estratgias de sade rela-tivas a sua situao.

    Dando consequncia compreenso de que cada caso um caso, ade-quado imaginar que a conduo de cada caso tem que ser diferenciada. Nos ltimos anos, a compreenso de que a questo das drogas ou da dependncia de drogas um fenmeno complexo e de que no existe

    Diante dessa situao, preciso retomar a recomendao de que cada caso um caso. Essa simples e bsica defini-o nos coloca de volta a um patamar de escutar, acolher e avaliar cada pessoa que tem necessidades de sade re-lacionada ao consumo de drogas. E, cada vez mais, im-portante que tenhamos a clara noo de que estamos nos referindo a pessoas. A pessoas que usam drogas.

  • Representao social do uso de drogas, do usurio e do cuidado

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    sada nica tem sido vocalizada mais frequentemente. Ou seja, feita a crtica ao oferecimento de uma interveno padro geralmente, a internao para todas as pessoas. Este tipo de entendimento no faz sentido pelo simples fato de que cada pessoa carrega em si caracters-ticas nicas e singulares e que devem fazer parte indissocivel do pla-nejamento de qualquer ao de cuidado. Toda e qualquer interveno pr-concebida, baseada no conhecimento do profissional ou no perfil do servio de sade, ou sem contato com a histria e o protagonismo dos usurios, deixa de levar em considerao elementos fundamentais para a elaborao - e sucesso - do prprio projeto teraputico.

    interessante observar que, de um lado, o consumo e os consumidores de drogas esto comumente associados a ideias negativas (crime, vcio e outros). Do outro, o apoio internao involuntria ou compulsria como forma ideal de cuidar imenso (MARINHEIRO, 2012). Em verdade, am-bas as avaliaes so limitadas e apontam para solues que combinam segregao da diferena e fantasia da resposta-nica-universal.

    No entanto, tanto as diretrizes polticas internacionais e brasileiras do cuidado em sade das pessoas que usam drogas quanto o cotidiano cl-nico dos servios de atendimento rechaam estes reducionismos peri-gosos. Internacionalmente, a Organizao Mundial da Sade (OMS) e o Escritrio das Naes Unidas para Drogas e Crime (UNODC/ WHO, 2008), a Organizao Panamericana da Sade (OPAS/ OMS, 1990, 2005, 2010) e a Organizao dos Estados Americanos (OEA, 2013), em documentos oficiais, explicitam a complexidade destas questes e consequentemente ampliam as possibilidades de interveno. No m-bito nacional, a poltica especfica do Ministrio da Sade (BRASIL, 2004a) para o cuidado das pessoas que usam drogas, publicaes tc-nicas relacionadas ao funcionamento dos CAPS (BRASIL, 2004b) e as portarias que instituram planos de ao sobre o tema (BRASIL, 2009) e que regem o funcionamento dos servios de Ateno Psicossocial no Brasil (MINISTRIO DA SADE, 2011) caminham na direo oposta simplificao desta situao.

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    As crenas e valores de como cuidar de pessoas que usam drogas, e de uma forma geral das pessoas com sofrimento mental, ainda sofrem influncias de determinados modos de pensar que valorizam a medi-calizao, a internao, dentre outras estratgias possveis. Exemplos desta realidade esto explcitos no trabalho de Lucchese et al (2009), quando, ao entrevistar um profissional da ateno bsica, ouviu O atendimento na rea de sade mental feito na unidade acaba se res-tringindo medicalizao... (p.2036), traduzindo uma forma de cuidar. Importante notar tambm, que no mesmo artigo, agentes comunit-rios de sade disseram: Tem um sintoma diferente do outro. Nenhum igual. Assim como todos ns... a gente tem as nossas diferenas. A gente tem que trabalhar com diferenas (p.2039) e tambm ... Eu che-go na casa dela, comeo a conversar com ela, assunto que no tem nada a ver, s vezes at sobre o quintal, da casa dela, algum assunto, de repente ela t sorrindo e passa aquela agressividade (p.2039).

    A diversificao do perfil dos servios de sade e de suas finalidades convocam justamente ao trabalho conjunto, em rede, para atuar em benefcio das pessoas que usam drogas. At porque, se existe apenas uma alternativa e ela falhar, no h o que fazer ou repete-se a mesma interveno. Po-rm, se se pode contar com vrios recursos, as possibilida-des de cuidado e de sucesso aumentam. Por isso, necess-rio avaliar adequadamente a implementao dos servios previstos na RAPS, como Centros de Ateno Psicossocial, as Unidades de Acolhimento, os Consultrios na Rua, as Equipes de Sade da Famlia, os Leitos em Hospital Geral, os Ncleos de Apoio Sade da Famlia, entre outros.

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    Reflexo

    O reflexo clnico da proposio de diversificao de respostas se d no cotidiano do cuidado destas pes-soas. Por exemplo: quantas vezes j ouvimos que o fulano foi internado 8 vezes e voltou a usar drogas? Em quantos momentos percebemos que o usurio sob nosso cuidado necessita de uma interveno que o nosso servio no oferece? Qualquer profissional que trabalha na ponta j se fez estas perguntas. Por outro lado, o contrrio tambm recorrente. Quantas vezes encaminhamos um usurio para outro servio antes mesmo de conhec-lo?

    De uma maneira geral, existe uma avaliao majoritria da socieda-de de que a internao voluntria ou involuntria, das pessoas que usam crack, soluciona imediatamente o problema. O apoio a esta for-ma de tratar macio, segundo pesquisa do Datafolha realizada em 2012 (MARINHEIRO, 2012). Revela-se um trao de uma sociedade que busca respostas rpidas mescladas com uma fantasia de que a ausn-cia do campo de viso faz com que o problema passe inexistncia ou, pelo menos, a no incomodar o seu cotidiano.

    necessrio entender que a internao pode e serve como alternativa importante para os casos muito graves, que coloquem em risco a vida do usurio ou de terceiros. E pode ser a possibilidade vivel do incio de um trabalho teraputico. Ou seja, a internao, quando justificada, deve acontecer. Deve fazer parte das possibilidades da rede de aten-o. S no pode ser a regra geral para todos os casos, pois desse modo configura-se como a alternativa, o que no correto para nenhuma substncia psicoativa, seja lcita ou ilcita.

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    Reflexo

    Da mesma forma que as alternativas sanitrias so mltiplas, os resultados esperados a partir delas so diversos, consequentemente. A abstinncia apenas um deles, apesar de ser considerado como o principal resultado a ser buscado. No entanto, como esperado, as respostas aos tratamentos variam de pessoa para pessoa e as taxas de abstinncia prolongada no so altas (MARSDEN et al. 2009). Neste sentido, funda-mental que sejam considerados como sucesso no tra-tamento outras caractersticas, alm da interrupo do consumo de drogas.

    Por exemplo, se associamos outros marcadores como funcionamento social e pessoal, riscos de segurana e sade pblica, propostos pela Organizao Mundial da Sade, a avaliao dos resultados do trata-mento certamente fica mais complexa, mas, ao mesmo tempo, mais ampla. O tratamento pode ser considerado como bem sucedido mes-mo se o consumo se mantm no mesmo nvel ou reduzido. Exemplos: se o usurio continua indo ao servio de sade mesmo se h mudana na via de administrao da droga (de injetada para fumada), se reto-mou vnculos com pessoas afetivamente importantes, se possvel voltar a estudar ou trabalhar. Em todas estas situaes, compreende--se que a pessoa que usa drogas, progride em outros domnios da vida, aumentando sua qualidade de vida.

    A relao destas reflexes com o cotidiano dos servios pode ser rea-lizada a partir de algumas questes: diversidade de servios e acolhi-mento, adeso ao tratamento, sucesso no tratamento. A diversidade de servios pode ser tanto na composio da rede, quanto, por exem-plo, na oferta de diferentes atividades no mesmo servio. Em verdade, a diversidade de pontos de ateno de uma rede (e num mesmo ser-vio) caracterstica fundamental para cumprir o papel de acolher o usurio e oferecer respostas s suas demandas.

  • Representao social do uso de drogas, do usurio e do cuidado

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    A partir desta premissa, o desafio seguinte criar ambiente que favo-rea a adeso do usurio. importante chamar a ateno para o efeito das possveis distores entre as demandas dos usurios e as respos-tas produzidas pelos servios. Por exemplo, se um servio funciona preconizando apenas a lgica da abstinncia, como proporcionar a adeso de um usurio que no est em condies de atender a esta exigncia? Neste caso, se o usurio no volta ao servio, possvel concluir que o servio no aderiu s necessidades do usurio, e no o contrrio. crucial, numa situao como esta, analisar os impac-tos negativos profundos desta forma de organizar o servio, que serve mais restrio do acesso e a uma compreenso de que as regras de organizao do servio so mais importantes que as demandas dos usurios. A aposta deve ser na direo contrria, de adaptar as estra-tgias de cuidado s necessidades da populao a ser atendida. In-tervenes desenvolvidas para pessoas em situao de rua, onde os profissionais so desafiados em cada contato a repensar suas prticas, so exemplos interessantes deste entendimento.

    A aposta nas intervenes de sade pblica para lidar com o consumo de drogas e suas consequncias vital para, primeiramente, ampliar o acesso aos servios de sade e tornar concreta a disposio consti-tucional de que sade um direito de todos. O entendimento de que a nfase deve ser dada no aprofundamento da garantia de direitos sade, entre tantos outros determinante para superar a lgica do encarceramento e da excluso como forma de lidar com o tema. Quanto mais desafios o consumo de drogas colocar ao setor sade (profissionais de sade, servios, gestores, usurios, familiares), mais ser necessria a articulao para sustentar o compromisso tico de garantir o cuidado de qualidade. Este entendimento compartilhado pela UNODC (2010), em documento intitulado Da coero coeso.

    Em detrimento das sanes judiciais aplicadas ao consumo de drogas, lutar todos os dias para garantir direitos s pessoas que usam drogas. Direito sade, ao trabalho, moradia, educao, ao lazer, garantir

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    todos os direitos humanos. Esta compreenso nos remete imediata-mente limitao do alcance das intervenes especficas de sade para o consumo de drogas e nos remete necessidade da articulao com outros servios, polticas sociais e poderes constitudos. Porque, na verdade, a ausncia de garantia de direitos perpetua um circuito fechado vulnerabilidadedrogavulnerabilidade, impedindo que a sociedade seja mais coesa tica e socialmente.

    A proposta de responsabilizao coletiva sobre este tema est refletida no ttulo da IV Conferncia Nacional de Sade Mental Intersetorial, realizada em 2010. Seu relatrio final (BRASIL, 2011), aponta a imprescindibilidade da articulao de diferentes polticas sociais e de Estado no sentido de ga-rantir no s o cuidado s pessoas que usam drogas, mas primeiramente sua cidadania. A garantia de direitos deste grupo populacional no reside somente nos servios de sade, mas em todos os campos.

    2.3. Resumo da unidadeNa unidade recm encerrada, foram abordadas vrias questes funda-mentais sobre o uso de substncias psicoativas, sobre as pessoas que usam estas substncias e tambm sobre as formas de tratamento para estas pessoas.

    As maneiras que os diversos agrupamentos da sociedade brasileira compreendem estas questes esto intimamente ligadas s suas per-cepes pessoais e ao contexto histrico que estamos vivendo. Estas conexes influenciam e so influenciadas pela mdia, pela segurana pblica, pela legislao vigente sobre o tema, entre outras. De uma forma geral, a opinio majoritria no Brasil conservadora (apoio Guerra s Drogas e internao compulsria) e, no raro, distante da realidade e de solues racionais para os assuntos relacionados ao tema das substncias psicoativas.

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    Chamo sua ateno para algumas observaes:

    Uso de substncias psicoativas conhecido e reconhecido em todos os momentos da humanidade. Substncias psicoativas foram, so e sero consumidas por diferentes pessoas, em diferentes momentos para atingir objetivos diferentes. No existe padro nico de consumo de substncias psicoativas. A experimentao no leva necessaria-mente dependncia.

    Pessoas que usam substncias psicoativas substncias psicoativas so consumidas por pessoas de todas as camadas sociais. A vinculao do consumo de substncias psicoativas a parcelas especficas da sociedade (pessoas em situao de rua, negros, jovens, moradores da periferia) gera estigmatizao e/ou criminalizao, interferindo gravemente na garan-tia de direitos humanos fundamentais (acesso sade, por exemplo).

    Formas de tratamento para pessoas que usam drogas - no existe sa-da nica para as diferentes demandas de sade que podem ser conse-quncia do consumo de substncias psicoativas (cada caso um caso). As intervenes sanitrias devem estar em sintonia com as demandas das pessoas que procuraram o servio de sade. O sucesso do trata-mento pode e deve ser avaliado a partir de diversos campos (interrup-o ou reduo do consumo de drogas, retomada de laos afetivos com pessoas significativas, volta ao trabalho/escola). Intervenes interse-toriais (educao, trabalho, lazer, moradia) contribuem de forma deci-siva para formular atividades integradas e potencializam a garantia de direitos humanos das pessoas que usam drogas.

    2.4. Leituras complementaresMACRAE, E; TAVARES LA & NUEZ, MA (Orgs). Crack: contextos, padres e propsitos de uso. Coleo Drogas: Clnica e Cultura. Salva-dor: CETAD/EDUFBA, 2013.

    SILVEIRA, DX & MOREIRA, FG (Orgs). Panorama Atual de Drogas e Dependncias. So Paulo: Atheneu, 2006.

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    Encerramento do mduloChegamos, assim, ao final do primeiro mdulo de nosso curso. Acha-mos de suma importncia colocar, neste momento, questes que nor-tearo muitas das discusses que se seguiro, a partir de um ponto de vista histrico. A sociedade nos faz ver, por meio da histria, que o uso e abuso de substncias no podem ser caracterizados como fenme-nos estranhos aos grupos sociais. Ao contrrio, em todas as sociedades conhecidas, da antiguidade aos dias atuais, o consumo de substncias psicoativas est presente, tomando diferentes formas culturais, apre-sentando-se de diferentes maneiras e causando diversas interpreta-es. Os componentes negativos dos impactos causados, entretanto, propicia que o fenmeno seja analisado como se representasse, em determinados momentos, a ecloso de uma epidemia. Com isso, mitos se instalam e, de acordo com as teorias explicativas dominantes, le-vam a representaes incompatveis com a realidade.

    Como vimos as representaes da pessoa que usa drogas, do fenme-no como um todo e do cuidado para com estas pessoas, mostram-se como componentes de um sistema ideolgico pleno de contradies. A dialtica desse sistema contextualiza a emergncia de opinies, ati-tudes e demandas que atinge, envolve e desafia o profissional de sa-de, um dos setores que se envolve mais diretamente com o fenmeno do consumo de substncias.

    Este profissional no pode se deixar levar simplesmente pelas repre-sentaes sociais que se engendram no seio de mitologias e jogos de interesse, mas deve preservar sua viso de forma a contemplar dife-rentes perspectivas, olhares e saberes e da alimentar sua prxis. Este o esprito da discusso que aqui desejamos iniciar. a esse profissio-nal, alvo de tantos desejos, disputados por poderes e instituies, que nos dirigimos para propor, inicialmente, uma abertura, uma postura crtica e uma firme disposio de exercer uma prxis orientada por

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    reflexes enriquecidas pelo conhecimento encontrado nas diversas reas do saber. Nossa ambio que, dessa forma, este mdulo lance as bases para um curso que se caracterize como parte de um processo de formao de cunho amplo, crtico e reflexivo, quebrando paradig-mas, superando obstculos ao avano no estudo do fenmeno do uso e abuso de drogas na sociedade contempornea.

    Walter Ferreira de Oliveira Henrique Carneiro

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    RefernciasARAUJO, LF; CASTANHA, AR; BARROS, APR e CASTANHA, CR. Es-tudo das representaes sociais da maconha entre agentes comunitrios de sade. Cinc. sade coletiva [online]. 2006, vol.11, n.3, pp. 827-836.

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