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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS

PROCURADORIA GERAL DE JUSTIÇA

REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS

ANO XI – N.16 – DEZEMBRO DE 2008

GOIÂNIA – GOIÁS

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Ficha catalográfica: Tânia Gonzaga Gouveia – CRB 1842

A responsabilidade dos trabalhos publicados é exclusivamente de seus autores.

Pede-se permuta On demande l' échange We ask for exchange

Editoração e Capa: Ana HolowateFoto Capa: Paulo Pereira/Falange Fotográfica/www.flickr.com/falangefotografica/setsEdição e Organização: Elaine Borges- JP – 00836/GOImpressão: GRAFSET Gráfica e Editora Ltda. (62) 3241-2577Revisão ortográfica: Mirela Adriele da SilvaTiragem: 800 exemplares

Ministério Público do Estado de GoiásProcuradoria-Geral de JustiçaProcurador-Geral de Justiça: Dr. Eduardo Abdon MouraEscola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás – ESMP-GORua 23, esquina c/AV. Fued José Sebba, Qd.06, Lts, 15/24. Jardim Goiás - Goiânia-GOCEP: 74.805-100 Fone (62) 3243-8000e-mail: [email protected]://www.mp.go.gov.br

Revista do Ministério Público de Goiás - , n.16 (outubro/dezembro 2008)- . - Goiânia: ESMP-GO,1996 -

v.; 22cm. 182p.

Trimestral

ISSN 1809-5917

1. Direito

– periódicos. Escola Superior do Ministério Público de Goiás.CDU 34 (051)

Escola Superior doMinistério Público do Estado de Goiás

Diretora: Estela de Freitas Rezende

Conselho Editorial: Analice Borges Loyola - Procuradora de JustiçaDenis Augusto Bimbati Marques - Promotor de JustiçaEstela de Freitas Rezende - Promotora de Justiça e Diretora da ESMPFabiana Lemes Zamalloa do Prado - Promotora de JustiçaMarcelo Henrique dos Santos - Promotor de JustiçaMarta Moriya Loyola - Promotora de JustiçaMurilo de Morais e Miranda - Promotor de JustiçaRegina Márcia Himenes dos Santos - Promotora de JustiçaSandra Mara Garbelini - Promotora de JustiçaSimone Disconsi de Sá Campos - Promotora de Justiça

Apresentação .................................................................................................05

ARTIGOS

A associação para o tráfico não é crime antecedente da lavagem de dinheiro .........................................................................................................07Augusto Reis Bittencourt Silva

Meios extraordinários de investigação criminal: infiltrações policiais e entregas vigiadas (controladas) .....................................................................13Flávio Cardoso Pereira

Proteção e inserção da mulher no Estado de Direito: A Lei Maria da Penha ............................................................................................................53Emerson Garcia

Estatuto da Criança e do Adolescente e os riscos do esquecimento ..............81Mario Luiz Ramidoff

A dignidade da pessoa humana e os Direitos Fundamentais ........................91Lorena Ribeiro de Morais

O enfraquecimento da defesa dos Direitos Individuais e Coletivos como conseqüência do uso do discurso carismático......................................... .....113Taísa Caroline dos Santos Machado

A teoria da Carga Dinâmica Probatória sob a perspectiva constitucional de processo ..................................................................................................117Lucas Danilo Vaz Costa Júnior

A construção de uma sociedade aberta e plural para ampliação da força normativa da Constituição...........................................................................143Hugo Ferreira de AraújoJosé Anselmo Curado FleuryMarco Aurélio Matos

SUMÁRIO

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 3

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Ficha catalográfica: Tânia Gonzaga Gouveia – CRB 1842

A responsabilidade dos trabalhos publicados é exclusivamente de seus autores.

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Editoração e Capa: Ana HolowateFoto Capa: Paulo Pereira/Falange Fotográfica/www.flickr.com/falangefotografica/setsEdição e Organização: Elaine Borges- JP – 00836/GOImpressão: GRAFSET Gráfica e Editora Ltda. (62) 3241-2577Revisão ortográfica: Mirela Adriele da SilvaTiragem: 800 exemplares

Ministério Público do Estado de GoiásProcuradoria-Geral de JustiçaProcurador-Geral de Justiça: Dr. Eduardo Abdon MouraEscola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás – ESMP-GORua 23, esquina c/AV. Fued José Sebba, Qd.06, Lts, 15/24. Jardim Goiás - Goiânia-GOCEP: 74.805-100 Fone (62) 3243-8000e-mail: [email protected]://www.mp.go.gov.br

Revista do Ministério Público de Goiás - , n.16 (outubro/dezembro 2008)- . - Goiânia: ESMP-GO,1996 - v.; 22cm.

182p. Trimestral

ISSN 1809-5917

1. Direito

– periódicos. Escola Superior do Ministério Público de Goiás.CDU 34 (051)

Escola Superior doMinistério Público do Estado de Goiás

Diretora: Estela de Freitas Rezende

Conselho Editorial: Analice Borges Loyola - Procuradora de JustiçaDenis Augusto Bimbati Marques - Promotor de JustiçaEstela de Freitas Rezende - Promotora de Justiça e Diretora da ESMPFabiana Lemes Zamalloa do Prado - Promotora de JustiçaMarcelo Henrique dos Santos - Promotor de JustiçaMarta Moriya Loyola - Promotora de JustiçaMurilo de Morais e Miranda - Promotor de JustiçaRegina Márcia Himenes dos Santos - Promotora de JustiçaSandra Mara Garbelini - Promotora de JustiçaSimone Disconsi de Sá Campos - Promotora de Justiça

Apresentação .................................................................................................05

ARTIGOS

A associação para o tráfico não é crime antecedente da lavagem de dinheiro .........................................................................................................07Augusto Reis Bittencourt Silva

Meios extraordinários de investigação criminal: infiltrações policiais e entregas vigiadas (controladas) .....................................................................13Flávio Cardoso Pereira

Proteção e inserção da mulher no Estado de Direito: A Lei Maria da Penha ............................................................................................................53Emerson Garcia

Estatuto da Criança e do Adolescente e os riscos do esquecimento ..............81Mario Luiz Ramidoff

A dignidade da pessoa humana e os Direitos Fundamentais ........................91Lorena Ribeiro de Morais

O enfraquecimento da defesa dos Direitos Individuais e Coletivos como conseqüência do uso do discurso carismático......................................... .....113Taísa Caroline dos Santos Machado

A teoria da Carga Dinâmica Probatória sob a perspectiva constitucional de processo ..................................................................................................117Lucas Danilo Vaz Costa Júnior

A construção de uma sociedade aberta e plural para ampliação da força normativa da Constituição...........................................................................143Hugo Ferreira de AraújoJosé Anselmo Curado FleuryMarco Aurélio Matos

SUMÁRIO

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 3

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Legitimidade dos Tribunais de Contas brasileiros na aferição da constitucionalidade das leis e atos normativos .............................................151Pedro Ivo Gomes da Silva Mafra

Direito Sanitário - Saúde Proteção pelo Judiciário .......................................169Isaac Benchimol Ferreira (In Memorian)

PEÇA FUNCIONAL

Recurso em sentido estrito nº 2007-0244-2261 ............................................177Edison Miguel da Silva Jr.

Normas para publicação dos artigos .............................................................181

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/20084

APRESENTAÇÃO

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 5

A Revista do Ministério Público do Estado de Goiás agrupa, nesta 16ª edição, artigos que percorrem diversas searas, integrando abordagens sobre combate à lavagem de dinheiro, reflexo do discurso carismático na defesa dos direitos individuais e coletivos, direito sanitário no espaço constitucional, investigação criminal, inserção e proteção da mulher no Estado de Direito, teoria da carga dinâmica probatória, riscos ao Estatuto da Criança e do Adolescente, dignidade da pessoa humana, legitimidade dos Tribunais de Contas brasileiros e jurisdição constitucional brasileira. Ladeando as considerações doutrinárias, peça funcional - “Recurso em Sentido Estrito”.

Assim como em números anteriores, é vigorosa a proposta de diálogo entre as diferentes áreas do saber, espelhando o Ministério Público Contemporâneo, que busca a integração sócio-acadêmica como referência no pensar e no agir.

Conclama-se, pois, ao aprofundamento dessa fecunda interlocução.

Conselho Editorial da Revista do MP-GO

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Legitimidade dos Tribunais de Contas brasileiros na aferição da constitucionalidade das leis e atos normativos .............................................151Pedro Ivo Gomes da Silva Mafra

Direito Sanitário - Saúde Proteção pelo Judiciário .......................................169Isaac Benchimol Ferreira (In Memorian)

PEÇA FUNCIONAL

Recurso em sentido estrito nº 2007-0244-2261 ............................................177Edison Miguel da Silva Jr.

Normas para publicação dos artigos .............................................................181

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/20084

APRESENTAÇÃO

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 5

A Revista do Ministério Público do Estado de Goiás agrupa, nesta 16ª edição, artigos que percorrem diversas searas, integrando abordagens sobre combate à lavagem de dinheiro, reflexo do discurso carismático na defesa dos direitos individuais e coletivos, direito sanitário no espaço constitucional, investigação criminal, inserção e proteção da mulher no Estado de Direito, teoria da carga dinâmica probatória, riscos ao Estatuto da Criança e do Adolescente, dignidade da pessoa humana, legitimidade dos Tribunais de Contas brasileiros e jurisdição constitucional brasileira. Ladeando as considerações doutrinárias, peça funcional - “Recurso em Sentido Estrito”.

Assim como em números anteriores, é vigorosa a proposta de diálogo entre as diferentes áreas do saber, espelhando o Ministério Público Contemporâneo, que busca a integração sócio-acadêmica como referência no pensar e no agir.

Conclama-se, pois, ao aprofundamento dessa fecunda interlocução.

Conselho Editorial da Revista do MP-GO

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A ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO NÃO É CRIME

ANTECEDENTE DA LAVAGEM DE DINHEIRO

Augusto Reis Bittencourt Silva*

Resumo:O crime de lavagem de dinheiro, tipificado na Lei n. 9.613/98, é um delito parasitário, acessório, exigindo, para sua perfectibilização, a ocorrência de um crime anterior previsto no catálogo cerrado da lei. Dentre os diversos crimes antecedentes indicados na Lei n. 9.613/98, destaca-se a previsão do artigo 1º, inciso I, que estabelece o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins como crime antecedente do branqueamento de capitais. Diante desse contexto, o presente artigo defende a idéia de que o crime de associação para o tráfico, injusto definido no artigo 35 da Lei n. 11.343/2006, não está albergado no inciso I do artigo 1º da lei de lavagem, não podendo ser considerado crime antecedente da lavagem.

Palavras-chave: Lavagem de dinheiro, associação para o tráfico, crime antecedente.

Segundo Rodolfo Tigre Maia (2007, p. 53),

a lavagem de dinheiro pode ser simplificadamente compreendida, sob uma perspectiva teleológica e metajurídica, como o conjunto complexo de operações, integrado pelas etapas de conversão (placement), dissimulação (layering) e integração (integration) de bens, direitos e valores, que tem por finalidade tornar legítimos ativos oriundos da prática de atos ilícitos penais, mascarando esta origem para que os responsáveis possam escapar da ação repressiva da Justiça.

* Promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás, membro do Núcleo de Apoio Técnico do CAO – Cível do MP-GO.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 7Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/20086

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A ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO NÃO É CRIME

ANTECEDENTE DA LAVAGEM DE DINHEIRO

Augusto Reis Bittencourt Silva*

Resumo:O crime de lavagem de dinheiro, tipificado na Lei n. 9.613/98, é um delito parasitário, acessório, exigindo, para sua perfectibilização, a ocorrência de um crime anterior previsto no catálogo cerrado da lei. Dentre os diversos crimes antecedentes indicados na Lei n. 9.613/98, destaca-se a previsão do artigo 1º, inciso I, que estabelece o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins como crime antecedente do branqueamento de capitais. Diante desse contexto, o presente artigo defende a idéia de que o crime de associação para o tráfico, injusto definido no artigo 35 da Lei n. 11.343/2006, não está albergado no inciso I do artigo 1º da lei de lavagem, não podendo ser considerado crime antecedente da lavagem.

Palavras-chave: Lavagem de dinheiro, associação para o tráfico, crime antecedente.

Segundo Rodolfo Tigre Maia (2007, p. 53),

a lavagem de dinheiro pode ser simplificadamente compreendida, sob uma perspectiva teleológica e metajurídica, como o conjunto complexo de operações, integrado pelas etapas de conversão (placement), dissimulação (layering) e integração (integration) de bens, direitos e valores, que tem por finalidade tornar legítimos ativos oriundos da prática de atos ilícitos penais, mascarando esta origem para que os responsáveis possam escapar da ação repressiva da Justiça.

* Promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás, membro do Núcleo de Apoio Técnico do CAO – Cível do MP-GO.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 7Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/20086

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O crime de lavagem de dinheiro, portanto, é parasitário, acessório, de sorte que a sua configuração depende da prática anterior de outro crime, que, no caso brasileiro, tem de estar previsto em catálogo fechado (lei de segunda geração). O rol de crimes antecedentes da lavagem é aberto com o “tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins”. A dificuldade surge porquanto inexiste, na lei penal brasileira, conduta criminosa com o nomen iuris de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou que utilize o verbo “traficar”.

Observe-se a redação do dispositivo que define a lavagem de dinheiro:

Art. 1º. Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente de crime: I - de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes e drogas afins;[...]VII- praticado por organização criminosa. Pena: reclusão, de três a dez anos, e multa.

Consoante referido, se traduz em elemento essencial à configuração da lavagem de dinheiro que o mesmo provenha da prática de infrações penais anteriores (os chamados crimes antecedentes) através dos quais o numerário a ser oculto, ou “lavado”, tenha se originado.

Sobre o tema, cabe transcrever os comentários de Maia (2007, p. 64-65):

Trata-se, à evidência, de delito acessório [...] pressupõe a existência de crime anterior como antecedente lógico incontornável de sua ocorrência, nos moldes da receptação e do favorecimento, tipos com os quais, como já referenciado no início desta obra, a reciclagem guarda semelhança estrutural. [...] O pressuposto objetivo mínimo da imputação, tratando-se de crime acessório, engloba a razoável certeza da existência do crime anterior do qual, quer imediata quer mediatamente, originou-se o bem reciclado. Assim, o órgão ministerial ao oferecer uma denúncia pela prática deste crime deverá

desincumbir-se do ônus probatório prévio de apresentar pelo menos indícios da prática de um crime pressuposto e da vinculação do bem ou bens ocultados àquele ilícito.

Quanto à possibilidade de operar a associação para o tráfico como crime antecedente, o doutrinador prossegue em seu magistério (idem, p. 70):

Vejamos os crimes que devem necessariamente anteceder a prática da lavagem de dinheiro na legislação pátria. São eles: I - Tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins. Os tipos penais abrangidos neste inciso são os arts. 12, 13 e 14 da Lei de Tóxicos (Lei 6.368/76).

O egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região registra precedente em que a associação para o tráfico foi considerada crime antecedente da lavagem de dinheiro:

1. Lavagem de dinheiro é delito acessório que pressupõe a existência de um crime antecedente. 2. A associação para o tráfico, consoante abalizada doutrina, constitui uma das hipóteses previstas no art. 1º, I, da Lei 9.613/98. (TRF da 4ª Região, Apelação criminal n. 2003.71.00.046933-0/RS, relator Desembargador Federal Élcio Pinheiro de Castro)

José Paulo Baltazar Júnior (2008, p. 499) nota que:

[e]m minha posição, na vigência da antiga Lei de Tóxicos, podia ser utilizada como subsídio a interpretação dada na aplicação da Lei n. 8.072/90 para entender que o tráfico abrange as condutas dos artigos 12 e 13 da Lei n. 6.368/76, excluído o fornecimento gratuito no primeiro. A conduta de associação para o tráfico, objeto do art. 14, não seria, assim, crime equiparado a hediondo e, tampouco, antecedente de lavagem de dinheiro. Já no regime da Lei 11.343/06, o art. 44 estende os rigores dos crimes equiparados a hediondos aos tipos previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37, os quais declara 'inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 9Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/20088

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O crime de lavagem de dinheiro, portanto, é parasitário, acessório, de sorte que a sua configuração depende da prática anterior de outro crime, que, no caso brasileiro, tem de estar previsto em catálogo fechado (lei de segunda geração). O rol de crimes antecedentes da lavagem é aberto com o “tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins”. A dificuldade surge porquanto inexiste, na lei penal brasileira, conduta criminosa com o nomen iuris de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou que utilize o verbo “traficar”.

Observe-se a redação do dispositivo que define a lavagem de dinheiro:

Art. 1º. Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente de crime: I - de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes e drogas afins;[...]VII- praticado por organização criminosa. Pena: reclusão, de três a dez anos, e multa.

Consoante referido, se traduz em elemento essencial à configuração da lavagem de dinheiro que o mesmo provenha da prática de infrações penais anteriores (os chamados crimes antecedentes) através dos quais o numerário a ser oculto, ou “lavado”, tenha se originado.

Sobre o tema, cabe transcrever os comentários de Maia (2007, p. 64-65):

Trata-se, à evidência, de delito acessório [...] pressupõe a existência de crime anterior como antecedente lógico incontornável de sua ocorrência, nos moldes da receptação e do favorecimento, tipos com os quais, como já referenciado no início desta obra, a reciclagem guarda semelhança estrutural. [...] O pressuposto objetivo mínimo da imputação, tratando-se de crime acessório, engloba a razoável certeza da existência do crime anterior do qual, quer imediata quer mediatamente, originou-se o bem reciclado. Assim, o órgão ministerial ao oferecer uma denúncia pela prática deste crime deverá

desincumbir-se do ônus probatório prévio de apresentar pelo menos indícios da prática de um crime pressuposto e da vinculação do bem ou bens ocultados àquele ilícito.

Quanto à possibilidade de operar a associação para o tráfico como crime antecedente, o doutrinador prossegue em seu magistério (idem, p. 70):

Vejamos os crimes que devem necessariamente anteceder a prática da lavagem de dinheiro na legislação pátria. São eles: I - Tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins. Os tipos penais abrangidos neste inciso são os arts. 12, 13 e 14 da Lei de Tóxicos (Lei 6.368/76).

O egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região registra precedente em que a associação para o tráfico foi considerada crime antecedente da lavagem de dinheiro:

1. Lavagem de dinheiro é delito acessório que pressupõe a existência de um crime antecedente. 2. A associação para o tráfico, consoante abalizada doutrina, constitui uma das hipóteses previstas no art. 1º, I, da Lei 9.613/98. (TRF da 4ª Região, Apelação criminal n. 2003.71.00.046933-0/RS, relator Desembargador Federal Élcio Pinheiro de Castro)

José Paulo Baltazar Júnior (2008, p. 499) nota que:

[e]m minha posição, na vigência da antiga Lei de Tóxicos, podia ser utilizada como subsídio a interpretação dada na aplicação da Lei n. 8.072/90 para entender que o tráfico abrange as condutas dos artigos 12 e 13 da Lei n. 6.368/76, excluído o fornecimento gratuito no primeiro. A conduta de associação para o tráfico, objeto do art. 14, não seria, assim, crime equiparado a hediondo e, tampouco, antecedente de lavagem de dinheiro. Já no regime da Lei 11.343/06, o art. 44 estende os rigores dos crimes equiparados a hediondos aos tipos previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37, os quais declara 'inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 9Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/20088

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indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos', aumentando, ainda, no parágrafo único, o prazo para concessão de livramento condicional, que fica vedado ao reincidente específico. Com isso, o delito de associação estaria abrangido, também, sob a definição das condutas de tráfico, o que aliás, vai ao encontro da Convenção de Viena, que inclui a associação, no inciso IV da alínea b do art. 3º entre as condutas de tráfico. Desse modo, tem-se que, atualmente, também a associação para o tráfico poderá ser considerada crime antecedente de lavagem de dinheiro.

Todavia, tenho como absolutamente impossível admitir-se que a associação para o tráfico seja considerada crime antecedente do branqueamento de capitais, em homenagem ao postulado constitucional da taxatividade da lei penal. Com efeito, quando a Constituição Federal (artigo 5º, inciso XLIII), a Lei n. 8.072/90 (artigo 2º, caput) e a Lei n. 9.613/98 (artigo 1º, inciso I) aduzem a tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, é inegável que estão sob o espectro normativo de tal conceito apenas os delitos relacionados com a efetiva circulação de drogas.

Tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, para a lei brasileira, consiste na conduta de circular, introduzir droga no meio social, através das várias figuras típicas catalogadas no artigo 33 da Lei n. 11.343/2006. Também podem ser inseridos dentro deste conceito de tráfico os crimes dos artigos 34 e 36 da Lei n. 11.343/06. A simples associação de pessoas com a finalidade de praticar os crimes dos artigos 33, caput e § 1º e 34, não pode ser enquadrada no conceito de tráfico.

O Supremo Tribunal Federal tem sólido repertório jurisprudencial afastando do crime de associação para o tráfico os consectários da Lei n. 8.072/90. Quando a Lei n. 8.072/90 determinava a execução da pena em regime integralmente fechado e vedava a concessão de liberdade provisória, o Supremo Tribunal consolidou o entendimento de que a associação para o tráfico estava fora do âmbito de incidência do conceito de tráfico de drogas, permitindo a execução progressiva da pena e a liberdade provisória.

A propósito, urge citar o seguinte aresto:

EMENTA: HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PROGRESSÃO DO REGIME PRISIONAL. NÃO EQUIPARAÇÃO A CRIME HEDIONDO. O art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90 é explícito ao fixar que somente o tráfico de entorpecentes (art. 12 da Lei 6.368/76) se assemelha aos crimes hediondos para o fim de vetar a possibilidade de progressão do regime prisional. O crime de associação para o tráfico não está previsto na lista do art. 2º da Lei 8.072/90 e, portanto, a esse tipo não se aplica a proibição do § 1º do artigo. Habeas corpus deferido em parte (STF, HC 83656-AC, relator Ministro Nelson Jobim).

Em seu voto, o Ministro Nelson Jobim observou que

se a interpretação elástica e analógica é vedada em direito penal, com muita mais razão deve-se evitar essa postura hermenêutica quando o dispositivo legal prevê restrição séria à incidência de institutos realizadores dos direitos fundamentais, como é a hipótese da progressão do regime prisional. Por outro lado, apesar de existir um vínculo entre o crime de tráfico e o de associação para o fim de praticar o tráfico, não parece que, para esse fim específico, possa existir equiparação.

O Ministro Sepúlveda Pertence, por ocasião do julgamento do HC 75.978, assinalou com propriedade que o crime de associação não pode ser considerado como “tráfico ilícito de substâncias entorpecentes”. Eis o trecho do seu voto:

a alusão ao tráfico ilícito de entorpecentes – correspondente a modalidades, ou, na pior das hipóteses, a todas as figuras do tipo múltiplo do art. 12 da Lei 6.368/76 – não se pode estender à figura do art. 14 do mesmo diploma – que se consuma com a associação destinada à sua prática. A distinção ontológica está clara no art. 8º da lei, ao exacerbar a pena do delito de quadrilha, cominada no Código Penal, quando se tratar – isto é, quando visar a societas sceleris – entre outros, à comissão do tráfico ilícito de entorpecentes: vale a referência para deixar

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 11Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200810

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indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos', aumentando, ainda, no parágrafo único, o prazo para concessão de livramento condicional, que fica vedado ao reincidente específico. Com isso, o delito de associação estaria abrangido, também, sob a definição das condutas de tráfico, o que aliás, vai ao encontro da Convenção de Viena, que inclui a associação, no inciso IV da alínea b do art. 3º entre as condutas de tráfico. Desse modo, tem-se que, atualmente, também a associação para o tráfico poderá ser considerada crime antecedente de lavagem de dinheiro.

Todavia, tenho como absolutamente impossível admitir-se que a associação para o tráfico seja considerada crime antecedente do branqueamento de capitais, em homenagem ao postulado constitucional da taxatividade da lei penal. Com efeito, quando a Constituição Federal (artigo 5º, inciso XLIII), a Lei n. 8.072/90 (artigo 2º, caput) e a Lei n. 9.613/98 (artigo 1º, inciso I) aduzem a tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, é inegável que estão sob o espectro normativo de tal conceito apenas os delitos relacionados com a efetiva circulação de drogas.

Tráfico ilícito de substâncias entorpecentes, para a lei brasileira, consiste na conduta de circular, introduzir droga no meio social, através das várias figuras típicas catalogadas no artigo 33 da Lei n. 11.343/2006. Também podem ser inseridos dentro deste conceito de tráfico os crimes dos artigos 34 e 36 da Lei n. 11.343/06. A simples associação de pessoas com a finalidade de praticar os crimes dos artigos 33, caput e § 1º e 34, não pode ser enquadrada no conceito de tráfico.

O Supremo Tribunal Federal tem sólido repertório jurisprudencial afastando do crime de associação para o tráfico os consectários da Lei n. 8.072/90. Quando a Lei n. 8.072/90 determinava a execução da pena em regime integralmente fechado e vedava a concessão de liberdade provisória, o Supremo Tribunal consolidou o entendimento de que a associação para o tráfico estava fora do âmbito de incidência do conceito de tráfico de drogas, permitindo a execução progressiva da pena e a liberdade provisória.

A propósito, urge citar o seguinte aresto:

EMENTA: HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PROGRESSÃO DO REGIME PRISIONAL. NÃO EQUIPARAÇÃO A CRIME HEDIONDO. O art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90 é explícito ao fixar que somente o tráfico de entorpecentes (art. 12 da Lei 6.368/76) se assemelha aos crimes hediondos para o fim de vetar a possibilidade de progressão do regime prisional. O crime de associação para o tráfico não está previsto na lista do art. 2º da Lei 8.072/90 e, portanto, a esse tipo não se aplica a proibição do § 1º do artigo. Habeas corpus deferido em parte (STF, HC 83656-AC, relator Ministro Nelson Jobim).

Em seu voto, o Ministro Nelson Jobim observou que

se a interpretação elástica e analógica é vedada em direito penal, com muita mais razão deve-se evitar essa postura hermenêutica quando o dispositivo legal prevê restrição séria à incidência de institutos realizadores dos direitos fundamentais, como é a hipótese da progressão do regime prisional. Por outro lado, apesar de existir um vínculo entre o crime de tráfico e o de associação para o fim de praticar o tráfico, não parece que, para esse fim específico, possa existir equiparação.

O Ministro Sepúlveda Pertence, por ocasião do julgamento do HC 75.978, assinalou com propriedade que o crime de associação não pode ser considerado como “tráfico ilícito de substâncias entorpecentes”. Eis o trecho do seu voto:

a alusão ao tráfico ilícito de entorpecentes – correspondente a modalidades, ou, na pior das hipóteses, a todas as figuras do tipo múltiplo do art. 12 da Lei 6.368/76 – não se pode estender à figura do art. 14 do mesmo diploma – que se consuma com a associação destinada à sua prática. A distinção ontológica está clara no art. 8º da lei, ao exacerbar a pena do delito de quadrilha, cominada no Código Penal, quando se tratar – isto é, quando visar a societas sceleris – entre outros, à comissão do tráfico ilícito de entorpecentes: vale a referência para deixar

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 11Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200810

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claro que, aos fins da lei – como de resto, é cediço – o delito de associação para delinqüir não se confunde com os que sejam objeto dela.

Ora, se os princípios que informam o Direito Penal abominam a equiparação do crime de tráfico com o de associação para o fim de praticar o tráfico, no que tange ao regime jurídico dos crimes hediondos, com muita mais razão essa equiparação não pode ser admitida para viabilizar a ocorrência de outro crime, qual seja, a lavagem de dinheiro. Se a equiparação é proibida para impor ao delito de associação para o tráfico os consectários da hediondez, não se pode admitir, em um sistema penal informado pelo princípio democrático, que a equiparação seja empregada para criar crimes.

O fato de a Lei n. 11.343/06 ter conferido ao crime de associação para o tráfico o mesmo regime jurídico do crime de tráfico (artigo 44, caput), obstando a concessão de fiança, o sursis, a graça, o indulto, a anistia, a liberdade provisória e a conversão da pena privativa de liberdade em restritivas de direito, não tem o condão de alterar a natureza dos institutos. A equiparação do regime jurídico decorre de postulados da política criminal brasileira, que não significa mudança na natureza do crime de associação.

Portanto, em homenagem ao princípio da legalidade, postulado informativo do Direito Penal do Cidadão, o crime de associação para o tráfico, tipificado no artigo 35 da Lei n. 11.343/06, não pode ser considerado crime antecedente da lavagem de dinheiro, eis que fora do espectro normativo do artigo 1º, inciso I, da Lei n. 9.613/98.

Referências

MAIA, R. T. Lavagem de dinheiro. Anotações às disposições criminais da Lei n. 9.613/98. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

BALTAZAR JÚNIOR, J. P. Crimes Federais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200812

MEIOS EXTRAORDINÁRIOS DE INVESTIGAÇÃO

CRIMINAL: INFILTRAÇÕES POLICIAIS E ENTREGAS

VIGIADAS (CONTROLADAS)*

Flávio Cardoso Pereira**

Resumo:A expansão recente do fenômeno da delinquência organizada, notadamente no tocante ao narcotráfico, acabou por despertar a comunidade jurídica internacional acerca de um grave problema que aflige o processo penal hodierno: a insuficiência dos tradicionais meios de investigação criminal. Aliada a esta situação deve ser registrada a percepção de uma tensão de forças no processo penal (eficácia vs. garantias), fato este que conduz a uma necessária busca de um harmônico equilíbrio processual. Diante desse contexto, surgem novas técnicas de investigação, a exemplo das infiltrações policiais e das entregas vigiadas, as quais, se permeadas pela obediência aos princípios da proporcionalidade e do devido processo legal, poderão em muito contribuir na busca do alcance do controle da criminalidade.

Palavras-chave: investigação criminal, Direito Processual Penal do Inimigo, delinquência organizada, meios de investigação criminal, entregas vigiadas, infiltrações policiais.

Introdução

O tema abordado no presente escrito jurídico-penal refere-se

* Artigo originalmente publicado na Revista da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais, São Paulo, RT, v. 6, p. 199-226, jan./jul. 2007.** Promotor de Justiça MP-GO, professor convidado do Curso de Especialização em Ciências Criminais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor convidado da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (LFG) no Curso de Especialização em Limites Constitucionais da Investigação, pós-graduado em Direito Penal pela USAL – Espanha, especialista em combate à criminalidade organizada, terrorismo e corrupção pela Universidade de Salamanca – Espanha, doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca – Espanha, coordenador da ABPCP (Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais) no Estado de Goiás.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 13

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claro que, aos fins da lei – como de resto, é cediço – o delito de associação para delinqüir não se confunde com os que sejam objeto dela.

Ora, se os princípios que informam o Direito Penal abominam a equiparação do crime de tráfico com o de associação para o fim de praticar o tráfico, no que tange ao regime jurídico dos crimes hediondos, com muita mais razão essa equiparação não pode ser admitida para viabilizar a ocorrência de outro crime, qual seja, a lavagem de dinheiro. Se a equiparação é proibida para impor ao delito de associação para o tráfico os consectários da hediondez, não se pode admitir, em um sistema penal informado pelo princípio democrático, que a equiparação seja empregada para criar crimes.

O fato de a Lei n. 11.343/06 ter conferido ao crime de associação para o tráfico o mesmo regime jurídico do crime de tráfico (artigo 44, caput), obstando a concessão de fiança, o sursis, a graça, o indulto, a anistia, a liberdade provisória e a conversão da pena privativa de liberdade em restritivas de direito, não tem o condão de alterar a natureza dos institutos. A equiparação do regime jurídico decorre de postulados da política criminal brasileira, que não significa mudança na natureza do crime de associação.

Portanto, em homenagem ao princípio da legalidade, postulado informativo do Direito Penal do Cidadão, o crime de associação para o tráfico, tipificado no artigo 35 da Lei n. 11.343/06, não pode ser considerado crime antecedente da lavagem de dinheiro, eis que fora do espectro normativo do artigo 1º, inciso I, da Lei n. 9.613/98.

Referências

MAIA, R. T. Lavagem de dinheiro. Anotações às disposições criminais da Lei n. 9.613/98. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

BALTAZAR JÚNIOR, J. P. Crimes Federais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200812

MEIOS EXTRAORDINÁRIOS DE INVESTIGAÇÃO

CRIMINAL: INFILTRAÇÕES POLICIAIS E ENTREGAS

VIGIADAS (CONTROLADAS)*

Flávio Cardoso Pereira**

Resumo:A expansão recente do fenômeno da delinquência organizada, notadamente no tocante ao narcotráfico, acabou por despertar a comunidade jurídica internacional acerca de um grave problema que aflige o processo penal hodierno: a insuficiência dos tradicionais meios de investigação criminal. Aliada a esta situação deve ser registrada a percepção de uma tensão de forças no processo penal (eficácia vs. garantias), fato este que conduz a uma necessária busca de um harmônico equilíbrio processual. Diante desse contexto, surgem novas técnicas de investigação, a exemplo das infiltrações policiais e das entregas vigiadas, as quais, se permeadas pela obediência aos princípios da proporcionalidade e do devido processo legal, poderão em muito contribuir na busca do alcance do controle da criminalidade.

Palavras-chave: investigação criminal, Direito Processual Penal do Inimigo, delinquência organizada, meios de investigação criminal, entregas vigiadas, infiltrações policiais.

Introdução

O tema abordado no presente escrito jurídico-penal refere-se

* Artigo originalmente publicado na Revista da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais, São Paulo, RT, v. 6, p. 199-226, jan./jul. 2007.** Promotor de Justiça MP-GO, professor convidado do Curso de Especialização em Ciências Criminais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor convidado da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (LFG) no Curso de Especialização em Limites Constitucionais da Investigação, pós-graduado em Direito Penal pela USAL – Espanha, especialista em combate à criminalidade organizada, terrorismo e corrupção pela Universidade de Salamanca – Espanha, doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca – Espanha, coordenador da ABPCP (Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais) no Estado de Goiás.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 13

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a uma das discussões mais intensas travadas, atualmente, no âmbito doutrinário europeu: a utilização e regulação dos meios extraordinários de investigação criminal, em face da insuficiência dos meios de investigação “tradicionais” na contenção da expansão da delinquência organizada. No Brasil, o assunto ainda não foi

1exaustivamente tratado . Por outro lado, imperioso reconhecer que já se escreveram

rios de tintas acerca da problemática da busca de solução do conflito instalado entre a eficácia penal acusatória em contraposição ao necessário respeito aos direitos e garantias das pessoas investigadas ou acusadas. Porém, poucas conclusões foram atingidas e o pior, poucas soluções foram apresentadas.

De início, tratar-se-á da intensa discussão dogmática relacionada à existência de uma tensão de forças que desperta considerável conflito no âmbito processual penal.

Abordar-se-á, igualmente, a necessidade de estabelecimento de uma “zona de equilíbrio” que visa buscar soluções aceitáveis do ponto de vista de obtenção da eficiência penal.

Em um segundo momento será feita uma aproximação ao tema da regressão das garantias penais, abordando-se, principalmente, o trágico surgimento de corrente doutrinária legitimadora de um Direito Penal e Processual Penal do Inimigo. Ademais, importante também será uma perfunctória abordagem a respeito da avassaladora expansão do fenômeno da delinquência organizada.

Por fim, como nosso objetivo, tratar-se-á dos denominados “novos” meios de investigação criminal, notadamente as entregas vigiadas ou controladas e as infiltrações policiais, com destaque para a análise da desastrosa legislação brasileira (Leis 9.034/95 e 11.343/06) que regula essas duas formas de busca da eficácia persecutória no processo penal.

Processo penal e a tensão de forças

Um questionamento inicial deverá ser realizado, no intuito de uma melhor compreensão do tema: o processo penal, nos dias atuais, goza de boa saúde? Essa é a grande incerteza sobre a qual lançaremos nosso olhar crítico.

O drama e a tragédia da persecução criminal transcorrem cotidianamente em um cenário formado por duas forças diretivas que colidem tensamente, acarretando a contrariedade fundamental da persecução criminal: quanto mais intensamente se procura demonstrar a existência do fato delituoso e sua autoria (princípio instrumental punitivo), mais se distancia da garantia dos direitos fundamentais e, quanto mais intensamente se garantem os direitos fundamentais (princípio instrumental garantista), mais difícil se torna a coleta e a produção de provas que poderão demonstrar a

2existência do fato delituoso e sua autoria .Surge, então, o dilema: garantismo penal ou eficácia da

pretensão acusatória? O que deve prevalecer?Desde essa perspectiva, é fato incontestável que, no processo

penal hodierno, convergem duas destacadas forças: de um lado, o Estado, como titular exclusivo do direito de punir (ius puniendi), cuja aplicação somente será possível através da instrumentalização do processo; de outro, a imperiosa e latente necessidade de que as pessoas submetidas ao processo penal permaneçam livres e protegidas de eventuais abusos e atos arbitrários, mediante a garantia

3de seus direitos, em especial o de defesa .Mas a pergunta que não quer calar seria: qual dessas forças

que provocam uma tensão de interesses no processo penal deve ser considerada mais importante?

Em nossa opinião, uma abordagem honesta a respeito dessa dúvida nos leva a ilação de que a melhor resposta seria a de que, a priori, não se pode afirmar a prevalência de uma sobre a outra.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 15Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200814

1 Exceções feitas às obras de: PACHECO, D. F. Direito Processual Penal. Teoria, crítica e práxis. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006; MENDRONI, M. B. Crime organizado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007; SILVA, E. A. Crime organizado. Procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003; MORADILLO PINTO, S. Infiltração policial nas organizações criminosas. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2007; e PACHECO, R. Crime organizado. Medidas de controle e infiltração policial. Curitiba: Juruá, 2007.

2 PACHECO, D. F. O princípio da proporcionalidade no Direito Processual Penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 3.3 Vid. GUZMÁN FLUJA, V. El agente encubierto y las garantías del proceso penal. In: CATENA, V. M.; ZAPATERO, L. A. La prueba en el espacio europeo de libertad, seguridad y justicia penal. Navarra: Thomson Aranzadi, 2006.

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a uma das discussões mais intensas travadas, atualmente, no âmbito doutrinário europeu: a utilização e regulação dos meios extraordinários de investigação criminal, em face da insuficiência dos meios de investigação “tradicionais” na contenção da expansão da delinquência organizada. No Brasil, o assunto ainda não foi

1exaustivamente tratado . Por outro lado, imperioso reconhecer que já se escreveram

rios de tintas acerca da problemática da busca de solução do conflito instalado entre a eficácia penal acusatória em contraposição ao necessário respeito aos direitos e garantias das pessoas investigadas ou acusadas. Porém, poucas conclusões foram atingidas e o pior, poucas soluções foram apresentadas.

De início, tratar-se-á da intensa discussão dogmática relacionada à existência de uma tensão de forças que desperta considerável conflito no âmbito processual penal.

Abordar-se-á, igualmente, a necessidade de estabelecimento de uma “zona de equilíbrio” que visa buscar soluções aceitáveis do ponto de vista de obtenção da eficiência penal.

Em um segundo momento será feita uma aproximação ao tema da regressão das garantias penais, abordando-se, principalmente, o trágico surgimento de corrente doutrinária legitimadora de um Direito Penal e Processual Penal do Inimigo. Ademais, importante também será uma perfunctória abordagem a respeito da avassaladora expansão do fenômeno da delinquência organizada.

Por fim, como nosso objetivo, tratar-se-á dos denominados “novos” meios de investigação criminal, notadamente as entregas vigiadas ou controladas e as infiltrações policiais, com destaque para a análise da desastrosa legislação brasileira (Leis 9.034/95 e 11.343/06) que regula essas duas formas de busca da eficácia persecutória no processo penal.

Processo penal e a tensão de forças

Um questionamento inicial deverá ser realizado, no intuito de uma melhor compreensão do tema: o processo penal, nos dias atuais, goza de boa saúde? Essa é a grande incerteza sobre a qual lançaremos nosso olhar crítico.

O drama e a tragédia da persecução criminal transcorrem cotidianamente em um cenário formado por duas forças diretivas que colidem tensamente, acarretando a contrariedade fundamental da persecução criminal: quanto mais intensamente se procura demonstrar a existência do fato delituoso e sua autoria (princípio instrumental punitivo), mais se distancia da garantia dos direitos fundamentais e, quanto mais intensamente se garantem os direitos fundamentais (princípio instrumental garantista), mais difícil se torna a coleta e a produção de provas que poderão demonstrar a

2existência do fato delituoso e sua autoria .Surge, então, o dilema: garantismo penal ou eficácia da

pretensão acusatória? O que deve prevalecer?Desde essa perspectiva, é fato incontestável que, no processo

penal hodierno, convergem duas destacadas forças: de um lado, o Estado, como titular exclusivo do direito de punir (ius puniendi), cuja aplicação somente será possível através da instrumentalização do processo; de outro, a imperiosa e latente necessidade de que as pessoas submetidas ao processo penal permaneçam livres e protegidas de eventuais abusos e atos arbitrários, mediante a garantia

3de seus direitos, em especial o de defesa .Mas a pergunta que não quer calar seria: qual dessas forças

que provocam uma tensão de interesses no processo penal deve ser considerada mais importante?

Em nossa opinião, uma abordagem honesta a respeito dessa dúvida nos leva a ilação de que a melhor resposta seria a de que, a priori, não se pode afirmar a prevalência de uma sobre a outra.

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1 Exceções feitas às obras de: PACHECO, D. F. Direito Processual Penal. Teoria, crítica e práxis. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006; MENDRONI, M. B. Crime organizado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007; SILVA, E. A. Crime organizado. Procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003; MORADILLO PINTO, S. Infiltração policial nas organizações criminosas. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2007; e PACHECO, R. Crime organizado. Medidas de controle e infiltração policial. Curitiba: Juruá, 2007.

2 PACHECO, D. F. O princípio da proporcionalidade no Direito Processual Penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 3.3 Vid. GUZMÁN FLUJA, V. El agente encubierto y las garantías del proceso penal. In: CATENA, V. M.; ZAPATERO, L. A. La prueba en el espacio europeo de libertad, seguridad y justicia penal. Navarra: Thomson Aranzadi, 2006.

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Sobre tal discussão, Roxin já demonstrava, anos atrás, sua preocupação, destacando que, frente ao poder estatal monopolizado de exercício do ius puniendi surge a necessidade de limitá-lo para proteger os inocentes frente às persecuções injustas,

4mediante a formalização do processo penal .A partir do momento em que processo penal tem a missão

de dirimir os conflitos surgidos, eliminando-os, independente do resultado atingido ao fim da persecução penal, absolvição ou condenação, lógico é concluir que, na busca da eficácia penal em sentido amplo, importante seria que, quando do surgimento desse conflito de forças, se buscasse visualizar uma “zona de equilíbrio”.

Desde já, fica claro que o instrumento mais adequado para se estabelecerem as bases de uma zona de equilíbrio será o

5princípio da proporcionalidade .A proporcionalidade no processo penal deverá ser

encarada no sentido de que, diante da colisão de direitos igualmente tratados em sede constitucional, deverá buscar-se uma decisão de prevalência, considerada pelo peso dos princípios constitucionais, ponderando-se a adequação e a estrita necessidade da autorização excepcional de utilização de instrumentos ou medidas processuais que possam violar direitos e garantias fundamentais, na busca da manutenção da segurança coletiva.

Nessa linha, incoerente seria não reconhecer que o Direito processual penal conforma e disciplina uma série de princípios e garantias, estabelecendo-se uma obrigatória conjugação do processo penal e da Constituição, ou, dito de outra forma, não há como se estudar e sistematizar este ramo do direito sem o reconhecimento de um Direito processual penal constitucional.

Corroborando tal assertiva, Roxin sustenta, na Alemanha, 6que o Direito processual penal é o sismógrafo da Constituição .

Analisada, pois, sucintamente, a questão da tensão de forças na persecução criminal e partindo-se do pressuposto ora defendido de que o modelo constitucional impregna o processo penal, é de notória importância e necessidade reconhecer que essas forças, aparentemente igualitárias e, ao mesmo tempo, diametralmente contrapostas, devem ser chamadas a se equilibrarem, buscando-se uma adequada harmonia e interação.

A razão é simples, pois ambas as forças que se atritam, legitimação do ius puniendi e proteção dos direitos fundamentais, podem e devem ser consideradas bens jurídicos dignos de proteção constitucional.

A conformação constitucional de tal situação leva-nos a compreender que, em um sistema processual penal atrelado à busca de um processo eficaz e, ao mesmo tempo, justo, deverá ser visualizada a eficiência do processo, tanto sob a perspectiva da proteção dos direitos e garantias fundamentais do investigado ou imputado, quanto sob a ótica de atuação do direito de punir estatal.

Nesse sentido, interessante a opinião de Ubertis, aduzindo que os termos do debate entre o êxito na persecução do delito e o respeito dos direitos do acusado poderiam sintetizar-se dizendo que um sistema processual penal, especialmente no que se refere à prova, não somente deve inspirar-se no respeito às normas que garantem os direitos do imputado, nem tampouco só na prescrição de quanto seja apto para descobrir a verdade e, em geral, garantir uma eficaz persecução; deve olhar ou deve servir, mais essencialmente para estabelecer disposições hierárquicas entre valores processuais e extraprocessuais, regulando o modo de resolver na hipótese de

7eventuais colisões entre garantia e eficácia .Não nos parece correto admitir que a busca dessa “zona de

equilíbrio” no processo penal seja tarefa fácil. Pelo contrário, diante dos interesses contrapostos em jogo torna-se árdua a visualização desse espaço harmônico que proporcione a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 17Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200816

4 ROXIN, C. Derecho Procesal Penal. Trad. de Gabriela Córdoba. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2003. p. 2.5 Sobre este princípio, vide as excepcionais obras de: PACHECO, D. F, O princípio da proporcionalidade no Direito Processual Penal brasileiro, op. cit.; CUELLAR-SERRANO, N. G. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990; PULIDO, C. B. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2005; LOPERA MESA, G. P. Principio de proporcionalidad y ley penal. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2006.

6 ROXIN, C. Derecho Procesal Penal, op. cit., p. 9 e ss.7 UBERTIS, G. La ricerca della verità giudiziale. In: AA.VV. La conoscenza del fatto nel processo penale, a cura dello stesso. Milano: Giuffré, 1992. p. 36-37.

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Sobre tal discussão, Roxin já demonstrava, anos atrás, sua preocupação, destacando que, frente ao poder estatal monopolizado de exercício do ius puniendi surge a necessidade de limitá-lo para proteger os inocentes frente às persecuções injustas,

4mediante a formalização do processo penal .A partir do momento em que processo penal tem a missão

de dirimir os conflitos surgidos, eliminando-os, independente do resultado atingido ao fim da persecução penal, absolvição ou condenação, lógico é concluir que, na busca da eficácia penal em sentido amplo, importante seria que, quando do surgimento desse conflito de forças, se buscasse visualizar uma “zona de equilíbrio”.

Desde já, fica claro que o instrumento mais adequado para se estabelecerem as bases de uma zona de equilíbrio será o

5princípio da proporcionalidade .A proporcionalidade no processo penal deverá ser

encarada no sentido de que, diante da colisão de direitos igualmente tratados em sede constitucional, deverá buscar-se uma decisão de prevalência, considerada pelo peso dos princípios constitucionais, ponderando-se a adequação e a estrita necessidade da autorização excepcional de utilização de instrumentos ou medidas processuais que possam violar direitos e garantias fundamentais, na busca da manutenção da segurança coletiva.

Nessa linha, incoerente seria não reconhecer que o Direito processual penal conforma e disciplina uma série de princípios e garantias, estabelecendo-se uma obrigatória conjugação do processo penal e da Constituição, ou, dito de outra forma, não há como se estudar e sistematizar este ramo do direito sem o reconhecimento de um Direito processual penal constitucional.

Corroborando tal assertiva, Roxin sustenta, na Alemanha, 6que o Direito processual penal é o sismógrafo da Constituição .

Analisada, pois, sucintamente, a questão da tensão de forças na persecução criminal e partindo-se do pressuposto ora defendido de que o modelo constitucional impregna o processo penal, é de notória importância e necessidade reconhecer que essas forças, aparentemente igualitárias e, ao mesmo tempo, diametralmente contrapostas, devem ser chamadas a se equilibrarem, buscando-se uma adequada harmonia e interação.

A razão é simples, pois ambas as forças que se atritam, legitimação do ius puniendi e proteção dos direitos fundamentais, podem e devem ser consideradas bens jurídicos dignos de proteção constitucional.

A conformação constitucional de tal situação leva-nos a compreender que, em um sistema processual penal atrelado à busca de um processo eficaz e, ao mesmo tempo, justo, deverá ser visualizada a eficiência do processo, tanto sob a perspectiva da proteção dos direitos e garantias fundamentais do investigado ou imputado, quanto sob a ótica de atuação do direito de punir estatal.

Nesse sentido, interessante a opinião de Ubertis, aduzindo que os termos do debate entre o êxito na persecução do delito e o respeito dos direitos do acusado poderiam sintetizar-se dizendo que um sistema processual penal, especialmente no que se refere à prova, não somente deve inspirar-se no respeito às normas que garantem os direitos do imputado, nem tampouco só na prescrição de quanto seja apto para descobrir a verdade e, em geral, garantir uma eficaz persecução; deve olhar ou deve servir, mais essencialmente para estabelecer disposições hierárquicas entre valores processuais e extraprocessuais, regulando o modo de resolver na hipótese de

7eventuais colisões entre garantia e eficácia .Não nos parece correto admitir que a busca dessa “zona de

equilíbrio” no processo penal seja tarefa fácil. Pelo contrário, diante dos interesses contrapostos em jogo torna-se árdua a visualização desse espaço harmônico que proporcione a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 17Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200816

4 ROXIN, C. Derecho Procesal Penal. Trad. de Gabriela Córdoba. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2003. p. 2.5 Sobre este princípio, vide as excepcionais obras de: PACHECO, D. F, O princípio da proporcionalidade no Direito Processual Penal brasileiro, op. cit.; CUELLAR-SERRANO, N. G. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990; PULIDO, C. B. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2005; LOPERA MESA, G. P. Principio de proporcionalidad y ley penal. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2006.

6 ROXIN, C. Derecho Procesal Penal, op. cit., p. 9 e ss.7 UBERTIS, G. La ricerca della verità giudiziale. In: AA.VV. La conoscenza del fatto nel processo penale, a cura dello stesso. Milano: Giuffré, 1992. p. 36-37.

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possibilidade de convivência entre a eficácia da pretensão acusatória e a preservação das garantias fundamentais.

Na verdade, essa “zona de equilíbrio” deverá ser mais bem compreendida como sistematização de uma série de pontos de equilíbrio, não se imaginando utopicamente a existência de um ponto único de equilíbrio como fórmula mágica de eliminação da tensão de forças que contagia o processo penal moderno. Torno a repetir: imprescindível, na busca desses pretensos pontos de equilíbrio, será a incorporação à problemática do princípio da proporcionalidade aplicado ao processo penal. Dito em conclusão, embora sejam complexos a delimitação e o delineamento dessa zona de equilíbrio, pode-se concluir que nunca podemos admitir sua impossibilidade, sob pena de pactuarmos com a perpetuação desse dilema que provoca inúmeros efeitos negativos, no tocante à manutenção da credibilidade do instrumental processual, bem como de um sistema penal justo. Em suma, poder-se-ia afirmar que, embora não goze de boa saúde, o processo penal tende a obter maior vigor e força, bastando, para isso, a insistência em se delimitar uma zona de equilíbrio que compatibilize o paradoxo eficácia versus garantia.

A regressão das garantias penais e processuais penais

Abordada a questão da dificuldade da concreção de uma zona de equilíbrio tendente a harmonizar a tensão existente entre a legitimação do direito de punir estatal e a preservação dos direitos e garantias fundamentais surge, hodiernamente, um fator de agravamento dessa situação.

Não se deve olvidar que o processo penal, nos últimos tempos, adquiriu e atingiu um grau de evolução nunca antes imaginado. Conquistas de índole garantista podem ser visualizadas nos modernos ordenamentos processuais penais e constitucionais dos países democráticos.

Eis que, no ano de 2001, após os atentados terroristas ocorridos em 11 de setembro nas cidades de Nova Iorque e Washington, instala-se uma total paranóia a respeito da vulnerabilidade da segurança coletiva.

Questiona-se, intensamente, acerca da existência de uma

8sociedade de riscos que, na concepção de Ulrich Beck , pode ser entendida como uma institucionalização da insegurança.

Fruto de tal esquizofrênica sensação de alarme mundial, e agravadas por outros atos de terrorismo ocorridos na Espanha (11 de março de 2004), em Londres (7 de julho de 2005), e outros de menor repercussão (Bali e Egito), surgem situações concretas que demonstram um desprezo quase que cruel pelos direitos e garantias fundamentais conquistados com muita luta e perseverança.

Dentre as hipóteses que causaram maior impacto no âmbito pela latente demonstração de respostas estatais que provocaram a negação pura de direitos fundamentais, citem-se a detenção de talibãs na prisão norte-americana de Guantánamo, em Cuba, e a edição da Patriot Act, nos Estados Unidos da América, legislação de nítido caráter emergencial visando ao endurecimento no tratamento dos suspeitos de terrorismo etc.

Como resposta ou consequência quase que imediata a toda essa situação de caos surge a inacreditável e incompreensível defesa, pelo professor Gunther Jakobs, da tese de um Direito penal do inimigo, que melhor poderia ser compreendido como um

9Direito processual penal do inimigo .As origens históricas dessa construção dogmática, retomada

por Jakobs como tese afirmativa, legitimadora e justificadora, desde 1999, mas efetivamente a partir de 2003, podem ser buscadas em Rousseau, Kant e Hobbes.

Segundo Muñoz Conde, nos últimos cinco anos e, sobretudo, desde os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque e Washington observa-se, não somente nos EUA, mas também em outros tantos países, uma tendência crescente até se

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 19Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200818

8 Sobre esta construção dogmática, vide: BECK, U. La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 2002.9 Nesse sentido, vide: MORENO, J. D. ¿Un derecho procesal de enemigos? Derecho penal del enemigo. El discurso penal de la exclusión (2 volúmenes). Cancio Meliá Manuel/Gómez-Jara Díez Carlos (Coordinadores). Buenos Aires: BdeF, 2006; PORTILLA CONTRERAS, G. El derecho penal y procesal del enemigo: las viejas y nuevas políticas de seguridad frente a los peligros internos-externos. In: LÓPEZ BARJA DE QUIROGA, J.; ZUGALDÍA ESPINAR, J. M. (Coords). Dogmática y ley penal. Madrid: Pons, Madrid, 2004. p. 693-720.

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possibilidade de convivência entre a eficácia da pretensão acusatória e a preservação das garantias fundamentais.

Na verdade, essa “zona de equilíbrio” deverá ser mais bem compreendida como sistematização de uma série de pontos de equilíbrio, não se imaginando utopicamente a existência de um ponto único de equilíbrio como fórmula mágica de eliminação da tensão de forças que contagia o processo penal moderno. Torno a repetir: imprescindível, na busca desses pretensos pontos de equilíbrio, será a incorporação à problemática do princípio da proporcionalidade aplicado ao processo penal. Dito em conclusão, embora sejam complexos a delimitação e o delineamento dessa zona de equilíbrio, pode-se concluir que nunca podemos admitir sua impossibilidade, sob pena de pactuarmos com a perpetuação desse dilema que provoca inúmeros efeitos negativos, no tocante à manutenção da credibilidade do instrumental processual, bem como de um sistema penal justo. Em suma, poder-se-ia afirmar que, embora não goze de boa saúde, o processo penal tende a obter maior vigor e força, bastando, para isso, a insistência em se delimitar uma zona de equilíbrio que compatibilize o paradoxo eficácia versus garantia.

A regressão das garantias penais e processuais penais

Abordada a questão da dificuldade da concreção de uma zona de equilíbrio tendente a harmonizar a tensão existente entre a legitimação do direito de punir estatal e a preservação dos direitos e garantias fundamentais surge, hodiernamente, um fator de agravamento dessa situação.

Não se deve olvidar que o processo penal, nos últimos tempos, adquiriu e atingiu um grau de evolução nunca antes imaginado. Conquistas de índole garantista podem ser visualizadas nos modernos ordenamentos processuais penais e constitucionais dos países democráticos.

Eis que, no ano de 2001, após os atentados terroristas ocorridos em 11 de setembro nas cidades de Nova Iorque e Washington, instala-se uma total paranóia a respeito da vulnerabilidade da segurança coletiva.

Questiona-se, intensamente, acerca da existência de uma

8sociedade de riscos que, na concepção de Ulrich Beck , pode ser entendida como uma institucionalização da insegurança.

Fruto de tal esquizofrênica sensação de alarme mundial, e agravadas por outros atos de terrorismo ocorridos na Espanha (11 de março de 2004), em Londres (7 de julho de 2005), e outros de menor repercussão (Bali e Egito), surgem situações concretas que demonstram um desprezo quase que cruel pelos direitos e garantias fundamentais conquistados com muita luta e perseverança.

Dentre as hipóteses que causaram maior impacto no âmbito pela latente demonstração de respostas estatais que provocaram a negação pura de direitos fundamentais, citem-se a detenção de talibãs na prisão norte-americana de Guantánamo, em Cuba, e a edição da Patriot Act, nos Estados Unidos da América, legislação de nítido caráter emergencial visando ao endurecimento no tratamento dos suspeitos de terrorismo etc.

Como resposta ou consequência quase que imediata a toda essa situação de caos surge a inacreditável e incompreensível defesa, pelo professor Gunther Jakobs, da tese de um Direito penal do inimigo, que melhor poderia ser compreendido como um

9Direito processual penal do inimigo .As origens históricas dessa construção dogmática, retomada

por Jakobs como tese afirmativa, legitimadora e justificadora, desde 1999, mas efetivamente a partir de 2003, podem ser buscadas em Rousseau, Kant e Hobbes.

Segundo Muñoz Conde, nos últimos cinco anos e, sobretudo, desde os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque e Washington observa-se, não somente nos EUA, mas também em outros tantos países, uma tendência crescente até se

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8 Sobre esta construção dogmática, vide: BECK, U. La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 2002.9 Nesse sentido, vide: MORENO, J. D. ¿Un derecho procesal de enemigos? Derecho penal del enemigo. El discurso penal de la exclusión (2 volúmenes). Cancio Meliá Manuel/Gómez-Jara Díez Carlos (Coordinadores). Buenos Aires: BdeF, 2006; PORTILLA CONTRERAS, G. El derecho penal y procesal del enemigo: las viejas y nuevas políticas de seguridad frente a los peligros internos-externos. In: LÓPEZ BARJA DE QUIROGA, J.; ZUGALDÍA ESPINAR, J. M. (Coords). Dogmática y ley penal. Madrid: Pons, Madrid, 2004. p. 693-720.

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atingir o que o penalista alemão Gunther Jakobs denomina de um “Direito penal do inimigo”. Com esse, diz o citado penalista, o legislador não dialoga com seus cidadãos, senão que ameaça a seus inimigos, cominando com penas draconianas seus delitos, muito além da idéia de proporcionalidade, recortando as garantias processuais e ampliando as possibilidades de sancionar condutas

10muito distantes da lesão de um bem jurídico .Conforme esta construção ideológica, deveríamos imaginar

a existência de um verdadeiro estado de guerra, razão pela qual, segundo defende Jakobs, numa guerra as regras do jogo devem ser diferentes, devendo os inimigos ser tratados a “ferro e fogo”.

Nesse sentido, existem pessoas que decidiram se afastar, de modo duradouro, do direito, a exemplo daqueles agentes que pertencem ao mundo das organizações criminosas e dos grupos terroristas. Para esses, a punibilidade se adianta um grande trecho, até o âmbito da preparação, e a pena se dirige a assegurar fatos

11futuros, não a sanção de fatos cometidos .Denotam-se assim, como características desse movimento,

um amplo adiantamento da punibilidade, a desproporcionalidade das penas aplicadas aos inimigos e a supressão das garantias processuais destas pessoas que não aceitam o cumprimento das regras do jogo (normas) impostas pelo Estado.

Esse reducionismo das garantias e dos direitos fundamentais, originado a partir do efeito de alarme e instabilidade provocado pelo pós 11 de setembro e que fez ressurgir a idéia de justificação de um Direito penal do inimigo, provoca a aniquilação dos princípios garantidores de um Direito penal liberal, fulminando o Estado de Direito e violando a matriz constitucional dos direitos fundamentais e das garantias já consagrados na maioria dos textos e convenções internacionais.

12Apesar da argumentação, por parte da doutrina , no

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200820 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 21

sentido de que o erro de Jakobs teria sido terminológico, ao utilizar a nomenclatura “inimigo” ao invés de outra qualquer a fim de descrever uma situação real pela qual o Direito penal atravessa, manifestamos nosso repúdio integral a tal justificação dogmática representativa de nítida afronta ao Estado de Direito e aos princípios basilares de um Direito penal de índole liberal. Não se pode, assim, aceitar essa dicotomia esdrúxula que distingue entre um Direito penal do cidadão e um Direito penal para o inimigo.

Diante de tal caótica situação, não bastasse o ressurgimento dessa ideologia arraigada nos ideais nazistas percebe-se, ainda, um estado de insuficiência e ineficácia no tocante à capacidade de reação do Estado em matéria de controle da criminalidade.

Nesta alheta, é fato notório e incontestável que o Direito penal e o Direito processual penal tradicionais não mais respondem com eficiência aos avanços da delinquência, notadamente com relação àquela praticada por agentes que atuam com comunhão de esforços, como nas hipóteses da delinquência organizada e da criminalidade econômica.

Como corolário dessa constatação surge, pois, a necessidade de se analisar a viabilidade da utilização de novas técnicas de investigação criminal, com vistas à obtenção de certo grau de êxito no combate à criminalidade.

A expansão da delinquência organizada

Inicialmente, deve-se ressaltar a ausência de um conceito 13unívoco quanto à terminologia “crime organizado” . Nesse sentido,

a discussão que se observa, no âmbito doutrinário, refere-se à dificuldade em se conceituar este fenômeno que vem provocando intensa preocupação, em amplitude mundial, especialmente junto às autoridades policiais incumbidas do combate à contenção dos

10 MUÑOZ CONDE, F. De nuevo sobre el “Derecho penal del enemigo”. Buenos Aires: Hammurabi, 2005. p. 25.11 JAKOBS, G.; CANCIO MELIÁ, M. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003. p. 40.12 Nesse sentido, vide: POLAINO-ORTS, M. Derecho penal del enemigo. Desmitificación de un concepto. Córdoba: Editorial Mediterránea, 2006. p. 255.

13 Estudo profundo sobre o tema foi desenvolvido por MONTOYA, M. D. Máfia y crimen organizado. Aspectos legales. Autoría mediata. Responsabilidade penal de los aparatos organizados de poder. Buenos Aires: Ad. Hoc, 2004. Referida obra foi recentemente traduzida para o português através de publicação pela Editora Lumen Juris.

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atingir o que o penalista alemão Gunther Jakobs denomina de um “Direito penal do inimigo”. Com esse, diz o citado penalista, o legislador não dialoga com seus cidadãos, senão que ameaça a seus inimigos, cominando com penas draconianas seus delitos, muito além da idéia de proporcionalidade, recortando as garantias processuais e ampliando as possibilidades de sancionar condutas

10muito distantes da lesão de um bem jurídico .Conforme esta construção ideológica, deveríamos imaginar

a existência de um verdadeiro estado de guerra, razão pela qual, segundo defende Jakobs, numa guerra as regras do jogo devem ser diferentes, devendo os inimigos ser tratados a “ferro e fogo”.

Nesse sentido, existem pessoas que decidiram se afastar, de modo duradouro, do direito, a exemplo daqueles agentes que pertencem ao mundo das organizações criminosas e dos grupos terroristas. Para esses, a punibilidade se adianta um grande trecho, até o âmbito da preparação, e a pena se dirige a assegurar fatos

11futuros, não a sanção de fatos cometidos .Denotam-se assim, como características desse movimento,

um amplo adiantamento da punibilidade, a desproporcionalidade das penas aplicadas aos inimigos e a supressão das garantias processuais destas pessoas que não aceitam o cumprimento das regras do jogo (normas) impostas pelo Estado.

Esse reducionismo das garantias e dos direitos fundamentais, originado a partir do efeito de alarme e instabilidade provocado pelo pós 11 de setembro e que fez ressurgir a idéia de justificação de um Direito penal do inimigo, provoca a aniquilação dos princípios garantidores de um Direito penal liberal, fulminando o Estado de Direito e violando a matriz constitucional dos direitos fundamentais e das garantias já consagrados na maioria dos textos e convenções internacionais.

12Apesar da argumentação, por parte da doutrina , no

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sentido de que o erro de Jakobs teria sido terminológico, ao utilizar a nomenclatura “inimigo” ao invés de outra qualquer a fim de descrever uma situação real pela qual o Direito penal atravessa, manifestamos nosso repúdio integral a tal justificação dogmática representativa de nítida afronta ao Estado de Direito e aos princípios basilares de um Direito penal de índole liberal. Não se pode, assim, aceitar essa dicotomia esdrúxula que distingue entre um Direito penal do cidadão e um Direito penal para o inimigo.

Diante de tal caótica situação, não bastasse o ressurgimento dessa ideologia arraigada nos ideais nazistas percebe-se, ainda, um estado de insuficiência e ineficácia no tocante à capacidade de reação do Estado em matéria de controle da criminalidade.

Nesta alheta, é fato notório e incontestável que o Direito penal e o Direito processual penal tradicionais não mais respondem com eficiência aos avanços da delinquência, notadamente com relação àquela praticada por agentes que atuam com comunhão de esforços, como nas hipóteses da delinquência organizada e da criminalidade econômica.

Como corolário dessa constatação surge, pois, a necessidade de se analisar a viabilidade da utilização de novas técnicas de investigação criminal, com vistas à obtenção de certo grau de êxito no combate à criminalidade.

A expansão da delinquência organizada

Inicialmente, deve-se ressaltar a ausência de um conceito 13unívoco quanto à terminologia “crime organizado” . Nesse sentido,

a discussão que se observa, no âmbito doutrinário, refere-se à dificuldade em se conceituar este fenômeno que vem provocando intensa preocupação, em amplitude mundial, especialmente junto às autoridades policiais incumbidas do combate à contenção dos

10 MUÑOZ CONDE, F. De nuevo sobre el “Derecho penal del enemigo”. Buenos Aires: Hammurabi, 2005. p. 25.11 JAKOBS, G.; CANCIO MELIÁ, M. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003. p. 40.12 Nesse sentido, vide: POLAINO-ORTS, M. Derecho penal del enemigo. Desmitificación de un concepto. Córdoba: Editorial Mediterránea, 2006. p. 255.

13 Estudo profundo sobre o tema foi desenvolvido por MONTOYA, M. D. Máfia y crimen organizado. Aspectos legales. Autoría mediata. Responsabilidade penal de los aparatos organizados de poder. Buenos Aires: Ad. Hoc, 2004. Referida obra foi recentemente traduzida para o português através de publicação pela Editora Lumen Juris.

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avanços da criminalidade moderna. Não se questiona, pois, a existência de grupos organizados que atuam em prol da obtenção de lucros, a custo da proliferação da corrupção e da legitimação da

14cultura da supressão das provas .Na opinião de Zuñiga Rodríguez, existem poucos acordos

acerca do que é a criminalidade organizada. As diversas perspectivas com as quais já se analisaram demonstram que se trata de um fenômeno protéico, complexo, sumamente cambiante e, portanto, difícil de

15aprender em concepções teóricas e, mais ainda, em leis penais .Portanto, a delinquência organizada é um tema difícil e

complicado para a sociedade porque reflete suas debilidades, ou seja, a face mais amarga de seus defeitos e contradições.

De outra parte não existe, segundo Castaldo, uma definição única do conceito de crime organizado, pois oscila entre aspectos sociológicos e perfis normativos de descrição que modificam o conceito existente. Em resumo, a criminalidade organizada pode ser vista como uma organização de pessoas com a finalidade de cometer

16delitos de elevada desvalorização social e claro conteúdo econômico .Parece inegável que a delinquência organizada, sobretudo

em suas manifestações mais graves, como o tráfico de drogas, o

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200822

terrorismo, o tráfico de pessoas e de órgãos e a exploração sexual, não só supõem um ataque direto e grave contra pessoas concretas (vítimas diretas), senão denotam uma forma mais grave de agressão à toda a sociedade em seu conjunto. Portanto, negar que existe uma delinquência organizada que atua a nível mundial é mera utopia.

É necessário destacar que se percebe que as estruturas criminais se transformaram, desde algumas décadas, de forma qualitativa e, em razão do grande incremento dos índices de delinquência, vem operando um novo fenômeno identificado com a expressão “criminalidade organizada”, fenômeno esse que, acompanhado de um cenário de violência e corrupção, representa um problema mundial que se expande contagiosamente por qualquer âmbito da realidade, de consequências e dimensões apenas calculáveis, porém, desde logo, de uma intensidade e

17periculosidade sem precedentes .Resta claro, pois, que a denominada delinquência organizada

constitui um dos fenômenos mais característicos da criminalidade desde o último terço do século XX e, segundo todos os indicadores, vai ser igualmente dominante no século que acabamos de iniciar.

Percebe-se que esses grupos de delinquentes trabalham em regime de total dedicação ao engrandecimento da organização delitiva, seguindo orientações e ordens dos chefes (capos), que mantém exigências de uma rigorosa hierarquia e altíssimo grau de profissionalização na prática dos atos criminosos.

Assim, o comprometimento dos membros desses clãs com as “empresas” voltadas à prática de crimes apresenta-se como requisito imprescindível ao crescimento e desenvolvimento dos negócios ilícitos, perpetrados no centro estrutural do grupo criminoso organizado.

Destaca-se, ainda, seu caráter transnacional, visto que essa espécie de criminalidade globalizada não respeita as fronteiras entre os países.

Importante, outrossim, aduzir que a delinquência organizada

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 23

17 IGLESIAS RÍO, M. A. Criminalidad organizada y delincuencia económica: aproximación a su incidencia global. In: QUINTERO OLIVARES, G.; MORALES PRATS, F. (Coords.). El nuevo derecho penal español: estudios penales en memoria del profesor José Manuel Valle Muñiz. Pamplona: Aranzadi, 2001. p. 1145.

14 Cite-se, por exemplo, Zaffaroni, que apesar de criticar a desnecessidade de um conceito para a criminalidade organizada, não nega a existência de grupos de pessoas que atuam em conjunto para a prática de crimes. Nesse sentido, aduz que “Debe quedar claro que en modo alguno quiero negar la existencia de la mafia, de la camorra, de bandas de criminales, de organizaciones que practican defraudaciones internacionales, que exportan sobrefacturando e importan subfacturando y que se hacen acreedoras de sí mismas en mercados lejanísimos, o decir que no existe la trata de personas ni de sustancias o servicios prohibidos, o que no hay organizaciones de secuestradores. Lo que quiero significar es que no hay un concepto que abarque todo eso y también, a veces, al terrorismo (como algunos pretenden), y que sirva para algo” (ZAFFARONI, E. R. En torno al concepto de crimen organizado. Nada personal… Ensayos sobre crimen organizado y sistema de justicia. Buenos Aires: Desalma, 2001. p. 10.15 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Criminalidad organizada, Derecho penal y sociedad. Apuntes para el análisis. In: SANZ MULAS, N. (Coord.). El desafío de la criminalidad organizada. Granada: Comares, 2006. p. 39.16 CASTALDO, A. La naturaleza económica de la criminalidad organizada. Disponível em: http://www.eldial.com/home/prudentia/pru57/01.asp. Acesso em: 09 jun. 2007.

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avanços da criminalidade moderna. Não se questiona, pois, a existência de grupos organizados que atuam em prol da obtenção de lucros, a custo da proliferação da corrupção e da legitimação da

14cultura da supressão das provas .Na opinião de Zuñiga Rodríguez, existem poucos acordos

acerca do que é a criminalidade organizada. As diversas perspectivas com as quais já se analisaram demonstram que se trata de um fenômeno protéico, complexo, sumamente cambiante e, portanto, difícil de

15aprender em concepções teóricas e, mais ainda, em leis penais .Portanto, a delinquência organizada é um tema difícil e

complicado para a sociedade porque reflete suas debilidades, ou seja, a face mais amarga de seus defeitos e contradições.

De outra parte não existe, segundo Castaldo, uma definição única do conceito de crime organizado, pois oscila entre aspectos sociológicos e perfis normativos de descrição que modificam o conceito existente. Em resumo, a criminalidade organizada pode ser vista como uma organização de pessoas com a finalidade de cometer

16delitos de elevada desvalorização social e claro conteúdo econômico .Parece inegável que a delinquência organizada, sobretudo

em suas manifestações mais graves, como o tráfico de drogas, o

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200822

terrorismo, o tráfico de pessoas e de órgãos e a exploração sexual, não só supõem um ataque direto e grave contra pessoas concretas (vítimas diretas), senão denotam uma forma mais grave de agressão à toda a sociedade em seu conjunto. Portanto, negar que existe uma delinquência organizada que atua a nível mundial é mera utopia.

É necessário destacar que se percebe que as estruturas criminais se transformaram, desde algumas décadas, de forma qualitativa e, em razão do grande incremento dos índices de delinquência, vem operando um novo fenômeno identificado com a expressão “criminalidade organizada”, fenômeno esse que, acompanhado de um cenário de violência e corrupção, representa um problema mundial que se expande contagiosamente por qualquer âmbito da realidade, de consequências e dimensões apenas calculáveis, porém, desde logo, de uma intensidade e

17periculosidade sem precedentes .Resta claro, pois, que a denominada delinquência organizada

constitui um dos fenômenos mais característicos da criminalidade desde o último terço do século XX e, segundo todos os indicadores, vai ser igualmente dominante no século que acabamos de iniciar.

Percebe-se que esses grupos de delinquentes trabalham em regime de total dedicação ao engrandecimento da organização delitiva, seguindo orientações e ordens dos chefes (capos), que mantém exigências de uma rigorosa hierarquia e altíssimo grau de profissionalização na prática dos atos criminosos.

Assim, o comprometimento dos membros desses clãs com as “empresas” voltadas à prática de crimes apresenta-se como requisito imprescindível ao crescimento e desenvolvimento dos negócios ilícitos, perpetrados no centro estrutural do grupo criminoso organizado.

Destaca-se, ainda, seu caráter transnacional, visto que essa espécie de criminalidade globalizada não respeita as fronteiras entre os países.

Importante, outrossim, aduzir que a delinquência organizada

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 23

17 IGLESIAS RÍO, M. A. Criminalidad organizada y delincuencia económica: aproximación a su incidencia global. In: QUINTERO OLIVARES, G.; MORALES PRATS, F. (Coords.). El nuevo derecho penal español: estudios penales en memoria del profesor José Manuel Valle Muñiz. Pamplona: Aranzadi, 2001. p. 1145.

14 Cite-se, por exemplo, Zaffaroni, que apesar de criticar a desnecessidade de um conceito para a criminalidade organizada, não nega a existência de grupos de pessoas que atuam em conjunto para a prática de crimes. Nesse sentido, aduz que “Debe quedar claro que en modo alguno quiero negar la existencia de la mafia, de la camorra, de bandas de criminales, de organizaciones que practican defraudaciones internacionales, que exportan sobrefacturando e importan subfacturando y que se hacen acreedoras de sí mismas en mercados lejanísimos, o decir que no existe la trata de personas ni de sustancias o servicios prohibidos, o que no hay organizaciones de secuestradores. Lo que quiero significar es que no hay un concepto que abarque todo eso y también, a veces, al terrorismo (como algunos pretenden), y que sirva para algo” (ZAFFARONI, E. R. En torno al concepto de crimen organizado. Nada personal… Ensayos sobre crimen organizado y sistema de justicia. Buenos Aires: Desalma, 2001. p. 10.15 ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L. Criminalidad organizada, Derecho penal y sociedad. Apuntes para el análisis. In: SANZ MULAS, N. (Coord.). El desafío de la criminalidad organizada. Granada: Comares, 2006. p. 39.16 CASTALDO, A. La naturaleza económica de la criminalidad organizada. Disponível em: http://www.eldial.com/home/prudentia/pru57/01.asp. Acesso em: 09 jun. 2007.

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não surgiu de repente na história da criminalidade, senão que, ao 18contrário, evoluiu de forma paralela a sociedade pós-industrial , até

19apresentar-se, nos tempos atuais, como um fenômeno “novo” e com 20substanciais diferenças a respeito das formas tradicionais .

Com o avance da ciência e da tecnologia e a expansão do processo de globalização da economia com a consequente interconexão dos circuitos econômico-financeiros regionais e mundiais, foram sendo criadas condições para o surgimento de novas atividades delitivas, antigamente impensadas, propiciando a aparição da chamada delinquência internacional e da

21criminalidade organizada .Convém observar, todavia, que o principal problema e o

mais tormentoso na luta de contenção à expansão da delinquência organizada se refere à ausência de maiores conhecimentos acerca do que seja, efetivamente, aquela organização criminosa, principalmente a respeito de seu aspecto estrutural e logístico. Como impera a absoluta e cruel lei do silêncio, no âmbito do clã criminoso, torna-se quase impossível a obtenção de maiores informações sobre o grupo de delinquentes.

Segundo nosso ponto de vista, a principal solução eficaz, no controle da delinquência organizada, seria, concretamente, atacar o lado financeiro do grupo, desestimulando futuras atuações desses delinquentes, através de confiscos de bens ilícitos apreendidos e, em algumas situações concretas, de imposição de sanções pecuniárias e administrativas às pessoas jurídicas mantidas pelo crime organizado e que são utilizadas como “fachadas”.

Na mesma linha de pensamento, destaca que uma seleção cuidadosa das figuras delitivas, direcionada para golpear os

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200824

fenômenos delitivos realmente expressivos da criminalidade organizada, juntamente com uma política de prevenção que invista recursos para corrigir os desequilíbrios sociais e de mercado, devem representar então o leitmotiv de uma legislação futura que pretenda

22servir como freio a expansão dessa espécie de delinquência .Por fim, à vista das anteriores reflexões a respeito desse

fenômeno delitivo, deve-se concluir que, previamente a qualquer medida de prevenção e repressão no combate à delinquência organizada, deverá proceder-se a uma investigação criminal, na busca de informações e provas que denotem a prática de delitos e sua autoria. Depois de encerrado todo o período de investigação e com o consequente fim da persecução penal poder-se-á, agora sim, impor sanções que provoquem consideráveis prejuízos à base financeira da organização criminosa.

Investigação criminal como peça-chave junto à persecução penal

Investigar um fato delituoso corresponde à busca da reconstrução de uma verdade histórica, visando à obtenção de dados, informações e provas acerca da materialidade e da autoria.

A prática de todo delito de ação pública impõe como regra ao Estado, de forma necessária, obrigatória e indispensável, a promoção, impulsão e esgotamento de um processo que, como instrumento da administração de justiça, tem por finalidade aplicar ao caso concreto a lei penal substantiva, bem como impor ao responsável uma sanção que o mesmo Estado tem o direito de executar.

Porém, antes do exercício da ação penal haverá o órgão oficial do Estado que alcançar, na fase de investigação, o descobrimento do delito e de seus respectivos responsáveis, através da busca de provas e outros dados de interesse ao esclarecimento do fato criminoso.

Feitas estas observações introdutórias, cumpre ressaltar que o ponto de partida para a compreensão da magnitude e importância da investigação no processo penal moderno deverá originar-se da

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 25

18 DELGADO MARTÍN, J. Criminalidad organizada. Barcelona: J.M. Bosch, 2001. p. 21.19 O termo “novo”, empregado nesse sentido, significa que as organizações criminosas utilizam, nos dias atuais, métodos e estratégias cada vez mais inovadoras.20 Vide KAISER, G. Organizaed crime. Kongressakten XIV, Internationaler Strafrechtkongress. AIDP, 1989. p. 203-205.21 Vide SILVA SÁNCHEZ, J. M. La expansión del Derecho Penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 2001.

22 CASTALDO, A. La naturaleza económica de la criminalidad organizada. Disponível em: http://www.eldial.com/home/prudentia/pru57/01.asp. Acesso em: 09 jun. 2007.

Page 26: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS PROCURADORIA … · 2010. 12. 13. · 4 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 APRESENTAÇÃO Revista do MP-GO, Goiânia, ano

não surgiu de repente na história da criminalidade, senão que, ao 18contrário, evoluiu de forma paralela a sociedade pós-industrial , até

19apresentar-se, nos tempos atuais, como um fenômeno “novo” e com 20substanciais diferenças a respeito das formas tradicionais .

Com o avance da ciência e da tecnologia e a expansão do processo de globalização da economia com a consequente interconexão dos circuitos econômico-financeiros regionais e mundiais, foram sendo criadas condições para o surgimento de novas atividades delitivas, antigamente impensadas, propiciando a aparição da chamada delinquência internacional e da

21criminalidade organizada .Convém observar, todavia, que o principal problema e o

mais tormentoso na luta de contenção à expansão da delinquência organizada se refere à ausência de maiores conhecimentos acerca do que seja, efetivamente, aquela organização criminosa, principalmente a respeito de seu aspecto estrutural e logístico. Como impera a absoluta e cruel lei do silêncio, no âmbito do clã criminoso, torna-se quase impossível a obtenção de maiores informações sobre o grupo de delinquentes.

Segundo nosso ponto de vista, a principal solução eficaz, no controle da delinquência organizada, seria, concretamente, atacar o lado financeiro do grupo, desestimulando futuras atuações desses delinquentes, através de confiscos de bens ilícitos apreendidos e, em algumas situações concretas, de imposição de sanções pecuniárias e administrativas às pessoas jurídicas mantidas pelo crime organizado e que são utilizadas como “fachadas”.

Na mesma linha de pensamento, destaca que uma seleção cuidadosa das figuras delitivas, direcionada para golpear os

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200824

fenômenos delitivos realmente expressivos da criminalidade organizada, juntamente com uma política de prevenção que invista recursos para corrigir os desequilíbrios sociais e de mercado, devem representar então o leitmotiv de uma legislação futura que pretenda

22servir como freio a expansão dessa espécie de delinquência .Por fim, à vista das anteriores reflexões a respeito desse

fenômeno delitivo, deve-se concluir que, previamente a qualquer medida de prevenção e repressão no combate à delinquência organizada, deverá proceder-se a uma investigação criminal, na busca de informações e provas que denotem a prática de delitos e sua autoria. Depois de encerrado todo o período de investigação e com o consequente fim da persecução penal poder-se-á, agora sim, impor sanções que provoquem consideráveis prejuízos à base financeira da organização criminosa.

Investigação criminal como peça-chave junto à persecução penal

Investigar um fato delituoso corresponde à busca da reconstrução de uma verdade histórica, visando à obtenção de dados, informações e provas acerca da materialidade e da autoria.

A prática de todo delito de ação pública impõe como regra ao Estado, de forma necessária, obrigatória e indispensável, a promoção, impulsão e esgotamento de um processo que, como instrumento da administração de justiça, tem por finalidade aplicar ao caso concreto a lei penal substantiva, bem como impor ao responsável uma sanção que o mesmo Estado tem o direito de executar.

Porém, antes do exercício da ação penal haverá o órgão oficial do Estado que alcançar, na fase de investigação, o descobrimento do delito e de seus respectivos responsáveis, através da busca de provas e outros dados de interesse ao esclarecimento do fato criminoso.

Feitas estas observações introdutórias, cumpre ressaltar que o ponto de partida para a compreensão da magnitude e importância da investigação no processo penal moderno deverá originar-se da

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 25

18 DELGADO MARTÍN, J. Criminalidad organizada. Barcelona: J.M. Bosch, 2001. p. 21.19 O termo “novo”, empregado nesse sentido, significa que as organizações criminosas utilizam, nos dias atuais, métodos e estratégias cada vez mais inovadoras.20 Vide KAISER, G. Organizaed crime. Kongressakten XIV, Internationaler Strafrechtkongress. AIDP, 1989. p. 203-205.21 Vide SILVA SÁNCHEZ, J. M. La expansión del Derecho Penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 2001.

22 CASTALDO, A. La naturaleza económica de la criminalidad organizada. Disponível em: http://www.eldial.com/home/prudentia/pru57/01.asp. Acesso em: 09 jun. 2007.

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Justifica-se, então, a assertiva de que a investigação, contemporaneamente, deve ser considerada a coluna vertebral do processo penal.

De uma ordenada e garantista investigação criminal dependerá o êxito da persecução penal. Obedecendo-se aos postulados e princípios processuais e constitucionais, evita-se a perda do labor investigativo por parte do aparato policial, servindo, pois, tal apuração de dados e provas, como pilar de sustentação para a atuação do órgão acusador.

Chega-se, pois, à ilação de que a eficácia penal e a simultânea garantia dos direitos dos investigados são os objetivos perseguidos pela investigação criminal em um Estado de Direito.

Conforme entendimento doutrinário consolidado, a investigação preliminar é uma peça fundamental para o processo penal. No Brasil, provavelmente por culpa das deficiências do sistema adotado (o famigerado inquérito policial), tem sido relegada a um segundo plano. Inobstante os problemas que possa ter, a fase pré-processual (inquérito, sumário, diligências prévias, investigação etc.) é absolutamente imprescindível, pois um processo penal sem a investigação preliminar é um processo irracional, uma figura inconcebível segundo a razão e os postulados da instrumentalidade

26garantista . Não se deve julgar de imediato, principalmente em um modelo como o nosso, que não contempla uma “fase intermediária” contraditória. Em primeiro lugar, deve-se preparar, investigar e reunir elementos que justifiquem o processo ou o não-processo. É um grave equívoco que primeiro se acuse para depois investigar e, ao final, julgar. O processo penal encerra um conjunto de “penas processuais” que fazem com que o ponto nevrálgico seja saber se

27deve ou não acusar .

constatação inicial de que a delinquência contemporânea caracteriza-se como uma criminalidade não convencional, cujo perfil assume inúmeras formas de manifestação, exigindo do aplicador do direito a árdua e desafiadora missão de rever conceitos tradicionais, adequando os mesmos ao tempo e ao espaço através do

23filtro da eficiência penal .Isto é que se busca hoje, por intermédio do processo penal

sob a perspectiva acusatória: eficácia e efetividade na tarefa de concretização do ius puniendi. Uma vigorosa e concreta resposta do Estado à proliferação dos fenômenos delitivos considerados de maior gravidade, adequando-se a mesma ao necessário respeito aos direitos fundamentais dos investigados ou acusados. A essa árdua tarefa persecutória podemos conceituar de “eficiência penal”.

Resulta parcialmente interessante destacar que o fato de que um sistema de administração de justiça penal funcione em um Estado de Direito não significa que deva ser “brando”, nem muito menos que favoreça a impunidade. Pelo contrário, tem que ser eficiente para lograr o castigo do delito, em todos os casos em que assim estabeleça a lei. Porém, especialmente relacionado com delitos muito violentos, a criminalidade organizada, o ilícito

24econômico e a corrupção governamental e administrativa .Pois bem, a partir dessas premissas Cafferata Nores

assinala que lograr a simultânea vigência entre a eficácia e as garantias fundamentais é o desafio maior que deve enfrentar o sistema de administração da justiça em uma democracia. E nessa tarefa cumprirá um rol decisivo a investigação, porque através dela se deverá procurar a obtenção das provas indispensáveis para lograr a condenação de uma pessoa pela comissão de um delito e

25impor a sanção correspondente .

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200826

26 Para uma melhor e mais aprofundada compreensão da instrumentalidade garantista como fundamento da existência da investigação criminal, vide LOPES JR, A. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 47 e ss.27 LOPES JR, A. A crise do inquérito policial: breve análise dos sistemas de invest igação prel iminar no processo penal . Disponível em: http://www.aurylopes.com.br/art0006.html. Acesso em: 07 ago. 2007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 27

23 BECHARA, F. R. Criminalidade organizada e procedimento diferenciado: entre eficiência e garantismo. In: FARIA COSTA, J. de; MARQUES DA SILVA, M. A. (Coords.). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais. Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 911.24 CAFFERATA NORES, J. I. La eficacia de la investigación penal en el Estado de Derecho. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 35, ano 9, jul./set. 2001. p. 28.25 CAFFERATA NORES, J. I. La eficacia de la investigación penal en el Estado de Derecho, op. cit., p. 28.

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Justifica-se, então, a assertiva de que a investigação, contemporaneamente, deve ser considerada a coluna vertebral do processo penal.

De uma ordenada e garantista investigação criminal dependerá o êxito da persecução penal. Obedecendo-se aos postulados e princípios processuais e constitucionais, evita-se a perda do labor investigativo por parte do aparato policial, servindo, pois, tal apuração de dados e provas, como pilar de sustentação para a atuação do órgão acusador.

Chega-se, pois, à ilação de que a eficácia penal e a simultânea garantia dos direitos dos investigados são os objetivos perseguidos pela investigação criminal em um Estado de Direito.

Conforme entendimento doutrinário consolidado, a investigação preliminar é uma peça fundamental para o processo penal. No Brasil, provavelmente por culpa das deficiências do sistema adotado (o famigerado inquérito policial), tem sido relegada a um segundo plano. Inobstante os problemas que possa ter, a fase pré-processual (inquérito, sumário, diligências prévias, investigação etc.) é absolutamente imprescindível, pois um processo penal sem a investigação preliminar é um processo irracional, uma figura inconcebível segundo a razão e os postulados da instrumentalidade

26garantista . Não se deve julgar de imediato, principalmente em um modelo como o nosso, que não contempla uma “fase intermediária” contraditória. Em primeiro lugar, deve-se preparar, investigar e reunir elementos que justifiquem o processo ou o não-processo. É um grave equívoco que primeiro se acuse para depois investigar e, ao final, julgar. O processo penal encerra um conjunto de “penas processuais” que fazem com que o ponto nevrálgico seja saber se

27deve ou não acusar .

constatação inicial de que a delinquência contemporânea caracteriza-se como uma criminalidade não convencional, cujo perfil assume inúmeras formas de manifestação, exigindo do aplicador do direito a árdua e desafiadora missão de rever conceitos tradicionais, adequando os mesmos ao tempo e ao espaço através do

23filtro da eficiência penal .Isto é que se busca hoje, por intermédio do processo penal

sob a perspectiva acusatória: eficácia e efetividade na tarefa de concretização do ius puniendi. Uma vigorosa e concreta resposta do Estado à proliferação dos fenômenos delitivos considerados de maior gravidade, adequando-se a mesma ao necessário respeito aos direitos fundamentais dos investigados ou acusados. A essa árdua tarefa persecutória podemos conceituar de “eficiência penal”.

Resulta parcialmente interessante destacar que o fato de que um sistema de administração de justiça penal funcione em um Estado de Direito não significa que deva ser “brando”, nem muito menos que favoreça a impunidade. Pelo contrário, tem que ser eficiente para lograr o castigo do delito, em todos os casos em que assim estabeleça a lei. Porém, especialmente relacionado com delitos muito violentos, a criminalidade organizada, o ilícito

24econômico e a corrupção governamental e administrativa .Pois bem, a partir dessas premissas Cafferata Nores

assinala que lograr a simultânea vigência entre a eficácia e as garantias fundamentais é o desafio maior que deve enfrentar o sistema de administração da justiça em uma democracia. E nessa tarefa cumprirá um rol decisivo a investigação, porque através dela se deverá procurar a obtenção das provas indispensáveis para lograr a condenação de uma pessoa pela comissão de um delito e

25impor a sanção correspondente .

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200826

26 Para uma melhor e mais aprofundada compreensão da instrumentalidade garantista como fundamento da existência da investigação criminal, vide LOPES JR, A. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 47 e ss.27 LOPES JR, A. A crise do inquérito policial: breve análise dos sistemas de invest igação prel iminar no processo penal . Disponível em: http://www.aurylopes.com.br/art0006.html. Acesso em: 07 ago. 2007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 27

23 BECHARA, F. R. Criminalidade organizada e procedimento diferenciado: entre eficiência e garantismo. In: FARIA COSTA, J. de; MARQUES DA SILVA, M. A. (Coords.). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais. Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 911.24 CAFFERATA NORES, J. I. La eficacia de la investigación penal en el Estado de Derecho. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 35, ano 9, jul./set. 2001. p. 28.25 CAFFERATA NORES, J. I. La eficacia de la investigación penal en el Estado de Derecho, op. cit., p. 28.

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Os “novos” meios ou técnicas de investigação criminal

Os meios tradicionais de averiguação do delito utilizados pela polícia (inspeções oculares, escutas telefônicas, interrogatórios etc.) mostram-se absolutamente ineficazes na luta contra a expansão do fenômeno delitivo denominado “delinquência organizada”. Tal constatação é obtida em razão de alguns fatores, dentre os quais se destaca a complexidade das organizações criminosas, que se utilizam de altíssimo grau de profissionalismo, já que são assessoradas por especialistas em matérias técnicas como a informática, a economia e o direito. Também em razão da dificuldade na produção da prova testemunhal que comprove a realização de atos criminosos pela organização delitiva, vez que a cultura da supressão

28da prova impera juntamente com a afirmação de um código de silêncio extremamente rígido.

Da mesma forma, esses clãs organizados empregam em suas empreitadas alta tecnologia como, por exemplo, meios de transmissão de comunicação cada vez mais sofisticados, os quais têm por finalidade determinar a não-detecção dos contatos mantidos entre os criminosos. Ademais, o uso de dialetos nas comunicações internas entre esses delinquentes, aliados ao uso de mensagens via internet na forma criptografada, impossibilitam o labor policial tendente a desarticulação da organização.

Estando nesse passo a situação e diante do fracasso das técnicas usuais de combate à criminalidade globalizada, faz-se necessário estudar a viabilidade e possibilidade de legalização e utilização de

29“novos” métodos de esclarecimento do delito, a exemplo das entregas vigiadas ou controladas e dos agentes infiltrados.

Somente seguindo essa linha de raciocínio a ação da justiça criminal poderá exercer-se sobre algo mais do que as medidas menos significativas e emergenciais, utilizadas de forma simbólica na busca de contenção à atuação da delinquência organizada.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200828

Justifica-se, ainda, a busca de outros meios extraordinários de investigação criminal, diante da constatação de que hodiernamente visualiza-se um processo penal que se encontra de costas aos avanços científicos do último século e que, com seu atraso, perde a oportunidade, frente às vantagens que os mesmos

30poderiam proporcionar para os sujeitos ativos do processo penal .O grande dilema consiste no fato de que as técnicas supracitadas,

se não normatizadas e executadas de forma adequada, obedecendo-se aos postulados processuais e constitucionais, acabam por provocar perigo e eventual vulneração aos direitos e garantias dos investigados.

A seguir, abordaremos, de forma detalhada, dois meios extraordinários tidos como eficazes para os fins de controle e prevenção ao crescimento patológico da delinquência organizada.

As entregas vigiadas e controladas

Conceitua-se, na doutrina estrangeira, a entrega vigiada ou controlada, como técnica especial de investigação que permite que uma remessa de drogas, armas, insumos químicos ou qualquer outra espécie de origem ou tráfico ilegal, e que se envia ocultamente, possa chegar a seu lugar de destino sem ser interceptada pelas autoridades competentes, a fim de se individualizar aos remetentes, aos destinatários,

31assim como aos demais envolvidos em dita atividade ilícita .Segundo Suita Pérez, a entrega vigiada ou controlada pode ser

definida como a técnica consistente em permitir que determinadas remessas ilícitas ou suspeitas de drogas tóxicas, substâncias psicotrópicas ou outras substâncias proibidas, assim como bens ou ganâncias procedentes de atividades delitivas, circulem pelo território de um país, ou saiam ou entrem nele, sem interferência obstativa da autoridade e sob sua vigilância, com o fim de descobrir ou identificar as

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 29

28 Vide FASSONE, E. La valutazioni della prova nei processi di criminalità organizzata. Processo Penali e criminalità organizzata. Roma/Bari: Laterza, 1993.29 A terminologia “novos” não se refere ao fato de que esses meios extraordinários de investigação tenham surgido recentemente, mas sim ao fato de que só nos últimos anos acabaram sendo incorporados às legislações processuais penais dos países democráticos.

30 GASCÓN INCHAUSTI, F. Infiltración policial y agente encubierto. Granada: Comares, 2001. p. 2.31 PRADO SALDARRIAGA, V. R. La entrega vigilada: orígenes y desarrollos. Artigo doutrinário publicado originalmente no idioma castelhano. Disponível em: http://www.unifr.ch/derechopenal/articulos/pdf/02septiembre06/ entregavigilada_prado.pdf. Acesso em: 06 mar. 2007.

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Os “novos” meios ou técnicas de investigação criminal

Os meios tradicionais de averiguação do delito utilizados pela polícia (inspeções oculares, escutas telefônicas, interrogatórios etc.) mostram-se absolutamente ineficazes na luta contra a expansão do fenômeno delitivo denominado “delinquência organizada”. Tal constatação é obtida em razão de alguns fatores, dentre os quais se destaca a complexidade das organizações criminosas, que se utilizam de altíssimo grau de profissionalismo, já que são assessoradas por especialistas em matérias técnicas como a informática, a economia e o direito. Também em razão da dificuldade na produção da prova testemunhal que comprove a realização de atos criminosos pela organização delitiva, vez que a cultura da supressão

28da prova impera juntamente com a afirmação de um código de silêncio extremamente rígido.

Da mesma forma, esses clãs organizados empregam em suas empreitadas alta tecnologia como, por exemplo, meios de transmissão de comunicação cada vez mais sofisticados, os quais têm por finalidade determinar a não-detecção dos contatos mantidos entre os criminosos. Ademais, o uso de dialetos nas comunicações internas entre esses delinquentes, aliados ao uso de mensagens via internet na forma criptografada, impossibilitam o labor policial tendente a desarticulação da organização.

Estando nesse passo a situação e diante do fracasso das técnicas usuais de combate à criminalidade globalizada, faz-se necessário estudar a viabilidade e possibilidade de legalização e utilização de

29“novos” métodos de esclarecimento do delito, a exemplo das entregas vigiadas ou controladas e dos agentes infiltrados.

Somente seguindo essa linha de raciocínio a ação da justiça criminal poderá exercer-se sobre algo mais do que as medidas menos significativas e emergenciais, utilizadas de forma simbólica na busca de contenção à atuação da delinquência organizada.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200828

Justifica-se, ainda, a busca de outros meios extraordinários de investigação criminal, diante da constatação de que hodiernamente visualiza-se um processo penal que se encontra de costas aos avanços científicos do último século e que, com seu atraso, perde a oportunidade, frente às vantagens que os mesmos

30poderiam proporcionar para os sujeitos ativos do processo penal .O grande dilema consiste no fato de que as técnicas supracitadas,

se não normatizadas e executadas de forma adequada, obedecendo-se aos postulados processuais e constitucionais, acabam por provocar perigo e eventual vulneração aos direitos e garantias dos investigados.

A seguir, abordaremos, de forma detalhada, dois meios extraordinários tidos como eficazes para os fins de controle e prevenção ao crescimento patológico da delinquência organizada.

As entregas vigiadas e controladas

Conceitua-se, na doutrina estrangeira, a entrega vigiada ou controlada, como técnica especial de investigação que permite que uma remessa de drogas, armas, insumos químicos ou qualquer outra espécie de origem ou tráfico ilegal, e que se envia ocultamente, possa chegar a seu lugar de destino sem ser interceptada pelas autoridades competentes, a fim de se individualizar aos remetentes, aos destinatários,

31assim como aos demais envolvidos em dita atividade ilícita .Segundo Suita Pérez, a entrega vigiada ou controlada pode ser

definida como a técnica consistente em permitir que determinadas remessas ilícitas ou suspeitas de drogas tóxicas, substâncias psicotrópicas ou outras substâncias proibidas, assim como bens ou ganâncias procedentes de atividades delitivas, circulem pelo território de um país, ou saiam ou entrem nele, sem interferência obstativa da autoridade e sob sua vigilância, com o fim de descobrir ou identificar as

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 29

28 Vide FASSONE, E. La valutazioni della prova nei processi di criminalità organizzata. Processo Penali e criminalità organizzata. Roma/Bari: Laterza, 1993.29 A terminologia “novos” não se refere ao fato de que esses meios extraordinários de investigação tenham surgido recentemente, mas sim ao fato de que só nos últimos anos acabaram sendo incorporados às legislações processuais penais dos países democráticos.

30 GASCÓN INCHAUSTI, F. Infiltración policial y agente encubierto. Granada: Comares, 2001. p. 2.31 PRADO SALDARRIAGA, V. R. La entrega vigilada: orígenes y desarrollos. Artigo doutrinário publicado originalmente no idioma castelhano. Disponível em: http://www.unifr.ch/derechopenal/articulos/pdf/02septiembre06/ entregavigilada_prado.pdf. Acesso em: 06 mar. 2007.

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pessoas envolvidas na prática de algum delito relativo a drogas, assim 32também para prestar auxílio às autoridades estrangeiras .

No âmbito nacional, Araújo Silva define a ação controlada por policiais como sendo a estratégia de investigação que possibilita aos agentes policiais retardar suas intervenções em relação a infrações em curso, praticadas por organizações criminosas, para acompanhar os atos de seus membros até o momento mais

33apropriado para a obtenção da prova e efetuar suas prisões .Desta forma, concede-se à polícia o direito de aguardar a

oportunidade mais eficiente para atuar, seja prender, surpreender ou agir, de qualquer forma, de modo que no momento oportuno, segundo a interpretação dos agentes que participam da operação, a

34situação seja mais favorável para a obtenção de provas .Em suma, segundo nosso entendimento, a entrega controlada

ou vigiada em um primeiro aspecto consiste basicamente em uma estratégia policial empregada em investigações, que permite a passagem de certa quantidade de drogas por um determinado território, apesar do conhecimento dos órgãos de repressão estatal, permitindo a continuação “normal” da viagem, porém, desde que se proceda a um controle secreto (acompanhamento), durante todo o percurso, na expectativa posterior de apreensão da carga ilícita, bem como de seus remetentes e destinatários.

Ou ainda, de uma observação pela polícia, feita via infiltração de agentes policiais em um determinado ambiente, criminoso ou não, para os fins de coleta de informações e provas que possam conduzir a posterior prisão dos envolvidos. Imagine-se a possibilidade de que um policial se infiltre dentro de um organismo estatal, com vistas a detectar qual o modus operandi e quem seriam os agentes públicos que estariam praticando crimes contra a administração pública.

É comum a distinção conceitual entre a entrega ou ação vigiada e a controlada. Essa última consistiria na ação de retardar a

32 SUITA PÉREZ, N. La diligencia de investigación mediante la entrega vigilada. La actuación de la policía judicial en el proceso penal. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2006. p. 217.33 ARAÚJO SILVA, E. Crime organizado. Procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003. p. 93.34 MENDRONI, M. B. Crime organizado. Aspectos gerais e mecanismos legais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 49-50.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200830

interdição policial do que se supõe tratar-se de ação praticada por organizações criminosas ou a elas vinculadas, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz, do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações. Já a entrega vigiada seria um meio de investigação a ser utilizado, exclusivamente, com relação aos fatos envolvendo o tráfico ilícito de drogas. Na realidade, tal distinção não apresenta qualquer efeito prático, tratando-se de mera distinção doutrinária, consistindo, pois, essas duas modalidades de flagrante retardado, meios de investigação utilizados pelos corpos policiais para procederem à detenção de todos os delinquentes envolvidos no crime, no momento mais adequado sob a ótica da operação de inteligência policial.

Porém, feitas essas considerações introdutórias, impõem-se esclarecer qual seria a finalidade efetiva de tal meio de investigação.

Com a sua utilização permite-se, na maioria das vezes, que 35não sejam tão somente identificados os “mulas” dentro do tráfico

de drogas, possibilitando-se a identificação e posterior detenção também dos eventuais compradores da droga, que normalmente são os traficantes da mesma.

É fato corriqueiro e cotidiano a prisão de cidadãos que são recrutados por traficantes para transportarem certa carga de drogas, de um local a outro, em troca de determinada quantia de dinheiro e, até mesmo, em troca de certa quantidade de substância entorpecente. Adolescentes, em especial, vêm sendo utilizados como “mulas” para efetuarem essa tarefa arriscada de atravessar alguns Estados da Federação até atingirem o ponto de entrega da droga.

Registre-se, no tocante às entregas controladas, que se trata de medida de política criminal, objetivando atingir o lado mais “forte” da criminalidade, tanto que, nessa hipótese, não há que se falar em prática de crime de prevaricação pelos agentes policiais que executam o acompanhamento da carga ilícita.

A aceitação e legalidade desse método investigatório podem ser constatadas quando se observa sua previsão em inúmeras

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 31

35 “Mulas” na gíria policial seriam aquelas pessoas que, por razões geralmente de ausência de condições financeiras, submetem-se ao labor de transporte da droga, com o objetivo de entregá-la em determinado local aos compradores.

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pessoas envolvidas na prática de algum delito relativo a drogas, assim 32também para prestar auxílio às autoridades estrangeiras .

No âmbito nacional, Araújo Silva define a ação controlada por policiais como sendo a estratégia de investigação que possibilita aos agentes policiais retardar suas intervenções em relação a infrações em curso, praticadas por organizações criminosas, para acompanhar os atos de seus membros até o momento mais

33apropriado para a obtenção da prova e efetuar suas prisões .Desta forma, concede-se à polícia o direito de aguardar a

oportunidade mais eficiente para atuar, seja prender, surpreender ou agir, de qualquer forma, de modo que no momento oportuno, segundo a interpretação dos agentes que participam da operação, a

34situação seja mais favorável para a obtenção de provas .Em suma, segundo nosso entendimento, a entrega controlada

ou vigiada em um primeiro aspecto consiste basicamente em uma estratégia policial empregada em investigações, que permite a passagem de certa quantidade de drogas por um determinado território, apesar do conhecimento dos órgãos de repressão estatal, permitindo a continuação “normal” da viagem, porém, desde que se proceda a um controle secreto (acompanhamento), durante todo o percurso, na expectativa posterior de apreensão da carga ilícita, bem como de seus remetentes e destinatários.

Ou ainda, de uma observação pela polícia, feita via infiltração de agentes policiais em um determinado ambiente, criminoso ou não, para os fins de coleta de informações e provas que possam conduzir a posterior prisão dos envolvidos. Imagine-se a possibilidade de que um policial se infiltre dentro de um organismo estatal, com vistas a detectar qual o modus operandi e quem seriam os agentes públicos que estariam praticando crimes contra a administração pública.

É comum a distinção conceitual entre a entrega ou ação vigiada e a controlada. Essa última consistiria na ação de retardar a

32 SUITA PÉREZ, N. La diligencia de investigación mediante la entrega vigilada. La actuación de la policía judicial en el proceso penal. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2006. p. 217.33 ARAÚJO SILVA, E. Crime organizado. Procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003. p. 93.34 MENDRONI, M. B. Crime organizado. Aspectos gerais e mecanismos legais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 49-50.

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interdição policial do que se supõe tratar-se de ação praticada por organizações criminosas ou a elas vinculadas, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz, do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações. Já a entrega vigiada seria um meio de investigação a ser utilizado, exclusivamente, com relação aos fatos envolvendo o tráfico ilícito de drogas. Na realidade, tal distinção não apresenta qualquer efeito prático, tratando-se de mera distinção doutrinária, consistindo, pois, essas duas modalidades de flagrante retardado, meios de investigação utilizados pelos corpos policiais para procederem à detenção de todos os delinquentes envolvidos no crime, no momento mais adequado sob a ótica da operação de inteligência policial.

Porém, feitas essas considerações introdutórias, impõem-se esclarecer qual seria a finalidade efetiva de tal meio de investigação.

Com a sua utilização permite-se, na maioria das vezes, que 35não sejam tão somente identificados os “mulas” dentro do tráfico

de drogas, possibilitando-se a identificação e posterior detenção também dos eventuais compradores da droga, que normalmente são os traficantes da mesma.

É fato corriqueiro e cotidiano a prisão de cidadãos que são recrutados por traficantes para transportarem certa carga de drogas, de um local a outro, em troca de determinada quantia de dinheiro e, até mesmo, em troca de certa quantidade de substância entorpecente. Adolescentes, em especial, vêm sendo utilizados como “mulas” para efetuarem essa tarefa arriscada de atravessar alguns Estados da Federação até atingirem o ponto de entrega da droga.

Registre-se, no tocante às entregas controladas, que se trata de medida de política criminal, objetivando atingir o lado mais “forte” da criminalidade, tanto que, nessa hipótese, não há que se falar em prática de crime de prevaricação pelos agentes policiais que executam o acompanhamento da carga ilícita.

A aceitação e legalidade desse método investigatório podem ser constatadas quando se observa sua previsão em inúmeras

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35 “Mulas” na gíria policial seriam aquelas pessoas que, por razões geralmente de ausência de condições financeiras, submetem-se ao labor de transporte da droga, com o objetivo de entregá-la em determinado local aos compradores.

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convenções e recomendações, no âmbito internacional, a exemplo da Convenção de Viena de 1988, Convenção de Palermo (2000), Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003), Recomendações do GAFI (2003) etc.

Interessante observar que, na práxis, as ações ou entregas controladas e vigiadas ocorrem sem qualquer controle judicial no território brasileiro, bem como já se tornou uma medida usual e cotidiana adotada pela polícia, no intuito de identificar agentes ligados ao tráfico ilícito de drogas.

Essa constatação com certeza nos impele a buscar uma melhor estruturação desse método de investigação, evitando-se a clandestinidade e a eventual prática de ações que venham a violar direitos e garantias das pessoas colocadas em posição de investigadas.

Por outro lado, surgem questionamentos a respeito da ilegalidade da execução de uma entrega controlada, por representar nítida hipótese de flagrante provocado ou esperado.

Salvo melhor juízo, tal dúvida deve ser esclarecida a partir de uma análise conceitual.

Assim, é incontestável que a hipótese de flagrante que se amolda a essa técnica de investigação denomina-se flagrante prorrogado ou diferido, consistindo, pois, na situação da ação policial, ou seja, a prisão em flagrante ser diferida, isto é, adiada, para que a medida final se concretize no momento mais eficaz, do ponto de vista da formação da prova e fornecimento de informações. Tal modalidade de flagrante é legalmente prevista no sistema penal brasileiro (art. 2º, II, da Lei n. 9.034/95 e art. 53, II, da Lei n. 11.343/06).

Só a título de esclarecimento não se deve confundir o flagrante prorrogado com o flagrante esperado. Neste último, não há intervenção de terceiros na prática do crime, mas a informação de sua existência é considerada plenamente válida. Cite-se, como exemplo, a hipótese de alguém que, por qualquer motivo, tenha conhecimento da prática futura de um crime, transmitir tal informação às autoridades policiais, que, então, se deslocariam para o local da infração, postando-se de prontidão para evitar sua consumação ou

36seu exaurimento . Nesse sentido o acórdão relatado pela Ministra

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200832

Laurita Vaz do STJ, no HC 40.436, de 02.05.2006. Por fim, inconcebível confundir o flagrante prorrogado da

ação controlada com o flagrante provocado, esse último totalmente repudiado pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive contando

37com entendimento pacificado no STF por meio da súmula 145 . No flagrante provocado ou preparado, um terceiro, denominado agente provocador, atua com o escopo de incitar, de provocar a prática da ação criminosa. Criaria, assim, no ânimo consciente do potencial infrator, a vontade de delinquir, porém, estaria impossibilitada a consumação do delito pela ação policial, como na hipótese do policial que simula a compra de droga junto a um traficante.

Feitas essas observações genéricas sobre este meio extraordinário de investigação criminal, cumpre-nos tecer algumas considerações críticas a respeito da regulação desse tema junto ao ordenamento jurídico-penal brasileiro.

A Lei n. 9.034/95, em seu art. 2º, II, prescreve que, em qualquer fase de persecução criminal será permitido, sem prejuízo de outras técnicas já previstas em lei, o seguinte procedimento de investigação e formação de provas: a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a elas vinculadas, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações.

Referido dispositivo legal peca pela omissão, uma vez que exige, como único requisito, que a ação seja praticada por organizações criminosas ou a elas relacionadas. Destarte, além de não descrever o sujeito ativo da entrega controlada, ou seja, quem pode requerer a medida, acaba por não exigir autorização judicial para que se execute a ação.

O sobredito preceptivo legal não menciona, também, a isenção de responsabilidade do policial que retarda o flagrante, deixando margens a infindáveis discussões doutrinárias.

Já a Lei n. 11.343/06, a nova lei de drogas, em seu art. 53, II, descreve que em qualquer fase da persecução criminal relativa aos

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 33

36 PACELLI DE OLIVEIRA, E. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: DelRey, 2004. p. 506-507.

37 “Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.

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convenções e recomendações, no âmbito internacional, a exemplo da Convenção de Viena de 1988, Convenção de Palermo (2000), Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003), Recomendações do GAFI (2003) etc.

Interessante observar que, na práxis, as ações ou entregas controladas e vigiadas ocorrem sem qualquer controle judicial no território brasileiro, bem como já se tornou uma medida usual e cotidiana adotada pela polícia, no intuito de identificar agentes ligados ao tráfico ilícito de drogas.

Essa constatação com certeza nos impele a buscar uma melhor estruturação desse método de investigação, evitando-se a clandestinidade e a eventual prática de ações que venham a violar direitos e garantias das pessoas colocadas em posição de investigadas.

Por outro lado, surgem questionamentos a respeito da ilegalidade da execução de uma entrega controlada, por representar nítida hipótese de flagrante provocado ou esperado.

Salvo melhor juízo, tal dúvida deve ser esclarecida a partir de uma análise conceitual.

Assim, é incontestável que a hipótese de flagrante que se amolda a essa técnica de investigação denomina-se flagrante prorrogado ou diferido, consistindo, pois, na situação da ação policial, ou seja, a prisão em flagrante ser diferida, isto é, adiada, para que a medida final se concretize no momento mais eficaz, do ponto de vista da formação da prova e fornecimento de informações. Tal modalidade de flagrante é legalmente prevista no sistema penal brasileiro (art. 2º, II, da Lei n. 9.034/95 e art. 53, II, da Lei n. 11.343/06).

Só a título de esclarecimento não se deve confundir o flagrante prorrogado com o flagrante esperado. Neste último, não há intervenção de terceiros na prática do crime, mas a informação de sua existência é considerada plenamente válida. Cite-se, como exemplo, a hipótese de alguém que, por qualquer motivo, tenha conhecimento da prática futura de um crime, transmitir tal informação às autoridades policiais, que, então, se deslocariam para o local da infração, postando-se de prontidão para evitar sua consumação ou

36seu exaurimento . Nesse sentido o acórdão relatado pela Ministra

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Laurita Vaz do STJ, no HC 40.436, de 02.05.2006. Por fim, inconcebível confundir o flagrante prorrogado da

ação controlada com o flagrante provocado, esse último totalmente repudiado pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive contando

37com entendimento pacificado no STF por meio da súmula 145 . No flagrante provocado ou preparado, um terceiro, denominado agente provocador, atua com o escopo de incitar, de provocar a prática da ação criminosa. Criaria, assim, no ânimo consciente do potencial infrator, a vontade de delinquir, porém, estaria impossibilitada a consumação do delito pela ação policial, como na hipótese do policial que simula a compra de droga junto a um traficante.

Feitas essas observações genéricas sobre este meio extraordinário de investigação criminal, cumpre-nos tecer algumas considerações críticas a respeito da regulação desse tema junto ao ordenamento jurídico-penal brasileiro.

A Lei n. 9.034/95, em seu art. 2º, II, prescreve que, em qualquer fase de persecução criminal será permitido, sem prejuízo de outras técnicas já previstas em lei, o seguinte procedimento de investigação e formação de provas: a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a elas vinculadas, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações.

Referido dispositivo legal peca pela omissão, uma vez que exige, como único requisito, que a ação seja praticada por organizações criminosas ou a elas relacionadas. Destarte, além de não descrever o sujeito ativo da entrega controlada, ou seja, quem pode requerer a medida, acaba por não exigir autorização judicial para que se execute a ação.

O sobredito preceptivo legal não menciona, também, a isenção de responsabilidade do policial que retarda o flagrante, deixando margens a infindáveis discussões doutrinárias.

Já a Lei n. 11.343/06, a nova lei de drogas, em seu art. 53, II, descreve que em qualquer fase da persecução criminal relativa aos

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36 PACELLI DE OLIVEIRA, E. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: DelRey, 2004. p. 506-507.

37 “Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.

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crimes previstos nesta lei é permitido, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, o seguinte procedimento investigatório: a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.

Ainda, em seu § único, resta estabelecido que a autorização será concedida desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores.

Portanto, percebe-se uma razoável evolução legislativa, se comparadas as Leis 9.034/95 e 11.343/06, vez que essa última exige, como requisitos, a atuação sobre os portadores de drogas (mulas), seus precursores químicos ou outros produtos utilizados na sua produção, a atuação no território brasileiro, a autorização judicial para a execução da operação, o conhecimento do itinerário possível e, por fim, a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores.

O grande problema que se apresenta refere-se ao fato de que alguns desses requisitos não podem ser encarados como lógicos ou mesmo como necessários ao bom andamento da ação controlada.

Cite-se, por exemplo, a exigência de atuação da autoridade policial, somente no âmbito do território brasileiro. Tal exigência fulmina a eficácia desse meio de investigação, vez que é sabido que muitos dos carregamentos de drogas têm origem em países de nosso entorno, como a Bolívia e a Colômbia. Nada impediria que houvesse cooperação entre dois países vizinhos, no sentido de monitoramento do itinerário do carregamento de entorpecentes ou outros produtos ilícitos.

Outra observação de destaque diz respeito aos requisitos exigidos pelo § único do art. 53 da Lei n. 11.343/06 no sentido de que o órgão policial solicitante da autorização para execução da ação controlada deverá demonstrar, no pedido, o itinerário provável, bem como a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores. Ora, se esses são justamente os objetivos principais desse meio extraordinário de investigação, torna-se absurda a exigência de tais requisitos. Se a autoridade policial possuísse essas informações não necessitaria, obrigatoriamente, de utilizar este método de investigação.

Deverá o termo “não-atuação policial”, utilizado pelo

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200834

legislador brasileiro no inciso II do art. 53 da nova lei de drogas ser entendido como sinônimo de ação ou entrega vigiada.

Torna-se cristalina a constatação de que ambas as leis que tratam da entrega controlada ou vigiada, no sistema penal brasileiro, carecem de reformas, uma vez que são insuficientes para que a autoridade policial, bem como o Ministério Público, possam trabalhar efetivamente, com vistas à obtenção da eficiência dessa espécie de diligência investigatória.

Em nossa opinião, alguns requisitos seriam essenciais ao êxito e legalidade das ações ou entregas controladas. Em primeiro lugar, deverá a lei exigir autorização à autoridade judiciária competente, contendo, de forma compulsória, uma detalhada fundamentação das razões da concessão do direito à execução da medida investigatória. Poderá requerer a autorização tanto a autoridade policial quanto o Ministério Público.

Da mesma forma, em segundo lugar, como consequência da autorização judicial, se faz necessário o controle sobre a execução da operação, devendo o executor (leia-se, a autoridade policial) dar conta ao Ministério Público através de informes diários a respeito do andamento das investigações. Evitam-se, assim, eventuais abusos na execução da diligência investigativa.

Antecedente à autorização judicial, a nosso ver imprescindível se torna a realização em conjunto, pelo Ministério Público e pela autoridade policial, de planejamento operacional estratégico, momento em que se analisará a viabilidade e necessidade da utilização desse meio de investigação. Nesse aspecto, entra em jogo a obrigatória análise à luz do princípio da proporcionalidade, vez que é cediço a possibilidade de violação de direitos e garantias fundamentais dos investigados.

Por fim, deverá ser a entrega ou ação vigiada utilizada como ultima ratio, ou seja, sua utilização estaria condicionada ao prévio esgotamento de outras formas tradicionais de investigação. O que se observa, na prática, é que esse meio de investigação encontra-se, muitas vezes, sendo empregado como solução prima ratio, sem que se busque a utilização de outras alternativas investigatórias que não exponham a risco as garantias e direitos dos investigados.

Determinado seguimento doutrinário, cite-se como exemplo Marcelo Mendroni, defende a necessidade de que a ação

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 35

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crimes previstos nesta lei é permitido, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, o seguinte procedimento investigatório: a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.

Ainda, em seu § único, resta estabelecido que a autorização será concedida desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores.

Portanto, percebe-se uma razoável evolução legislativa, se comparadas as Leis 9.034/95 e 11.343/06, vez que essa última exige, como requisitos, a atuação sobre os portadores de drogas (mulas), seus precursores químicos ou outros produtos utilizados na sua produção, a atuação no território brasileiro, a autorização judicial para a execução da operação, o conhecimento do itinerário possível e, por fim, a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores.

O grande problema que se apresenta refere-se ao fato de que alguns desses requisitos não podem ser encarados como lógicos ou mesmo como necessários ao bom andamento da ação controlada.

Cite-se, por exemplo, a exigência de atuação da autoridade policial, somente no âmbito do território brasileiro. Tal exigência fulmina a eficácia desse meio de investigação, vez que é sabido que muitos dos carregamentos de drogas têm origem em países de nosso entorno, como a Bolívia e a Colômbia. Nada impediria que houvesse cooperação entre dois países vizinhos, no sentido de monitoramento do itinerário do carregamento de entorpecentes ou outros produtos ilícitos.

Outra observação de destaque diz respeito aos requisitos exigidos pelo § único do art. 53 da Lei n. 11.343/06 no sentido de que o órgão policial solicitante da autorização para execução da ação controlada deverá demonstrar, no pedido, o itinerário provável, bem como a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores. Ora, se esses são justamente os objetivos principais desse meio extraordinário de investigação, torna-se absurda a exigência de tais requisitos. Se a autoridade policial possuísse essas informações não necessitaria, obrigatoriamente, de utilizar este método de investigação.

Deverá o termo “não-atuação policial”, utilizado pelo

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legislador brasileiro no inciso II do art. 53 da nova lei de drogas ser entendido como sinônimo de ação ou entrega vigiada.

Torna-se cristalina a constatação de que ambas as leis que tratam da entrega controlada ou vigiada, no sistema penal brasileiro, carecem de reformas, uma vez que são insuficientes para que a autoridade policial, bem como o Ministério Público, possam trabalhar efetivamente, com vistas à obtenção da eficiência dessa espécie de diligência investigatória.

Em nossa opinião, alguns requisitos seriam essenciais ao êxito e legalidade das ações ou entregas controladas. Em primeiro lugar, deverá a lei exigir autorização à autoridade judiciária competente, contendo, de forma compulsória, uma detalhada fundamentação das razões da concessão do direito à execução da medida investigatória. Poderá requerer a autorização tanto a autoridade policial quanto o Ministério Público.

Da mesma forma, em segundo lugar, como consequência da autorização judicial, se faz necessário o controle sobre a execução da operação, devendo o executor (leia-se, a autoridade policial) dar conta ao Ministério Público através de informes diários a respeito do andamento das investigações. Evitam-se, assim, eventuais abusos na execução da diligência investigativa.

Antecedente à autorização judicial, a nosso ver imprescindível se torna a realização em conjunto, pelo Ministério Público e pela autoridade policial, de planejamento operacional estratégico, momento em que se analisará a viabilidade e necessidade da utilização desse meio de investigação. Nesse aspecto, entra em jogo a obrigatória análise à luz do princípio da proporcionalidade, vez que é cediço a possibilidade de violação de direitos e garantias fundamentais dos investigados.

Por fim, deverá ser a entrega ou ação vigiada utilizada como ultima ratio, ou seja, sua utilização estaria condicionada ao prévio esgotamento de outras formas tradicionais de investigação. O que se observa, na prática, é que esse meio de investigação encontra-se, muitas vezes, sendo empregado como solução prima ratio, sem que se busque a utilização de outras alternativas investigatórias que não exponham a risco as garantias e direitos dos investigados.

Determinado seguimento doutrinário, cite-se como exemplo Marcelo Mendroni, defende a necessidade de que a ação

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controlada seja desencadeada, sempre que possível, com a paralela 38infiltração de um agente policial .

Estamos de acordo com a opinião acima externada, vez que a infiltração de agentes policiais que possam acompanhar de perto toda a operação por certo evitaria o risco de perda das provas ou mesmo do carregamento de drogas objeto da investigação.

Delineados os requisitos que, a nosso entender, devem permear a entrega vigiada ou controlada, resta analisar se tal meio de investigação admite alternativas em sua execução.

Poderíamos descrever a possibilidade de três situações distintas. Na primeira, denominada interdição, a entrega da carga, mercadoria ou drogas ilegais é interrompida com a apreensão dessas. Nessa hipótese, a autoridade policial que faz o acompanhamento da droga ou outro produto ilícito, por razões operacionais, resolve “abortar” a operação, encerrando a vigilância e procedendo-se à detenção do portador do carregamento, ou interceptando o prosseguimento da mercadoria, como no exemplo do acompanhamento de envio de drogas via correio.

Uma segunda situação seria descrita como substituição. Nesse caso, a carga, mercadoria ou droga ilegal é substituída antes de ser entregue ao destino final, colocando-se no seu lugar produto similar, evitando-se o risco de perda ou extravio. Fala-se então em “entrega limpa”. A nosso ver, tal substituição é perigosa e, por não haver possibilidade de controle nessa operação, o risco de prática de ilegalidades torna-se eminente.

Por fim, uma terceira possibilidade seria o acompanhamento. Ocorrerá quando não houver interrupção do carregamento da substância ilícita, continuando o itinerário sob vigilância e acompanhamento da autoridade policial, com vistas à posterior identificação e prisão dos destinatários da mercadoria.

Existem, ainda, algumas modalidades de entregas vigiadas ou controladas. Fala-se em entrega, a nível doméstico, quando ocorrer no âmbito do território nacional. Já a entrega a nível internacional, logicamente, envolverá cooperação entre dois ou mais países, vez que a carga de substâncias ilícitas passará por mais de um território.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200836

A entrega de produto real caracteriza-se pelo fato de que o acompanhamento se faz sobre a efetiva carga de substâncias ilícitas. Por outro lado, na entrega de produto substituído ocorre a substituição completa ou parcial da droga apreendida, visando a garantir o êxito da operação.

Na entrega controlada com acompanhamento a operação é realizada na presença de investigação feita através do uso de agentes infiltrados ou policiais à paisana. Já na hipótese da entrega sem acompanhamento, a operação é realizada sem a presença física da polícia, quando a droga/carga ou é transportada através do correio ou é escondida em meio a bagagens, em ônibus, trens ou aviões.

Por fim, encerrando-se essa abordagem sobre o tema das entregas vigiadas ou controladas, importante mencionar a necessidade de que alguns princípios sejam obedecidos quando da realização da operação.

De início, o primeiro princípio refere-se à legalidade. A entrega controlada deverá obedecer aos requisitos exigidos em lei, não se admitindo qualquer entendimento extensivo ou analógico que venha a vulnerar direitos e garantias dos investigados.

Também deverá ocorrer a obediência ao princípio da eficiência e segurança, no intuito de se evitar a perda do objeto da investigação. Toda a operação de acompanhamento deverá ser realizada dentro de um marco de segurança e evitando-se riscos desnecessários.

O princípio da orientação uniforme diz respeito ao fato de que a autoridade policial que iniciar a operação de vigilância deverá providenciar para que outras autoridades que possam, eventualmente, tomar contato com o carregamento da substância ilícita, tenham conhecimento do plano estratégico, evitando-se a atuação dessas, o que provocaria a perda do labor investigativo.

O princípio da flexibilidade, ou seja, a possibilidade de troca de estratégias de acompanhamento, deve ser levado em conta, vez que o objetivo maior da investigação, além de consistir na identificação de outras pessoas envolvidas no delito, refere-se ao fato de se evitar a perda do carregamento de drogas ou outros produtos ilícitos.

O último princípio seria o da proporcionalidade, partindo-se do pressuposto de que todo meio de investigação que possa contrastar direitos e garantias dos investigados deverá pautar-se pelo critério da ultima ratio. Obrigatoriamente, a proporcionalidade consistirá na análise da adequação e necessidade da utilização desse meio extraordinário de investigação.

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38 MENDRONI, M. B. Crime organizado. Aspectos gerais e mecanismos legais, op. cit., p. 49 e ss.

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controlada seja desencadeada, sempre que possível, com a paralela 38infiltração de um agente policial .

Estamos de acordo com a opinião acima externada, vez que a infiltração de agentes policiais que possam acompanhar de perto toda a operação por certo evitaria o risco de perda das provas ou mesmo do carregamento de drogas objeto da investigação.

Delineados os requisitos que, a nosso entender, devem permear a entrega vigiada ou controlada, resta analisar se tal meio de investigação admite alternativas em sua execução.

Poderíamos descrever a possibilidade de três situações distintas. Na primeira, denominada interdição, a entrega da carga, mercadoria ou drogas ilegais é interrompida com a apreensão dessas. Nessa hipótese, a autoridade policial que faz o acompanhamento da droga ou outro produto ilícito, por razões operacionais, resolve “abortar” a operação, encerrando a vigilância e procedendo-se à detenção do portador do carregamento, ou interceptando o prosseguimento da mercadoria, como no exemplo do acompanhamento de envio de drogas via correio.

Uma segunda situação seria descrita como substituição. Nesse caso, a carga, mercadoria ou droga ilegal é substituída antes de ser entregue ao destino final, colocando-se no seu lugar produto similar, evitando-se o risco de perda ou extravio. Fala-se então em “entrega limpa”. A nosso ver, tal substituição é perigosa e, por não haver possibilidade de controle nessa operação, o risco de prática de ilegalidades torna-se eminente.

Por fim, uma terceira possibilidade seria o acompanhamento. Ocorrerá quando não houver interrupção do carregamento da substância ilícita, continuando o itinerário sob vigilância e acompanhamento da autoridade policial, com vistas à posterior identificação e prisão dos destinatários da mercadoria.

Existem, ainda, algumas modalidades de entregas vigiadas ou controladas. Fala-se em entrega, a nível doméstico, quando ocorrer no âmbito do território nacional. Já a entrega a nível internacional, logicamente, envolverá cooperação entre dois ou mais países, vez que a carga de substâncias ilícitas passará por mais de um território.

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A entrega de produto real caracteriza-se pelo fato de que o acompanhamento se faz sobre a efetiva carga de substâncias ilícitas. Por outro lado, na entrega de produto substituído ocorre a substituição completa ou parcial da droga apreendida, visando a garantir o êxito da operação.

Na entrega controlada com acompanhamento a operação é realizada na presença de investigação feita através do uso de agentes infiltrados ou policiais à paisana. Já na hipótese da entrega sem acompanhamento, a operação é realizada sem a presença física da polícia, quando a droga/carga ou é transportada através do correio ou é escondida em meio a bagagens, em ônibus, trens ou aviões.

Por fim, encerrando-se essa abordagem sobre o tema das entregas vigiadas ou controladas, importante mencionar a necessidade de que alguns princípios sejam obedecidos quando da realização da operação.

De início, o primeiro princípio refere-se à legalidade. A entrega controlada deverá obedecer aos requisitos exigidos em lei, não se admitindo qualquer entendimento extensivo ou analógico que venha a vulnerar direitos e garantias dos investigados.

Também deverá ocorrer a obediência ao princípio da eficiência e segurança, no intuito de se evitar a perda do objeto da investigação. Toda a operação de acompanhamento deverá ser realizada dentro de um marco de segurança e evitando-se riscos desnecessários.

O princípio da orientação uniforme diz respeito ao fato de que a autoridade policial que iniciar a operação de vigilância deverá providenciar para que outras autoridades que possam, eventualmente, tomar contato com o carregamento da substância ilícita, tenham conhecimento do plano estratégico, evitando-se a atuação dessas, o que provocaria a perda do labor investigativo.

O princípio da flexibilidade, ou seja, a possibilidade de troca de estratégias de acompanhamento, deve ser levado em conta, vez que o objetivo maior da investigação, além de consistir na identificação de outras pessoas envolvidas no delito, refere-se ao fato de se evitar a perda do carregamento de drogas ou outros produtos ilícitos.

O último princípio seria o da proporcionalidade, partindo-se do pressuposto de que todo meio de investigação que possa contrastar direitos e garantias dos investigados deverá pautar-se pelo critério da ultima ratio. Obrigatoriamente, a proporcionalidade consistirá na análise da adequação e necessidade da utilização desse meio extraordinário de investigação.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 37

38 MENDRONI, M. B. Crime organizado. Aspectos gerais e mecanismos legais, op. cit., p. 49 e ss.

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Em apertada síntese, poderíamos afirmar que a técnica de investigação criminal, denominada entrega vigiada ou controlada, apresenta-se como eficaz no combate a determinadas formas mais graves de criminalidade, bastando-se, para tal, que seja tratada com mais seriedade pela legislação brasileira, uma vez que do contrário continuaremos a presenciar, na prática, a execução de tal modalidade investigativa ao arrepio dos direitos e garantias dos investigados.

As operações de infiltração policial

A infiltração de agentes consiste numa técnica de investigação criminal ou de obtenção da prova pela qual um agente do Estado, mediante prévia autorização judicial, infiltra-se numa organização criminosa, simulando a condição de integrante, para

39obter informações a respeito de seu funcionamento .Nas palavras de Carmona Salgado, trata-se de um

instrumento de investigação de que se valem os corpos de polícia de diferentes países, com o fim de lograr um maior grau de eficácia na luta contra a criminalidade. Consiste em que um agente policial, com identidade falsa, se integre na estrutura de uma organização delitiva para obter, desde seu interior, provas suficientes que permitam fundamentar a condenação penal de seus membros,

40desarticulando finalmente, se possível, a citada organização .Feita essa introdução conceitual, podemos afirmar que o

sujeito ativo da infiltração é o Estado, representado na execução da operação por um personagem denominado “agente infiltrado” ou “agente encoberto”, o qual apresenta como características básicas, em seu labor, o uso do engano e a consequente ocultação de sua verdadeira identidade, uma vez que somente assim poderá ingressar no grupo de delinquentes com vistas a tornar-se pessoa de confiança dentro daquele ambiente criminoso.

Observa-se, pois, que o essencial em toda infiltração é a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200838

ocultação da identidade, rectius, da condição policial, e/ou das intenções do infiltrado, como ponto de partida para estabelecer com o passar do tempo uma relação de confiança que permita o acesso a

41uma informação; é dizer, o engano e o abuso de confiança .Seria correto, então, afirmar que somente os agentes

pertencentes aos corpos policiais é que poderão se infiltrar em uma organização criminosa? A resposta é simples, pois dependerá da forma como o tema foi tratado nas inúmeras legislações que vieram a introduzir a figura do agente infiltrado em seus respectivos ordenamentos jurídicos.

Melhor explicando, existem pouquíssimos países, a 42exemplo do Brasil, que em sua legislação penal possibilitou que

as infiltrações pudessem ser realizadas tanto por agentes policiais como por agentes de inteligência, no caso da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência).

Conforme já tivemos oportunidade de manifestar sobre o assunto, em outro trabalho, ousamos discordar do legislador pátrio, ao permitir que agentes de inteligência possam infiltrar-se em organizações criminosas, para os fins previstos na Lei n. 10.217/01, uma vez que estaria sendo desvirtuado o labor daqueles, cujo objetivo precípuo é buscar informações tendentes à manutenção da ordem e da segurança nacional, e não informações e provas que serão úteis à eventual persecução penal. Não se pode confundir inteligência de Estado com inteligência criminal, vez que os objetivos desses métodos

43de obtenção de dados e informações são diametralmente opostos .Já com relação à possibilidade do particular figurar como

agente infiltrado em alguma operação encoberta, da mesma forma opinamos por sua impossibilidade. E as razões são as mais variadas, vez que os mesmos, via de regra, não possuem a adequada preparação psicológica e profissional para participar de um trabalho tão emblemático e perigoso como seria uma infiltração em banda criminosa. Não cabe nenhuma dúvida de que as possibilidades de que esse agente particular

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 39

39 SILVA, E. A. Crime organizado. Procedimento probatório, op. cit., p. 86.40 CARMONA SALGADO, C. La circulación y entrega vigilada de drogas y el agente encubierto en el marco de la criminalidad organizada sobre narcotráfico. MORILLAS CUEVA, L. (Coord.). Estudios jurídico-penales y político-criminales sobre tráfico de drogas y figuras afines. Madrid: Dykinson, 2003. p. 181-182.

41 GASCÓN INCHAUSTI, F. Infiltración policial y agente encubierto, op. cit., p. 10.42 Vide Lei n. 9.034/95 (alterada pela Lei n. 10.217/01).43 PEREIRA, F. C. A investigação criminal realizada por agentes infiltrados. Revista do Ministério Público do Estado do Mato Grosso, Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público do Estado do Mato Grosso, Cuiabá, ano 2, n. 2, jan./jun. 2007.

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Em apertada síntese, poderíamos afirmar que a técnica de investigação criminal, denominada entrega vigiada ou controlada, apresenta-se como eficaz no combate a determinadas formas mais graves de criminalidade, bastando-se, para tal, que seja tratada com mais seriedade pela legislação brasileira, uma vez que do contrário continuaremos a presenciar, na prática, a execução de tal modalidade investigativa ao arrepio dos direitos e garantias dos investigados.

As operações de infiltração policial

A infiltração de agentes consiste numa técnica de investigação criminal ou de obtenção da prova pela qual um agente do Estado, mediante prévia autorização judicial, infiltra-se numa organização criminosa, simulando a condição de integrante, para

39obter informações a respeito de seu funcionamento .Nas palavras de Carmona Salgado, trata-se de um

instrumento de investigação de que se valem os corpos de polícia de diferentes países, com o fim de lograr um maior grau de eficácia na luta contra a criminalidade. Consiste em que um agente policial, com identidade falsa, se integre na estrutura de uma organização delitiva para obter, desde seu interior, provas suficientes que permitam fundamentar a condenação penal de seus membros,

40desarticulando finalmente, se possível, a citada organização .Feita essa introdução conceitual, podemos afirmar que o

sujeito ativo da infiltração é o Estado, representado na execução da operação por um personagem denominado “agente infiltrado” ou “agente encoberto”, o qual apresenta como características básicas, em seu labor, o uso do engano e a consequente ocultação de sua verdadeira identidade, uma vez que somente assim poderá ingressar no grupo de delinquentes com vistas a tornar-se pessoa de confiança dentro daquele ambiente criminoso.

Observa-se, pois, que o essencial em toda infiltração é a

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ocultação da identidade, rectius, da condição policial, e/ou das intenções do infiltrado, como ponto de partida para estabelecer com o passar do tempo uma relação de confiança que permita o acesso a

41uma informação; é dizer, o engano e o abuso de confiança .Seria correto, então, afirmar que somente os agentes

pertencentes aos corpos policiais é que poderão se infiltrar em uma organização criminosa? A resposta é simples, pois dependerá da forma como o tema foi tratado nas inúmeras legislações que vieram a introduzir a figura do agente infiltrado em seus respectivos ordenamentos jurídicos.

Melhor explicando, existem pouquíssimos países, a 42exemplo do Brasil, que em sua legislação penal possibilitou que

as infiltrações pudessem ser realizadas tanto por agentes policiais como por agentes de inteligência, no caso da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência).

Conforme já tivemos oportunidade de manifestar sobre o assunto, em outro trabalho, ousamos discordar do legislador pátrio, ao permitir que agentes de inteligência possam infiltrar-se em organizações criminosas, para os fins previstos na Lei n. 10.217/01, uma vez que estaria sendo desvirtuado o labor daqueles, cujo objetivo precípuo é buscar informações tendentes à manutenção da ordem e da segurança nacional, e não informações e provas que serão úteis à eventual persecução penal. Não se pode confundir inteligência de Estado com inteligência criminal, vez que os objetivos desses métodos

43de obtenção de dados e informações são diametralmente opostos .Já com relação à possibilidade do particular figurar como

agente infiltrado em alguma operação encoberta, da mesma forma opinamos por sua impossibilidade. E as razões são as mais variadas, vez que os mesmos, via de regra, não possuem a adequada preparação psicológica e profissional para participar de um trabalho tão emblemático e perigoso como seria uma infiltração em banda criminosa. Não cabe nenhuma dúvida de que as possibilidades de que esse agente particular

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39 SILVA, E. A. Crime organizado. Procedimento probatório, op. cit., p. 86.40 CARMONA SALGADO, C. La circulación y entrega vigilada de drogas y el agente encubierto en el marco de la criminalidad organizada sobre narcotráfico. MORILLAS CUEVA, L. (Coord.). Estudios jurídico-penales y político-criminales sobre tráfico de drogas y figuras afines. Madrid: Dykinson, 2003. p. 181-182.

41 GASCÓN INCHAUSTI, F. Infiltración policial y agente encubierto, op. cit., p. 10.42 Vide Lei n. 9.034/95 (alterada pela Lei n. 10.217/01).43 PEREIRA, F. C. A investigação criminal realizada por agentes infiltrados. Revista do Ministério Público do Estado do Mato Grosso, Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público do Estado do Mato Grosso, Cuiabá, ano 2, n. 2, jan./jun. 2007.

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se entregasse a corrupção, por medo, necessidade financeira ou por outros fatores diversos passariam a colocar em risco a eficiência e credibilidade da operação encoberta. E as razões que justificam essas possibilidades de mudança de posição dentro da operação são justificáveis, pois, como não são pessoas formadas em ambiente policial, não apresentam uma responsabilidade profissional adequada, que lhes possibilite resistir às tentações de ceder ao suborno e nem mesmo denotam compromisso com a tarefa de persecução criminal.

De relevante nesse momento seria salientar que na maioria dos países que utilizam esse meio de investigação na luta contra a delinquência organizada é permitido somente aos agentes policiais

44participaram das infiltrações .Por outro lado, importante destacar que, por vezes, é

perceptível até mesmo no âmbito doutrinário certa confusão conceitual envolvendo a figura do agente infiltrado e de outros personagens afins.

É preciso distinguir, por exemplo, o agente infiltrado, que possui o labor de penetrar no centro da estrutura do clã de criminosos, através do uso do engano, a fim de coletar informações e provas para posterior desmantelamento da organização, do personagem conhecido no meio policial como informante.

Esse, segundo abalizada doutrina, seria aquela pessoa cujos dados são reservados, que confidencialmente brinda material informativo acerca de ilícitos, prestando uma valiosa ajuda aos

45funcionários policiais na investigação do delito .Denota-se que essa figura apresenta certa proximidade

com a estrutura policial, servindo como mantenedor de dados e notícias a respeito do mundo do crime, já que fornece, rotineiramente, informações valiosas às investigações policiais. Não necessita, logicamente, de autorização judicial para atuar.

O confidente ou informante é, portanto, uma pessoa de confiança das autoridades de persecução penal. É o clássico “soplón” ou “chivato”, cuja atividade sempre estará premiada, seja com vantagens materiais, sejam processuais (em caso de estar também

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200840

46processado, mesmo que não necessariamente pelo mesmo delito) .Outro personagem, que não caberia confundir com o

infiltrado, seria o conhecido como “espião” ou “agente secreto”, uma vez que esses últimos laboram única e exclusivamente na tarefa de desenvolver atividades de inteligência voltadas para a defesa do Estado Democrático de Direito, da sociedade, da eficácia do poder público e da soberania nacional.

Também o denunciante anônimo não deve ser confundido com o agente infiltrado, já que aquele consiste na pessoa, geralmente um particular, que coloca a conhecimento da autoridade a ocorrência de fatos delitivos e que, aos poucos, conduz a essa algum elemento probatório de relevância, porém cuja identidade se mantém oculta no processo penal. Ao contrário do informante, o anônimo não apresenta proximidade junto à polícia, sendo a sua atuação nitidamente esporádica.

Já o arrependido, conhecido em outras legislações como pentito no Direito Italiano, Kronzeuge no Direito Alemão ou Witness of the crown no Direito Americano, pode ser conceituado como aquele indivíduo pertencente a um grupo organizado de criminosos que decide procurar as autoridades penais, disposto a confessar seus próprios crimes e colaborar com a justiça mediante o fornecimento de informações que permitam individualizar os fatos delitivos do grupo e seus integrantes, fundamentalmente os

47membros destacados da cúpula diretiva .Como assinalado por Choclán Montalvo, o problema do

arrependido surge de um pacto entre duas partes interessadas: de um lado, os órgãos encarregados da persecução penal, que necessitam de “colaboradores da justiça” para obter um conhecimento suficiente acerca do funcionamento interno das complexas estruturas criminais; de outro, o arrependido, que busca um benefício pessoal e

48a volta à normalidade social, em regime de liberdade . Não se confunde, ademais, o agente encoberto com a figura

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 41

44 Citem-se como exemplos a Espanha, a Alemanha, a Itália, a França, a Argentina e o Chile.45 MONTOYA, M. D. Informantes y técnicas de investigación encubiertas. Análisis Constitucional e Procesal Penal. 2. ed. Buenos Aires: Ad. Hoc, 2001. p. 199.

46 PÉREZ ARROYO, M. R. La provocación de la prueba, el agente provocador y el agente encubierto: la validez de la provocación de la prueba y del delito en la lucha contra la criminalidad organizada desde el sistema de pruebas prohibidas en el Derecho Penal y Procesal Penal. La Ley, n. 4987, 8 de febrero de 2000, p. 2.47 FONSECA-HERRERO, M. G. de L. Criminalidad organizada y medios extraordinarios de investigación. Madrid: Colex, 2004. p. 153.

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se entregasse a corrupção, por medo, necessidade financeira ou por outros fatores diversos passariam a colocar em risco a eficiência e credibilidade da operação encoberta. E as razões que justificam essas possibilidades de mudança de posição dentro da operação são justificáveis, pois, como não são pessoas formadas em ambiente policial, não apresentam uma responsabilidade profissional adequada, que lhes possibilite resistir às tentações de ceder ao suborno e nem mesmo denotam compromisso com a tarefa de persecução criminal.

De relevante nesse momento seria salientar que na maioria dos países que utilizam esse meio de investigação na luta contra a delinquência organizada é permitido somente aos agentes policiais

44participaram das infiltrações .Por outro lado, importante destacar que, por vezes, é

perceptível até mesmo no âmbito doutrinário certa confusão conceitual envolvendo a figura do agente infiltrado e de outros personagens afins.

É preciso distinguir, por exemplo, o agente infiltrado, que possui o labor de penetrar no centro da estrutura do clã de criminosos, através do uso do engano, a fim de coletar informações e provas para posterior desmantelamento da organização, do personagem conhecido no meio policial como informante.

Esse, segundo abalizada doutrina, seria aquela pessoa cujos dados são reservados, que confidencialmente brinda material informativo acerca de ilícitos, prestando uma valiosa ajuda aos

45funcionários policiais na investigação do delito .Denota-se que essa figura apresenta certa proximidade

com a estrutura policial, servindo como mantenedor de dados e notícias a respeito do mundo do crime, já que fornece, rotineiramente, informações valiosas às investigações policiais. Não necessita, logicamente, de autorização judicial para atuar.

O confidente ou informante é, portanto, uma pessoa de confiança das autoridades de persecução penal. É o clássico “soplón” ou “chivato”, cuja atividade sempre estará premiada, seja com vantagens materiais, sejam processuais (em caso de estar também

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200840

46processado, mesmo que não necessariamente pelo mesmo delito) .Outro personagem, que não caberia confundir com o

infiltrado, seria o conhecido como “espião” ou “agente secreto”, uma vez que esses últimos laboram única e exclusivamente na tarefa de desenvolver atividades de inteligência voltadas para a defesa do Estado Democrático de Direito, da sociedade, da eficácia do poder público e da soberania nacional.

Também o denunciante anônimo não deve ser confundido com o agente infiltrado, já que aquele consiste na pessoa, geralmente um particular, que coloca a conhecimento da autoridade a ocorrência de fatos delitivos e que, aos poucos, conduz a essa algum elemento probatório de relevância, porém cuja identidade se mantém oculta no processo penal. Ao contrário do informante, o anônimo não apresenta proximidade junto à polícia, sendo a sua atuação nitidamente esporádica.

Já o arrependido, conhecido em outras legislações como pentito no Direito Italiano, Kronzeuge no Direito Alemão ou Witness of the crown no Direito Americano, pode ser conceituado como aquele indivíduo pertencente a um grupo organizado de criminosos que decide procurar as autoridades penais, disposto a confessar seus próprios crimes e colaborar com a justiça mediante o fornecimento de informações que permitam individualizar os fatos delitivos do grupo e seus integrantes, fundamentalmente os

47membros destacados da cúpula diretiva .Como assinalado por Choclán Montalvo, o problema do

arrependido surge de um pacto entre duas partes interessadas: de um lado, os órgãos encarregados da persecução penal, que necessitam de “colaboradores da justiça” para obter um conhecimento suficiente acerca do funcionamento interno das complexas estruturas criminais; de outro, o arrependido, que busca um benefício pessoal e

48a volta à normalidade social, em regime de liberdade . Não se confunde, ademais, o agente encoberto com a figura

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44 Citem-se como exemplos a Espanha, a Alemanha, a Itália, a França, a Argentina e o Chile.45 MONTOYA, M. D. Informantes y técnicas de investigación encubiertas. Análisis Constitucional e Procesal Penal. 2. ed. Buenos Aires: Ad. Hoc, 2001. p. 199.

46 PÉREZ ARROYO, M. R. La provocación de la prueba, el agente provocador y el agente encubierto: la validez de la provocación de la prueba y del delito en la lucha contra la criminalidad organizada desde el sistema de pruebas prohibidas en el Derecho Penal y Procesal Penal. La Ley, n. 4987, 8 de febrero de 2000, p. 2.47 FONSECA-HERRERO, M. G. de L. Criminalidad organizada y medios extraordinarios de investigación. Madrid: Colex, 2004. p. 153.

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conhecida no Direito norte-americano como undercover agent. Seria este último um infiltrado sui generis, uma vez que sua tarefa consiste em realizar operações genéricas, sem qualquer finalidade específica. Nessa alheta, o undercover agent, ainda que seja um policial atuando de forma encoberta, se infiltra de modo genérico em âmbitos e organizações diversas, sem que seu labor obedeça, desde um princípio, a uma investigação delitiva concreta (seria,

49assim, uma espécie equivalente ao colaborador ou confidente) .Por fim, um personagem que por vezes confunde-se com a

figura do agente infiltrado, quiçá em razão de seus equivalentes históricos, seria o conhecido como “agente provocador”. Em célebre conceituação ofertada por Julius Glaser, o agente provocador é aquele que instiga a outro a perpetrar o delito tão somente porque

50quer que esse resulte posteriormente convicto e seja castigado .Como bem se pode observar, à diferença do agente infiltrado,

o provocador pode ser até mesmo um particular, pois, na grande maioria das ações encobertas pertencentes a essa espécie de investigação, quanto mais o agente apresentar aparência de cidadão tradicional, sem suspeitas, melhores serão as possibilidades de indução ou instigação do agente criminoso para a prática do delito, em especial quando se trata de uma simulação de compra de drogas.

O infiltrado, dentro de sua atuação estrita de busca de informações e provas acerca da estrutura da organização criminosa, não promove atos de provocação ou incitação à prática do delito. Se assim proceder, deverá ter sua conduta analisada à luz do tratamento

51que é dispensado ao delito provocado , ficando prejudicada sua isenção de responsabilidade penal. Em síntese, não se pode

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200842

argumentar que exista qualquer relação entre a atuação de um agente infiltrado e a ocorrência de um flagrante provocado, vez que aquele tão somente observa, coleta informações e provas, não fazendo parte de seu labor qualquer ato de provocação à prática do delito.

Da mesma forma que as ações ou entregas vigiadas, as infiltrações policiais encontram reconhecimento e pertinência junto a inúmeras convenções internacionais, podendo citar-se, a título de exemplos, a Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado (2000), a Convenção da ONU contra a Corrupção (2003). Também encontra aceitação junto ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (STEDH), sentença de 15/06/1992, e no Convênio entre Estados membros da União Européia de assistência judicial penal (2000).

Quando se fala em infiltrações, devemos visualizar que essa nomenclatura genérica englobaria uma subdivisão em algumas espécies distintas, a saber: públicas, quando o agente oculta sua condição funcional com o fim de estabelecer laços de confiança com os membros do clã criminoso na busca de informações, como nos casos dos agentes infiltrados, agentes policiais provocadores e agentes de inteligência; semi-públicas, quando os sujeitos ativos, mesmo que não particulares, contam com o apoio do poder público na busca de informações e provas, a exemplo dos arrependidos, informantes e agentes provocadores não policiais; semi-privadas, quando ocorrer a atuação de detetives particulares e de jornalistas na busca de informações e provas; e, por fim, privadas, quando sujeitos particulares realizam investigações para a satisfação de seus interesses pessoais, geralmente buscando dados sobre fatos não policiais, como traições amorosas, descobrimento de informações familiares etc.

No presente estudo nos interessa tão somente analisar alguns aspectos das infiltrações públicas.

Como facilmente se poderia deduzir, a ratio juris justificadora da figura do agente encoberto reside nos prejuízos ocasionados a toda a sociedade, pelo crime organizado, e as consequentes dificuldades próprias de sua erradicação. Trata-se, ademais, de um instrumento a serviço da execução de uma infiltração. Assim, também são infiltrados, e se encontram igualmente vinculados ao poder público, os membros de serviços de inteligência, se diferenciando, como já assinalado, pelas

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 43

51 Ver Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal.

48 CHOCLÁN MONTALVO, J. A. La organización criminal. Tratamiento penal y procesal. Madrid: Dykinson, 2000. p. 65-66.49 GASCÓN INCHAUSTI, F. Infiltración policial y agente encubierto, op. cit., p. 28. Em sentido contrário, aceitando a nomenclatura undercover como palavra sinônima de “agente encoberto”, vide: PAZ RUBIO, J. M.; MUÑOZ, J. M.; OLLE SESÉ, M.; RODRÍGUEZ MORICHE, R. M. La prueba en el proceso penal. Su práctica ante los tribunales. Madrid: Colex, 1999. p. 395; DELGADO MARTÍN, J. Criminalidad organizada. Barcelona: Bosch, 2001. p. 44-45.50 GLASER, J. Zur Lehre von Dolus des Ansfifters, II. Der Gerichtssal. 1858, p. 53, apud SEÖANE SPIEGELBERG, J. L. Aspectos procesales del tráfico de drogas. Actualidad Penal, Fascículo 1, 1996, p. 345.

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conhecida no Direito norte-americano como undercover agent. Seria este último um infiltrado sui generis, uma vez que sua tarefa consiste em realizar operações genéricas, sem qualquer finalidade específica. Nessa alheta, o undercover agent, ainda que seja um policial atuando de forma encoberta, se infiltra de modo genérico em âmbitos e organizações diversas, sem que seu labor obedeça, desde um princípio, a uma investigação delitiva concreta (seria,

49assim, uma espécie equivalente ao colaborador ou confidente) .Por fim, um personagem que por vezes confunde-se com a

figura do agente infiltrado, quiçá em razão de seus equivalentes históricos, seria o conhecido como “agente provocador”. Em célebre conceituação ofertada por Julius Glaser, o agente provocador é aquele que instiga a outro a perpetrar o delito tão somente porque

50quer que esse resulte posteriormente convicto e seja castigado .Como bem se pode observar, à diferença do agente infiltrado,

o provocador pode ser até mesmo um particular, pois, na grande maioria das ações encobertas pertencentes a essa espécie de investigação, quanto mais o agente apresentar aparência de cidadão tradicional, sem suspeitas, melhores serão as possibilidades de indução ou instigação do agente criminoso para a prática do delito, em especial quando se trata de uma simulação de compra de drogas.

O infiltrado, dentro de sua atuação estrita de busca de informações e provas acerca da estrutura da organização criminosa, não promove atos de provocação ou incitação à prática do delito. Se assim proceder, deverá ter sua conduta analisada à luz do tratamento

51que é dispensado ao delito provocado , ficando prejudicada sua isenção de responsabilidade penal. Em síntese, não se pode

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argumentar que exista qualquer relação entre a atuação de um agente infiltrado e a ocorrência de um flagrante provocado, vez que aquele tão somente observa, coleta informações e provas, não fazendo parte de seu labor qualquer ato de provocação à prática do delito.

Da mesma forma que as ações ou entregas vigiadas, as infiltrações policiais encontram reconhecimento e pertinência junto a inúmeras convenções internacionais, podendo citar-se, a título de exemplos, a Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado (2000), a Convenção da ONU contra a Corrupção (2003). Também encontra aceitação junto ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (STEDH), sentença de 15/06/1992, e no Convênio entre Estados membros da União Européia de assistência judicial penal (2000).

Quando se fala em infiltrações, devemos visualizar que essa nomenclatura genérica englobaria uma subdivisão em algumas espécies distintas, a saber: públicas, quando o agente oculta sua condição funcional com o fim de estabelecer laços de confiança com os membros do clã criminoso na busca de informações, como nos casos dos agentes infiltrados, agentes policiais provocadores e agentes de inteligência; semi-públicas, quando os sujeitos ativos, mesmo que não particulares, contam com o apoio do poder público na busca de informações e provas, a exemplo dos arrependidos, informantes e agentes provocadores não policiais; semi-privadas, quando ocorrer a atuação de detetives particulares e de jornalistas na busca de informações e provas; e, por fim, privadas, quando sujeitos particulares realizam investigações para a satisfação de seus interesses pessoais, geralmente buscando dados sobre fatos não policiais, como traições amorosas, descobrimento de informações familiares etc.

No presente estudo nos interessa tão somente analisar alguns aspectos das infiltrações públicas.

Como facilmente se poderia deduzir, a ratio juris justificadora da figura do agente encoberto reside nos prejuízos ocasionados a toda a sociedade, pelo crime organizado, e as consequentes dificuldades próprias de sua erradicação. Trata-se, ademais, de um instrumento a serviço da execução de uma infiltração. Assim, também são infiltrados, e se encontram igualmente vinculados ao poder público, os membros de serviços de inteligência, se diferenciando, como já assinalado, pelas

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51 Ver Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal.

48 CHOCLÁN MONTALVO, J. A. La organización criminal. Tratamiento penal y procesal. Madrid: Dykinson, 2000. p. 65-66.49 GASCÓN INCHAUSTI, F. Infiltración policial y agente encubierto, op. cit., p. 28. Em sentido contrário, aceitando a nomenclatura undercover como palavra sinônima de “agente encoberto”, vide: PAZ RUBIO, J. M.; MUÑOZ, J. M.; OLLE SESÉ, M.; RODRÍGUEZ MORICHE, R. M. La prueba en el proceso penal. Su práctica ante los tribunales. Madrid: Colex, 1999. p. 395; DELGADO MARTÍN, J. Criminalidad organizada. Barcelona: Bosch, 2001. p. 44-45.50 GLASER, J. Zur Lehre von Dolus des Ansfifters, II. Der Gerichtssal. 1858, p. 53, apud SEÖANE SPIEGELBERG, J. L. Aspectos procesales del tráfico de drogas. Actualidad Penal, Fascículo 1, 1996, p. 345.

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finalidades que perseguem. A técnica da infiltração necessita de um meio para torná-la

realidade. Haverá de ser uma pessoa física que irá penetrar de forma camuflada nas estruturas sociais, não necessariamente delitivas, para cumular quaisquer tipos de dados relevantes e referentes a fatos de caráter reservado. Para tanto, o simples estabelecimento de suportes técnicos como meio de arrecadar informações não é, no sentido puro

52da palavra, uma infiltração .São consideradas como características básicas e fundamentais

a execução de uma infiltração policial, o uso de identidade falsa pelo agente encoberto, o combate à determinada classe de delitos, o uso do engano e dissimulação para aproximação do grupo criminoso, a conivência do Estado para com a prática excepcional de atos e crimes pelo infiltrado, desde que observado o princípio da proporcionalidade e, por fim, a autorização judicial e sigilosa.

No Brasil, o tema das infiltrações, como meios investigatórios 53no processo penal, não foi abordado com profundidade pela doutrina

e nem sequer recebeu qualquer tratamento jurisprudencial. A legislação pátria, mesmo que de forma desastrosa, tratou

do tema em duas oportunidades. Na Lei n. 9.034/95 (alterada pela Lei n. 10.217/01), em seu art. 2º, inciso V, estabeleceu que em qualquer fase da persecução criminal poder-se-á utilizar de infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial. Ainda, que essa autorização será estritamente sigilosa e permanecerá nesta condição enquanto perdurar a infiltração (§ único).

Lanço as mesmas críticas já feitas quanto à regulamentação das entregas controladas pelo legislador brasileiro, vez que pecou novamente pela omissão quando, ao se referir à atuação do agente infiltrado, deixou de tratar do prazo de duração da operação, da titularidade para se requerer a utilização desse meio de investigação,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200844 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 45

da competência para autorizar a medida, da valoração da prova a ser obtida na infiltração, da eventual possibilidade de violação de direitos fundamentais do investigado etc.

Quando da edição da Lei n. 11.343/06, que tratou da nova lei de drogas, esperava-se que tais deficiências fossem superadas. Eis que, editada e publicada, referida lei conseguiu ser ainda mais omissa, ao prescrever tão somente que em qualquer fase da persecução criminal poder-se-á utilizar da infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação constituída pelos órgãos especializados pertinentes.

Oportuno então afirmar que o tratamento dado pela legislação brasileira ao tema é por demais frágil e vazio, fazendo com que essas operações sejam realizadas pela polícia de forma clandestina e sem respeito a quaisquer requisitos legais (se é que existem!!!).

Não foi também mencionado nas citadas leis a questão da responsabilidade penal do agente infiltrado que porventura, em meio a seu labor, vier a praticar uma infração penal.

Nesse aspecto, surgem várias possibilidades a serem analisadas.Poderia se falar em incidência de uma causa de exclusão da

culpabilidade, em razão da inexigibilidade de conduta diversa. Ou, ainda, em uma causa de exclusão da ilicitude, pelo estrito cumprimento do dever legal. Outra possibilidade diz respeito a uma escusa absolutória. Por fim, uma idéia mais recente invoca a tese da atipicidade da conduta pela teoria da imputação objetiva, face ao critério do risco juridicamente permitido. Opinamos pela segunda possibilidade aventada, ou seja, se o agente vier a praticar durante a operação encoberta algum delito relacionado com a sua missão, desde que analisada a conduta à luz dos princípios da proporcionalidade da razoabilidade, é de ser reconhecer a incidência da causa de exclusão da antijuridicidade consistente no exercício do estrito cumprimento legal.

Comungando a mesma opinião, Denílson Feitoza Pacheco aduz que se executar a infiltração conforme o plano de operações de ifiltração, o agente infiltrado estará agindo no estrito cumprimento do dever legal de descobrir as atividades da organização criminosa infiltrada, seus integrantes e redes de contato, seu modus operandi, sua área geográfica de atuação, seus objetivos de curto, médio e longo prazo, a quantidade de recursos

52 Vide GASCÓN INCHAUSTI, F. Infiltración policial y agente encubierto, op. cit, p. 9 e ss.53 Exceções feitas às obras de: PACHECO, D. F. Direito Processual Penal. Teoria, crítica e práxis. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006; MENDRONI, M. B. Crime organizado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007; SILVA, E. A. Crime organizado. Procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003.

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finalidades que perseguem. A técnica da infiltração necessita de um meio para torná-la

realidade. Haverá de ser uma pessoa física que irá penetrar de forma camuflada nas estruturas sociais, não necessariamente delitivas, para cumular quaisquer tipos de dados relevantes e referentes a fatos de caráter reservado. Para tanto, o simples estabelecimento de suportes técnicos como meio de arrecadar informações não é, no sentido puro

52da palavra, uma infiltração .São consideradas como características básicas e fundamentais

a execução de uma infiltração policial, o uso de identidade falsa pelo agente encoberto, o combate à determinada classe de delitos, o uso do engano e dissimulação para aproximação do grupo criminoso, a conivência do Estado para com a prática excepcional de atos e crimes pelo infiltrado, desde que observado o princípio da proporcionalidade e, por fim, a autorização judicial e sigilosa.

No Brasil, o tema das infiltrações, como meios investigatórios 53no processo penal, não foi abordado com profundidade pela doutrina

e nem sequer recebeu qualquer tratamento jurisprudencial. A legislação pátria, mesmo que de forma desastrosa, tratou

do tema em duas oportunidades. Na Lei n. 9.034/95 (alterada pela Lei n. 10.217/01), em seu art. 2º, inciso V, estabeleceu que em qualquer fase da persecução criminal poder-se-á utilizar de infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial. Ainda, que essa autorização será estritamente sigilosa e permanecerá nesta condição enquanto perdurar a infiltração (§ único).

Lanço as mesmas críticas já feitas quanto à regulamentação das entregas controladas pelo legislador brasileiro, vez que pecou novamente pela omissão quando, ao se referir à atuação do agente infiltrado, deixou de tratar do prazo de duração da operação, da titularidade para se requerer a utilização desse meio de investigação,

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da competência para autorizar a medida, da valoração da prova a ser obtida na infiltração, da eventual possibilidade de violação de direitos fundamentais do investigado etc.

Quando da edição da Lei n. 11.343/06, que tratou da nova lei de drogas, esperava-se que tais deficiências fossem superadas. Eis que, editada e publicada, referida lei conseguiu ser ainda mais omissa, ao prescrever tão somente que em qualquer fase da persecução criminal poder-se-á utilizar da infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação constituída pelos órgãos especializados pertinentes.

Oportuno então afirmar que o tratamento dado pela legislação brasileira ao tema é por demais frágil e vazio, fazendo com que essas operações sejam realizadas pela polícia de forma clandestina e sem respeito a quaisquer requisitos legais (se é que existem!!!).

Não foi também mencionado nas citadas leis a questão da responsabilidade penal do agente infiltrado que porventura, em meio a seu labor, vier a praticar uma infração penal.

Nesse aspecto, surgem várias possibilidades a serem analisadas.Poderia se falar em incidência de uma causa de exclusão da

culpabilidade, em razão da inexigibilidade de conduta diversa. Ou, ainda, em uma causa de exclusão da ilicitude, pelo estrito cumprimento do dever legal. Outra possibilidade diz respeito a uma escusa absolutória. Por fim, uma idéia mais recente invoca a tese da atipicidade da conduta pela teoria da imputação objetiva, face ao critério do risco juridicamente permitido. Opinamos pela segunda possibilidade aventada, ou seja, se o agente vier a praticar durante a operação encoberta algum delito relacionado com a sua missão, desde que analisada a conduta à luz dos princípios da proporcionalidade da razoabilidade, é de ser reconhecer a incidência da causa de exclusão da antijuridicidade consistente no exercício do estrito cumprimento legal.

Comungando a mesma opinião, Denílson Feitoza Pacheco aduz que se executar a infiltração conforme o plano de operações de ifiltração, o agente infiltrado estará agindo no estrito cumprimento do dever legal de descobrir as atividades da organização criminosa infiltrada, seus integrantes e redes de contato, seu modus operandi, sua área geográfica de atuação, seus objetivos de curto, médio e longo prazo, a quantidade de recursos

52 Vide GASCÓN INCHAUSTI, F. Infiltración policial y agente encubierto, op. cit, p. 9 e ss.53 Exceções feitas às obras de: PACHECO, D. F. Direito Processual Penal. Teoria, crítica e práxis. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006; MENDRONI, M. B. Crime organizado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007; SILVA, E. A. Crime organizado. Procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003.

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54financeiros, materiais e humanos que possui etc. .Como temos plena convicção de que uma eventual reforma

legislativa sobre o assunto poderá estruturar e dotar de eficácia esse notável meio de investigação, ousamos agora descrever alguns requisitos que, a nosso ver, poderiam provocar uma utilização racional e adequada das infiltrações.

Em primeiro lugar, destaca-se o seu caráter de excepcional. Como toda medida suscetível de restringir um direito fundamental, deverá a infiltração apresentar um caráter de utilização restritiva e somente se adotará tal medida quando não exista outro meio de investigação do delito, menos gravoso para os investigados, o que, normalmente, traduz-se em que a atuação do

55agente infiltrado seja a ultima ratio .O juízo de proporcionalidade consiste noutro requisito

extremamente indispensável ao êxito da infiltração. Impõe-se que a infiltração apenas possa ser utilizada quando os direitos a serem protegidos forem superiores àqueles que serão violados com a infiltração (por exemplo, serão violados os direitos fundamentais de intimidade, privacidade, imagem, honra etc.). Assim, quanto ao crime a investigar, na falta de regulamentação, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito faz a limitação pelo máximo de

56gravidade, somente permitindo a infiltração quanto a crimes graves .A autorização para execução da operação encoberta deverá,

além de partir de autoridade competente, ser devidamente motivada, especificando-se toda a análise acerca do juízo de proporcionalidade e, ainda, obedecendo-se ao princípio do devido processo legal.

A existência de indícios suficientes de ocorrência de atos ligados a uma criminalidade mais acentuada deverá ser observada no tocante às eventuais infiltrações policiais. Dentro desse aspecto, evitam-se absurdos como aquele noticiado pela imprensa brasileira em 15.09.2006, dando conta que um agente infiltrado iria vigiar Suzane von Richthofen, conhecida por ter participado da morte de seus próprios pais ao lado dos irmãos Cravinhos, dentro do presídio,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200846

a fim de descobrir se a mesma estaria recebendo “regalias” no 57ambiente carcerário . Definitivamente, esse não seria um caso em

que se deveria utilizar a infiltração, por estar absolutamente fora dos propósitos e objetivos perseguidos por esse meio de investigação.

O controle judicial, após o início da infiltração, também se apresenta como requisito indispensável ao êxito da medida. Quando se diz “controle” quer se dizer que deverá o juiz não participar da investigação, mas tão somente, em conjunto com o Ministério Público, velar pelo cumprimento estrito do que foi determinado na autorização por ele concedida. A parte opinativa, quanto à eventual mudança de estratégia e do plano operacional, deverá ficar a cargo do parquet, que receberá informes diários de todo o andamento da operação.

O último dos requisitos poderá ser extraído da legislação espanhola, que exige em sua Ley de Enjuiciamiento Criminal, artigo 282, bis, 3, que quando as atuações de investigação possam afetar aos direitos fundamentais o agente infiltrado deverá solicitar junto ao órgão judicial competente as autorizações que a respeito estabeleça a Constituição e a lei, assim como cumprir as demais previsões legais aplicáveis. Tal preceito apresenta grande repercussão no tocante a eventual aproveitamento das provas obtidas na operação encoberta, evitando-se que no processo seja a atividade probatória perdida em razão da produção de prova ilícita ou ilegal por violação de direitos fundamentais.

Conclusão

No conflito de tensões estabelecido entre a busca da eficácia e da eficiência da persecução acusatória e a garantia dos direitos fundamentais dos investigados deverá ser buscada a visualização de uma “zona de equilíbrio”, de modo a se encontrar pontos de equilíbrio que compatibilizem este paradoxo. Particular importância nessa tarefa deverá ser debitada ao princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, duas são as principais razões que levaram os diversos países a elaborarem legislações que prevêem novas formas

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 47

54 PACHECO, D. F. Direito Processual Penal. Teoria, crítica e práxis, op. cit., p. 968.55 PEREIRA, F. C. A investigação criminal realizada por agentes infiltrados, op. cit., p. 182.56 PACHECO, D. F. Direito Processual Penal. Teoria, crítica e práxis, op. cit., p. 968.

57Notícia extraída do site Folha online, podendo ser acessada no endereço eletrônico: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u125993.shtml.

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54financeiros, materiais e humanos que possui etc. .Como temos plena convicção de que uma eventual reforma

legislativa sobre o assunto poderá estruturar e dotar de eficácia esse notável meio de investigação, ousamos agora descrever alguns requisitos que, a nosso ver, poderiam provocar uma utilização racional e adequada das infiltrações.

Em primeiro lugar, destaca-se o seu caráter de excepcional. Como toda medida suscetível de restringir um direito fundamental, deverá a infiltração apresentar um caráter de utilização restritiva e somente se adotará tal medida quando não exista outro meio de investigação do delito, menos gravoso para os investigados, o que, normalmente, traduz-se em que a atuação do

55agente infiltrado seja a ultima ratio .O juízo de proporcionalidade consiste noutro requisito

extremamente indispensável ao êxito da infiltração. Impõe-se que a infiltração apenas possa ser utilizada quando os direitos a serem protegidos forem superiores àqueles que serão violados com a infiltração (por exemplo, serão violados os direitos fundamentais de intimidade, privacidade, imagem, honra etc.). Assim, quanto ao crime a investigar, na falta de regulamentação, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito faz a limitação pelo máximo de

56gravidade, somente permitindo a infiltração quanto a crimes graves .A autorização para execução da operação encoberta deverá,

além de partir de autoridade competente, ser devidamente motivada, especificando-se toda a análise acerca do juízo de proporcionalidade e, ainda, obedecendo-se ao princípio do devido processo legal.

A existência de indícios suficientes de ocorrência de atos ligados a uma criminalidade mais acentuada deverá ser observada no tocante às eventuais infiltrações policiais. Dentro desse aspecto, evitam-se absurdos como aquele noticiado pela imprensa brasileira em 15.09.2006, dando conta que um agente infiltrado iria vigiar Suzane von Richthofen, conhecida por ter participado da morte de seus próprios pais ao lado dos irmãos Cravinhos, dentro do presídio,

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200846

a fim de descobrir se a mesma estaria recebendo “regalias” no 57ambiente carcerário . Definitivamente, esse não seria um caso em

que se deveria utilizar a infiltração, por estar absolutamente fora dos propósitos e objetivos perseguidos por esse meio de investigação.

O controle judicial, após o início da infiltração, também se apresenta como requisito indispensável ao êxito da medida. Quando se diz “controle” quer se dizer que deverá o juiz não participar da investigação, mas tão somente, em conjunto com o Ministério Público, velar pelo cumprimento estrito do que foi determinado na autorização por ele concedida. A parte opinativa, quanto à eventual mudança de estratégia e do plano operacional, deverá ficar a cargo do parquet, que receberá informes diários de todo o andamento da operação.

O último dos requisitos poderá ser extraído da legislação espanhola, que exige em sua Ley de Enjuiciamiento Criminal, artigo 282, bis, 3, que quando as atuações de investigação possam afetar aos direitos fundamentais o agente infiltrado deverá solicitar junto ao órgão judicial competente as autorizações que a respeito estabeleça a Constituição e a lei, assim como cumprir as demais previsões legais aplicáveis. Tal preceito apresenta grande repercussão no tocante a eventual aproveitamento das provas obtidas na operação encoberta, evitando-se que no processo seja a atividade probatória perdida em razão da produção de prova ilícita ou ilegal por violação de direitos fundamentais.

Conclusão

No conflito de tensões estabelecido entre a busca da eficácia e da eficiência da persecução acusatória e a garantia dos direitos fundamentais dos investigados deverá ser buscada a visualização de uma “zona de equilíbrio”, de modo a se encontrar pontos de equilíbrio que compatibilizem este paradoxo. Particular importância nessa tarefa deverá ser debitada ao princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, duas são as principais razões que levaram os diversos países a elaborarem legislações que prevêem novas formas

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 47

54 PACHECO, D. F. Direito Processual Penal. Teoria, crítica e práxis, op. cit., p. 968.55 PEREIRA, F. C. A investigação criminal realizada por agentes infiltrados, op. cit., p. 182.56 PACHECO, D. F. Direito Processual Penal. Teoria, crítica e práxis, op. cit., p. 968.

57Notícia extraída do site Folha online, podendo ser acessada no endereço eletrônico: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u125993.shtml.

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de se afrontar a delinquência organizada: em primeiro, o caráter transnacional real e virtual, próprio da globalização econômica que atravessa a sociedade em pleno século XXI, acelerada por uma tecnologia que permite atuar em tempo real em qualquer economia local, em qualquer momento, desde qualquer lugar; e em segundo, a abundância de meios para perpetração de delitos e a perfeição das estruturas delitivas que, em muitos casos, fazem com que se tornem inviáveis e insuficientes as técnicas tradicionais de investigação.

Que a expansão do crime organizado vem adquirindo contornos inaceitáveis do ponto de vista do controle da delinquência não há que se discutir, restando, porém, em aberto, a infindável discussão acerca da dificuldade em se buscar um conceito que abarque todos os elementos caracterizadores dessa espécie de criminalidade globalizada.

A investigação criminal, dada sua importância e magnitude, não pode continuar sua utópica epopéia de perseguir as novas formas de criminalidade, utilizando-se do mesmo modus operandi empregado no tocante ao combate à delinquência tradicional, perpetrada de forma individualizada e sem requintes de estruturação logística.

Em face da insuficiência ora explicitada, impõe-se a adoção de meios extraordinários de investigação criminal, a exemplo das entregas controladas e das infiltrações policiais, técnicas essas que, se empregadas objetivamente de uma forma coerente e político-criminalmente correta, obedecendo-se os postulados dos princípios da proporcionalidade e do devido processo legal, poderão contribuir em muito para o êxito da persecução penal contra a delinquência organizada.

Eis o grande desafio, buscar uma regulamentação adequada e pertinente a respeito desses meios de investigação, de modo que ao Estado seja possibilitado o exercício do ius puniendi, ao mesmo tempo em que deverão ser resguardados os direitos e garantias das pessoas investigadas. Aguarda-se para um futuro próximo o anúncio de um Direito processual penal do equilíbrio.

Referências

ARAÚJO SILVA, E. Crime organizado. Procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003.

BECHARA, F. R. Criminalidade organizada e procedimento

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200848

diferenciado: entre eficiência e garantismo. In: FARIA COSTA, J. de; MARQUES DA SILVA, M. A. (Coords.). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais. Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

BECK, U. La sociedad del riesgo. Hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 2002.

CAFFERATA NORES, J. I. La eficacia de la investigación penal en el Estado de Derecho. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 35, ano 9, jul./set. 2001.

CARMONA SALGADO, C. La circulación y entrega vigilada de drogas y el agente encubierto en el marco de la criminalidad organizada sobre narcotráfico. In: MORILLAS CUEVA, L. (Coord.). Estudios jurídico-penales y político-criminales sobre tráfico de drogas y figuras afines. Madrid: Dykinson, 2003.

CASTALDO, A. La naturaleza económica de la criminalidad organizada. Disponível em: http://www.eldial.com/home/prudentia/ pru57/01.asp. Acesso em: 09 jun. 2007.

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FONSECA-HERRERO, M. G. de L. Criminalidad organizada y medios extraordinarios de investigación. Madrid: Colex, 2004.

GASCÓN INCHAUSTI, F. Infiltración policial y agente encubierto. Granada: Comares, 2001.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 49

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de se afrontar a delinquência organizada: em primeiro, o caráter transnacional real e virtual, próprio da globalização econômica que atravessa a sociedade em pleno século XXI, acelerada por uma tecnologia que permite atuar em tempo real em qualquer economia local, em qualquer momento, desde qualquer lugar; e em segundo, a abundância de meios para perpetração de delitos e a perfeição das estruturas delitivas que, em muitos casos, fazem com que se tornem inviáveis e insuficientes as técnicas tradicionais de investigação.

Que a expansão do crime organizado vem adquirindo contornos inaceitáveis do ponto de vista do controle da delinquência não há que se discutir, restando, porém, em aberto, a infindável discussão acerca da dificuldade em se buscar um conceito que abarque todos os elementos caracterizadores dessa espécie de criminalidade globalizada.

A investigação criminal, dada sua importância e magnitude, não pode continuar sua utópica epopéia de perseguir as novas formas de criminalidade, utilizando-se do mesmo modus operandi empregado no tocante ao combate à delinquência tradicional, perpetrada de forma individualizada e sem requintes de estruturação logística.

Em face da insuficiência ora explicitada, impõe-se a adoção de meios extraordinários de investigação criminal, a exemplo das entregas controladas e das infiltrações policiais, técnicas essas que, se empregadas objetivamente de uma forma coerente e político-criminalmente correta, obedecendo-se os postulados dos princípios da proporcionalidade e do devido processo legal, poderão contribuir em muito para o êxito da persecução penal contra a delinquência organizada.

Eis o grande desafio, buscar uma regulamentação adequada e pertinente a respeito desses meios de investigação, de modo que ao Estado seja possibilitado o exercício do ius puniendi, ao mesmo tempo em que deverão ser resguardados os direitos e garantias das pessoas investigadas. Aguarda-se para um futuro próximo o anúncio de um Direito processual penal do equilíbrio.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 51

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200852 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 53

Resumo:A evolução da espécie humana, marcada por relações de subordinação e dependência, demonstra que a mulher nem sempre ostentou uma posição de igualdade jurídica em relação ao homem. A concretização dessa igualdade, permitindo a sua transposição do plano formal para o real, exige a implementação de medidas que possibilitem a efetiva inserção e proteção da mulher no Estado de Direito. É nesse contexto que é analisada a “Lei Maria da Penha”, verdadeira ação afirmativa que busca coibir a violência no ambiente doméstico e familiar, onde a mulher é a vítima principal. A preocupação com a mulher enquanto vítima dessa forma de violência e a previsão de consequências jurídicas mais severas ao autor do ilícito, longe de infirmar a igualdade de gênero, buscam restabelecê-la.

Palavras-chave: ações afirmativas, discriminação, igualdade, impacto desproporcional, “Lei Maria da Penha”, mulher.

Aspectos introdutórios

A interação sociopolítica entre indivíduos, grupos ou Estados, longe de ser caracterizada por uma linearidade constante, pautada por referenciais de harmonia e pacífica coexistência, tem sido historicamente marcada por posições de domínio. No plano existencial, que muitas vezes se distancia e em outras contradiz o plano idealístico-formal, a igualdade não é propriamente um valor inato e indissociável, tanto da espécie humana como das estruturas de poder que a partir dela se

PROTEÇÃO E INSERÇÃO DA MULHER NO ESTADO DE DIREITO: A LEI MARIA DA PENHA

Emerson Garcia*

* Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça, Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, Pós-Graduado em Ciências Políticas e Internacionais pela mesma Universidade, Membro da International Association of Prosecutors (The Hague – Holanda).

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Resumo:A evolução da espécie humana, marcada por relações de subordinação e dependência, demonstra que a mulher nem sempre ostentou uma posição de igualdade jurídica em relação ao homem. A concretização dessa igualdade, permitindo a sua transposição do plano formal para o real, exige a implementação de medidas que possibilitem a efetiva inserção e proteção da mulher no Estado de Direito. É nesse contexto que é analisada a “Lei Maria da Penha”, verdadeira ação afirmativa que busca coibir a violência no ambiente doméstico e familiar, onde a mulher é a vítima principal. A preocupação com a mulher enquanto vítima dessa forma de violência e a previsão de consequências jurídicas mais severas ao autor do ilícito, longe de infirmar a igualdade de gênero, buscam restabelecê-la.

Palavras-chave: ações afirmativas, discriminação, igualdade, impacto desproporcional, “Lei Maria da Penha”, mulher.

Aspectos introdutórios

A interação sociopolítica entre indivíduos, grupos ou Estados, longe de ser caracterizada por uma linearidade constante, pautada por referenciais de harmonia e pacífica coexistência, tem sido historicamente marcada por posições de domínio. No plano existencial, que muitas vezes se distancia e em outras contradiz o plano idealístico-formal, a igualdade não é propriamente um valor inato e indissociável, tanto da espécie humana como das estruturas de poder que a partir dela se

PROTEÇÃO E INSERÇÃO DA MULHER NO ESTADO DE DIREITO: A LEI MARIA DA PENHA

Emerson Garcia*

* Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça, Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, Pós-Graduado em Ciências Políticas e Internacionais pela mesma Universidade, Membro da International Association of Prosecutors (The Hague – Holanda).

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sendo demais realçar que, até então, a denominada “legítima defesa preventiva”, tese utilizada na tentativa de legitimar o uso da força, ainda não frequentara os anais dos tribunais internacionais.

No direito interno, o liberalismo clássico sedimentou dogmas cujos contornos semânticos em muito destoavam de sua projeção na realidade. A cansativa retórica da igualdade é um desses exemplos, sempre contemplada em sua plasticidade formal, mas raramente materializada em toda a sua potencialidade de expansão. Daí se afirmar que, na igualdade liberal, “todos são

4iguais, mas alguns são mais iguais que outros” . O acerto dessa afirmação pode ser facilmente constatado com um mero passar de olhos pela ordem de valores subjacente à gênese do liberalismo, fartamente ilustrada pela revolução franco-americana.

Em terras francesas, apregoava-se uma igualdade que distinguia ricos e pobres, somente admitindo a participação

5política dos primeiros, não dos últimos . Em paragens americanas, por sua vez, a discriminação racial não só contribuiu para a eclosão

6da guerra de secessão, quase levando ao fim a Federação , como,

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formam. Em verdade, a presença de posições jurídicas dominantes tem acompanhado a própria evolução da humanidade, refletindo-se em praticamente todas as relações interpessoais e interestatais. Conquanto não se negue a sua dureza, é absolutamente realista a sentença do Marquês de Vauvenargues: “a natureza não conhece a igualdade; sua lei soberana é a subordinação e a dependência”.

No direito internacional, a guerra de conquista somente foi 1efetivamente proscrita no início do século XX . Em meados do

2mesmo século convivíamos com possessões coloniais e, ainda hoje, Estados mais fortes subjugam princípios há muito sedimentados na sociedade internacional, fazendo uso da força em defesa de seus interesses. A recente invasão, por forças norte-americanas, dos

3territórios afegão e iraquiano, bem ilustra essa possibilidade , não

1 O Pacto de Paris, conhecido como Briand-Kellog, de 27 de agosto de 1928, condenou o recurso à guerra para a solução dos conflitos internacionais e vedou a sua utilização como instrumento de política nacional.2 Apesar de a Carta das Nações Unidas (art. 73), de 1945, preconizar a descolonização, dispondo que as metrópoles deveriam promover o governo próprio e o desenvolvimento de instituições políticas livres nas colônias, a inexistência de mecanismos de controle e coerção em muito contribuíram para a sua inefetividade, isto sem olvidar a situação daqueles países que, como Portugal e Espanha, sequer haviam aderido à ONU, o que só ocorreu em 1955. Esse quadro somente foi alterado a partir de 1960, quando a União Soviética aderiu vigorosamente à causa da descolonização, com o que buscava auferir a simpatia de alguns Estados e alterar a polarização pró-ocidente que marcava as assembleias da ONU. Em 1961 foi aprovada a Resolução n. 1.514, que veiculou a Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais, com 89 votos a favor, nenhum contra e 9 abstenções (Austrália, Bélgica, Espanha, EUA, França, Portugal, República Dominicana, Reino Unido e União Sul-Africana), indicativo de uma posição nitidamente anticolonial da ONU. Pouco depois, foi criada uma Comissão para acompanhar o cumprimento da Declaração, o que motivou sucessivas denúncias à Assembleia Geral da ONU, aumentando a pressão pela descolonização. Na década de 70 do século XX, as grandes questões ainda pendentes refletiam-se na situação dos territórios ultramarinos portugueses, da Rodésia (a independência declarada pelo governo de minoria branca em 1965 não fora reconhecida pela ONU e somente em 1980 um novo governo escolhido por eleições gerais assumiu o poder, fundando a República do Zimbabwe) e da Namíbia (então denominada “Sudoeste Africano”, colônia alemã até o fim da I Guerra Mundial e posteriormente administrada, em regime de tutela, pela África do Sul, somente teve sua independência declarada em 1990) (Cf. MOTA DE CAMPOS, J. et al. Organizações internacionais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. p. 296-304).3 Sobre os poderes do Presidente norte-americano na guerra contra o terrorismo, vide

CHEMERINSKY, E. Constitutional law, principles and policies. 3. ed. New York: Aspen, 2006. p. 376-385.4 OTERO, P. Instituições políticas e constitucionais. v. I. Coimbra: Edições Almedina, 2007. p. 255.5 Cf. SIEYÈS, A. Exposição refletida dos Direitos do Homem e do Cidadão. Trad. de Emerson Garcia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 69.6 No Caso Dread Scott vs. Sandford (60 U.S. 393, 1857), a Suprema Corte entendeu que os americanos descendentes de africanos, quer escravos, quer livres, não poderiam ser considerados cidadãos dos Estados Unidos, tendo julgado inconstitucional o Missouri Compromise Act, de 1820, por entender que teriam sido violados os direitos dos senhores de escravos sem o devido processo legal. Anota Peter Irons (2000) que nenhum litigante individual na história constitucional da América teve fama semelhante à de Dread Scott, tamanha a importância dos interesses que foram apreciados no julgamento de seu caso. Para mencionar apenas um, basta dizer que a decisão da Suprema Corte foi decisiva para a deflagração da guerra de secessão, pois era manifestamente favorável à postura escravagista mantida pelos Estados do sul. Em sua gênese, o caso está vinculado à solicitação do Território do Missouri, ao Congresso dos Estados Unidos, para que fosse admitido como Estado da Federação, do que resultou o Missouri Compromise Act, segundo o qual estaria para todo o sempre abolida a escravidão e a servidão involuntária, salvo na punição de crime pelo qual a parte tenha sido regularmente condenada, em todo o território denominado Louisiana, “excetuando a parte que é incluída nos limites do estado

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sendo demais realçar que, até então, a denominada “legítima defesa preventiva”, tese utilizada na tentativa de legitimar o uso da força, ainda não frequentara os anais dos tribunais internacionais.

No direito interno, o liberalismo clássico sedimentou dogmas cujos contornos semânticos em muito destoavam de sua projeção na realidade. A cansativa retórica da igualdade é um desses exemplos, sempre contemplada em sua plasticidade formal, mas raramente materializada em toda a sua potencialidade de expansão. Daí se afirmar que, na igualdade liberal, “todos são

4iguais, mas alguns são mais iguais que outros” . O acerto dessa afirmação pode ser facilmente constatado com um mero passar de olhos pela ordem de valores subjacente à gênese do liberalismo, fartamente ilustrada pela revolução franco-americana.

Em terras francesas, apregoava-se uma igualdade que distinguia ricos e pobres, somente admitindo a participação

5política dos primeiros, não dos últimos . Em paragens americanas, por sua vez, a discriminação racial não só contribuiu para a eclosão

6da guerra de secessão, quase levando ao fim a Federação , como,

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formam. Em verdade, a presença de posições jurídicas dominantes tem acompanhado a própria evolução da humanidade, refletindo-se em praticamente todas as relações interpessoais e interestatais. Conquanto não se negue a sua dureza, é absolutamente realista a sentença do Marquês de Vauvenargues: “a natureza não conhece a igualdade; sua lei soberana é a subordinação e a dependência”.

No direito internacional, a guerra de conquista somente foi 1efetivamente proscrita no início do século XX . Em meados do

2mesmo século convivíamos com possessões coloniais e, ainda hoje, Estados mais fortes subjugam princípios há muito sedimentados na sociedade internacional, fazendo uso da força em defesa de seus interesses. A recente invasão, por forças norte-americanas, dos

3territórios afegão e iraquiano, bem ilustra essa possibilidade , não

1 O Pacto de Paris, conhecido como Briand-Kellog, de 27 de agosto de 1928, condenou o recurso à guerra para a solução dos conflitos internacionais e vedou a sua utilização como instrumento de política nacional.2 Apesar de a Carta das Nações Unidas (art. 73), de 1945, preconizar a descolonização, dispondo que as metrópoles deveriam promover o governo próprio e o desenvolvimento de instituições políticas livres nas colônias, a inexistência de mecanismos de controle e coerção em muito contribuíram para a sua inefetividade, isto sem olvidar a situação daqueles países que, como Portugal e Espanha, sequer haviam aderido à ONU, o que só ocorreu em 1955. Esse quadro somente foi alterado a partir de 1960, quando a União Soviética aderiu vigorosamente à causa da descolonização, com o que buscava auferir a simpatia de alguns Estados e alterar a polarização pró-ocidente que marcava as assembleias da ONU. Em 1961 foi aprovada a Resolução n. 1.514, que veiculou a Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais, com 89 votos a favor, nenhum contra e 9 abstenções (Austrália, Bélgica, Espanha, EUA, França, Portugal, República Dominicana, Reino Unido e União Sul-Africana), indicativo de uma posição nitidamente anticolonial da ONU. Pouco depois, foi criada uma Comissão para acompanhar o cumprimento da Declaração, o que motivou sucessivas denúncias à Assembleia Geral da ONU, aumentando a pressão pela descolonização. Na década de 70 do século XX, as grandes questões ainda pendentes refletiam-se na situação dos territórios ultramarinos portugueses, da Rodésia (a independência declarada pelo governo de minoria branca em 1965 não fora reconhecida pela ONU e somente em 1980 um novo governo escolhido por eleições gerais assumiu o poder, fundando a República do Zimbabwe) e da Namíbia (então denominada “Sudoeste Africano”, colônia alemã até o fim da I Guerra Mundial e posteriormente administrada, em regime de tutela, pela África do Sul, somente teve sua independência declarada em 1990) (Cf. MOTA DE CAMPOS, J. et al. Organizações internacionais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. p. 296-304).3 Sobre os poderes do Presidente norte-americano na guerra contra o terrorismo, vide

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ainda no século XX, ensejava calorosos debates em torno da 7política segregacionista de alguns Estados-Membros .

A igualdade, em seus aspectos mais estritos, vale dizer, aqueles que não digam respeito unicamente à inserção na humanidade, pode apresentar múltiplas variações, que acompanharão as vicissitudes do meio social (na Roma antiga todos os cidadãos possuíam direitos políticos, mas os escravos e os bárbaros não eram considerados cidadãos). Práticas tidas como igualitárias num certo contexto sócio-cultural podem ser consideradas discriminatórias com o envolver do grupamento, fazendo que verdades absolutas se transmudem em relativas e daí em censuráveis equívocos.

contemplado por esta Lei”. Assim, tinha-se a abolição da escravidão em toda a Louisiana, com exceção do Missouri. O processo propriamente dito teve início em 1846, tendo o escravo negro Dread Scott proposto uma ação em face da viúva de seu antigo senhor sob o argumento de que havia sido levado por seu amo (Dr. John Emerson), um cirurgião militar, do Missouri, Estado escravagista, para Fort Armstrong, situado em Illinois (1834) e, posteriormente, para Fort Snelling, localizado em Wiscosin (1836), sendo os negros livres em ambos os territórios. Ulteriormente, e desta feita com a família que constituíra, Dread Scott foi trazido de volta para o Estado do Missouri, tendo retomado a condição de escravo. Entendendo ser ilegítimo o seu retorno à servilidade, sustentou que ao ingressar em Illinois, território livre por força do Missouri Compromisse Act, adquirira a liberdade, que não mais lhe poderia ser retirada (“once free, always free”). Não obstante a decisão favorável em primeira instância, a Suprema Corte Estadual, em grau de apelação, terminou por entender que Dread Scott retomara o seu primitivo estado servil. A questão, posteriormente, foi renovada, agora perante a Justiça Federal (Circuit) e com o Sr. John A. Sandford no polo passivo (a antiga viúva de seu amo passou a compactuar com a causa abolicionista e forjou a venda do escravo ao Sr. Sandford para que a questão pudesse voltar a ser discutida). O caso finalmente foi julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 6 de março de 1857, restando decidido que: a) os escravos negros não eram cidadãos americanos, não tendo direitos a serem protegidos; b) deveria ser observada, pela Suprema Corte, a lei do Estado do Missouri que considerava o demandante um escravo; e c) o mais importante, que o Missouri Compromisse Act excedia o poder do Congresso ao abolir a escravidão nos territórios, pois a Constituição não outorgara a este poderes para intervir no direito de propriedade dos senhores dos escravos, que haviam sido privados de sua propriedade sem o due process of law. Em 1868, a Décima Quarta Emenda alterou o entendimento fixado pelo Tribunal. Para uma visão mais ampla da posição do Supremo Tribunal norte-americano em questões raciais e de seu impacto no meio social ver Prigg vs. Pennsylvania (41, U.S. 539, 1842), The Civil Rights Cases (109 U.S. 3, 1883), City of Richmond vs. J. A. Croson Co. (488 U.S. 469, 1989) e Shaw vs. Reno (509 U.S. 630, 1995).7 Em Brown vs. Board of Education (344 U.S. 1, 1952), a Suprema Corte decidiu

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200856

Nesse contexto de fluxo e refluxo, a situação jurídica da mulher passou por diversas mutações na evolução do Estado de Direito, principiando por um estado de subordinação e dependência quase absoluta até que, a partir de conquistas pontuais, mas de indiscutível relevância, tem alcançado não só a sua autonomia existencial, como a paulatina inserção nos setores mais hegemônicos do grupamento. A compreensão dessas mutações exige reflexões em torno das dimensões em que se desenvolveu a construção jurídica dos direitos da mulher, o tratamento que lhe tem sido assegurado pelo constitucionalismo contemporâneo e, a partir de um referencial de igualdade formal, a identificação da juridicidade, ou não, das medidas adotadas para coibir a discriminação de gênero e alcançar a igualdade material. Na linha desses indicadores argumentativos, analisaremos os contornos estruturais e a compatibilidade da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006,

8também denominada “Lei Maria da Penha” , com a Constituição de 1988. A análise se faz necessária por duas razões básicas: (1) a igualdade de gênero foi incluída entre os direitos fundamentais (art. 5º, I) e (2) a Lei Maria da Penha confere um tratamento diferenciado à mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que termina por gerar resistência em relação à aplicação de alguns de seus preceitos.

A construção jurídica dos direitos da mulher

A construção de um referencial de igualdade, ainda que meramente formal, sempre ensejou uma polarização dos interesses

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 57

pela inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas públicas, política moralmente reprovável e que privava a sociedade do talento em potencial dos membros das minorias raciais. Essa decisão, de 1952, louvável sobre todos os aspectos, invocou o disposto na Seção 1 da Décima Quarta Emenda, de 1868, que dispunha sobre privilégios e imunidades, devido processo legal e igual proteção das leis, princípios de indiscutível relevância, mas que, até então, não haviam sido interpretados por nenhum tribunal de modo a obstar a segregação racial. 8 A Sra. Maria da Penha Maia Fernandes, biofarmacêutica cearense, foi vítima, em 1983, de duas tentativas de homicídio praticadas por seu marido, Marco Antonio Herredia Viveros, tendo ficado paraplégica na primeira delas. Face à injustificada demora do Estado brasileiro em solucionar o caso (Viveros somente foi preso em 2002), foi provocada a manifestação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, que o acolheu.

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ainda no século XX, ensejava calorosos debates em torno da 7política segregacionista de alguns Estados-Membros .

A igualdade, em seus aspectos mais estritos, vale dizer, aqueles que não digam respeito unicamente à inserção na humanidade, pode apresentar múltiplas variações, que acompanharão as vicissitudes do meio social (na Roma antiga todos os cidadãos possuíam direitos políticos, mas os escravos e os bárbaros não eram considerados cidadãos). Práticas tidas como igualitárias num certo contexto sócio-cultural podem ser consideradas discriminatórias com o envolver do grupamento, fazendo que verdades absolutas se transmudem em relativas e daí em censuráveis equívocos.

contemplado por esta Lei”. Assim, tinha-se a abolição da escravidão em toda a Louisiana, com exceção do Missouri. O processo propriamente dito teve início em 1846, tendo o escravo negro Dread Scott proposto uma ação em face da viúva de seu antigo senhor sob o argumento de que havia sido levado por seu amo (Dr. John Emerson), um cirurgião militar, do Missouri, Estado escravagista, para Fort Armstrong, situado em Illinois (1834) e, posteriormente, para Fort Snelling, localizado em Wiscosin (1836), sendo os negros livres em ambos os territórios. Ulteriormente, e desta feita com a família que constituíra, Dread Scott foi trazido de volta para o Estado do Missouri, tendo retomado a condição de escravo. Entendendo ser ilegítimo o seu retorno à servilidade, sustentou que ao ingressar em Illinois, território livre por força do Missouri Compromisse Act, adquirira a liberdade, que não mais lhe poderia ser retirada (“once free, always free”). Não obstante a decisão favorável em primeira instância, a Suprema Corte Estadual, em grau de apelação, terminou por entender que Dread Scott retomara o seu primitivo estado servil. A questão, posteriormente, foi renovada, agora perante a Justiça Federal (Circuit) e com o Sr. John A. Sandford no polo passivo (a antiga viúva de seu amo passou a compactuar com a causa abolicionista e forjou a venda do escravo ao Sr. Sandford para que a questão pudesse voltar a ser discutida). O caso finalmente foi julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 6 de março de 1857, restando decidido que: a) os escravos negros não eram cidadãos americanos, não tendo direitos a serem protegidos; b) deveria ser observada, pela Suprema Corte, a lei do Estado do Missouri que considerava o demandante um escravo; e c) o mais importante, que o Missouri Compromisse Act excedia o poder do Congresso ao abolir a escravidão nos territórios, pois a Constituição não outorgara a este poderes para intervir no direito de propriedade dos senhores dos escravos, que haviam sido privados de sua propriedade sem o due process of law. Em 1868, a Décima Quarta Emenda alterou o entendimento fixado pelo Tribunal. Para uma visão mais ampla da posição do Supremo Tribunal norte-americano em questões raciais e de seu impacto no meio social ver Prigg vs. Pennsylvania (41, U.S. 539, 1842), The Civil Rights Cases (109 U.S. 3, 1883), City of Richmond vs. J. A. Croson Co. (488 U.S. 469, 1989) e Shaw vs. Reno (509 U.S. 630, 1995).7 Em Brown vs. Board of Education (344 U.S. 1, 1952), a Suprema Corte decidiu

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Nesse contexto de fluxo e refluxo, a situação jurídica da mulher passou por diversas mutações na evolução do Estado de Direito, principiando por um estado de subordinação e dependência quase absoluta até que, a partir de conquistas pontuais, mas de indiscutível relevância, tem alcançado não só a sua autonomia existencial, como a paulatina inserção nos setores mais hegemônicos do grupamento. A compreensão dessas mutações exige reflexões em torno das dimensões em que se desenvolveu a construção jurídica dos direitos da mulher, o tratamento que lhe tem sido assegurado pelo constitucionalismo contemporâneo e, a partir de um referencial de igualdade formal, a identificação da juridicidade, ou não, das medidas adotadas para coibir a discriminação de gênero e alcançar a igualdade material. Na linha desses indicadores argumentativos, analisaremos os contornos estruturais e a compatibilidade da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006,

8também denominada “Lei Maria da Penha” , com a Constituição de 1988. A análise se faz necessária por duas razões básicas: (1) a igualdade de gênero foi incluída entre os direitos fundamentais (art. 5º, I) e (2) a Lei Maria da Penha confere um tratamento diferenciado à mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que termina por gerar resistência em relação à aplicação de alguns de seus preceitos.

A construção jurídica dos direitos da mulher

A construção de um referencial de igualdade, ainda que meramente formal, sempre ensejou uma polarização dos interesses

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 57

pela inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas públicas, política moralmente reprovável e que privava a sociedade do talento em potencial dos membros das minorias raciais. Essa decisão, de 1952, louvável sobre todos os aspectos, invocou o disposto na Seção 1 da Décima Quarta Emenda, de 1868, que dispunha sobre privilégios e imunidades, devido processo legal e igual proteção das leis, princípios de indiscutível relevância, mas que, até então, não haviam sido interpretados por nenhum tribunal de modo a obstar a segregação racial. 8 A Sra. Maria da Penha Maia Fernandes, biofarmacêutica cearense, foi vítima, em 1983, de duas tentativas de homicídio praticadas por seu marido, Marco Antonio Herredia Viveros, tendo ficado paraplégica na primeira delas. Face à injustificada demora do Estado brasileiro em solucionar o caso (Viveros somente foi preso em 2002), foi provocada a manifestação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, que o acolheu.

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envolvidos: de um lado, os excluídos, de outro, múltiplos atores sociais, que poderíamos subdividir em (1) hegemônicos, desejosos de manter a sua posição de primazia; (2) simpatizantes, estranhos à classe excluída, mas que reconheciam a injustiça da exclusão; e (3) indiferentes, prosélitos de seus próprios interesses e que normalmente consubstanciam a grande massa social. A partir desse quadro, o grande desafio é construir uma base axiológica que permita alcançar um referencial de coesão social, de modo que os componentes do grupamento vejam uns aos outros como iguais. O pensamento cristão, por exemplo, sustenta que todos os homens são filhos de Deus, tendo a sua imagem e semelhança, o que serve de alicerce à universalidade dos direitos humanos e justifica a igualdade entre todos aqueles que aceitem a fé cristã. Como afirmou o Apóstolo Paulo (Gálatas, 3: 28), “não há judeu nem grego, não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vóis sois um em Cristo Jesus”. Samuel Pufendorf, por sua vez, invocando aspectos inatos da espécie humana, também

9defendeu a igualdade dos homens na natureza . Qualquer que seja o referencial argumentativo utilizado, teleológico ou jusnaturalístico, a construção de uma ordem de valores igualitária é uma preocupação constante.

Mesmo Platão, escrevendo numa época em que a mulher ainda era subjugada pelo homem, apesar de reconhecer a maior robustez física deste último, era categórico ao afirmar que:

não há na administração da cidade nenhuma ocupação, meu amigo, própria da mulher, enquanto mulher, nem do homem, enquanto homem, mas as qualidades naturais estão distribuídas de modo semelhante em todos os seres, e a mulher participa de todas as atividades, de acordo com a natureza, e o homem também, conquanto em todas elas a mulher seja mais débil

10do que o homem.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200858

O primeiro grande desafio enfrentado foi obter o reconhecimento normativo da igualdade jurídica entre homens e mulheres, o que certamente contribuiria para a paulatina inserção desse vetor axiológico no contexto social. Conquanto seja exato que o axiológico apresenta inegável ascendência sobre o normativo, influindo no delineamento do seu conteúdo e lhe conferindo legitimidade perante o grupamento, a alteração do quadro de dependência e subserviência da mulher somente pôde ser alterado na medida em que iniciativas isoladas assumiram ares de generalidade e, acima de tudo, imperatividade.

O liberalismo clássico apregoava a igualdade entre todos os homens, mas a mulher não era incluída sob essa epígrafe. Não é por outra razão que, na França, o célebre texto de 1789 foi denominado de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em 1791, Olympe de Gouges, que logo depois foi condenada à morte na guilhotina, apresentou, sem êxito, um projeto de Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, almejando que as conquistas da Declaração de 1789 fossem estendidas à mulher. As tentativas de inclusão sociopolítica da mulher foram uma preocupação constante no decorrer dos séculos XVIII e XIX, mas somente apresentaram um avanço significativo no decorrer do século XX. A intensidade das dificuldades enfrentadas pode ser facilmente imaginada ao constatarmos, por exemplo, que somente em 1871 o direito norte-americano começou a proibir a imposição de castigos corporais, pelo homem, à mulher, e isto apenas em

11alguns Estados da Federação, como Alabama e Massachussets .Na esfera do direito internacional privado, definia-se o direito

estrangeiro aplicável a partir da nacionalidade do marido. Na Alemanha, o Bundesverfassungsgericht proferiu a sua primeira sentença ab-rogativa em 22 de fevereiro de 1983, tendo decidido que “a disciplina de conflitos do art. 15, § 1º e § 2º (2ª frase), que submete as relações patrimoniais entre os cônjuges à lei do marido, está em

12contraste com o art. 3º, § 2º, da GG” . Em 8 de janeiro de 1985, o

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 59

11 Cf. SOARES, B. M. Mulheres invisíveis. Violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 25.12 O caso versava sobre mulher alemã casada com iraquiano e que, no curso do matrimônio, obtivera a nacionalidade alemã. Com a morte do marido, a viúva

9 PUFENDORF, S. Of the law of nature and nations. 2. ed. Oxford: L. Litchfield, 1710. p. 174 e ss.10 PLATÃO. A República. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 220.

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envolvidos: de um lado, os excluídos, de outro, múltiplos atores sociais, que poderíamos subdividir em (1) hegemônicos, desejosos de manter a sua posição de primazia; (2) simpatizantes, estranhos à classe excluída, mas que reconheciam a injustiça da exclusão; e (3) indiferentes, prosélitos de seus próprios interesses e que normalmente consubstanciam a grande massa social. A partir desse quadro, o grande desafio é construir uma base axiológica que permita alcançar um referencial de coesão social, de modo que os componentes do grupamento vejam uns aos outros como iguais. O pensamento cristão, por exemplo, sustenta que todos os homens são filhos de Deus, tendo a sua imagem e semelhança, o que serve de alicerce à universalidade dos direitos humanos e justifica a igualdade entre todos aqueles que aceitem a fé cristã. Como afirmou o Apóstolo Paulo (Gálatas, 3: 28), “não há judeu nem grego, não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vóis sois um em Cristo Jesus”. Samuel Pufendorf, por sua vez, invocando aspectos inatos da espécie humana, também

9defendeu a igualdade dos homens na natureza . Qualquer que seja o referencial argumentativo utilizado, teleológico ou jusnaturalístico, a construção de uma ordem de valores igualitária é uma preocupação constante.

Mesmo Platão, escrevendo numa época em que a mulher ainda era subjugada pelo homem, apesar de reconhecer a maior robustez física deste último, era categórico ao afirmar que:

não há na administração da cidade nenhuma ocupação, meu amigo, própria da mulher, enquanto mulher, nem do homem, enquanto homem, mas as qualidades naturais estão distribuídas de modo semelhante em todos os seres, e a mulher participa de todas as atividades, de acordo com a natureza, e o homem também, conquanto em todas elas a mulher seja mais débil

10do que o homem.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200858

O primeiro grande desafio enfrentado foi obter o reconhecimento normativo da igualdade jurídica entre homens e mulheres, o que certamente contribuiria para a paulatina inserção desse vetor axiológico no contexto social. Conquanto seja exato que o axiológico apresenta inegável ascendência sobre o normativo, influindo no delineamento do seu conteúdo e lhe conferindo legitimidade perante o grupamento, a alteração do quadro de dependência e subserviência da mulher somente pôde ser alterado na medida em que iniciativas isoladas assumiram ares de generalidade e, acima de tudo, imperatividade.

O liberalismo clássico apregoava a igualdade entre todos os homens, mas a mulher não era incluída sob essa epígrafe. Não é por outra razão que, na França, o célebre texto de 1789 foi denominado de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em 1791, Olympe de Gouges, que logo depois foi condenada à morte na guilhotina, apresentou, sem êxito, um projeto de Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, almejando que as conquistas da Declaração de 1789 fossem estendidas à mulher. As tentativas de inclusão sociopolítica da mulher foram uma preocupação constante no decorrer dos séculos XVIII e XIX, mas somente apresentaram um avanço significativo no decorrer do século XX. A intensidade das dificuldades enfrentadas pode ser facilmente imaginada ao constatarmos, por exemplo, que somente em 1871 o direito norte-americano começou a proibir a imposição de castigos corporais, pelo homem, à mulher, e isto apenas em

11alguns Estados da Federação, como Alabama e Massachussets .Na esfera do direito internacional privado, definia-se o direito

estrangeiro aplicável a partir da nacionalidade do marido. Na Alemanha, o Bundesverfassungsgericht proferiu a sua primeira sentença ab-rogativa em 22 de fevereiro de 1983, tendo decidido que “a disciplina de conflitos do art. 15, § 1º e § 2º (2ª frase), que submete as relações patrimoniais entre os cônjuges à lei do marido, está em

12contraste com o art. 3º, § 2º, da GG” . Em 8 de janeiro de 1985, o

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11 Cf. SOARES, B. M. Mulheres invisíveis. Violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 25.12 O caso versava sobre mulher alemã casada com iraquiano e que, no curso do matrimônio, obtivera a nacionalidade alemã. Com a morte do marido, a viúva

9 PUFENDORF, S. Of the law of nature and nations. 2. ed. Oxford: L. Litchfield, 1710. p. 174 e ss.10 PLATÃO. A República. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 220.

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Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade de norma que privilegiava a lei do marido na disciplina do divórcio. Com a reforma legislativa de 1986, as normas de conflito foram ajustadas ao princípio da igualdade e o problema superado. Na Itália, de acordo com as “Disposizioni Sulla Legge in Generale”, que antecediam o Código Civil, e até a entrada em vigor da Lei n. 218, de 31 de maio de 1995 (Reforma do Sistema Italiano de Direito Internacional Privado),

13disciplinavam integralmente a matéria, as relações pessoais e 14patrimoniais entre cônjuges estavam sujeitas à lei nacional do marido,

acrescendo-se que as relações entre genitor e filhos eram reguladas pela 15lei nacional do pai . O Tribunal Constitucional italiano, na Sentença n.

71/1987, reconheceu que “as normas de direito internacional privado são sindicáveis em sede de juízo de constitucionalidade”, não podendo

16destoar da Constituição . Quanto à questão de fundo, declarou a inconstitucionalidade parcial da segunda parte do art. 18 da “Disposizioni Sulla Legge in Generale”, por violar o princípio

17específico da igualdade moral e jurídica entre os cônjuges e o 18princípio geral da igualdade perante a lei . Na sentença n. 477/1987, o

Tribunal, com base nos mesmos fundamentos, declarou a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200860

inconstitucionalidade do parágrafo 1º do art. 20 das referidas 19Disposições .

No decorrer do século XX, o movimento feminista floresceu e os atos internacionais de proteção à mulher se multiplicaram. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, firmada no seio das Nações Unidas em 1948, teve sua denominação alterada para

20Declaração Universal dos Direitos Humanos , e as organizações internacionais, de cunho universal ou regional, passaram a desempenhar um relevante papel na sedimentação de uma visão cosmopolita da igualdade de gênero. No âmbito da Organização dos Estados Americanos, merecem referência: (1) a Conferência sobre Nacionalidade da Mulher, adotada, em 1933, na VII Conferência

21Internacional Americana, realizada em Montevidéu , (2) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Políticos à Mulher, adotada, em 1948, na IX Conferência Internacional Americana,

22realizada em Bogotá , e (3) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Civis à Mulher, também adotada na IX

23Conferência Internacional Americana . No âmbito das Nações Unidas, podemos mencionar a (1) Convenção sobre a Eliminação de

24todas as formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979 , 25e (2) Protocolo Facultativo a essa Convenção, adotado em 2001 .

Como se constata pelo teor desses atos internacionais, a mulher, em pleno século XX, ainda lutava pelo direito de escolher

19 Rel. Corasaniti, J. em 25/11/1987, GU de 16/12/1987.20 A designação atual resultou da Resolução n. 548 (VI), da Assembleia Geral, que deliberou pela substituição da anterior – Declaração Universal dos Direitos do Homem - em todas as publicações das Nações Unidas.21 Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 111, de 24/09/1937, e promulgada pelo Decreto n. 2.411, de 23/02/1938.22 Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 32, de 20/09/1949, e promulgada pelo Decreto n. 28.011, de 19/04/1950.23 Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 74, de 19/12/1951, e promulgada pelo Decreto n. 31.643, de 23/10/1952.24 Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 93, de 14/11/1983, que estabeleceu reservas aos arts. 15, § 4º e 16, § 1º, a, c, g e h, reservas estas posteriormente afastadas pelo Decreto Legislativo n. 26, de 22/06/1994.25 Aprovado, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 107, de 06/06/2002, e promulgado pelo Decreto n. 4.316, de 30/07/2002.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 61

pretendeu fosse considerada herdeira em concurso com o filho. O órgão competente pela expedição do certificado de herdeiro foi instado, pela viúva, a reconhecer não só a sua parte da herança (1/4), como também outra parte (mais 1/4), a título de liquidação da sociedade conjugal. O pedido foi negado sob o argumento de que, para o direito islâmico vigente no Iraque, o matrimônio não tinha nenhuma influência sobre os bens dos cônjuges, o que, no caso, exigiria a utilização de um regime jurídico de bens correspondente ao da separação no direito alemão: afinal, esse tipo de relação patrimonial, de acordo com o art. 15 do EGBGB, determinava a aplicação da lei do marido ao tempo da celebração do matrimônio.13 Art. 18: “I rapporti personali tra coniugi di diversa cittadinanza sono regolati dall’ultima legge nazionale che sia stata loro comune durante il matrimonio o, in mancanza di essa, dalla legge nazionale del marito al tempo della celebrazione del matrimonio”.14 Art. 19, § 1º: “I rapporti patrimoniali tra coniugi sono regolati dalla legge nazionale del marito al tempo della celebrazione del matrimonio.”15 Art. 20, § 1º: “I rapporti tra genitori e figli sono regolati dalla legge nazionale del padre, ovvero da quella della madre se soltanto la maternità è accertata o se soltanto la madre ha legittimato il figlio”. 16 Rel. Corasaniti, J. em 26/02/1987, GU de 11/03/1987.17 Art. 29, § 2º, da Constituição italiana de 1947.18 Art. 3º, § 1º, da Constituição italiana de 1947.

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Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade de norma que privilegiava a lei do marido na disciplina do divórcio. Com a reforma legislativa de 1986, as normas de conflito foram ajustadas ao princípio da igualdade e o problema superado. Na Itália, de acordo com as “Disposizioni Sulla Legge in Generale”, que antecediam o Código Civil, e até a entrada em vigor da Lei n. 218, de 31 de maio de 1995 (Reforma do Sistema Italiano de Direito Internacional Privado),

13disciplinavam integralmente a matéria, as relações pessoais e 14patrimoniais entre cônjuges estavam sujeitas à lei nacional do marido,

acrescendo-se que as relações entre genitor e filhos eram reguladas pela 15lei nacional do pai . O Tribunal Constitucional italiano, na Sentença n.

71/1987, reconheceu que “as normas de direito internacional privado são sindicáveis em sede de juízo de constitucionalidade”, não podendo

16destoar da Constituição . Quanto à questão de fundo, declarou a inconstitucionalidade parcial da segunda parte do art. 18 da “Disposizioni Sulla Legge in Generale”, por violar o princípio

17específico da igualdade moral e jurídica entre os cônjuges e o 18princípio geral da igualdade perante a lei . Na sentença n. 477/1987, o

Tribunal, com base nos mesmos fundamentos, declarou a

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inconstitucionalidade do parágrafo 1º do art. 20 das referidas 19Disposições .

No decorrer do século XX, o movimento feminista floresceu e os atos internacionais de proteção à mulher se multiplicaram. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, firmada no seio das Nações Unidas em 1948, teve sua denominação alterada para

20Declaração Universal dos Direitos Humanos , e as organizações internacionais, de cunho universal ou regional, passaram a desempenhar um relevante papel na sedimentação de uma visão cosmopolita da igualdade de gênero. No âmbito da Organização dos Estados Americanos, merecem referência: (1) a Conferência sobre Nacionalidade da Mulher, adotada, em 1933, na VII Conferência

21Internacional Americana, realizada em Montevidéu , (2) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Políticos à Mulher, adotada, em 1948, na IX Conferência Internacional Americana,

22realizada em Bogotá , e (3) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Civis à Mulher, também adotada na IX

23Conferência Internacional Americana . No âmbito das Nações Unidas, podemos mencionar a (1) Convenção sobre a Eliminação de

24todas as formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979 , 25e (2) Protocolo Facultativo a essa Convenção, adotado em 2001 .

Como se constata pelo teor desses atos internacionais, a mulher, em pleno século XX, ainda lutava pelo direito de escolher

19 Rel. Corasaniti, J. em 25/11/1987, GU de 16/12/1987.20 A designação atual resultou da Resolução n. 548 (VI), da Assembleia Geral, que deliberou pela substituição da anterior – Declaração Universal dos Direitos do Homem - em todas as publicações das Nações Unidas.21 Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 111, de 24/09/1937, e promulgada pelo Decreto n. 2.411, de 23/02/1938.22 Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 32, de 20/09/1949, e promulgada pelo Decreto n. 28.011, de 19/04/1950.23 Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 74, de 19/12/1951, e promulgada pelo Decreto n. 31.643, de 23/10/1952.24 Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 93, de 14/11/1983, que estabeleceu reservas aos arts. 15, § 4º e 16, § 1º, a, c, g e h, reservas estas posteriormente afastadas pelo Decreto Legislativo n. 26, de 22/06/1994.25 Aprovado, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 107, de 06/06/2002, e promulgado pelo Decreto n. 4.316, de 30/07/2002.

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pretendeu fosse considerada herdeira em concurso com o filho. O órgão competente pela expedição do certificado de herdeiro foi instado, pela viúva, a reconhecer não só a sua parte da herança (1/4), como também outra parte (mais 1/4), a título de liquidação da sociedade conjugal. O pedido foi negado sob o argumento de que, para o direito islâmico vigente no Iraque, o matrimônio não tinha nenhuma influência sobre os bens dos cônjuges, o que, no caso, exigiria a utilização de um regime jurídico de bens correspondente ao da separação no direito alemão: afinal, esse tipo de relação patrimonial, de acordo com o art. 15 do EGBGB, determinava a aplicação da lei do marido ao tempo da celebração do matrimônio.13 Art. 18: “I rapporti personali tra coniugi di diversa cittadinanza sono regolati dall’ultima legge nazionale che sia stata loro comune durante il matrimonio o, in mancanza di essa, dalla legge nazionale del marito al tempo della celebrazione del matrimonio”.14 Art. 19, § 1º: “I rapporti patrimoniali tra coniugi sono regolati dalla legge nazionale del marito al tempo della celebrazione del matrimonio.”15 Art. 20, § 1º: “I rapporti tra genitori e figli sono regolati dalla legge nazionale del padre, ovvero da quella della madre se soltanto la maternità è accertata o se soltanto la madre ha legittimato il figlio”. 16 Rel. Corasaniti, J. em 26/02/1987, GU de 11/03/1987.17 Art. 29, § 2º, da Constituição italiana de 1947.18 Art. 3º, § 1º, da Constituição italiana de 1947.

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a própria nacionalidade, por uma plena capacidade civil e pelo direito de participação política. No Brasil, por exemplo, somente após o advento da Lei n. 4.121, de 27 de agosto de 1962, a mulher casada deixou de ser relativamente incapaz.

A mulher, ao menos no Ocidente, parece ter conquistado a sua definitiva inserção no plano da igualdade formal, o que, se é suficiente para tranquilizar os menos exigentes, não logra êxito em afastar a infeliz constatação de que a realidade ainda é pródiga em exemplos de massivos e reiterados atos de discriminação contra a mulher. Afinal, o normativo, por maior que seja a sua plasticidade, jamais seria apto a eliminar uma longa história social de dependência e subordinação em relação ao homem.

O segundo grande desafio a ser diuturnamente enfrentado é o de transplantar a igualdade de gênero do plano meramente formal para o real, de modo que as mulheres, no curso de suas relações intersubjetivas, possam ter acesso a todos os benefícios e desempenhar as mesmas atividades asseguradas aos homens, desde, é óbvio, que os atributos físicos não assumam, legitimamente, um papel determinante no processo seletivo. A realização desses objetivos passa pelo reconhecimento formal da igualdade de gênero e alcança a adoção de medidas de inserção, conferindo-se um tratamento diferenciado à mulher de modo a compensar a posição de inferioridade que a evolução da humanidade sedimentou.

O constitucionalismo contemporâneo e a proteção da mulher

Costuma-se afirmar que a Constituição representa uma infindável série de escolhas, o que enseja questionamentos sobre se deve ser vista como um texto, uma intenção, uma ordem de deduções estruturais ou uma série de premissas políticas e

26morais . Com abstração da linha argumentativa que venha a ser seguida, não é possível subtrair da Constituição a imperatividade ou deixar de reconhecer a sua condição de “ordem suprema do Estado”. Não há nenhuma norma jurídica de grau superior que lhe

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200862

assegure a existência e imponha a observância, cabendo à própria ordem constitucional o fornecimento dos instrumentos que

27permitam a sua tutela e garantia .Não é por outra razão que o constitucionalismo

contemporâneo, mais especificamente após o segundo pós-guerra, tem se preocupado com a construção de uma ordem de valores pautada em referenciais de igualdade e dignidade. Em decorrência do histórico de adversidades, a igualdade de gênero é uma preocupação constante. A Grundgesetz alemã de 1949, por exemplo, dispõe, em seu art. 3º, que “todos os homens são iguais perante a lei. Homens e mulheres têm iguais direitos. Ninguém poderá ser prejudicado ou favorecido em razão do seu sexo [...]”. A Constituição espanhola de 1978, do mesmo modo, visualiza a igualdade como um valor superior (art. 1º), reconhece o livre exercício profissional, assegurando que “em nenhum caso possa existir discriminação em razão do sexo” (art. 35) e ainda dispõe que compete aos Poderes Públicos promover as medidas necessárias, eliminando os obstáculos para que o exercício desses direitos seja viabilizado (art. 9º, 2). As Constituições italiana de 1947 (art. 3º) e brasileira de 1988 (art. 5º, I) também consagram um mandamento amplo de igualdade, vedando a distinção de sexo, mas a última delas ressalta que tal se daria nos termos prescritos na ordem constitucional. Em outras palavras, o tratamento diferenciado seria possível desde que harmônico com as normas constitucionais. Prescrições dessa natureza, é importante frisar, desempenham um papel de cunho mais diretivo do que propriamente restritivo. Em outras palavras, o tratamento diferenciado, ainda que não haja norma autorizadora expressa, sempre será possível, bastando seja demonstrada a presença de características distintas, intensas o suficiente para justificar um tratamento igualmente distinto.

O que se vislumbra na Constituição brasileira de 1988 é a existência de (1) um mandamento geral de igualdade (art. 5º, caput - “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza

28[...]”) , (2) um mandamento específico de igualdade de gênero (Art.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 63

27 Cf. DI RUFFIA, P. B. Diritto Costituzionale. 15. ed. Napoli: Jovene Editore, 1992. p. 3-4.28 O mandamento geral de igualdade também foi contemplado pelas Constituições de 1824 (art. 179, XIII), 1891 (art. 72, § 2º), 1934 (art. 113, 1, 1ª parte), 1937 (art.

26 TRIBE, L. H. Constitutional choices. Massachussets: Harvard University Press, 1985. p. 267.

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a própria nacionalidade, por uma plena capacidade civil e pelo direito de participação política. No Brasil, por exemplo, somente após o advento da Lei n. 4.121, de 27 de agosto de 1962, a mulher casada deixou de ser relativamente incapaz.

A mulher, ao menos no Ocidente, parece ter conquistado a sua definitiva inserção no plano da igualdade formal, o que, se é suficiente para tranquilizar os menos exigentes, não logra êxito em afastar a infeliz constatação de que a realidade ainda é pródiga em exemplos de massivos e reiterados atos de discriminação contra a mulher. Afinal, o normativo, por maior que seja a sua plasticidade, jamais seria apto a eliminar uma longa história social de dependência e subordinação em relação ao homem.

O segundo grande desafio a ser diuturnamente enfrentado é o de transplantar a igualdade de gênero do plano meramente formal para o real, de modo que as mulheres, no curso de suas relações intersubjetivas, possam ter acesso a todos os benefícios e desempenhar as mesmas atividades asseguradas aos homens, desde, é óbvio, que os atributos físicos não assumam, legitimamente, um papel determinante no processo seletivo. A realização desses objetivos passa pelo reconhecimento formal da igualdade de gênero e alcança a adoção de medidas de inserção, conferindo-se um tratamento diferenciado à mulher de modo a compensar a posição de inferioridade que a evolução da humanidade sedimentou.

O constitucionalismo contemporâneo e a proteção da mulher

Costuma-se afirmar que a Constituição representa uma infindável série de escolhas, o que enseja questionamentos sobre se deve ser vista como um texto, uma intenção, uma ordem de deduções estruturais ou uma série de premissas políticas e

26morais . Com abstração da linha argumentativa que venha a ser seguida, não é possível subtrair da Constituição a imperatividade ou deixar de reconhecer a sua condição de “ordem suprema do Estado”. Não há nenhuma norma jurídica de grau superior que lhe

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assegure a existência e imponha a observância, cabendo à própria ordem constitucional o fornecimento dos instrumentos que

27permitam a sua tutela e garantia .Não é por outra razão que o constitucionalismo

contemporâneo, mais especificamente após o segundo pós-guerra, tem se preocupado com a construção de uma ordem de valores pautada em referenciais de igualdade e dignidade. Em decorrência do histórico de adversidades, a igualdade de gênero é uma preocupação constante. A Grundgesetz alemã de 1949, por exemplo, dispõe, em seu art. 3º, que “todos os homens são iguais perante a lei. Homens e mulheres têm iguais direitos. Ninguém poderá ser prejudicado ou favorecido em razão do seu sexo [...]”. A Constituição espanhola de 1978, do mesmo modo, visualiza a igualdade como um valor superior (art. 1º), reconhece o livre exercício profissional, assegurando que “em nenhum caso possa existir discriminação em razão do sexo” (art. 35) e ainda dispõe que compete aos Poderes Públicos promover as medidas necessárias, eliminando os obstáculos para que o exercício desses direitos seja viabilizado (art. 9º, 2). As Constituições italiana de 1947 (art. 3º) e brasileira de 1988 (art. 5º, I) também consagram um mandamento amplo de igualdade, vedando a distinção de sexo, mas a última delas ressalta que tal se daria nos termos prescritos na ordem constitucional. Em outras palavras, o tratamento diferenciado seria possível desde que harmônico com as normas constitucionais. Prescrições dessa natureza, é importante frisar, desempenham um papel de cunho mais diretivo do que propriamente restritivo. Em outras palavras, o tratamento diferenciado, ainda que não haja norma autorizadora expressa, sempre será possível, bastando seja demonstrada a presença de características distintas, intensas o suficiente para justificar um tratamento igualmente distinto.

O que se vislumbra na Constituição brasileira de 1988 é a existência de (1) um mandamento geral de igualdade (art. 5º, caput - “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza

28[...]”) , (2) um mandamento específico de igualdade de gênero (Art.

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27 Cf. DI RUFFIA, P. B. Diritto Costituzionale. 15. ed. Napoli: Jovene Editore, 1992. p. 3-4.28 O mandamento geral de igualdade também foi contemplado pelas Constituições de 1824 (art. 179, XIII), 1891 (art. 72, § 2º), 1934 (art. 113, 1, 1ª parte), 1937 (art.

26 TRIBE, L. H. Constitutional choices. Massachussets: Harvard University Press, 1985. p. 267.

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295º, I – “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações [...]”) e (3) uma cláusula de remissão, indicando a possibilidade de tratamento constitucional diferenciado (Art. 5º, II – “[...] nos termos desta Constituição”). Essa última cláusula mostra-se coerente com o sistema na medida em que a igualdade total entre homens e mulheres é expressamente excepcionada pelo próprio texto constitucional, ao contemplar, por exemplo, a necessidade de proteção do mercado de trabalho da mulher (por exemplo, art. 7º, XX) e a aposentadoria das mulheres com menor tempo de contribuição previdenciária (art. 40, § 1º, III, “a” e “b”). A análise desses dois comandos constitucionais permite concluir que a razão de ser do primeiro está na histórica exclusão da mulher do mercado de trabalho, o que exige a adoção de medidas protecionistas pelo Poder Público; o segundo, por sua vez, é diretamente influenciado por componentes (1) orgânicos, vale dizer, a menor resistência física da mulher, e (2) sociais, isto por ser comum o acúmulo de atividades, vale dizer, exercidas gratuitamente no lar e onerosamente no ambiente de trabalho.

Além das situações expressamente contempladas no texto constitucional, o tratamento diferenciado, em prol das mulheres, apresentará indiscutível juridicidade em sendo possível demonstrar que uma aparente discriminação formal busca, em verdade, alcançar a igualdade material.

As noções de igualdade e discriminação

No plano normativo, apregoar a igualdade é estruturar uma sociedade onde todos estejam seguros e tenham sua condição

30humana reconhecida . Nessa linha, a existência de referenciais de

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200864

análise que possuam a mesma essência é requisito indispensável a qualquer construção normativa relacionada à igualdade de direitos e deveres. Exige-se, assim, uma aferição comparativa, permitindo seja identificado em que medida as semelhanças se manifestam e quais os bônus ou ônus delas decorrentes. Para tanto, é necessário isolar as características relevantes, decisivas e umbilicalmente conectadas a uma dada consequência jurídica, o que pressupõe a correta identificação dos objetivos da norma e o proceder à comparação. O equívoco na individualização dessas características ou a incorreta associação entre característica e consequência jurídica, conferindo demasiada importância a um aspecto destituído de toda e qualquer relevância, certamente conduzirão a uma manifesta injustiça. Identificada a não uniformidade das características relevantes, será evidente a correção do tratamento diferenciado, conclusão que, à evidência, não afasta a necessidade de juízos valorativos extremamente delicados em relação à justa medida desse tratamento diferenciado, o que exigirá o emprego de um critério de proporcionalidade.

A simples constatação de que um indivíduo pertence à espécie humana, conquanto demonstre uma igualdade de essência, não afasta a possibilidade de, em círculos mais estreitos de análise, serem identificadas dissonâncias que justifiquem o tratamento diferenciado. Nesse particular, a neutralidade do Estado, elemento característico do laissez faire que direcionava o liberalismo clássico, somente se harmoniza com a denominada igualdade perante a lei, sendo vedada a outorga de posições jurídicas favoráveis a indivíduos ou grupos, ainda que notória a sua posição de inferioridade no contexto sociopolítico. O liberalismo clássico ainda apresentava um especial modo de ver e entender a “essência igualitária”, legitimando, por exemplo, a discriminação racial e a discriminação de gênero, isto em razão de uma pseudo-superioridade do branco em relação ao negro e do homem em relação à mulher. A fórmula da igualdade geral, conquanto prevista pela ordem jurídica, era interpretada de modo a excluir certos grupos, como os negros e as mulheres. A Constituição brasileira de 1824 é um exemplo singular dessa igualdade seletiva, pois, num período em que a mulher estava sob o jugo do homem e o negro atado aos grilhões da senzala, seu art. 179, XIII, com inegável

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 65

122, 1º), 1946 (141, § 1º) e 1967 (art. 150, § 1º), bem como pela Emenda Constitucional n. 1/1969 (art. 153, § 1º).29 As Constituições de 1934 (art. 113, 1) e 1967 (art. 150, § 1º), bem como a Emenda Constitucional n. 1/1969 (art. 153, § 1º), além da cláusula geral de igualdade, vedavam a existência de privilégios ou distinções em razão do sexo.30 Cf. JAYAWICKRAMA, N. The judicial application of human rights law. National, regional and international jurisprudence. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 604.

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295º, I – “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações [...]”) e (3) uma cláusula de remissão, indicando a possibilidade de tratamento constitucional diferenciado (Art. 5º, II – “[...] nos termos desta Constituição”). Essa última cláusula mostra-se coerente com o sistema na medida em que a igualdade total entre homens e mulheres é expressamente excepcionada pelo próprio texto constitucional, ao contemplar, por exemplo, a necessidade de proteção do mercado de trabalho da mulher (por exemplo, art. 7º, XX) e a aposentadoria das mulheres com menor tempo de contribuição previdenciária (art. 40, § 1º, III, “a” e “b”). A análise desses dois comandos constitucionais permite concluir que a razão de ser do primeiro está na histórica exclusão da mulher do mercado de trabalho, o que exige a adoção de medidas protecionistas pelo Poder Público; o segundo, por sua vez, é diretamente influenciado por componentes (1) orgânicos, vale dizer, a menor resistência física da mulher, e (2) sociais, isto por ser comum o acúmulo de atividades, vale dizer, exercidas gratuitamente no lar e onerosamente no ambiente de trabalho.

Além das situações expressamente contempladas no texto constitucional, o tratamento diferenciado, em prol das mulheres, apresentará indiscutível juridicidade em sendo possível demonstrar que uma aparente discriminação formal busca, em verdade, alcançar a igualdade material.

As noções de igualdade e discriminação

No plano normativo, apregoar a igualdade é estruturar uma sociedade onde todos estejam seguros e tenham sua condição

30humana reconhecida . Nessa linha, a existência de referenciais de

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análise que possuam a mesma essência é requisito indispensável a qualquer construção normativa relacionada à igualdade de direitos e deveres. Exige-se, assim, uma aferição comparativa, permitindo seja identificado em que medida as semelhanças se manifestam e quais os bônus ou ônus delas decorrentes. Para tanto, é necessário isolar as características relevantes, decisivas e umbilicalmente conectadas a uma dada consequência jurídica, o que pressupõe a correta identificação dos objetivos da norma e o proceder à comparação. O equívoco na individualização dessas características ou a incorreta associação entre característica e consequência jurídica, conferindo demasiada importância a um aspecto destituído de toda e qualquer relevância, certamente conduzirão a uma manifesta injustiça. Identificada a não uniformidade das características relevantes, será evidente a correção do tratamento diferenciado, conclusão que, à evidência, não afasta a necessidade de juízos valorativos extremamente delicados em relação à justa medida desse tratamento diferenciado, o que exigirá o emprego de um critério de proporcionalidade.

A simples constatação de que um indivíduo pertence à espécie humana, conquanto demonstre uma igualdade de essência, não afasta a possibilidade de, em círculos mais estreitos de análise, serem identificadas dissonâncias que justifiquem o tratamento diferenciado. Nesse particular, a neutralidade do Estado, elemento característico do laissez faire que direcionava o liberalismo clássico, somente se harmoniza com a denominada igualdade perante a lei, sendo vedada a outorga de posições jurídicas favoráveis a indivíduos ou grupos, ainda que notória a sua posição de inferioridade no contexto sociopolítico. O liberalismo clássico ainda apresentava um especial modo de ver e entender a “essência igualitária”, legitimando, por exemplo, a discriminação racial e a discriminação de gênero, isto em razão de uma pseudo-superioridade do branco em relação ao negro e do homem em relação à mulher. A fórmula da igualdade geral, conquanto prevista pela ordem jurídica, era interpretada de modo a excluir certos grupos, como os negros e as mulheres. A Constituição brasileira de 1824 é um exemplo singular dessa igualdade seletiva, pois, num período em que a mulher estava sob o jugo do homem e o negro atado aos grilhões da senzala, seu art. 179, XIII, com inegável

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122, 1º), 1946 (141, § 1º) e 1967 (art. 150, § 1º), bem como pela Emenda Constitucional n. 1/1969 (art. 153, § 1º).29 As Constituições de 1934 (art. 113, 1) e 1967 (art. 150, § 1º), bem como a Emenda Constitucional n. 1/1969 (art. 153, § 1º), além da cláusula geral de igualdade, vedavam a existência de privilégios ou distinções em razão do sexo.30 Cf. JAYAWICKRAMA, N. The judicial application of human rights law. National, regional and international jurisprudence. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 604.

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plasticidade, dispunha que “a lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue”.

A evolução da humanidade demonstrou o desacerto da tese de que certos grupos não seriam abrangidos pela fórmula da igualdade geral. Ocorre que a mera igualdade formal pouco a pouco se mostrou absolutamente inócua, já que incapaz de transpor o plano semântico e alcançar a realidade. Apesar de todos receberem o mesmo tratamento legal e o Estado não estar autorizado a introduzir discriminações arbitrárias, nem todos gozavam das mesmas oportunidades de inserção social. Assim, de modo correlato ao sentido clássico das discriminações, que assume contornos negativos ou de exclusão, assume indiscutível relevância o seu sentido positivo ou de inclusão, que se disseminou a partir da primeira metade do século XX. Nesse período, o pensamento jurídico-político apercebeu-se que a simples igualdade perante a lei, sem discriminações atentatórias à dignidade humana, não seria apta, por si só, para estabelecer uma igualdade real. Em outras palavras, afirmar que o miserável é igual ao rico ou que, numa sociedade historicamente segregacionista, o negro, doravante, passaria a ser igual ao branco, não tem o condão de gerar qualquer benefício real para as pessoas que se encontrassem em situação de inferioridade. Significa, tão-somente, que, perante os olhos da lei, todos são iguais. Esse tipo de igualdade, no entanto, em nada influi sobre as forças sociais que traçam os contornos da realidade. Na conhecida crítica de Anatole France, “a lei proíbe tanto o rico, como o pobre, de viver debaixo das pontes, de pedir nas ruas e de roubar”.

A pura e simples inclusão, sob uma fórmula geral de igualdade, de grupos historicamente discriminados em decorrência de certos referenciais socioculturais, por si só, pode vir a refletir uma forma de discriminação. A partir dessa constatação, a doutrina norte-americana desenvolveu a “doutrina do impacto desproporcional” (“disparate impact doctrine”), construção teórica que busca demonstrar o impacto desproporcional que a norma geral pode ocasionar sobre certos grupos que não ostentam, de fato, uma posição de igualdade. A Suprema Corte encampou essa linha argumentativa no leading case Griggs vs. Duke

31Power Co. . A ação foi ajuizada por um grupo de pessoas negras em

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200866

face da Duke Power Co., empresa de energia elétrica que historicamente somente admitia os negros para o desempenho de funções subalternas, sendo arguida a ilicitude do “teste de inteligência” utilizado como critério de promoção. Argumentavam os autores da ação que esse requisito aparentemente igualitário, ao exigir a aprovação numa prova escrita, ao invés da tradicional apresentação de certificados escolares, terminaria por perpetuar o status quo, já que os negros, por terem estudado em escolas segregadas, não poderiam competir em igualdade de condições com os brancos. Em sua decisão, reconheceu a Corte que o “teste de inteligência”, conquanto lícito, não se harmonizava com um referencial de igualdade material, pois, estatisticamente, não se mostrava apto a indicar a maior eficiência profissional para fins de promoção, podendo “‘congelar’ o status quo de práticas empregatícias discriminatórias do passado”.

Desenvolveu-se, assim, o entendimento de que a igualdade, como parte integrante e indissociável do ideal de justiça, somente seria alcançada com a adoção de medidas efetivas, não meramente formais, que permitissem sua efetiva implementação, não mera contemplação. Seria necessário transitar da igualdade formal para a igualdade material. O artificialismo da igualdade formal entra em refluxo, o dogma da neutralidade estatal é repensado e o pensamento jurídico-filosófico passa a ser direcionado à materialização da igualdade substancial, ontologicamente calcada na inserção social, e ao oferecimento de oportunidades para o livre desenvolvimento da personalidade. É com esse objetivo que surgem e se desenvolvem as denominadas ações afirmativas, fruto do pensamento político norte-americano e que buscam eliminar, ou ao menos diminuir, as desigualdades sociais que assolam certos grupos (como as mulheres e os afrodescendentes).

A ratio das ações afirmativas e a Lei Maria da Penha

Situações de igualdade formal e de igualdade material estão normalmente articuladas com posições diametralmente opostas aos valores que apregoam. Numa sociedade capitalista, de contornos essencialmente liberais, em que a livre iniciativa e o sistema de mérito são levados a posições extremas, não será incomum constatarmos a

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 67

31 401 U.S. 424, 1971.

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plasticidade, dispunha que “a lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue”.

A evolução da humanidade demonstrou o desacerto da tese de que certos grupos não seriam abrangidos pela fórmula da igualdade geral. Ocorre que a mera igualdade formal pouco a pouco se mostrou absolutamente inócua, já que incapaz de transpor o plano semântico e alcançar a realidade. Apesar de todos receberem o mesmo tratamento legal e o Estado não estar autorizado a introduzir discriminações arbitrárias, nem todos gozavam das mesmas oportunidades de inserção social. Assim, de modo correlato ao sentido clássico das discriminações, que assume contornos negativos ou de exclusão, assume indiscutível relevância o seu sentido positivo ou de inclusão, que se disseminou a partir da primeira metade do século XX. Nesse período, o pensamento jurídico-político apercebeu-se que a simples igualdade perante a lei, sem discriminações atentatórias à dignidade humana, não seria apta, por si só, para estabelecer uma igualdade real. Em outras palavras, afirmar que o miserável é igual ao rico ou que, numa sociedade historicamente segregacionista, o negro, doravante, passaria a ser igual ao branco, não tem o condão de gerar qualquer benefício real para as pessoas que se encontrassem em situação de inferioridade. Significa, tão-somente, que, perante os olhos da lei, todos são iguais. Esse tipo de igualdade, no entanto, em nada influi sobre as forças sociais que traçam os contornos da realidade. Na conhecida crítica de Anatole France, “a lei proíbe tanto o rico, como o pobre, de viver debaixo das pontes, de pedir nas ruas e de roubar”.

A pura e simples inclusão, sob uma fórmula geral de igualdade, de grupos historicamente discriminados em decorrência de certos referenciais socioculturais, por si só, pode vir a refletir uma forma de discriminação. A partir dessa constatação, a doutrina norte-americana desenvolveu a “doutrina do impacto desproporcional” (“disparate impact doctrine”), construção teórica que busca demonstrar o impacto desproporcional que a norma geral pode ocasionar sobre certos grupos que não ostentam, de fato, uma posição de igualdade. A Suprema Corte encampou essa linha argumentativa no leading case Griggs vs. Duke

31Power Co. . A ação foi ajuizada por um grupo de pessoas negras em

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face da Duke Power Co., empresa de energia elétrica que historicamente somente admitia os negros para o desempenho de funções subalternas, sendo arguida a ilicitude do “teste de inteligência” utilizado como critério de promoção. Argumentavam os autores da ação que esse requisito aparentemente igualitário, ao exigir a aprovação numa prova escrita, ao invés da tradicional apresentação de certificados escolares, terminaria por perpetuar o status quo, já que os negros, por terem estudado em escolas segregadas, não poderiam competir em igualdade de condições com os brancos. Em sua decisão, reconheceu a Corte que o “teste de inteligência”, conquanto lícito, não se harmonizava com um referencial de igualdade material, pois, estatisticamente, não se mostrava apto a indicar a maior eficiência profissional para fins de promoção, podendo “‘congelar’ o status quo de práticas empregatícias discriminatórias do passado”.

Desenvolveu-se, assim, o entendimento de que a igualdade, como parte integrante e indissociável do ideal de justiça, somente seria alcançada com a adoção de medidas efetivas, não meramente formais, que permitissem sua efetiva implementação, não mera contemplação. Seria necessário transitar da igualdade formal para a igualdade material. O artificialismo da igualdade formal entra em refluxo, o dogma da neutralidade estatal é repensado e o pensamento jurídico-filosófico passa a ser direcionado à materialização da igualdade substancial, ontologicamente calcada na inserção social, e ao oferecimento de oportunidades para o livre desenvolvimento da personalidade. É com esse objetivo que surgem e se desenvolvem as denominadas ações afirmativas, fruto do pensamento político norte-americano e que buscam eliminar, ou ao menos diminuir, as desigualdades sociais que assolam certos grupos (como as mulheres e os afrodescendentes).

A ratio das ações afirmativas e a Lei Maria da Penha

Situações de igualdade formal e de igualdade material estão normalmente articuladas com posições diametralmente opostas aos valores que apregoam. Numa sociedade capitalista, de contornos essencialmente liberais, em que a livre iniciativa e o sistema de mérito são levados a posições extremas, não será incomum constatarmos a

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31 401 U.S. 424, 1971.

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presença, no plano jurídico, de uma igualdade formal, e, no plano fático, de uma flagrante desigualdade material. Iguais na lei, desiguais na realidade. Por outro lado, presente a preocupação com a igualdade material, será ela inevitavelmente acompanhada de uma desigualdade formal, já que a lei veiculará discriminações positivas com o objetivo de atenuar a real posição de inferioridade de certos grupos. Desiguais na lei, tendencialmente iguais na realidade. Fala-se em tendencialmente iguais na medida em que a lei, ainda que sistêmica e finalisticamente imbuída dos melhores propósitos, normalmente só terá êxito na atenuação das diferenças, não na sua total supressão.

Sobre o argumento de que as ações afirmativas terminariam por violar a cláusula de igual proteção (equal protection clause),

32observa Ronald Dworkin que essa cláusula não assegura que cada cidadão receba igual benefício de cada decisão política, mas, apenas, que será tratado como um igual, com igual interesse e respeito no processo político de deliberação. Essa linha argumentativa, apesar de ter objetivos opostos, apresenta certa semelhança com a construção de Edmund Burke, que defendia o direito de todo homem a uma porção justa de tudo o que a sociedade, a partir da combinação de sua força e habilidade, podia fazer em seu favor, acrescendo que “nessa participação

33todos os homens têm iguais direitos, mas não a coisas iguais” . Em decorrência disso, ainda segundo Burke, aqueles que contribuíssem mais deveriam receber mais: era a tônica do Estado Liberal.

Ao adotar uma política pública em benefício de um grupo específico, o Estado não promove qualquer afronta aos direitos dos demais membros da coletividade, isto porque não seria necessário disponibilizar-lhes aquilo que já possuíam ou estava ao seu alcance possuir. Violação à igualdade haveria se o mesmo benefício fosse oferecido aos que estão na posição 0 e na posição +1. À simplicidade dessa constatação, no entanto, contrapõe-se a premissa de que a atuação estatal é vocacionada à satisfação do bem-comum, e este nem sempre se confundirá com os interesses do grupo a que se atribuiu

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preeminência. A análise, assim, há de assumir proporções mais amplas, incursionando, igualmente, nos aspectos negativos da atuação estatal, mais especificamente nos efeitos que a priorização de uma dada política pública causará em relação aos interesses de outros grupos igualmente representativos. Em tempos de escassez, em que “escolhas trágicas” são uma constante, é necessário redobrado cuidado para que “ações afirmativas” não se transmudem em “ações negativas”.

A Lei n. 11.340/2006, como se constata pelo teor de sua ementa,

cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.

São indicados, assim, (1) os objetivos, (2) os destinatários da proteção e (3) os fundamentos de justificação e de validade da lei.

Principiando pelos objetivos, observa-se a preocupação em criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, providência salutar na medida em que contribui para a preservação da família, fator indispensável ao saudável desenvolvimento humano e à formação de um Estado forte e coeso. A primeira dificuldade, no entanto, reside na opção de manter adstrita às mulheres a proteção dispensada pela Lei n. 11.340/2006. Na medida em que a Constituição brasileira possui uma cláusula geral

34de igualdade de gênero e a norma constitucional programática de coibição à violência doméstica não é direcionada exclusivamente à

35mulher , questiona-se: a Lei n. 11.340/2006 é constitucional? A resposta a essa proposição inicial é especialmente relevante ao

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 69

34 CR/1988, art. 5º, I: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. 35 CR/1988, art. 226, § 8º: “O Estado assegurará a assistência na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

32 DWORKIN, R. Affirmative Action: Is it Fair? In: ______. Sovereign virtue, the theory and practice of equality. 4. imp. Cambridge: Harvard University Press, 2002. p. 411.33 BURKE, E. Reflexiones sobre la Revolución francesa (1790). In: Textos políticos. 1. ed., 2. imp. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 92.

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presença, no plano jurídico, de uma igualdade formal, e, no plano fático, de uma flagrante desigualdade material. Iguais na lei, desiguais na realidade. Por outro lado, presente a preocupação com a igualdade material, será ela inevitavelmente acompanhada de uma desigualdade formal, já que a lei veiculará discriminações positivas com o objetivo de atenuar a real posição de inferioridade de certos grupos. Desiguais na lei, tendencialmente iguais na realidade. Fala-se em tendencialmente iguais na medida em que a lei, ainda que sistêmica e finalisticamente imbuída dos melhores propósitos, normalmente só terá êxito na atenuação das diferenças, não na sua total supressão.

Sobre o argumento de que as ações afirmativas terminariam por violar a cláusula de igual proteção (equal protection clause),

32observa Ronald Dworkin que essa cláusula não assegura que cada cidadão receba igual benefício de cada decisão política, mas, apenas, que será tratado como um igual, com igual interesse e respeito no processo político de deliberação. Essa linha argumentativa, apesar de ter objetivos opostos, apresenta certa semelhança com a construção de Edmund Burke, que defendia o direito de todo homem a uma porção justa de tudo o que a sociedade, a partir da combinação de sua força e habilidade, podia fazer em seu favor, acrescendo que “nessa participação

33todos os homens têm iguais direitos, mas não a coisas iguais” . Em decorrência disso, ainda segundo Burke, aqueles que contribuíssem mais deveriam receber mais: era a tônica do Estado Liberal.

Ao adotar uma política pública em benefício de um grupo específico, o Estado não promove qualquer afronta aos direitos dos demais membros da coletividade, isto porque não seria necessário disponibilizar-lhes aquilo que já possuíam ou estava ao seu alcance possuir. Violação à igualdade haveria se o mesmo benefício fosse oferecido aos que estão na posição 0 e na posição +1. À simplicidade dessa constatação, no entanto, contrapõe-se a premissa de que a atuação estatal é vocacionada à satisfação do bem-comum, e este nem sempre se confundirá com os interesses do grupo a que se atribuiu

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preeminência. A análise, assim, há de assumir proporções mais amplas, incursionando, igualmente, nos aspectos negativos da atuação estatal, mais especificamente nos efeitos que a priorização de uma dada política pública causará em relação aos interesses de outros grupos igualmente representativos. Em tempos de escassez, em que “escolhas trágicas” são uma constante, é necessário redobrado cuidado para que “ações afirmativas” não se transmudem em “ações negativas”.

A Lei n. 11.340/2006, como se constata pelo teor de sua ementa,

cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.

São indicados, assim, (1) os objetivos, (2) os destinatários da proteção e (3) os fundamentos de justificação e de validade da lei.

Principiando pelos objetivos, observa-se a preocupação em criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, providência salutar na medida em que contribui para a preservação da família, fator indispensável ao saudável desenvolvimento humano e à formação de um Estado forte e coeso. A primeira dificuldade, no entanto, reside na opção de manter adstrita às mulheres a proteção dispensada pela Lei n. 11.340/2006. Na medida em que a Constituição brasileira possui uma cláusula geral

34de igualdade de gênero e a norma constitucional programática de coibição à violência doméstica não é direcionada exclusivamente à

35mulher , questiona-se: a Lei n. 11.340/2006 é constitucional? A resposta a essa proposição inicial é especialmente relevante ao

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34 CR/1988, art. 5º, I: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. 35 CR/1988, art. 226, § 8º: “O Estado assegurará a assistência na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

32 DWORKIN, R. Affirmative Action: Is it Fair? In: ______. Sovereign virtue, the theory and practice of equality. 4. imp. Cambridge: Harvard University Press, 2002. p. 411.33 BURKE, E. Reflexiones sobre la Revolución francesa (1790). In: Textos políticos. 1. ed., 2. imp. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 92.

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constatarmos que raras são as vozes que se insurgem contra a inconstitucionalidade da lei em sua totalidade, mas, tanto na doutrina como na jurisprudência, múltiplas são aquelas que, com fundamento na cláusula geral de igualdade de gênero, advogam a inconstitucionalidade de algumas normas que atribuem uma posição jurídica desfavorável ao homem que pratica, nas relações familiares e domésticas, um ilícito contra a mulher. Essa constatação, como se percebe, bem demonstra a fragilidade da tese. Afinal, se a igualdade de gênero veda que seja dispensado tratamento desfavorável ao homem que pratique um ilícito contra a mulher, por identidade de razões, haveria de ser vedada a edificação de um diploma normativo integralmente voltado à proteção da mulher, como sói ser a Lei n. 11.340/2006. Essa linha argumentativa, no entanto, não encontra maior ressonância nos críticos pela singela razão de que a mulher, historicamente, é discriminada pelas leis e pela sociedade, isto em razão da posição hegemônica mantida pelo homem. Como desdobramento dessas premissas, é possível afirmar que a inconstitucionalidade, acaso sustentada, há de se abeberar em fontes outras que não a cláusula geral de igualdade.

Uma norma de conduta, qualquer que seja ela, não é um corpo estranho à realidade. Pelo contrário, a norma, lembrando a

36metódica concretista de Friedrich Muller , é obtida a partir da interpretação do programa normativo (rectius: o texto) à luz do seu âmbito de aplicação (rectius: a realidade). A Lei n. 11.340/2006 é endereçada à mulher justamente por ser ela, como vítima principal e quase que exclusiva da violência doméstica (lembre-se que os idosos, bem como as crianças e os adolescentes, já contam com proteção específica), a destinatária da norma resultante da interpretação do parágrafo 8º do art. 226 da Constituição de 1988.

Além de não destoar da ordem constitucional em seus aspectos mais gerais, únicos analisados até aqui, a Lei n. 11.340/2006 busca concretizar os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, mais especificamente na (1) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200870

37de Belém do Pará, de 1994 ; e na já mencionada (2) Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979 no âmbito da Organização das Nações Unidas. A última Convenção, como deflui de sua denominação, é essencialmente voltada à eliminação da discriminação contra a mulher, tanto no setor público, como no privado, ressaltando que

a adoção pelos Estados-Partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma estabelecida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados. (art. 4º)

A Convenção Interamericana, por sua vez, dispõe que os Estados-Partes devem empenhar-se em

tomar todas as medidas apropriadas, incluindo medidas de tipo legislativo, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou a tolerância da violência contra a mulher. (art. 7º, “d”)

Essas convenções, como se percebe, demonstram uma efetiva preocupação com a alteração da realidade, não se contentando com a mera plasticidade formal de disposições normativas alegadamente igualitárias. A mulher deve ser igual ao homem e a violência praticada contra ela deve ser coibida, não apenas na lei, mas na realidade.

As ações afirmativas adotadas pela Lei Maria da Penha

Principiando pela juridicidade das ações afirmativas, a primeira dificuldade reside em individualizar os grupos destinatários dessas discriminações positivas, o que exige reflexões em torno do

36 MÜLLER, F. Discours de la méthode juridique (Juristische Methodik). Trad. de Olivier Jouanjan. Paris: Presses Universitaires de France, 1996. p. 186 e ss.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 71

37 Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 107, de 31/08/1995, e promulgada pelo Decreto n. 1.973, de 01/10/1996.

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constatarmos que raras são as vozes que se insurgem contra a inconstitucionalidade da lei em sua totalidade, mas, tanto na doutrina como na jurisprudência, múltiplas são aquelas que, com fundamento na cláusula geral de igualdade de gênero, advogam a inconstitucionalidade de algumas normas que atribuem uma posição jurídica desfavorável ao homem que pratica, nas relações familiares e domésticas, um ilícito contra a mulher. Essa constatação, como se percebe, bem demonstra a fragilidade da tese. Afinal, se a igualdade de gênero veda que seja dispensado tratamento desfavorável ao homem que pratique um ilícito contra a mulher, por identidade de razões, haveria de ser vedada a edificação de um diploma normativo integralmente voltado à proteção da mulher, como sói ser a Lei n. 11.340/2006. Essa linha argumentativa, no entanto, não encontra maior ressonância nos críticos pela singela razão de que a mulher, historicamente, é discriminada pelas leis e pela sociedade, isto em razão da posição hegemônica mantida pelo homem. Como desdobramento dessas premissas, é possível afirmar que a inconstitucionalidade, acaso sustentada, há de se abeberar em fontes outras que não a cláusula geral de igualdade.

Uma norma de conduta, qualquer que seja ela, não é um corpo estranho à realidade. Pelo contrário, a norma, lembrando a

36metódica concretista de Friedrich Muller , é obtida a partir da interpretação do programa normativo (rectius: o texto) à luz do seu âmbito de aplicação (rectius: a realidade). A Lei n. 11.340/2006 é endereçada à mulher justamente por ser ela, como vítima principal e quase que exclusiva da violência doméstica (lembre-se que os idosos, bem como as crianças e os adolescentes, já contam com proteção específica), a destinatária da norma resultante da interpretação do parágrafo 8º do art. 226 da Constituição de 1988.

Além de não destoar da ordem constitucional em seus aspectos mais gerais, únicos analisados até aqui, a Lei n. 11.340/2006 busca concretizar os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, mais especificamente na (1) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200870

37de Belém do Pará, de 1994 ; e na já mencionada (2) Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979 no âmbito da Organização das Nações Unidas. A última Convenção, como deflui de sua denominação, é essencialmente voltada à eliminação da discriminação contra a mulher, tanto no setor público, como no privado, ressaltando que

a adoção pelos Estados-Partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma estabelecida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados. (art. 4º)

A Convenção Interamericana, por sua vez, dispõe que os Estados-Partes devem empenhar-se em

tomar todas as medidas apropriadas, incluindo medidas de tipo legislativo, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou a tolerância da violência contra a mulher. (art. 7º, “d”)

Essas convenções, como se percebe, demonstram uma efetiva preocupação com a alteração da realidade, não se contentando com a mera plasticidade formal de disposições normativas alegadamente igualitárias. A mulher deve ser igual ao homem e a violência praticada contra ela deve ser coibida, não apenas na lei, mas na realidade.

As ações afirmativas adotadas pela Lei Maria da Penha

Principiando pela juridicidade das ações afirmativas, a primeira dificuldade reside em individualizar os grupos destinatários dessas discriminações positivas, o que exige reflexões em torno do

36 MÜLLER, F. Discours de la méthode juridique (Juristische Methodik). Trad. de Olivier Jouanjan. Paris: Presses Universitaires de France, 1996. p. 186 e ss.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 71

37 Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n. 107, de 31/08/1995, e promulgada pelo Decreto n. 1.973, de 01/10/1996.

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contexto social e das razões históricas que contribuíram para a sua formação. Escolhas equivocadas, privilegiando aqueles que não deveriam ser privilegiados, podem redundar numa instabilidade social, deflagrando e institucionalizando desigualdades, não as combatendo. Fatores econômicos e raciais são constantemente invocados, sendo reflexo da própria movimentação das forças sociais.

As ações afirmativas fazem que a ‘igualdade inata’, presente pela só condição de ser humano, ceda lugar a uma ‘igualdade construída’, de modo a assegurar sua materialização na realidade e a concretização de certos padrões de justiça material. Esses padrões, por sua vez, refletem os valores comuns à ordem constitucional, que direcionam qualquer processo de normatização ou de execução normativa. É o caso dos incisos I e III do art. 3º da Constituição de 1988, que dispõem serem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, bem como “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Esses preceitos podem ser considerados o epicentro axiológico de qualquer ação afirmativa promovida em território brasileiro, direcionando a adoção de políticas públicas aptas à consecução dos objetivos neles referidos. Especificamente em relação à mulher, tem-se uma sistemática constitucional sensível à sua histórica situação de dependência e subordinação, justificando os tratamentos diferenciados que ela diretamente contemplou e permitindo que o legislador infraconstitucional venha a ampliá-los, sempre pautado pela base axiológica que dá sustentação às medidas de proteção e inserção da mulher.

Individualizados os destinatários e o objetivo fundamental, devem ser escolhidos os instrumentos a serem utilizados para alcançá-lo. As discriminações positivas refletem a essência das ações afirmativas, que apresentam natureza e objetivos extremamente variáveis. Podem assumir natureza legislativa ou administrativa e normalmente têm por objetivo assegurar (1) a igualdade de oportunidades, permitindo que certos grupos tenham plena possibilidade de desenvolver suas aptidões (como na reserva de vagas em universidades), (2) a concessão de prestações sociais mínimas e indispensáveis à preservação da dignidade humana (por exemplo: saúde e educação básica) ou (3) a concessão, ampla e irrestrita, de forma igualitária, de todas as prestações sociais necessárias ao indivíduo (direitos sociais nos antigos regimes

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200872

socialistas). São exemplos corriqueiros a garantia de acesso a serviços e a bens considerados essenciais ao pleno desenvolvimento da personalidade ou à própria sobrevivência (como o ingresso no ensino superior, programas assistenciais de distribuição de recursos e alimentos etc.). A medida dessas prestações, em regra, oscilará entre prestações mínimas, indispensáveis à existência digna, e prestações voltadas ao nivelamento social, de modo a igualar os membros da coletividade. Essa última possibilidade, no entanto, apresenta um acentuado colorido teórico, pois destoa de qualquer sistema baseado no livre desenvolvimento e no mérito pessoal, isto sem olvidar a notória escassez de recursos.

No direito brasileiro, são múltiplas as iniciativas voltadas à construção da igualdade material, sendo normalmente utilizados, como critérios de individualização dos destinatários, (1) a cor, (2) o sexo, (3) a deficiência física e (4) a deficiência econômica. Podem ser mencionados, no plano federal: a) o programa diversidade na universidade, que dispõe sobre a concessão de incentivos a organizações não-governamentais voltadas à preparação de jovens carentes para o vestibular (Lei n. 10.558/2002); b) o programa universidade para todos, que trata da concessão de bolsas de estudos no ensino superior (Lei n. 11.096/2005); c) a reserva de vagas aos portadores de deficiência nos concursos públicos (CR/1988, art. 37, VIII; e Lei n. 8.112/1990, art. 5º, § 2º); e d) a reserva de vagas a candidatas do sexo

38feminino nas eleições (Lei n. 9.504/1997, art. 10, § 3º) .Centrando nossa análise na Lei n. 11.340/2006, é possível

visualizar a utilização de quatro ordens de medidas, que são as de (1) inserção, (2) prevenção, (3) proteção e (4) coibição.

As medidas de inserção, que, além de não constituírem o principal objetivo da lei, assumem contornos essencialmente

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 73

38 No direito francês, deve ser mencionada a alteração dos arts. 3º e 4º da Constituição de 1958, promovida pela revisão de 08/07/1999, destinada a permitir a existência de cotas, de acordo com o sexo, para as candidaturas às eleições políticas. Com isto, contornou-se a decisão do Conselho Constitucional, de 18/11/1982, que entendeu como inconstitucional a norma que consagrava cotas dessa natureza para a composição das listas eleitorais (Decisão n. 82-146, Recueil, p. 66, RJC, p. I-134, JO de 19/11/1982, p. 3475) (Cf. CAMBY, J.-P. Supra-constitutionnalité: la fin d’un mythe. Revue du droit public et de la science politique en France et a l’etranger, n. 3, p. 671, mai./jun. 2003).

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contexto social e das razões históricas que contribuíram para a sua formação. Escolhas equivocadas, privilegiando aqueles que não deveriam ser privilegiados, podem redundar numa instabilidade social, deflagrando e institucionalizando desigualdades, não as combatendo. Fatores econômicos e raciais são constantemente invocados, sendo reflexo da própria movimentação das forças sociais.

As ações afirmativas fazem que a ‘igualdade inata’, presente pela só condição de ser humano, ceda lugar a uma ‘igualdade construída’, de modo a assegurar sua materialização na realidade e a concretização de certos padrões de justiça material. Esses padrões, por sua vez, refletem os valores comuns à ordem constitucional, que direcionam qualquer processo de normatização ou de execução normativa. É o caso dos incisos I e III do art. 3º da Constituição de 1988, que dispõem serem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, bem como “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Esses preceitos podem ser considerados o epicentro axiológico de qualquer ação afirmativa promovida em território brasileiro, direcionando a adoção de políticas públicas aptas à consecução dos objetivos neles referidos. Especificamente em relação à mulher, tem-se uma sistemática constitucional sensível à sua histórica situação de dependência e subordinação, justificando os tratamentos diferenciados que ela diretamente contemplou e permitindo que o legislador infraconstitucional venha a ampliá-los, sempre pautado pela base axiológica que dá sustentação às medidas de proteção e inserção da mulher.

Individualizados os destinatários e o objetivo fundamental, devem ser escolhidos os instrumentos a serem utilizados para alcançá-lo. As discriminações positivas refletem a essência das ações afirmativas, que apresentam natureza e objetivos extremamente variáveis. Podem assumir natureza legislativa ou administrativa e normalmente têm por objetivo assegurar (1) a igualdade de oportunidades, permitindo que certos grupos tenham plena possibilidade de desenvolver suas aptidões (como na reserva de vagas em universidades), (2) a concessão de prestações sociais mínimas e indispensáveis à preservação da dignidade humana (por exemplo: saúde e educação básica) ou (3) a concessão, ampla e irrestrita, de forma igualitária, de todas as prestações sociais necessárias ao indivíduo (direitos sociais nos antigos regimes

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socialistas). São exemplos corriqueiros a garantia de acesso a serviços e a bens considerados essenciais ao pleno desenvolvimento da personalidade ou à própria sobrevivência (como o ingresso no ensino superior, programas assistenciais de distribuição de recursos e alimentos etc.). A medida dessas prestações, em regra, oscilará entre prestações mínimas, indispensáveis à existência digna, e prestações voltadas ao nivelamento social, de modo a igualar os membros da coletividade. Essa última possibilidade, no entanto, apresenta um acentuado colorido teórico, pois destoa de qualquer sistema baseado no livre desenvolvimento e no mérito pessoal, isto sem olvidar a notória escassez de recursos.

No direito brasileiro, são múltiplas as iniciativas voltadas à construção da igualdade material, sendo normalmente utilizados, como critérios de individualização dos destinatários, (1) a cor, (2) o sexo, (3) a deficiência física e (4) a deficiência econômica. Podem ser mencionados, no plano federal: a) o programa diversidade na universidade, que dispõe sobre a concessão de incentivos a organizações não-governamentais voltadas à preparação de jovens carentes para o vestibular (Lei n. 10.558/2002); b) o programa universidade para todos, que trata da concessão de bolsas de estudos no ensino superior (Lei n. 11.096/2005); c) a reserva de vagas aos portadores de deficiência nos concursos públicos (CR/1988, art. 37, VIII; e Lei n. 8.112/1990, art. 5º, § 2º); e d) a reserva de vagas a candidatas do sexo

38feminino nas eleições (Lei n. 9.504/1997, art. 10, § 3º) .Centrando nossa análise na Lei n. 11.340/2006, é possível

visualizar a utilização de quatro ordens de medidas, que são as de (1) inserção, (2) prevenção, (3) proteção e (4) coibição.

As medidas de inserção, que, além de não constituírem o principal objetivo da lei, assumem contornos essencialmente

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38 No direito francês, deve ser mencionada a alteração dos arts. 3º e 4º da Constituição de 1958, promovida pela revisão de 08/07/1999, destinada a permitir a existência de cotas, de acordo com o sexo, para as candidaturas às eleições políticas. Com isto, contornou-se a decisão do Conselho Constitucional, de 18/11/1982, que entendeu como inconstitucional a norma que consagrava cotas dessa natureza para a composição das listas eleitorais (Decisão n. 82-146, Recueil, p. 66, RJC, p. I-134, JO de 19/11/1982, p. 3475) (Cf. CAMBY, J.-P. Supra-constitutionnalité: la fin d’un mythe. Revue du droit public et de la science politique en France et a l’etranger, n. 3, p. 671, mai./jun. 2003).

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programáticos, estando condicionadas à adoção de políticas públicas específicas, buscam assegurar oportunidades e facilidades à mulher,

39com a correlata garantia de direitos essenciais a uma vida digna .As medidas de prevenção variam desde a integração

operacional dos órgãos governamentais que atuam nos casos de violência doméstica (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Polícia Judiciária etc.), passando pela adoção de medidas que permitam monitorar a intensidade e frequência com que os ilícitos são praticados (como com a realização de estudos estatísticos), até alcançar as providências voltadas à formação de uma nova identidade

40sociocultural para o povo brasileiro, com o efetivo respeito pela mulher .No âmbito das medidas de proteção, tem-se (1) aquelas

especificamente direcionadas à esfera jurídica da mulher, vítima da violência doméstica, que deve receber todo o auxílio necessário à garantia de sua integridade física e mental, sendo-lhe assegurado, quando necessário, proteção policial, e, dentre outros, o direito de ser acompanhada para a retirada dos seus pertences do local da

41ocorrência ; e (2) aquelas direcionadas à esfera jurídica do ofensor, isto com o objetivo de assegurar a proteção da ofendida, podendo assumir múltiplas formas, como o afastamento do lar e a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, medida drástica e que deve ser aplicada com muita cautela, isto em

42razão do seu potencial de desintegração da família .

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Por último, temos as medidas de coibição, sendo enquadradas sob essa epígrafe aquelas que não ostentam cunho propriamente cautelar (por exemplo, afastamento do lar) e que estão direta ou indiretamente relacionadas à punição do infrator pelo ilícito que praticou. Essas medidas têm sido objeto de alguma polêmica em relação à sua constitucionalidade, em especial aquelas contempladas nos arts. 17, 33, parágrafo único e 41 da Lei n. 11.340/2006. Eis o seu inteiro teor:

Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.[...]Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput.[...]Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995.

À luz desses preceitos, constata-se uma evidente preocupação com a celeridade dos processos relativos à violência doméstica e à não-incidência de algumas medidas despenalizadoras, em especial daquelas contempladas na Lei n. 9.099/1995, como a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89). Aqueles que apregoam a inconstitucionalidade desses preceitos argumentam com a violação à cláusula geral de igualdade na medida em que a mesma infração penal, pelo só fato de ter sido praticada contra a mulher,

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39 Lei n. 11.340/2006, arts. 2º e 3º.40 Lei n. 11.340/2006, arts. 8º e 38.41 Lei n. 11.340/2006, arts. 11, 15, 18 a 21, 23 e 24.42 Lei n. 11.340/2006, art. 22: “Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios”.

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programáticos, estando condicionadas à adoção de políticas públicas específicas, buscam assegurar oportunidades e facilidades à mulher,

39com a correlata garantia de direitos essenciais a uma vida digna .As medidas de prevenção variam desde a integração

operacional dos órgãos governamentais que atuam nos casos de violência doméstica (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Polícia Judiciária etc.), passando pela adoção de medidas que permitam monitorar a intensidade e frequência com que os ilícitos são praticados (como com a realização de estudos estatísticos), até alcançar as providências voltadas à formação de uma nova identidade

40sociocultural para o povo brasileiro, com o efetivo respeito pela mulher .No âmbito das medidas de proteção, tem-se (1) aquelas

especificamente direcionadas à esfera jurídica da mulher, vítima da violência doméstica, que deve receber todo o auxílio necessário à garantia de sua integridade física e mental, sendo-lhe assegurado, quando necessário, proteção policial, e, dentre outros, o direito de ser acompanhada para a retirada dos seus pertences do local da

41ocorrência ; e (2) aquelas direcionadas à esfera jurídica do ofensor, isto com o objetivo de assegurar a proteção da ofendida, podendo assumir múltiplas formas, como o afastamento do lar e a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, medida drástica e que deve ser aplicada com muita cautela, isto em

42razão do seu potencial de desintegração da família .

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Por último, temos as medidas de coibição, sendo enquadradas sob essa epígrafe aquelas que não ostentam cunho propriamente cautelar (por exemplo, afastamento do lar) e que estão direta ou indiretamente relacionadas à punição do infrator pelo ilícito que praticou. Essas medidas têm sido objeto de alguma polêmica em relação à sua constitucionalidade, em especial aquelas contempladas nos arts. 17, 33, parágrafo único e 41 da Lei n. 11.340/2006. Eis o seu inteiro teor:

Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.[...]Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput.[...]Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995.

À luz desses preceitos, constata-se uma evidente preocupação com a celeridade dos processos relativos à violência doméstica e à não-incidência de algumas medidas despenalizadoras, em especial daquelas contempladas na Lei n. 9.099/1995, como a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89). Aqueles que apregoam a inconstitucionalidade desses preceitos argumentam com a violação à cláusula geral de igualdade na medida em que a mesma infração penal, pelo só fato de ter sido praticada contra a mulher,

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39 Lei n. 11.340/2006, arts. 2º e 3º.40 Lei n. 11.340/2006, arts. 8º e 38.41 Lei n. 11.340/2006, arts. 11, 15, 18 a 21, 23 e 24.42 Lei n. 11.340/2006, art. 22: “Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios”.

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43sujeitaria o agente a consequências jurídicas mais severas . Trata-se, no entanto, de argumento superficial, que “ao mais leve sopro se espalha e desvanece”, isto para lembrarmos as belas palavras de Raul Pompéia no monumental O Ateneu.

Inicialmente, observa-se que o estabelecimento de penalidades mais severas em razão da especial qualidade da vítima não é algo novo no direito brasileiro. Nesse sentido, nosso Código Penal, em sua versão original, de 1940, já previa, como circunstâncias agravantes, a prática de crime contra “ascendente, descendente, irmão ou cônjuge”, bem como contra “criança, velho ou enfermo” (art. 44, II, f e i). No primeiro

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200876

44caso, argumentava Aníbal Bruno de Oliveira Firmo , a agravante decorria da “grave manifestação de insensibilidade moral dada pelo agente”; no segundo, da “covardia e impiedade do autor, que agiu sem

45atenção à situação pessoal da vítima”. Roberto Lyra , por sua vez, realçava que a qualidade das vítimas refletia, em relação ao autor, “manifestações negativas da personalidade”. A técnica, que já ornava o Código Criminal de 1890, foi preservada na nova Parte Geral, em vigor desde 1984 (art. 61, II, “e” e “h”). Embora atentos ao risco de nos alongarmos em questões de inegável obviedade, não devemos esquecer que a qualidade da vítima também tem sido considerada para a configuração de crime específico ou como causa especial de aumento de pena, como ocorre, de longa data, com os crimes praticados contra a criança (art. 121, § 4º, parte final, e 129, § 7º, ambos do Código Penal) e, por força da Lei n. 11.340/2006 (art. 44), também em decorrência da violência doméstica (art. 129, § 9º, do Código Penal). Ao que sabemos, a inconstitucionalidade desses preceitos nunca foi suscitada ou, se foi, não auferiu maior publicidade.

Do mesmo modo que a pena cominada pode ser exasperada, não vislumbramos qualquer óbice a que o legislador, lastreado em motivos harmônicos com a realidade e o sistema social, venha a restringir a aplicação de certos institutos processuais de modo a agravar a situação jurídica daqueles que pratiquem crimes contra pessoas que se encontrem em evidente situação de fragilidade no contexto social.

A violência doméstica praticada contra a mulher é fato que não pode ser desconsiderado e, muito menos, ignorado. Fruto de uma sociedade desenvolvida sobre alicerces patriarcais, a sua situação de inferioridade (fática), ainda presente em muitos rincões do nosso país, é justificativa não só plausível, como suficiente à defesa da legitimidade da técnica legislativa adotada. Ressalte-se, no entanto, que o tratamento diferenciado por razões de gênero somente deve ser admitido naqueles casos em que encontre ressonância em situações de discriminação pré-existentes, não como mola propulsora dessas discriminações. A Suprema Corte norte-americana, por exemplo, no caso Mississippi

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43 Em prol da constitucionalidade, podem ser mencionadas as posições de: BASTOS, M. L. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria da Penha” – Alguns comentários. In: FREITAS, A. G. T. de. Estudos sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 125 (131/132); DIAS, M. B. A lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 107-108; PRADO, G. L. M. Comentários à lei de violência doméstica e familiar contra a mulher. In: MELLO, A. R. de (Org.). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 87-89.; Sustentando a inconstitucionalidade do art. 41 da Lei n. 11.340/2006: TJMG , 1ª Câmara Criminal, Apelação n. 1.0672.07.244893-5/001(1), rel. Des. Judimar Biber, DJ de 14/08/2007; e GRANDINETTI, L. G. Comentários à lei de violência doméstica e familiar contra a mulher. In: MELLO, A. R de. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 172-173. É importante frisar que a situação aqui analisada em nada se confunde com aquela gerada pela 10.259/2001. Em outras palavras, até a edição da Lei n. 11.313/2006 havia previsão formal de que somente seriam de competência dos Juizados Especiais Criminais aquelas infrações penais cuja pena máxima não superasse 1 (um) ano. Com o advento da Lei n. 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal, foi alterado o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, passando a serem enquadradas sob tal epígrafe aquelas cuja pena máxima não fosse superior a dois anos de prisão, independentemente da natureza do rito processual a ser seguido na persecução penal, ou multa. Em que pese à existência de preceito expresso vedando a incidência da Lei n. 10.259/2001 na seara estadual (art. 20), era inconcebível que uma infração fosse, ou não, de menor potencial ofensivo, não em virtude de suas características intrínsecas, mas em razão do órgão jurisdicional que iria julgá-la. Tal restrição, além de irrazoável, importaria em flagrante afronta ao princípio da isonomia, já que o elastecimento do conceito deveria permitir a incidência das medidas despenalizadoras sobre aqueles que estavam em idêntica situação jurídica. Sendo idêntica a norma incriminadora em que se subsumiam as condutas, idênticas haveriam de ser as reprimendas ou os benefícios, ressalvando-se, unicamente, as peculiaridades de ordem pessoal inerentes aos sujeitos ativos.

44 FIRMO, A. B. de O. Comentários ao Código Penal. v. II. Rio de Janeiro: Forense, 1969. p. 113.45 LYRA, R. Comentários ao Código Penal. v. II. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 303.

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43sujeitaria o agente a consequências jurídicas mais severas . Trata-se, no entanto, de argumento superficial, que “ao mais leve sopro se espalha e desvanece”, isto para lembrarmos as belas palavras de Raul Pompéia no monumental O Ateneu.

Inicialmente, observa-se que o estabelecimento de penalidades mais severas em razão da especial qualidade da vítima não é algo novo no direito brasileiro. Nesse sentido, nosso Código Penal, em sua versão original, de 1940, já previa, como circunstâncias agravantes, a prática de crime contra “ascendente, descendente, irmão ou cônjuge”, bem como contra “criança, velho ou enfermo” (art. 44, II, f e i). No primeiro

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200876

44caso, argumentava Aníbal Bruno de Oliveira Firmo , a agravante decorria da “grave manifestação de insensibilidade moral dada pelo agente”; no segundo, da “covardia e impiedade do autor, que agiu sem

45atenção à situação pessoal da vítima”. Roberto Lyra , por sua vez, realçava que a qualidade das vítimas refletia, em relação ao autor, “manifestações negativas da personalidade”. A técnica, que já ornava o Código Criminal de 1890, foi preservada na nova Parte Geral, em vigor desde 1984 (art. 61, II, “e” e “h”). Embora atentos ao risco de nos alongarmos em questões de inegável obviedade, não devemos esquecer que a qualidade da vítima também tem sido considerada para a configuração de crime específico ou como causa especial de aumento de pena, como ocorre, de longa data, com os crimes praticados contra a criança (art. 121, § 4º, parte final, e 129, § 7º, ambos do Código Penal) e, por força da Lei n. 11.340/2006 (art. 44), também em decorrência da violência doméstica (art. 129, § 9º, do Código Penal). Ao que sabemos, a inconstitucionalidade desses preceitos nunca foi suscitada ou, se foi, não auferiu maior publicidade.

Do mesmo modo que a pena cominada pode ser exasperada, não vislumbramos qualquer óbice a que o legislador, lastreado em motivos harmônicos com a realidade e o sistema social, venha a restringir a aplicação de certos institutos processuais de modo a agravar a situação jurídica daqueles que pratiquem crimes contra pessoas que se encontrem em evidente situação de fragilidade no contexto social.

A violência doméstica praticada contra a mulher é fato que não pode ser desconsiderado e, muito menos, ignorado. Fruto de uma sociedade desenvolvida sobre alicerces patriarcais, a sua situação de inferioridade (fática), ainda presente em muitos rincões do nosso país, é justificativa não só plausível, como suficiente à defesa da legitimidade da técnica legislativa adotada. Ressalte-se, no entanto, que o tratamento diferenciado por razões de gênero somente deve ser admitido naqueles casos em que encontre ressonância em situações de discriminação pré-existentes, não como mola propulsora dessas discriminações. A Suprema Corte norte-americana, por exemplo, no caso Mississippi

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43 Em prol da constitucionalidade, podem ser mencionadas as posições de: BASTOS, M. L. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria da Penha” – Alguns comentários. In: FREITAS, A. G. T. de. Estudos sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 125 (131/132); DIAS, M. B. A lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 107-108; PRADO, G. L. M. Comentários à lei de violência doméstica e familiar contra a mulher. In: MELLO, A. R. de (Org.). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 87-89.; Sustentando a inconstitucionalidade do art. 41 da Lei n. 11.340/2006: TJMG , 1ª Câmara Criminal, Apelação n. 1.0672.07.244893-5/001(1), rel. Des. Judimar Biber, DJ de 14/08/2007; e GRANDINETTI, L. G. Comentários à lei de violência doméstica e familiar contra a mulher. In: MELLO, A. R de. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 172-173. É importante frisar que a situação aqui analisada em nada se confunde com aquela gerada pela 10.259/2001. Em outras palavras, até a edição da Lei n. 11.313/2006 havia previsão formal de que somente seriam de competência dos Juizados Especiais Criminais aquelas infrações penais cuja pena máxima não superasse 1 (um) ano. Com o advento da Lei n. 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal, foi alterado o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, passando a serem enquadradas sob tal epígrafe aquelas cuja pena máxima não fosse superior a dois anos de prisão, independentemente da natureza do rito processual a ser seguido na persecução penal, ou multa. Em que pese à existência de preceito expresso vedando a incidência da Lei n. 10.259/2001 na seara estadual (art. 20), era inconcebível que uma infração fosse, ou não, de menor potencial ofensivo, não em virtude de suas características intrínsecas, mas em razão do órgão jurisdicional que iria julgá-la. Tal restrição, além de irrazoável, importaria em flagrante afronta ao princípio da isonomia, já que o elastecimento do conceito deveria permitir a incidência das medidas despenalizadoras sobre aqueles que estavam em idêntica situação jurídica. Sendo idêntica a norma incriminadora em que se subsumiam as condutas, idênticas haveriam de ser as reprimendas ou os benefícios, ressalvando-se, unicamente, as peculiaridades de ordem pessoal inerentes aos sujeitos ativos.

44 FIRMO, A. B. de O. Comentários ao Código Penal. v. II. Rio de Janeiro: Forense, 1969. p. 113.45 LYRA, R. Comentários ao Código Penal. v. II. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 303.

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46University for Women vs. Hogan , reconheceu a inconstitucionalidade da política de admissão de alunos praticada pela Faculdade de Enfermagem, à época beneficiada por subsídios financeiros de origem pública, por só permitir o acesso de mulheres; isto porque a discriminação não buscava atender nenhum “importante objetivo governamental”.

Considerando que as ações afirmativas têm por objetivo reduzir ou suprimir as desigualdades sociais e regionais, que se manifestam entre pessoas do mesmo âmbito social ou entre sociedades de distintas regiões do País, é intuitivo que cessarão ou serão paulatinamente reduzidas tão logo as desigualdades sejam eliminadas ou atenuadas. Ressalvadas as hipóteses alicerçadas em situações de inferioridade inerentes à própria espécie humana, invariáveis e imutáveis, como se verifica com a fragilidade de crianças e idosos, as ações afirmativas sempre serão temporárias; isto sob pena de se inaugurar um novo quadro de desigualdade, com atores diversos, tão logo cesse a desigualdade que, de início, se buscava combater. Daí a relevância dos estudos e dados estatísticos referidos na Lei n. 11.340/2006, permitindo seja acompanhada a situação da mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que pode justificar, ou não, a manutenção da sistemática inaugurada por esse diploma legal.

Epílogo

O delineamento da igualdade passa pela (1) definição da igualdade formal do modo mais amplo possível, (2) contenção da discriminação, punindo-se as iniciativas que atentem contra a igualdade formal e (3) construção da igualdade material. Especificamente em relação à situação da mulher enquanto vítima da violência doméstica, a reversão desse quadro somente será alcançada com a alteração dos padrões histórico-culturais há muito sedimentados na sociedade brasileira, o que exigirá a implementação de políticas públicas voltadas ao esclarecimento e à formação das novas gerações. O grande desafio é evitar que a constatação de German Proverb, ao afirmar que “a única igualdade real está no cemitério”, assuma ares de sacralidade e tenha sua imutabilidade reconhecida, terminando por manter a mulher na triste condição de estereótipo da violência doméstica.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200878

Referências

BASTOS, M. L. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei “Maria da Penha” – Alguns comentários. In: FREITAS, A. G. T. de. Estudos sobre as novas leis de violência doméstica contra a mulher e de tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.

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IRONS, P. A people’s history of the Supreme Court. New York: Penguin Books, 2000.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 79

46 458 U.S. 718, 1982.

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46University for Women vs. Hogan , reconheceu a inconstitucionalidade da política de admissão de alunos praticada pela Faculdade de Enfermagem, à época beneficiada por subsídios financeiros de origem pública, por só permitir o acesso de mulheres; isto porque a discriminação não buscava atender nenhum “importante objetivo governamental”.

Considerando que as ações afirmativas têm por objetivo reduzir ou suprimir as desigualdades sociais e regionais, que se manifestam entre pessoas do mesmo âmbito social ou entre sociedades de distintas regiões do País, é intuitivo que cessarão ou serão paulatinamente reduzidas tão logo as desigualdades sejam eliminadas ou atenuadas. Ressalvadas as hipóteses alicerçadas em situações de inferioridade inerentes à própria espécie humana, invariáveis e imutáveis, como se verifica com a fragilidade de crianças e idosos, as ações afirmativas sempre serão temporárias; isto sob pena de se inaugurar um novo quadro de desigualdade, com atores diversos, tão logo cesse a desigualdade que, de início, se buscava combater. Daí a relevância dos estudos e dados estatísticos referidos na Lei n. 11.340/2006, permitindo seja acompanhada a situação da mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que pode justificar, ou não, a manutenção da sistemática inaugurada por esse diploma legal.

Epílogo

O delineamento da igualdade passa pela (1) definição da igualdade formal do modo mais amplo possível, (2) contenção da discriminação, punindo-se as iniciativas que atentem contra a igualdade formal e (3) construção da igualdade material. Especificamente em relação à situação da mulher enquanto vítima da violência doméstica, a reversão desse quadro somente será alcançada com a alteração dos padrões histórico-culturais há muito sedimentados na sociedade brasileira, o que exigirá a implementação de políticas públicas voltadas ao esclarecimento e à formação das novas gerações. O grande desafio é evitar que a constatação de German Proverb, ao afirmar que “a única igualdade real está no cemitério”, assuma ares de sacralidade e tenha sua imutabilidade reconhecida, terminando por manter a mulher na triste condição de estereótipo da violência doméstica.

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Referências

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46 458 U.S. 718, 1982.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200880 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 81

Resumo:Nesse artigo, adverte-se do risco sempre presente acerca do esquecimento das conquistas civilizatórias e humanitárias, então democraticamente, alcançadas a partir da configuração legislativa das denominadas “Leis de Regência” (Constituição da República de 1988 e Estatuto da Criança e do Adolescente) desse novo âmbito jurídico-legal destinado a disciplinar e regulamentar os interesses individuais, difusos e coletivos; os direitos individuais; e as garantias fundamentais afetos à criança e ao adolescente.

Palavras-chave: linguagem, alteração legislativa, Estatuto da Criança e do Adolescente, mobilização social, interpretação emancipatória.

Durante os dezoito anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990), invariavelmente sempre se esteve sob os riscos de um “pesado esquecimento” – mutatis mutandis, como já bem observava Michel

1Foucault sobre os avanços científicos e tecnológicos da razão –, por vezes impostos pelo próprio desenvolvimento do conhecimento que se construiu acerca do novo Direito da Criança e do Adolescente. Os avanços científicos, tecnológicos, humanitários e civilizatórios certamente encontram-se expressos nas reconhecidas figuras legislativas que regem a matéria pertinente à infância e à juventude, quais sejam: a Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E OS RISCOS DO ESQUECIMENTO

Mário Luiz Ramidoff*

* Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Paraná, mestre em Direito (CPGD-UFSC), doutor em Direito (PPGD-UFPR), professor titular no Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba. E-mail: [email protected] FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia (Maladie Mentale et Psychologie). Trad. de Lílian Rose Shalders. 6. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. p. 97 e ss. (Biblioteca Tempo Universitário 11)

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Resumo:Nesse artigo, adverte-se do risco sempre presente acerca do esquecimento das conquistas civilizatórias e humanitárias, então democraticamente, alcançadas a partir da configuração legislativa das denominadas “Leis de Regência” (Constituição da República de 1988 e Estatuto da Criança e do Adolescente) desse novo âmbito jurídico-legal destinado a disciplinar e regulamentar os interesses individuais, difusos e coletivos; os direitos individuais; e as garantias fundamentais afetos à criança e ao adolescente.

Palavras-chave: linguagem, alteração legislativa, Estatuto da Criança e do Adolescente, mobilização social, interpretação emancipatória.

Durante os dezoito anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990), invariavelmente sempre se esteve sob os riscos de um “pesado esquecimento” – mutatis mutandis, como já bem observava Michel

1Foucault sobre os avanços científicos e tecnológicos da razão –, por vezes impostos pelo próprio desenvolvimento do conhecimento que se construiu acerca do novo Direito da Criança e do Adolescente. Os avanços científicos, tecnológicos, humanitários e civilizatórios certamente encontram-se expressos nas reconhecidas figuras legislativas que regem a matéria pertinente à infância e à juventude, quais sejam: a Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E OS RISCOS DO ESQUECIMENTO

Mário Luiz Ramidoff*

* Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Paraná, mestre em Direito (CPGD-UFSC), doutor em Direito (PPGD-UFPR), professor titular no Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba. E-mail: [email protected] FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia (Maladie Mentale et Psychologie). Trad. de Lílian Rose Shalders. 6. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. p. 97 e ss. (Biblioteca Tempo Universitário 11)

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Contudo, tais “Leis de Regência” não podem se transformar em meras perspectivas éticas absolutas – senão em expedientes principiológicos “supremos de moralidade”, consoante propunha

2Emmanuel Kant –, a partir das quais, argumentativa (explicação) e discursivamente (justificação/legitimação), seja possível a adoção de medidas legais (alterações legislativas) e judiciais (aplicação e cumprimento) que, de fato, suprimam ou mesmo restrinjam os direitos individuais e/ou as garantias fundamentais afetos à criança e ao adolescente.

Tais “Leis de Regência”, e, principalmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, enquanto normatização deontológica

3protetiva , devem possibilitar a efetivação dos compromissos assumidos, superando, assim, a função meramente reguladora dos direitos e garantias peculiares à cidadania infanto-juvenil. No entanto, mais do que isto, se afigura agora imperativo o estabelecimento de vínculos comunicativos (linguagem) que possibilitem o asseguramento dos particulares sistemas de valores culturais (identidades culturais), ao mesmo tempo em que se permita a mútua comunicação efetivamente participativa entre as comunidades humanas através da interculturalidade.

4Neste sentido, Jürgen Habermas tem entendido que o viés pragmático linguístico tem sofrido transformações importantes a partir da análise diferenciada dos aspectos da linguagem, isto é, enquanto a tradição analítica se interessa pela “função representativa da linguagem e pela estrutura propositiva de sentenças afirmativas simples”, os filósofos hermeneutas, de outro lado, “analisam a função por meio da qual a linguagem comum revela o mundo e procuram encontrar visões de mundo inscritas nas características gramaticais da linguagem”. A interculturalidade, assim, cumpre importante função social, epistêmica, metodológica e propositiva, em prol do reconhecimento, da responsabilidade e do respeito de cada uma das identidades culturais para com todas as demais, enquanto condição civilizatória de toda comunidade humana.

O Estatuto da Criança e do Adolescente sob a égide do texto constitucional deve, assim, proporcionar o desenvolvimento de estratégias jurídico-sociais para emancipação daquelas novas subjetividades, transformando-se a partir de sua própria implementação jurídica e social, num marco referencial e propedêutico para a articulação de ações governamentais e não-governamentais de atendimento – art. 86, da Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990 –

5sob pena de “suprimir-se”, como bem observa Michel Foucault .6Eis, pois, os riscos de um “pesado esquecimento” , pois a

própria perda de sentido é cotidianamente determinada, por exemplo, pelas inúmeras e paradoxais propostas de alteração legislativa do

2 KANT, E. Fundamentos da metafísica dos costumes. Trad. de Lourival de Queiroz Henkel. Prefácio de Afonso Bertagnoli. Rio de Janeiro: Ediouro, 19[..], p. 30-31 (Clássicos de Bolso).3 RAMIDOFF, M. L. Lições de direito da criança e do adolescente: ato infracional e medidas socioeducativas. Curitiba: Juruá, 2005. p. 29: “Já há algum tempo tenho afirmado que o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Federal 8.069, de 13.07.1990 – é o novo código deontológico protetivo das crianças e adolescentes, no Brasil. Código, porque consolida normativamente as estratégias e o instrumental operacional mínimo à implementação dos direitos e garantias fundamentais pertinentes a esta nova totalidade subjetiva, então constituída por crianças e adolescentes. Deontológico, precisamente, porque estabelece o regulamento indispensável e necessário para a constituição das diversas formas de relação em que possam se encontrar estas novas subjetividades, isto é, busca transformar culturalmente tanto a opinião pública, quanto o senso comum jurídico, através de novos valores assumidos e convencionados, agora, em fórmulas de tratativas e inéditas pautas até então apenas presentes nos compromissos pactuados internacionalmente. E, protetivo, haja vista que se orientam todas estas proposições legislativas através do novel primado constitucional estabelecido pela Doutrina da Proteção Integral, enquanto vertente da diretriz internacional dos Direitos Humanos, especificamente, voltados para a criança e o adolescente”.

4 HABERMAS, J. A ética da discussão e a questão da verdade. Trad. de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 49 e ss. O autor afirma que “não há necessidade nem possibilidade de ‘limpar’ o conhecimento humano dos elementos subjetivos e das mediações intersubjetivas, ou seja, dos interesses práticos e dos matizes da linguagem. Isso não deve conduzir à negação da verdade e da objetividade. Enquanto lidamos com problemas dos quais não podemos escapar, temos de pressupor, não só na fala como também na ação, um mundo objetivo que não foi construído por nós e que é em grande parte o mesmo para todos nós. [...] Só existem as linguagens que inventamos a partir de diversos pontos de vista. [...] A esse conceito semântico do mundo como um sistema de referências possíveis corresponde o conceito epistemológico do mundo como a totalidade dos constrangimentos que se impõem implicitamente sobre as diversas maneiras pelas quais podemos vir a saber o que está acontecendo no próprio mundo”.5 FOUCAULT, M. Doença mental e psiciologia, op. cit.6 FOUCAULT, M. Doença mental e psiciologia, op. cit.

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Contudo, tais “Leis de Regência” não podem se transformar em meras perspectivas éticas absolutas – senão em expedientes principiológicos “supremos de moralidade”, consoante propunha

2Emmanuel Kant –, a partir das quais, argumentativa (explicação) e discursivamente (justificação/legitimação), seja possível a adoção de medidas legais (alterações legislativas) e judiciais (aplicação e cumprimento) que, de fato, suprimam ou mesmo restrinjam os direitos individuais e/ou as garantias fundamentais afetos à criança e ao adolescente.

Tais “Leis de Regência”, e, principalmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, enquanto normatização deontológica

3protetiva , devem possibilitar a efetivação dos compromissos assumidos, superando, assim, a função meramente reguladora dos direitos e garantias peculiares à cidadania infanto-juvenil. No entanto, mais do que isto, se afigura agora imperativo o estabelecimento de vínculos comunicativos (linguagem) que possibilitem o asseguramento dos particulares sistemas de valores culturais (identidades culturais), ao mesmo tempo em que se permita a mútua comunicação efetivamente participativa entre as comunidades humanas através da interculturalidade.

4Neste sentido, Jürgen Habermas tem entendido que o viés pragmático linguístico tem sofrido transformações importantes a partir da análise diferenciada dos aspectos da linguagem, isto é, enquanto a tradição analítica se interessa pela “função representativa da linguagem e pela estrutura propositiva de sentenças afirmativas simples”, os filósofos hermeneutas, de outro lado, “analisam a função por meio da qual a linguagem comum revela o mundo e procuram encontrar visões de mundo inscritas nas características gramaticais da linguagem”. A interculturalidade, assim, cumpre importante função social, epistêmica, metodológica e propositiva, em prol do reconhecimento, da responsabilidade e do respeito de cada uma das identidades culturais para com todas as demais, enquanto condição civilizatória de toda comunidade humana.

O Estatuto da Criança e do Adolescente sob a égide do texto constitucional deve, assim, proporcionar o desenvolvimento de estratégias jurídico-sociais para emancipação daquelas novas subjetividades, transformando-se a partir de sua própria implementação jurídica e social, num marco referencial e propedêutico para a articulação de ações governamentais e não-governamentais de atendimento – art. 86, da Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990 –

5sob pena de “suprimir-se”, como bem observa Michel Foucault .6Eis, pois, os riscos de um “pesado esquecimento” , pois a

própria perda de sentido é cotidianamente determinada, por exemplo, pelas inúmeras e paradoxais propostas de alteração legislativa do

2 KANT, E. Fundamentos da metafísica dos costumes. Trad. de Lourival de Queiroz Henkel. Prefácio de Afonso Bertagnoli. Rio de Janeiro: Ediouro, 19[..], p. 30-31 (Clássicos de Bolso).3 RAMIDOFF, M. L. Lições de direito da criança e do adolescente: ato infracional e medidas socioeducativas. Curitiba: Juruá, 2005. p. 29: “Já há algum tempo tenho afirmado que o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Federal 8.069, de 13.07.1990 – é o novo código deontológico protetivo das crianças e adolescentes, no Brasil. Código, porque consolida normativamente as estratégias e o instrumental operacional mínimo à implementação dos direitos e garantias fundamentais pertinentes a esta nova totalidade subjetiva, então constituída por crianças e adolescentes. Deontológico, precisamente, porque estabelece o regulamento indispensável e necessário para a constituição das diversas formas de relação em que possam se encontrar estas novas subjetividades, isto é, busca transformar culturalmente tanto a opinião pública, quanto o senso comum jurídico, através de novos valores assumidos e convencionados, agora, em fórmulas de tratativas e inéditas pautas até então apenas presentes nos compromissos pactuados internacionalmente. E, protetivo, haja vista que se orientam todas estas proposições legislativas através do novel primado constitucional estabelecido pela Doutrina da Proteção Integral, enquanto vertente da diretriz internacional dos Direitos Humanos, especificamente, voltados para a criança e o adolescente”.

4 HABERMAS, J. A ética da discussão e a questão da verdade. Trad. de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 49 e ss. O autor afirma que “não há necessidade nem possibilidade de ‘limpar’ o conhecimento humano dos elementos subjetivos e das mediações intersubjetivas, ou seja, dos interesses práticos e dos matizes da linguagem. Isso não deve conduzir à negação da verdade e da objetividade. Enquanto lidamos com problemas dos quais não podemos escapar, temos de pressupor, não só na fala como também na ação, um mundo objetivo que não foi construído por nós e que é em grande parte o mesmo para todos nós. [...] Só existem as linguagens que inventamos a partir de diversos pontos de vista. [...] A esse conceito semântico do mundo como um sistema de referências possíveis corresponde o conceito epistemológico do mundo como a totalidade dos constrangimentos que se impõem implicitamente sobre as diversas maneiras pelas quais podemos vir a saber o que está acontecendo no próprio mundo”.5 FOUCAULT, M. Doença mental e psiciologia, op. cit.6 FOUCAULT, M. Doença mental e psiciologia, op. cit.

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Estatuto da Criança e do Adolescente – isto é, mera “legalização dos sentidos”, os quais devem ser alcançados por processos democráticos de construção interpretativa –, senão, por vezes, determinada pela “dogmatização” interpretativa judicial – principalmente por aquela decorrente da utilização indevida dos instrumentais pertinentes à

7dogmática jurídico-penal, como, por exemplo, a “sumulação” da aplicação do instituto da prescrição penal às medidas socioeducativas –, enfim, através desse cotidiano processo de “esquecimento” dos avanços e das conquistas democraticamente alcançadas naqueles

8tempos de um Estado jamais Democrático (Constitucional ), mas, invariavelmente, sempre de “Direito”.

Por isso que a interpretação emancipatória da subjetividade infanto-juvenil, de cunho precipuamente protetivo, não pode ser uma

9intervenção eventual que se preste à “atualização de verdades” que são construídas, também, por demandas emergenciais, impostas pelo modo capitalista de produção social, o qual exige urgência das reações estatais (controles e limitações), ainda que quase sempre inadequadas.

Essas reações inadequadas de controle social estabelecem, por assim dizer, um ciclo determinista que torna controlável, previsível e pragmático não só o ato decisional, mas, também, toda a

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procedibilidade destinada ao asseguramento das liberdades públicas 10substanciais , pois suprime dos operadores desse novo Direito as

suas peculiares atribuições e competências jurídicas, políticas e sociais (democráticas) de garantia fundamental dos direitos individuais afetos à criança e ao adolescente.

O Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser (re)interpretado à luz dos direitos humanos afetos à infância e à juventude, isto é, ao que se convencionou denominar de “doutrina da proteção integral”, retomando, assim, os “sentidos protetivos” que orientaram a construção legislativa dos institutos e categorias elementares, então optados política e democraticamente no tempo e

11na espacialidade pública própria da palavra e da ação , qual seja: na Constituinte de 1987/1988, sob pena da dispersão gerada pelo esquecimento desses compromissos fundamentais.

A proposta que hoje permanece é a da ampla mobilização social – da opinião pública e, principalmente, do senso comum jurídico – com o intuito precípuo de que sejam efetivados jurídica e comunitariamente os direitos individuais, de cunho fundamental, afetos à criança e ao adolescente. Para tanto, uma das importantes conquistas civilizatórias e humanitárias, no Brasil, foi a construção textual das denominadas “Leis de Regência” – Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – desse novo Direito, no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro que precipuamente se destina a regulamentar as ações e relações jurídicas, legais, políticas e sociais que envolvam a implementação da proteção integral dos interesses individuais, difusos e coletivos afetos à infância e à juventude.

Apesar da Constituição da República de 1988 estar completando 20 (vinte) anos, e do Estatuto da Criança e do Adolescente, no dia 13 de julho de 1988, ter completado seus 18 (dezoito) anos de existência, ainda persiste a preconceituosa

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7 RAMIDOFF, M. L. Súmula 338, do Superior Tribunal de Justiça: Reflexões. Tese apresentada e aprovada no Grupo Temático VII (Direito e Garantias do Adolescente em Conflito com a Lei), do XXII Congresso da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude – ABMP, Florianópolis, 9, 10 e 11 de abril de 2008. Em “resumo”, “a proposição principal da tese é o cancelamento da Súmula 338, do Superior Tribunal de Justiça, uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente possui institutos jurídicos aptos para a resolução adequada dos casos concretos que se referem à aplicação e ao cumprimento de medidas socioeducativas por adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional; quando, não, a alteração do comando normativo sumulado; senão, a recomendação do esgotamento das vias procedimentais (processuais) e dos institutos jurídicos estatutariamente previstos nos feitos que tramitam perante o Juízo de Direito da Infância e da Juventude a quo (1º grau) impedindo-se, assim, a vulgarização decorrente da utilização abusiva e planificada da mencionada Súmula, em detrimento do projeto pedagógico estabelecido pela Equipe Interprofissional”. Disponível em: http://www.abmp.org.br/congresso2008. Acesso em: 9 jul. 2008.8 CADEMARTORI, S. U. de. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.9 FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia, op. cit.

10 RAMIDOFF, M. L. Direito da criança e do adolescente: por uma propedêutica jurídico-protetiva transdisciplinar. 2007. 448f. Tese (Doutorado em Direito). Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007.11 ARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

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Estatuto da Criança e do Adolescente – isto é, mera “legalização dos sentidos”, os quais devem ser alcançados por processos democráticos de construção interpretativa –, senão, por vezes, determinada pela “dogmatização” interpretativa judicial – principalmente por aquela decorrente da utilização indevida dos instrumentais pertinentes à

7dogmática jurídico-penal, como, por exemplo, a “sumulação” da aplicação do instituto da prescrição penal às medidas socioeducativas –, enfim, através desse cotidiano processo de “esquecimento” dos avanços e das conquistas democraticamente alcançadas naqueles

8tempos de um Estado jamais Democrático (Constitucional ), mas, invariavelmente, sempre de “Direito”.

Por isso que a interpretação emancipatória da subjetividade infanto-juvenil, de cunho precipuamente protetivo, não pode ser uma

9intervenção eventual que se preste à “atualização de verdades” que são construídas, também, por demandas emergenciais, impostas pelo modo capitalista de produção social, o qual exige urgência das reações estatais (controles e limitações), ainda que quase sempre inadequadas.

Essas reações inadequadas de controle social estabelecem, por assim dizer, um ciclo determinista que torna controlável, previsível e pragmático não só o ato decisional, mas, também, toda a

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procedibilidade destinada ao asseguramento das liberdades públicas 10substanciais , pois suprime dos operadores desse novo Direito as

suas peculiares atribuições e competências jurídicas, políticas e sociais (democráticas) de garantia fundamental dos direitos individuais afetos à criança e ao adolescente.

O Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser (re)interpretado à luz dos direitos humanos afetos à infância e à juventude, isto é, ao que se convencionou denominar de “doutrina da proteção integral”, retomando, assim, os “sentidos protetivos” que orientaram a construção legislativa dos institutos e categorias elementares, então optados política e democraticamente no tempo e

11na espacialidade pública própria da palavra e da ação , qual seja: na Constituinte de 1987/1988, sob pena da dispersão gerada pelo esquecimento desses compromissos fundamentais.

A proposta que hoje permanece é a da ampla mobilização social – da opinião pública e, principalmente, do senso comum jurídico – com o intuito precípuo de que sejam efetivados jurídica e comunitariamente os direitos individuais, de cunho fundamental, afetos à criança e ao adolescente. Para tanto, uma das importantes conquistas civilizatórias e humanitárias, no Brasil, foi a construção textual das denominadas “Leis de Regência” – Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – desse novo Direito, no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro que precipuamente se destina a regulamentar as ações e relações jurídicas, legais, políticas e sociais que envolvam a implementação da proteção integral dos interesses individuais, difusos e coletivos afetos à infância e à juventude.

Apesar da Constituição da República de 1988 estar completando 20 (vinte) anos, e do Estatuto da Criança e do Adolescente, no dia 13 de julho de 1988, ter completado seus 18 (dezoito) anos de existência, ainda persiste a preconceituosa

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 85

7 RAMIDOFF, M. L. Súmula 338, do Superior Tribunal de Justiça: Reflexões. Tese apresentada e aprovada no Grupo Temático VII (Direito e Garantias do Adolescente em Conflito com a Lei), do XXII Congresso da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude – ABMP, Florianópolis, 9, 10 e 11 de abril de 2008. Em “resumo”, “a proposição principal da tese é o cancelamento da Súmula 338, do Superior Tribunal de Justiça, uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente possui institutos jurídicos aptos para a resolução adequada dos casos concretos que se referem à aplicação e ao cumprimento de medidas socioeducativas por adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional; quando, não, a alteração do comando normativo sumulado; senão, a recomendação do esgotamento das vias procedimentais (processuais) e dos institutos jurídicos estatutariamente previstos nos feitos que tramitam perante o Juízo de Direito da Infância e da Juventude a quo (1º grau) impedindo-se, assim, a vulgarização decorrente da utilização abusiva e planificada da mencionada Súmula, em detrimento do projeto pedagógico estabelecido pela Equipe Interprofissional”. Disponível em: http://www.abmp.org.br/congresso2008. Acesso em: 9 jul. 2008.8 CADEMARTORI, S. U. de. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.9 FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia, op. cit.

10 RAMIDOFF, M. L. Direito da criança e do adolescente: por uma propedêutica jurídico-protetiva transdisciplinar. 2007. 448f. Tese (Doutorado em Direito). Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007.11 ARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

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compreensão de que tais figuras legislativas se configuram em meras novidades propositivas de utopias inalcançáveis, quando não são decorrências políticas que apenas buscavam alinhamento legislativo às pré-determinações de segmentos radicais oriundos de políticas internacionais humanitárias.

Eis, pois, a importância, hoje, de difundir, através da ampla mobilização comunicativa e linguística (educação), essas novas objetivações protetivas destinadas àquelas novas subjetividades (crianças e adolescentes) que se destinam, por isso mesmo, a orientar diretivamente a aplicação das normas e a resolução adequada das questões que envolvam os supra-mencionados interesses, direitos individuais e garantias fundamentais inerentes à infância e à juventude.

Por certo que, também, não se limitam à condição de 12“princípios supremos de moralidade” , através dos quais se possa

instrumentalmente justificar a adoção de decisões judiciais e de medidas legais – como, por exemplo, alterações legislativas de caráter supressivo, restritivo (e mesmo repressivo-punitivo) aos direitos e garantias destinadas à criança e ao adolescente, seja qual for a circunstância em que se encontrem! – que se sustentem na mera explicação pragmática fundada nas promessas ilusórias redutivistas que, no mais das vezes, simplesmente banalizam a complexidade daquelas dimensões humanas e existenciais inerentes às pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento da personalidade.

A Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990 – assim como a Constituição da República de 1988 – ainda que possa se configurar numa das figuras legislativas “de regência” do novo Direito da Criança e do Adolescente, por certo não substitui a toda forma de conhecimento possível acerca da infância e da juventude, pois, do contrário, transformar-se-á numa dogmatização absoluta que servirá também para excluir da perspectiva protetiva especial – seja na formulação da lei, seja na sua aplicação/interpretação – a própria criança, senão também o adolescente.

Exemplo vivo disto é a construção permanente do que se tem 13denominado de “Rede de Proteção” , isto é, o conjunto de ações

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200886

governamentais e não-governamentais em prol do atendimento direto e indireto da criança e do adolescente, através da articulação das diversas atividades que as inúmeras entidades sociais pertencentes aos diferentes segmentos sociais desenvolvem juntamente com o apoio estratégico e técnico das instituições públicas. Essa conjugação de esforços multidisciplinares tem a cada dia oferecido, à Justiça da Infância e da Juventude (Sistema de Garantia), importantes contribuições para a resolução judicial cada vez mais adequada dos casos legais que lhe são apresentados.

Não se pode olvidar que as dimensões civilizatórias e humanitárias conquistadas democraticamente acerca das liberdades

14substanciais (públicas ) pertinentes à criança e ao adolescente são merecedoras de asseguramento teórico (doutrina da proteção integral), político (principalmente orçamentário), social (atendimento), e, principalmente, cultural (ideológico), através de uma ampla mobilização social da opinião pública e do senso comum técnico (jurídico, psicológico, pedagógico, médico, serviço social, psicanalítico, dentre outros), enfim, da “indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade”, nos termos do inc. VI, do art. 88, do Estatuto da Criança e do Adolescente, em prol da infância e da juventude brasileiras.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 87

14 RAMIDOFF, M. L. Direito da criança e do adolescente: por uma propedêutica jurídico-protetiva transdisciplinar. 2007. 448f. Tese (Doutorado em Direito). Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. p. 236-239: “A emancipação da pessoa, na verdade, perpassa pela própria subjetividade da criança e do adolescente, isto é, no reconhecimento de que são sujeitos de direitos aquelas pessoas que se encontram numa das peculiares fases da vida que corresponda ou à infância ou à juventude, ou seja, na condição peculiar de desenvolvimento da personalidade. [...] Desta maneira, torna-se possível a emancipação subjetiva e cidadã daquelas pessoas que se encontram na infância ou na juventude, vale dizer, em desenvolvimento do caráter (personalidade), senão, da melhoria da qualidade da vida vivida individual (da própria subjetividade) e comunitariamente (social). Por isso, impõe-se não só ao Poder Público, mas, também, à sociedade, o reconhecimento teórico-pragmático de valores civilizatórios e humanos insculpidos nos interesses, direitos e garantias afetos à criança e ao adolescente, estabilizando-se, por assim dizer, uma teoria jurídica própria, especial, prioritária e integralmente protetiva que fundamente, justifique e oriente a aplicação das leis de regência e as demais figuras legislativas pertinentes”.

12 KANT, E. Fundamentos da metafísica dos costumes, op. cit.13 RAMIDOFF, M. L. Lições de direito da criança e do adolescente: ato infracional e medidas socioeducativas. Curitiba: Juruá, 2005.

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compreensão de que tais figuras legislativas se configuram em meras novidades propositivas de utopias inalcançáveis, quando não são decorrências políticas que apenas buscavam alinhamento legislativo às pré-determinações de segmentos radicais oriundos de políticas internacionais humanitárias.

Eis, pois, a importância, hoje, de difundir, através da ampla mobilização comunicativa e linguística (educação), essas novas objetivações protetivas destinadas àquelas novas subjetividades (crianças e adolescentes) que se destinam, por isso mesmo, a orientar diretivamente a aplicação das normas e a resolução adequada das questões que envolvam os supra-mencionados interesses, direitos individuais e garantias fundamentais inerentes à infância e à juventude.

Por certo que, também, não se limitam à condição de 12“princípios supremos de moralidade” , através dos quais se possa

instrumentalmente justificar a adoção de decisões judiciais e de medidas legais – como, por exemplo, alterações legislativas de caráter supressivo, restritivo (e mesmo repressivo-punitivo) aos direitos e garantias destinadas à criança e ao adolescente, seja qual for a circunstância em que se encontrem! – que se sustentem na mera explicação pragmática fundada nas promessas ilusórias redutivistas que, no mais das vezes, simplesmente banalizam a complexidade daquelas dimensões humanas e existenciais inerentes às pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento da personalidade.

A Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990 – assim como a Constituição da República de 1988 – ainda que possa se configurar numa das figuras legislativas “de regência” do novo Direito da Criança e do Adolescente, por certo não substitui a toda forma de conhecimento possível acerca da infância e da juventude, pois, do contrário, transformar-se-á numa dogmatização absoluta que servirá também para excluir da perspectiva protetiva especial – seja na formulação da lei, seja na sua aplicação/interpretação – a própria criança, senão também o adolescente.

Exemplo vivo disto é a construção permanente do que se tem 13denominado de “Rede de Proteção” , isto é, o conjunto de ações

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200886

governamentais e não-governamentais em prol do atendimento direto e indireto da criança e do adolescente, através da articulação das diversas atividades que as inúmeras entidades sociais pertencentes aos diferentes segmentos sociais desenvolvem juntamente com o apoio estratégico e técnico das instituições públicas. Essa conjugação de esforços multidisciplinares tem a cada dia oferecido, à Justiça da Infância e da Juventude (Sistema de Garantia), importantes contribuições para a resolução judicial cada vez mais adequada dos casos legais que lhe são apresentados.

Não se pode olvidar que as dimensões civilizatórias e humanitárias conquistadas democraticamente acerca das liberdades

14substanciais (públicas ) pertinentes à criança e ao adolescente são merecedoras de asseguramento teórico (doutrina da proteção integral), político (principalmente orçamentário), social (atendimento), e, principalmente, cultural (ideológico), através de uma ampla mobilização social da opinião pública e do senso comum técnico (jurídico, psicológico, pedagógico, médico, serviço social, psicanalítico, dentre outros), enfim, da “indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade”, nos termos do inc. VI, do art. 88, do Estatuto da Criança e do Adolescente, em prol da infância e da juventude brasileiras.

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14 RAMIDOFF, M. L. Direito da criança e do adolescente: por uma propedêutica jurídico-protetiva transdisciplinar. 2007. 448f. Tese (Doutorado em Direito). Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. p. 236-239: “A emancipação da pessoa, na verdade, perpassa pela própria subjetividade da criança e do adolescente, isto é, no reconhecimento de que são sujeitos de direitos aquelas pessoas que se encontram numa das peculiares fases da vida que corresponda ou à infância ou à juventude, ou seja, na condição peculiar de desenvolvimento da personalidade. [...] Desta maneira, torna-se possível a emancipação subjetiva e cidadã daquelas pessoas que se encontram na infância ou na juventude, vale dizer, em desenvolvimento do caráter (personalidade), senão, da melhoria da qualidade da vida vivida individual (da própria subjetividade) e comunitariamente (social). Por isso, impõe-se não só ao Poder Público, mas, também, à sociedade, o reconhecimento teórico-pragmático de valores civilizatórios e humanos insculpidos nos interesses, direitos e garantias afetos à criança e ao adolescente, estabilizando-se, por assim dizer, uma teoria jurídica própria, especial, prioritária e integralmente protetiva que fundamente, justifique e oriente a aplicação das leis de regência e as demais figuras legislativas pertinentes”.

12 KANT, E. Fundamentos da metafísica dos costumes, op. cit.13 RAMIDOFF, M. L. Lições de direito da criança e do adolescente: ato infracional e medidas socioeducativas. Curitiba: Juruá, 2005.

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A atuação das instituições públicas, por isso mesmo, deve se “pautar na e pela construção de espaços dialógicos e consensuais, na colaboração interinstitucional, na impessoalidade e no respeito mútuo”, segundo o Procurador-Geral da República

15Antonio Fernando Souza , para quem

o Estado de Direito é o que respeita e fiscaliza as regras. [...] o Ministério Público faz valer a fiscalização e o combate aos desvios [...] na luta contra a exclusão social, adotando medidas destinadas a fiscalizar ou redefinir as políticas públicas.

Por certo que somente assim será possível evitar os riscos de 16um “pesado esquecimento” dessas conquistas civilizatórias e

humanitárias em prol da infância e da juventude, então alcançadas e consolidadas democraticamente nesses dezoito anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, e, por que não dizer, também, nesses vinte anos de vigência da Constituição da República de 1988.

Referências

ARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

CADEMARTORI, S. U. de. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia (Maladie Mentale et Psychologie). Trad. de Lílian Rose Shalders. 6. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. (Biblioteca Tempo Universitário 11)

HABERMAS, J. A ética da discussão e a questão da verdade. Trad. de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200888 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 89

15 SOUZA, A. F. O Brasil observa os preceitos de um Estado Democrático de Direito? Notícias da Procuradoria Geral da República. Debate realizado pelo Grupo de Estado. Brasília, 04 de agosto de 2008.16 FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia, op. cit.

KANT, E. Fundamentos da metafísica dos costumes. Trad. de Lourival de Queiroz Henkel. Prefácio Afonso Bertagnoli. Rio de Janeiro: Ediouro, 19[..]. (Clássicos de Bolso)

RAMIDOFF, M. L. Direito da criança e do adolescente: por uma propedêutica jurídico-protetiva transdisciplinar. 2007. 448f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007.

______. Lições de direito da criança e do adolescente: ato infracional e medidas socioeducativas. Curitiba: Juruá, 2005.

______. Súmula 338 do Superior Tribunal de Justiça: Reflexões. Tese apresentada e aprovada no Grupo Temático VII (Direito e Garantias do Adolescente em Conflito com a Lei), do XXII Congresso da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude – ABMP, Florianópolis, 9, 10 e 11 de abril de 2008. Disponível em: http://www.abmp.org.br/ congresso2008. Acesso em: 9 jul. 2008.

SOUZA, A. F. O Brasil observa os preceitos de um Estado Democrático de Direito? Notícias da Procuradoria Geral da República. Debate realizado pelo Grupo de Estado. Brasília, 04 de agosto de 2008.

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A atuação das instituições públicas, por isso mesmo, deve se “pautar na e pela construção de espaços dialógicos e consensuais, na colaboração interinstitucional, na impessoalidade e no respeito mútuo”, segundo o Procurador-Geral da República

15Antonio Fernando Souza , para quem

o Estado de Direito é o que respeita e fiscaliza as regras. [...] o Ministério Público faz valer a fiscalização e o combate aos desvios [...] na luta contra a exclusão social, adotando medidas destinadas a fiscalizar ou redefinir as políticas públicas.

Por certo que somente assim será possível evitar os riscos de 16um “pesado esquecimento” dessas conquistas civilizatórias e

humanitárias em prol da infância e da juventude, então alcançadas e consolidadas democraticamente nesses dezoito anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, e, por que não dizer, também, nesses vinte anos de vigência da Constituição da República de 1988.

Referências

ARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

CADEMARTORI, S. U. de. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia (Maladie Mentale et Psychologie). Trad. de Lílian Rose Shalders. 6. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. (Biblioteca Tempo Universitário 11)

HABERMAS, J. A ética da discussão e a questão da verdade. Trad. de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200888 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 89

15 SOUZA, A. F. O Brasil observa os preceitos de um Estado Democrático de Direito? Notícias da Procuradoria Geral da República. Debate realizado pelo Grupo de Estado. Brasília, 04 de agosto de 2008.16 FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia, op. cit.

KANT, E. Fundamentos da metafísica dos costumes. Trad. de Lourival de Queiroz Henkel. Prefácio Afonso Bertagnoli. Rio de Janeiro: Ediouro, 19[..]. (Clássicos de Bolso)

RAMIDOFF, M. L. Direito da criança e do adolescente: por uma propedêutica jurídico-protetiva transdisciplinar. 2007. 448f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007.

______. Lições de direito da criança e do adolescente: ato infracional e medidas socioeducativas. Curitiba: Juruá, 2005.

______. Súmula 338 do Superior Tribunal de Justiça: Reflexões. Tese apresentada e aprovada no Grupo Temático VII (Direito e Garantias do Adolescente em Conflito com a Lei), do XXII Congresso da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude – ABMP, Florianópolis, 9, 10 e 11 de abril de 2008. Disponível em: http://www.abmp.org.br/ congresso2008. Acesso em: 9 jul. 2008.

SOUZA, A. F. O Brasil observa os preceitos de um Estado Democrático de Direito? Notícias da Procuradoria Geral da República. Debate realizado pelo Grupo de Estado. Brasília, 04 de agosto de 2008.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200890 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 91

Resumo:Uma análise da dignidade da pessoa humana como garantia da efetivação dos direitos fundamentais e critério hermenêutico na solução de casos concretos em que está presente o desacordo moral razoável.

Palavras-chave: dignidade pessoa humana, direitos fundamentais, eficácia dos direitos fundamentais.

Introdução

A história nos mostra os avanços e retrocessos no que se refere ao tratamento do homem como ser destinatário de direitos e obrigações.

Todas as atrocidades sofridas pelo ser humano, desde a Roma antiga até o período do pós-guerra, contribuíram para a concepção de que o homem deve ser considerado como o centro do Direito.

Consagrou-se o pensamento de que o Estado é que foi feito para o homem e não o homem para servir ao Estado. Nesta seara em que a proteção à vida ganha contornos amplos, a dignidade da pessoa humana torna-se um valor universal e essencial.

Tal instituto não é recente, pelo contrário, remonta ao Cristianismo. Por implicar uma aproximação entre o Direito e a Ética é cada vez mais forte e influente nos ordenamentos jurídicos dos Países Democráticos.

O presente estudo pretende esclarecer o conteúdo da dignidade humana, seus efeitos no âmbito jurídico, ressaltar a sua imperatividade e os meios disponíveis para sua concretização.

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Lorena Ribeiro de Morais*

* Advogada, pós-graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Goiás.

Page 92: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS PROCURADORIA … · 2010. 12. 13. · 4 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 APRESENTAÇÃO Revista do MP-GO, Goiânia, ano

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200890 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 91

Resumo:Uma análise da dignidade da pessoa humana como garantia da efetivação dos direitos fundamentais e critério hermenêutico na solução de casos concretos em que está presente o desacordo moral razoável.

Palavras-chave: dignidade pessoa humana, direitos fundamentais, eficácia dos direitos fundamentais.

Introdução

A história nos mostra os avanços e retrocessos no que se refere ao tratamento do homem como ser destinatário de direitos e obrigações.

Todas as atrocidades sofridas pelo ser humano, desde a Roma antiga até o período do pós-guerra, contribuíram para a concepção de que o homem deve ser considerado como o centro do Direito.

Consagrou-se o pensamento de que o Estado é que foi feito para o homem e não o homem para servir ao Estado. Nesta seara em que a proteção à vida ganha contornos amplos, a dignidade da pessoa humana torna-se um valor universal e essencial.

Tal instituto não é recente, pelo contrário, remonta ao Cristianismo. Por implicar uma aproximação entre o Direito e a Ética é cada vez mais forte e influente nos ordenamentos jurídicos dos Países Democráticos.

O presente estudo pretende esclarecer o conteúdo da dignidade humana, seus efeitos no âmbito jurídico, ressaltar a sua imperatividade e os meios disponíveis para sua concretização.

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Lorena Ribeiro de Morais*

* Advogada, pós-graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Goiás.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200892 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 93

Evolução da dignidade da pessoa humana

1Como explana Ana Paula de Barcellos , a dignidade da pessoa humana está marcada, no ocidente, por quatro momentos fundamentais, a saber: o Cristianismo, o iluminismo-humanista, a obra de Kant e o refluxo da Segunda Grande Guerra Mundial, nessa ordem.

Na Roma antiga a dignidade da pessoa era associada a requisitos tais como a condição de cidadão e sua posição na sociedade. Para ter o status de cidadão era necessário ser um homem livre. Destarte, apenas o homem livre poderia ser um cidadão romano. O escravo era tratado como um animal, uma res, e a grande maioria de seus direitos lhe eram negados. Na sociedade fracionada romana a noção de dignidade era diferente para cada pessoa.

Com o Cristianismo o homem passa a ser visto como um ser individual e único. É abandonada a concepção pré-socrática (conhece-te a ti mesmo) e parte-se para o campo da subjetividade, do empirismo, na busca de um valor maior e divino.

Não resta dúvida que o divino, a crença em uma entidade superior, teve relevante contribuição para a formação do pensamento ético e igualitário entre os homens.

Por sua vez, a doutrina cristã pregava o amor fraterno, o perdão, a solidariedade e a igualdade. A força superior abstrata auxiliava os indivíduos a superarem as tragédias e a miséria que assolavam a sociedade. Era um bálsamo para abrandar as injustiças sofridas e prometia um mundo melhor aos seguidores da doutrina.

O objetivo maior dos defensores do Cristianismo era alcançar a igualdade entre os homens. Como diz a Bíblia, “Deus

2criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus [...]” .Como Deus criou todos os homens da mesma forma,

conclui-se que todos os homens têm dignidade pelo fato de serem indivíduos criados por Deus. Portanto, todo homem era digno, uma vez que possuíam a mesma origem. Muitos consideram que a

igualdade entre os homens, defendida pelo Cristianismo, foi o fundamento da dignidade da pessoa.

Tomás de Aquino incluiu a razão na concepção da dignidade da pessoa implantada pelo Cristianismo. A doutrina tomista preconizava que o indivíduo possuía livre arbítrio e, como ser livre e único, poderia dar a interpretação que quisesse ao mundo à sua volta. Da relação com Deus, adveio a moral: o homem é dotado de vontade, capaz de escolher entre o bem e o mal e, de acordo com a escolha, ser recompensado ou punido.

São Tomás de Aquino foi um forte defensor do livre arbítrio. Para ele o homem era digno porque feito à imagem de Deus, e também era livre, racional, dono de seu destino. Em seu ponto de vista, o destino do homem não dependia apenas da força divina, mas também da vontade, esta concretizada pelas escolhas, uma consequência do livre-arbítrio.

No uso do pensamento racional, São Tomás difundiu que há uma união indissociável entre o homem e sua alma. Para a doutrina tomista esta união era o fundamento da dignidade da pessoa.

No início do século XVIII surge o Iluminismo, movimento que defendia o fim do absolutismo, o fim da sociedade dividida em classes e a liberdade religiosa.

Os iluministas exigiam a separação entre Estado e Igreja. Este movimento foi chamado de época das luzes. As luzes simbolizavam as novas idéias e pensamentos apresentados à sociedade pelos iluministas, que defendiam o abandono do direito natural, místico e a adoção do direito racional.

Tem se uma nova etapa no desenvolvimento da dignidade humana, pois:

No âmbito do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana, assim como a idéia do direito natural em si, passou por um processo de racionalização e laicização, mantendo-se, todavia, a noção fundamental de igualdade de todos os

3homens em dignidade e igualdade.1 BARCELLOS, A. P de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002. p. 103-104.2 BÍBLIA SAGRADA. Gênesis, capítulo I, versículo 27. Edição Pastoral Catequética, Editora Ave Maria.

3 SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1998. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 32.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200892 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 93

Evolução da dignidade da pessoa humana

1Como explana Ana Paula de Barcellos , a dignidade da pessoa humana está marcada, no ocidente, por quatro momentos fundamentais, a saber: o Cristianismo, o iluminismo-humanista, a obra de Kant e o refluxo da Segunda Grande Guerra Mundial, nessa ordem.

Na Roma antiga a dignidade da pessoa era associada a requisitos tais como a condição de cidadão e sua posição na sociedade. Para ter o status de cidadão era necessário ser um homem livre. Destarte, apenas o homem livre poderia ser um cidadão romano. O escravo era tratado como um animal, uma res, e a grande maioria de seus direitos lhe eram negados. Na sociedade fracionada romana a noção de dignidade era diferente para cada pessoa.

Com o Cristianismo o homem passa a ser visto como um ser individual e único. É abandonada a concepção pré-socrática (conhece-te a ti mesmo) e parte-se para o campo da subjetividade, do empirismo, na busca de um valor maior e divino.

Não resta dúvida que o divino, a crença em uma entidade superior, teve relevante contribuição para a formação do pensamento ético e igualitário entre os homens.

Por sua vez, a doutrina cristã pregava o amor fraterno, o perdão, a solidariedade e a igualdade. A força superior abstrata auxiliava os indivíduos a superarem as tragédias e a miséria que assolavam a sociedade. Era um bálsamo para abrandar as injustiças sofridas e prometia um mundo melhor aos seguidores da doutrina.

O objetivo maior dos defensores do Cristianismo era alcançar a igualdade entre os homens. Como diz a Bíblia, “Deus

2criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus [...]” .Como Deus criou todos os homens da mesma forma,

conclui-se que todos os homens têm dignidade pelo fato de serem indivíduos criados por Deus. Portanto, todo homem era digno, uma vez que possuíam a mesma origem. Muitos consideram que a

igualdade entre os homens, defendida pelo Cristianismo, foi o fundamento da dignidade da pessoa.

Tomás de Aquino incluiu a razão na concepção da dignidade da pessoa implantada pelo Cristianismo. A doutrina tomista preconizava que o indivíduo possuía livre arbítrio e, como ser livre e único, poderia dar a interpretação que quisesse ao mundo à sua volta. Da relação com Deus, adveio a moral: o homem é dotado de vontade, capaz de escolher entre o bem e o mal e, de acordo com a escolha, ser recompensado ou punido.

São Tomás de Aquino foi um forte defensor do livre arbítrio. Para ele o homem era digno porque feito à imagem de Deus, e também era livre, racional, dono de seu destino. Em seu ponto de vista, o destino do homem não dependia apenas da força divina, mas também da vontade, esta concretizada pelas escolhas, uma consequência do livre-arbítrio.

No uso do pensamento racional, São Tomás difundiu que há uma união indissociável entre o homem e sua alma. Para a doutrina tomista esta união era o fundamento da dignidade da pessoa.

No início do século XVIII surge o Iluminismo, movimento que defendia o fim do absolutismo, o fim da sociedade dividida em classes e a liberdade religiosa.

Os iluministas exigiam a separação entre Estado e Igreja. Este movimento foi chamado de época das luzes. As luzes simbolizavam as novas idéias e pensamentos apresentados à sociedade pelos iluministas, que defendiam o abandono do direito natural, místico e a adoção do direito racional.

Tem se uma nova etapa no desenvolvimento da dignidade humana, pois:

No âmbito do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana, assim como a idéia do direito natural em si, passou por um processo de racionalização e laicização, mantendo-se, todavia, a noção fundamental de igualdade de todos os

3homens em dignidade e igualdade.1 BARCELLOS, A. P de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002. p. 103-104.2 BÍBLIA SAGRADA. Gênesis, capítulo I, versículo 27. Edição Pastoral Catequética, Editora Ave Maria.

3 SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1998. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 32.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200894 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 95

simples meio e que, por conseguinte, limita nessa 4medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).

Kant explana que todo ser humano é um fim em si mesmo e não pode ser utilizado como um meio, mesmo que consinta, porque sua dignidade natural limita o seu próprio arbítrio. Ainda sobre a natureza personalíssima e inalienável do ser humano, a doutrina Kantiana destaca que

no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela, qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade... Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer

5modo ferir sua santidade.

O pensamento kantiano, no sentido de que o homem é sempre um fim em si mesmo e nunca um meio ou instrumento para qualquer que seja o fim, é o mais utilizado pela doutrina atual na conceituação da dignidade da pessoa humana.

Há críticas sobre essa posição, sob o argumento de ser demasiadamente voltada para o antropocentrismo e valorizar demasiadamente a racionalidade associada ao livre-arbítrio. Mesmo ante tais críticas é a concepção mais aceita pela doutrina.

Após as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial (totalitarismo, uso de armas nucleares, nazismo, política de extermínio de judeus, ciganos, deficientes mentais, prostitutas, homossexuais etc.) houve a necessidade de uma maior proteção em relação aos direitos dos homens.

Em 10/12/1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas promulgou a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Em razão da mudança de pensamento e novo contexto social, inicia-se a passagem do teocentrismo para o antropocentrismo.

O movimento humanista também teve origem no século XVIII e está umbilicalmente ligado ao Iluminismo. Este movimento desenvolveu-se na transição do jusnaturalismo para o juspositivismo. A doutrina humanista enfatizava que o homem adquire conhecimento por meio das informações que seus sentidos captam e é contra as religiões de um modo geral.

O ponto em comum entre o Iluminismo e o Humanismo é que ambas as doutrinas defendiam que não era possível conhecer Deus. Desta forma, Deus não deveria influir nas pesquisas científicas. O Direito devia ser racional e isento de influências místicas.

Dentro do Humanismo temos outros gêneros do movimento, dentre eles o do humanismo cristão, associado ao iluminismo-humanista. O movimento iluminista-humanista propôs a luta pela reforma da sociedade, visando à redução da miséria humana. Tinha a convicção de que sem a regeneração do indivíduo não haveria mudanças na sociedade.

Ocorre que a concepção da dignidade da pessoa, como atributo do homem, toma contornos mais aparentes com o filósofo Immanuel Kant. O filósofo parte da premissa de que todo homem, todo ser humano, é dotado de dignidade porque é racional e pode conduzir a sua vida com um propósito, ao contrário dos demais animais.

Assevera Kant:

o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre que ser considerado como um fim... Portanto o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como um fim em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como

4 KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. In: Os pensadores – Kant (II). Trad. de Paulo Quintela. São Paulo: Abril cultural, 1980. p. 134-135.5 KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes, op. cit., p. 140.

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simples meio e que, por conseguinte, limita nessa 4medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).

Kant explana que todo ser humano é um fim em si mesmo e não pode ser utilizado como um meio, mesmo que consinta, porque sua dignidade natural limita o seu próprio arbítrio. Ainda sobre a natureza personalíssima e inalienável do ser humano, a doutrina Kantiana destaca que

no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela, qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade... Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer

5modo ferir sua santidade.

O pensamento kantiano, no sentido de que o homem é sempre um fim em si mesmo e nunca um meio ou instrumento para qualquer que seja o fim, é o mais utilizado pela doutrina atual na conceituação da dignidade da pessoa humana.

Há críticas sobre essa posição, sob o argumento de ser demasiadamente voltada para o antropocentrismo e valorizar demasiadamente a racionalidade associada ao livre-arbítrio. Mesmo ante tais críticas é a concepção mais aceita pela doutrina.

Após as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial (totalitarismo, uso de armas nucleares, nazismo, política de extermínio de judeus, ciganos, deficientes mentais, prostitutas, homossexuais etc.) houve a necessidade de uma maior proteção em relação aos direitos dos homens.

Em 10/12/1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas promulgou a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Em razão da mudança de pensamento e novo contexto social, inicia-se a passagem do teocentrismo para o antropocentrismo.

O movimento humanista também teve origem no século XVIII e está umbilicalmente ligado ao Iluminismo. Este movimento desenvolveu-se na transição do jusnaturalismo para o juspositivismo. A doutrina humanista enfatizava que o homem adquire conhecimento por meio das informações que seus sentidos captam e é contra as religiões de um modo geral.

O ponto em comum entre o Iluminismo e o Humanismo é que ambas as doutrinas defendiam que não era possível conhecer Deus. Desta forma, Deus não deveria influir nas pesquisas científicas. O Direito devia ser racional e isento de influências místicas.

Dentro do Humanismo temos outros gêneros do movimento, dentre eles o do humanismo cristão, associado ao iluminismo-humanista. O movimento iluminista-humanista propôs a luta pela reforma da sociedade, visando à redução da miséria humana. Tinha a convicção de que sem a regeneração do indivíduo não haveria mudanças na sociedade.

Ocorre que a concepção da dignidade da pessoa, como atributo do homem, toma contornos mais aparentes com o filósofo Immanuel Kant. O filósofo parte da premissa de que todo homem, todo ser humano, é dotado de dignidade porque é racional e pode conduzir a sua vida com um propósito, ao contrário dos demais animais.

Assevera Kant:

o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre que ser considerado como um fim... Portanto o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como um fim em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como

4 KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. In: Os pensadores – Kant (II). Trad. de Paulo Quintela. São Paulo: Abril cultural, 1980. p. 134-135.5 KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes, op. cit., p. 140.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200896

uma metanorma que estrutura a aplicação do dever de promover um fim. Não é uma regra porque não descreve um comportamento, mas

8estrutura a aplicação das normas que o fazem . Para nós, a dignidade da pessoa humana não estabelece como as regras e princípios devem ser aplicados. Este atributo serve como uma orientação acerca de qual princípio(s) e/ou norma(s) deverá prevalecer em um caso específico.

Não se trata de um critério de aplicação de princípios e regras e sim de um valor que norteia a interpretação do ordenamento jurídico.

Neste sentido, temos:

[...] a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o artigo 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo, mas que constitui norma jurídico-positiva adotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocamente carregado de eficácia, alcançando, portanto – tal como assinalou Brenda – a condição de

9valor jurídico fundamental da comunidade.

No que se refere à sua natureza como princípio ou norma, faremos uma breve menção à distinção e modo de aplicação entre as duas categorias: “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de

10textos normativos” .Sobre o princípio,

pode-se dizer que ele é o enunciado lógico extraído da ordenação sistemática e coerente de diversas posições normativas, postando-se como uma norma de validez geral, cuja abrangência é maior do que a generalidade

11de uma norma particularmente tomada .

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 97

No período pós-guerra foi adotado o modelo do Estado de bem-estar social pela maioria dos Estados desenvolvidos. Neste cenário ganham vida os direitos fundamentais de segunda geração e a dignidade da pessoa humana é positivada na constituição da maioria dos Países ocidentais.

Conteúdo

Para concluir o que a dignidade humana significa para o Direito é preciso aproximá-lo da Ética e da Moral. As regras da hermenêutica são fundamentais para delimitar o seu significado. Afinal, trata-se de um princípio, de uma norma, de um direito ou um postulado?

A dignidade da pessoa humana foi positivada na Constituição Federativa do Brasil no artigo 1º, inciso III, inserida no Título I - Dos Princípios Fundamentais.

Considerada o fundamento de todos os direitos fundamentais e base do Estado de Direito, é um atributo inerente ao ser humano, independente de raça, sexo, idade, cor dos olhos, nacionalidade, condição social, ou seja, independe de qualquer requisito.

O ser humano tem dignidade e constitui um fim em si mesmo. Não pode ser utilizado como um meio ou instrumento,

6conforme a concepção Kantiana . Por este motivo, destacamos que não se trata de um direito, vez que não é dada pelo Estado.

A dignidade é anterior ao Estado e pode existir até mesmo quando o Direito não a reconhece.

Roberto Wagner Lima Nogueira, com amparo em Humberto Ávila, defende que a dignidade humana tem a natureza de um

7postulado normativo .O postulado normativo, nomenclatura de Humberto Ávila, é

6 Para Kant, o indivíduo basta nascer para ser digno. A dignidade lhe é inerente e não pode ser condicionada a qualquer fator. Neste ponto divergem Kant e Hegel. Segundo Hegel, o ser humano não nasce digno, ele torna-se digno a partir do momento em que alcança a posição de cidadão. Para aprofundar o assunto, sugerimos a leitura de: SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 33-39; e SEELMAN, K. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel. Trad. de Rita Dostal Zanini. In: SARLET, I. W. Dimensões da dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 45-59.7 NOGUEIRA, R. W. L. Notas para um ensaio sobre a dignidade da pessoa humana. Conceito fundamental da Ciência Jurídica. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n. 1116, 22 jul. 2006.

8 Ver por todos ÁVILA, H. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3. ed. São Paulo: Malheiros: 2004. p. 89.9 SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1998, op. cit., p. 70.10 Apud ÁVILA, H. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, op. cit., p. 22.11 BULOS, U. L. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 37.

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uma metanorma que estrutura a aplicação do dever de promover um fim. Não é uma regra porque não descreve um comportamento, mas

8estrutura a aplicação das normas que o fazem . Para nós, a dignidade da pessoa humana não estabelece como as regras e princípios devem ser aplicados. Este atributo serve como uma orientação acerca de qual princípio(s) e/ou norma(s) deverá prevalecer em um caso específico.

Não se trata de um critério de aplicação de princípios e regras e sim de um valor que norteia a interpretação do ordenamento jurídico.

Neste sentido, temos:

[...] a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o artigo 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo, mas que constitui norma jurídico-positiva adotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocamente carregado de eficácia, alcançando, portanto – tal como assinalou Brenda – a condição de

9valor jurídico fundamental da comunidade.

No que se refere à sua natureza como princípio ou norma, faremos uma breve menção à distinção e modo de aplicação entre as duas categorias: “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de

10textos normativos” .Sobre o princípio,

pode-se dizer que ele é o enunciado lógico extraído da ordenação sistemática e coerente de diversas posições normativas, postando-se como uma norma de validez geral, cuja abrangência é maior do que a generalidade

11de uma norma particularmente tomada .

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 97

No período pós-guerra foi adotado o modelo do Estado de bem-estar social pela maioria dos Estados desenvolvidos. Neste cenário ganham vida os direitos fundamentais de segunda geração e a dignidade da pessoa humana é positivada na constituição da maioria dos Países ocidentais.

Conteúdo

Para concluir o que a dignidade humana significa para o Direito é preciso aproximá-lo da Ética e da Moral. As regras da hermenêutica são fundamentais para delimitar o seu significado. Afinal, trata-se de um princípio, de uma norma, de um direito ou um postulado?

A dignidade da pessoa humana foi positivada na Constituição Federativa do Brasil no artigo 1º, inciso III, inserida no Título I - Dos Princípios Fundamentais.

Considerada o fundamento de todos os direitos fundamentais e base do Estado de Direito, é um atributo inerente ao ser humano, independente de raça, sexo, idade, cor dos olhos, nacionalidade, condição social, ou seja, independe de qualquer requisito.

O ser humano tem dignidade e constitui um fim em si mesmo. Não pode ser utilizado como um meio ou instrumento,

6conforme a concepção Kantiana . Por este motivo, destacamos que não se trata de um direito, vez que não é dada pelo Estado.

A dignidade é anterior ao Estado e pode existir até mesmo quando o Direito não a reconhece.

Roberto Wagner Lima Nogueira, com amparo em Humberto Ávila, defende que a dignidade humana tem a natureza de um

7postulado normativo .O postulado normativo, nomenclatura de Humberto Ávila, é

6 Para Kant, o indivíduo basta nascer para ser digno. A dignidade lhe é inerente e não pode ser condicionada a qualquer fator. Neste ponto divergem Kant e Hegel. Segundo Hegel, o ser humano não nasce digno, ele torna-se digno a partir do momento em que alcança a posição de cidadão. Para aprofundar o assunto, sugerimos a leitura de: SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 33-39; e SEELMAN, K. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel. Trad. de Rita Dostal Zanini. In: SARLET, I. W. Dimensões da dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 45-59.7 NOGUEIRA, R. W. L. Notas para um ensaio sobre a dignidade da pessoa humana. Conceito fundamental da Ciência Jurídica. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n. 1116, 22 jul. 2006.

8 Ver por todos ÁVILA, H. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3. ed. São Paulo: Malheiros: 2004. p. 89.9 SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1998, op. cit., p. 70.10 Apud ÁVILA, H. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, op. cit., p. 22.11 BULOS, U. L. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 37.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200898 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 99

Em relação à natureza de princípio ou regra da dignidade humana, analisaremos a questão sob a ótica das teorias de Dworkin e Alexy.

Dworkin era contrário ao Positivismo e, para ele, as regras eram aplicadas do modo “tudo ou nada”. Caso uma regra fosse a adequada para o caso analisado, ela seria aplicada e a outra descartada. Na hipótese de colisão entre as regras, uma delas seria considerada inválida.

Os princípios possuíam apenas fundamentos e deviam ser associados aos fundamentos de outros princípios. No caso de colisão entre princípios, o princípio de maior peso prevaleceria sobre o outro. Diferentemente da colisão entre regras, o princípio não aplicado não era considerado inválido.

Alexy aprimorou as conclusões de Dworkin e defendeu que os princípios eram deveres de otimização. Afirmava que, em caso de colisão, o de maior peso não prevaleceria sobre o outro. Deveria ser feita uma valoração dos princípios colidentes à luz do caso concreto.

Em relação ao critério de aplicação das regras:

não pode ser baseada no modo do tudo ou nada de aplicação proposto por Dworkin, mas deve resumir-se, sobretudo a dois fatores: diferença quanto à colisão, na medida em que os princípios colidentes apenas têm sua realização normativa limitada reciprocamente, ao contrário das regras, cuja colisão é solucionada com a declaração de invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceção que exclua a sua autonomia; diferença quanto à obrigação que instituem, já que as regras instituem obrigações absolutas, não superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios instituem obrigações prima facie, na medida em que podem ser superadas ou derrogadas em função dos

12outros princípios colidentes.

Para Canotilho, a dignidade da pessoa humana é um princípio político constitucionalmente conformador, porque “[...] explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte. Nestes

princípios se condensam as opções políticas nucleares e se reflecte a 13ideologia da constituição [...]” .

A dignidade humana foi erigida pela doutrina com a denominação de princípio. Como citado anteriormente, a dignidade humana trata-se de um atributo do homem, um valor que lhe é inerente independentemente da vontade do Estado. A dignidade não pode ser retirada do homem e nem há um meio de postular sua outorga pelo Estado pela via judiciária. Trata-se de valor intrínseco ao ser humano.

No que se refere ao conteúdo da dignidade, ficamos com a posição de Sarlet, que assim afirma, verbis:

Na sua perspectiva principiológica, a dignidade da pessoa atua, portanto – no que comunga das características das normas-princípios em geral – como um mandado de otimização, ordenando algo (no caso, a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana) que deve ser realizado na maior medida do possível, considerando as possibilidades fáticas e jurídicas existentes, ao passo que as regras contêm prescrições imperativas de conduta, sem que se vá aqui adentrar o mérito desta e das demais distinções apresentadas pelo eminente jusfilósofo germânico. Ainda no que diz a dupla estrutura (princípio e regra) da dignidade, verifica-se que, para Alexy, o conteúdo da regra da dignidade da pessoa decorre apenas a partir do processo de ponderação que se opera no nível do princípio da dignidade, quando cotejado com outros princípios, de tal sorte que absoluta é a regra (à qual, nesta dimensão se poderá aplicar a lógica do “tudo ou

14nada”), mas jamais o princípio.

Destarte, em razão de seu caráter amplo e fluido, a dignidade da pessoa humana pode ter duas feições: regra ou princípio, a depender do caso concreto.

12 ÁVILA, H. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, op. cit., p. 30.

13 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1039-1040.14 SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1998, op. cit., p. 72.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/200898 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 99

Em relação à natureza de princípio ou regra da dignidade humana, analisaremos a questão sob a ótica das teorias de Dworkin e Alexy.

Dworkin era contrário ao Positivismo e, para ele, as regras eram aplicadas do modo “tudo ou nada”. Caso uma regra fosse a adequada para o caso analisado, ela seria aplicada e a outra descartada. Na hipótese de colisão entre as regras, uma delas seria considerada inválida.

Os princípios possuíam apenas fundamentos e deviam ser associados aos fundamentos de outros princípios. No caso de colisão entre princípios, o princípio de maior peso prevaleceria sobre o outro. Diferentemente da colisão entre regras, o princípio não aplicado não era considerado inválido.

Alexy aprimorou as conclusões de Dworkin e defendeu que os princípios eram deveres de otimização. Afirmava que, em caso de colisão, o de maior peso não prevaleceria sobre o outro. Deveria ser feita uma valoração dos princípios colidentes à luz do caso concreto.

Em relação ao critério de aplicação das regras:

não pode ser baseada no modo do tudo ou nada de aplicação proposto por Dworkin, mas deve resumir-se, sobretudo a dois fatores: diferença quanto à colisão, na medida em que os princípios colidentes apenas têm sua realização normativa limitada reciprocamente, ao contrário das regras, cuja colisão é solucionada com a declaração de invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceção que exclua a sua autonomia; diferença quanto à obrigação que instituem, já que as regras instituem obrigações absolutas, não superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios instituem obrigações prima facie, na medida em que podem ser superadas ou derrogadas em função dos

12outros princípios colidentes.

Para Canotilho, a dignidade da pessoa humana é um princípio político constitucionalmente conformador, porque “[...] explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte. Nestes

princípios se condensam as opções políticas nucleares e se reflecte a 13ideologia da constituição [...]” .

A dignidade humana foi erigida pela doutrina com a denominação de princípio. Como citado anteriormente, a dignidade humana trata-se de um atributo do homem, um valor que lhe é inerente independentemente da vontade do Estado. A dignidade não pode ser retirada do homem e nem há um meio de postular sua outorga pelo Estado pela via judiciária. Trata-se de valor intrínseco ao ser humano.

No que se refere ao conteúdo da dignidade, ficamos com a posição de Sarlet, que assim afirma, verbis:

Na sua perspectiva principiológica, a dignidade da pessoa atua, portanto – no que comunga das características das normas-princípios em geral – como um mandado de otimização, ordenando algo (no caso, a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana) que deve ser realizado na maior medida do possível, considerando as possibilidades fáticas e jurídicas existentes, ao passo que as regras contêm prescrições imperativas de conduta, sem que se vá aqui adentrar o mérito desta e das demais distinções apresentadas pelo eminente jusfilósofo germânico. Ainda no que diz a dupla estrutura (princípio e regra) da dignidade, verifica-se que, para Alexy, o conteúdo da regra da dignidade da pessoa decorre apenas a partir do processo de ponderação que se opera no nível do princípio da dignidade, quando cotejado com outros princípios, de tal sorte que absoluta é a regra (à qual, nesta dimensão se poderá aplicar a lógica do “tudo ou

14nada”), mas jamais o princípio.

Destarte, em razão de seu caráter amplo e fluido, a dignidade da pessoa humana pode ter duas feições: regra ou princípio, a depender do caso concreto.

12 ÁVILA, H. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, op. cit., p. 30.

13 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1039-1040.14 SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1998, op. cit., p. 72.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008100 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 101

Ao mencionarmos que a dignidade humana pode ser aplicada como uma regra se leva em conta o critério da ponderação no caso concreto. Não se trata de uma regra jurídica e sim de uma regra de aplicação pertinente à dignidade. Aqui pode ser aplicada a regra do “tudo ou nada”. Implica o envolvimento do dever-ser e da exegese das normas.

Apesar das divergências quanto à natureza jurídica, observamos o consenso no que tange à afirmação de que a dignidade da pessoa humana é um valor supremo do qual emanam os demais princípios.

Em que pese seu valor supremo e irrenunciável, não se trata de preceito absoluto no sentido de sempre prevalecer não importa o fato analisado.

Com sua habitual clareza, no mesmo sentido, Alexy aduz que:

a compreensível impressão de que se cuida de um princípio absoluto resulta tanto do fato de que coexistem, em verdade, duas espécies de normas de dignidade da pessoa humana (princípio e regra) quanto da circunstância de que existe uma série de condições nas quais o princípio da dignidade da pessoa humana, com elevada margem de certeza,

15assume precedência em face dos demais princípios.

Conceito

Não é tarefa fácil conceituar a dignidade da pessoa humana. Trata-se de um atributo de caráter amplo, polissêmico, ambíguo, abstrato e universal.

Sobre seu caráter universal, enfatiza Bonavides:

A vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, nos conduzirá sem óbices ao significado de universalidade inerentes a esses direitos como ideal da pessoa humana. A universalidade se manifestou pela vez primeira,

qual descoberta do racionalismo francês da Revolução, por ensejo da célebre Declaração dos

16Direitos do Homem de 1789.

O que vem a ser a dignidade humana sofre transformações constantes a depender do contexto social. Ademais, a definição proposta poderá apresentar soluções diferentes ao mesmo problema, a depender do caso concreto. Lembremos que não há conceito normativo sobre o que seja a dignidade.

José Afonso da Silva assim conceitua a dignidade da pessoa humana, litteris:

é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer noção apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la pra construir uma “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando se trate de garantir as

17bases da existência humana.

A dignidade da pessoa humana, para Sarlet significa, verbis:

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para

16 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 562.17 SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 106, vide nota 20.

15 ALEXY apud SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1998, op. cit., p. 72.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008100 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 101

Ao mencionarmos que a dignidade humana pode ser aplicada como uma regra se leva em conta o critério da ponderação no caso concreto. Não se trata de uma regra jurídica e sim de uma regra de aplicação pertinente à dignidade. Aqui pode ser aplicada a regra do “tudo ou nada”. Implica o envolvimento do dever-ser e da exegese das normas.

Apesar das divergências quanto à natureza jurídica, observamos o consenso no que tange à afirmação de que a dignidade da pessoa humana é um valor supremo do qual emanam os demais princípios.

Em que pese seu valor supremo e irrenunciável, não se trata de preceito absoluto no sentido de sempre prevalecer não importa o fato analisado.

Com sua habitual clareza, no mesmo sentido, Alexy aduz que:

a compreensível impressão de que se cuida de um princípio absoluto resulta tanto do fato de que coexistem, em verdade, duas espécies de normas de dignidade da pessoa humana (princípio e regra) quanto da circunstância de que existe uma série de condições nas quais o princípio da dignidade da pessoa humana, com elevada margem de certeza,

15assume precedência em face dos demais princípios.

Conceito

Não é tarefa fácil conceituar a dignidade da pessoa humana. Trata-se de um atributo de caráter amplo, polissêmico, ambíguo, abstrato e universal.

Sobre seu caráter universal, enfatiza Bonavides:

A vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, nos conduzirá sem óbices ao significado de universalidade inerentes a esses direitos como ideal da pessoa humana. A universalidade se manifestou pela vez primeira,

qual descoberta do racionalismo francês da Revolução, por ensejo da célebre Declaração dos

16Direitos do Homem de 1789.

O que vem a ser a dignidade humana sofre transformações constantes a depender do contexto social. Ademais, a definição proposta poderá apresentar soluções diferentes ao mesmo problema, a depender do caso concreto. Lembremos que não há conceito normativo sobre o que seja a dignidade.

José Afonso da Silva assim conceitua a dignidade da pessoa humana, litteris:

é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer noção apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la pra construir uma “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando se trate de garantir as

17bases da existência humana.

A dignidade da pessoa humana, para Sarlet significa, verbis:

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para

16 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 562.17 SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 106, vide nota 20.

15 ALEXY apud SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1998, op. cit., p. 72.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008102 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 103

uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os

18demais seres humanos.

Citando Stein, Francisco Fernández Segado entende por dignidade:

‘Dignidad’ (wert) es un abstacto del adjetivo ‘valor’ (wert) y significa, originariamente, la materialización de un valor. Según esto, la referencia del art. 1º.1 habría de entenderse en el sentido de que la cualidad del hombre, como valor, es intangible. Pero como este valor podría ser desplazado por otros valores, Stein considera que para evitar esta posiblilidad, la significación del art. 1º.1 ha de ser la de que el hombre es el valor supremo, tesis concordante con la apuntada, como vimos antes, por el Tribunal

19Constitucional.

Pelos conceitos citados, vislumbra-se que todos são uníssonos ao afirmar que a dignidade é um valor supremo e irrenunciável, sendo considerada a fonte e fundamento de todos os outros direitos fundamentais.

A dignidade da pessoa humana não nasceu com a Constituição, ela é um atributo do homem considerado individual ou coletivamente. Seu âmbito de aplicação é amplo, principalmente, como critério de ponderação.

Repetimos que, no que se refere aos contornos da dignidade humana, foi adotada a concepção Kantiana de que o homem é sempre um fim em si mesmo e não pode ser utilizado como um meio ou um instrumento mesmo que o consinta.

Pelo expendido, chega-se à conclusão de que o conceito de dignidade não pode ser fixo. Isto dificultaria a sua aplicação, pois a

lei não teria condições de enumerar quais valores são protegidos por serem dignos, dada a extensão do rol de direitos fundamentais e das peculiaridades de cada caso concreto.

Outrossim, a sua condição de norma constitucional lhe confere imperatividade, o que surte efeitos e deveres por parte da sociedade e do Estado.

Nesta mesma direção, arremata Ana Paula de Barcellos:

Têm razão os autores quando dizem que sob o manto do princípio da dignidade da pessoa humana podem abrigar-se as concepções mais diversas: a defesa e a condenação do aborto, a defesa e a condenação da eutanásia, o liberalismo e o dirigismo econômico etc. Esse é o campo reservado à deliberação democrática. Por isso é que não cabe ao Judiciário simplesmente formular um conteúdo completo da dignidade que lhe seja mais adequado, como faz, v. g., com o conceito de ‘mulher honesta’. Essa é a esfera do poder político e faz parte das particularidades da Constituição garantir que esse campo lhe seja reservado.Nada obstante, se o princípio se resumisse a isso – ao que cabe ao Legislativo deliberar – não haveria necessidade de prevê-lo na Constituição, nem sentido em dizer que se trata de uma norma jurídica dotada de imperatividade. Voltaríamos ao tempo em que as normas constitucionais eram meros programas dirigidos exclusivamente ao Legislador.Ao lado do campo meramente político, uma fração do princípio da dignidade da pessoa humana, seu conteúdo mais essencial, está contido naquela esfera do consenso mínimo assegurado pela Constituição e transformada em terreno jurídico. É precisamente aqui que reside a normatividade do princípio

20constitucional.

Em que pese a dificuldade em conceituá-la, a dignidade existe como um valor. Consubstancia-se no tratamento ideal e

18 SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1998, op. cit., p. 60.19 STEIN apud SEGADO, F. F. La dignidad de la persona como valor supremo del ordenamiento jurídico español y como fuente de todos los derechos. Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Editora Fórum – IPDA – Instituto Paraense de Direito Administrativo, v. 18, n. 18, p. 15, out./dez. 2004.

20 BARCELLOS, A. P. de. Normatividade dos princípios e o princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, Editora Renovar, n. 221, p. 177-178, jul./set. 2000.

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uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os

18demais seres humanos.

Citando Stein, Francisco Fernández Segado entende por dignidade:

‘Dignidad’ (wert) es un abstacto del adjetivo ‘valor’ (wert) y significa, originariamente, la materialización de un valor. Según esto, la referencia del art. 1º.1 habría de entenderse en el sentido de que la cualidad del hombre, como valor, es intangible. Pero como este valor podría ser desplazado por otros valores, Stein considera que para evitar esta posiblilidad, la significación del art. 1º.1 ha de ser la de que el hombre es el valor supremo, tesis concordante con la apuntada, como vimos antes, por el Tribunal

19Constitucional.

Pelos conceitos citados, vislumbra-se que todos são uníssonos ao afirmar que a dignidade é um valor supremo e irrenunciável, sendo considerada a fonte e fundamento de todos os outros direitos fundamentais.

A dignidade da pessoa humana não nasceu com a Constituição, ela é um atributo do homem considerado individual ou coletivamente. Seu âmbito de aplicação é amplo, principalmente, como critério de ponderação.

Repetimos que, no que se refere aos contornos da dignidade humana, foi adotada a concepção Kantiana de que o homem é sempre um fim em si mesmo e não pode ser utilizado como um meio ou um instrumento mesmo que o consinta.

Pelo expendido, chega-se à conclusão de que o conceito de dignidade não pode ser fixo. Isto dificultaria a sua aplicação, pois a

lei não teria condições de enumerar quais valores são protegidos por serem dignos, dada a extensão do rol de direitos fundamentais e das peculiaridades de cada caso concreto.

Outrossim, a sua condição de norma constitucional lhe confere imperatividade, o que surte efeitos e deveres por parte da sociedade e do Estado.

Nesta mesma direção, arremata Ana Paula de Barcellos:

Têm razão os autores quando dizem que sob o manto do princípio da dignidade da pessoa humana podem abrigar-se as concepções mais diversas: a defesa e a condenação do aborto, a defesa e a condenação da eutanásia, o liberalismo e o dirigismo econômico etc. Esse é o campo reservado à deliberação democrática. Por isso é que não cabe ao Judiciário simplesmente formular um conteúdo completo da dignidade que lhe seja mais adequado, como faz, v. g., com o conceito de ‘mulher honesta’. Essa é a esfera do poder político e faz parte das particularidades da Constituição garantir que esse campo lhe seja reservado.Nada obstante, se o princípio se resumisse a isso – ao que cabe ao Legislativo deliberar – não haveria necessidade de prevê-lo na Constituição, nem sentido em dizer que se trata de uma norma jurídica dotada de imperatividade. Voltaríamos ao tempo em que as normas constitucionais eram meros programas dirigidos exclusivamente ao Legislador.Ao lado do campo meramente político, uma fração do princípio da dignidade da pessoa humana, seu conteúdo mais essencial, está contido naquela esfera do consenso mínimo assegurado pela Constituição e transformada em terreno jurídico. É precisamente aqui que reside a normatividade do princípio

20constitucional.

Em que pese a dificuldade em conceituá-la, a dignidade existe como um valor. Consubstancia-se no tratamento ideal e

18 SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1998, op. cit., p. 60.19 STEIN apud SEGADO, F. F. La dignidad de la persona como valor supremo del ordenamiento jurídico español y como fuente de todos los derechos. Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Editora Fórum – IPDA – Instituto Paraense de Direito Administrativo, v. 18, n. 18, p. 15, out./dez. 2004.

20 BARCELLOS, A. P. de. Normatividade dos princípios e o princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, Editora Renovar, n. 221, p. 177-178, jul./set. 2000.

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igualitário que merecem os seres humanos. O fato de ser abstrata não retira seu caráter imperativo. Mais fácil que lhe fixar um conceito é verificar os casos em que foi violada.

Os Tribunais Pátrios vêm decidindo com fundamento na dignidade da pessoa humana, utilizando-a como um critério de interpretação ou em conjunto com outros valores. Raramente o

21atributo é aplicado de forma autônoma dada a sua abstração .Em um sentido mais amplo, Béatrice Maurer assim define

a dignidade da pessoa humana, verbis:

A dignidade da pessoa humana em si seria “no contexto das antropologias que surgem a partir de então, um equivalente da diferença específica entre o homem e outros seres vivos. Dessa característica essencial do homem deduz-se então o dever ético de corresponder a essa característica nas ações concretas ou estabelecer estratégias para evitar a depravação da natureza essencial do homem”. Ela é compreendida, assim, num sentido estático – a diferença entre o homem e o restante do universo – e, ao mesmo tempo, dinâmico – uma vez posta, intangível, ela exige uma ação, um agir. Essas são as

22duas faces da mesma realidade.

Do exposto, podemos concluir que a dignidade humana é um conceito em constante construção, vago, haja vista as mudanças ocorridas na sociedade, a adoção de novos valores e vários casos da era moderna que são de difícil solução, como a eutanásia, a clonagem, alimentos transgênicos, aborto de fetos anencefálicos etc.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008104

A aplicação do princípio da dignidade humana deve ser feita com base na ética e prudência diante do caso concreto.

Parafraseando o professor Marcelo Novelino Camargo, a dignidade não encontrou um conceito unânime, mas há duas perspectivas principais: valor autônomo ou em conjunto com outros valores, bens e utilidades indispensáveis a uma vida digna.

A Constituição e a dignidade da pessoa humana

A Constituição Federal está no topo do ordenamento jurídico brasileiro. Todas as leis, ações dos Poderes, da Administração, devem seguir as diretrizes apontadas pela norma constitucional.

A dignidade da pessoa humana é tratada como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, inciso III, Constituição Federal de 1988). Toda norma constitucional é dotada de imperatividade. O fim visado pela norma deve ser alcançado e seu descumprimento gera consequências.

Como explana Luís Roberto Barroso:

As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídicas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências da insubmissão ao seu comando. As disposições constitucionais são não apenas normas jurídicas, como têm um caráter hierarquicamente superior, não obstante a paradoxal equivocidade que longamente campeou nesta matéria, considerando-as prescrições desprovidas

23de sanção, mero ideário e não jurídico.

A aplicação entre princípios e regras, como já analisamos, é

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 105

23 BARROSO, L. R. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1993. p. 78.

21 Há inúmeros julgados em que a solução foi fundamentada na dignidade humana, seja como princípio ou valor autônomo, tais como: TJPR, acórdão 15748 em apelação cível, Relator Des. Ulysses Lopes, 1ª Câmara Cível, publicado em 07/12/1998; TRF 3ª Região, AC n. 03055909-6, ano 89, UF: SP, Turma: 01; publicado em 31/03/1998; TJSP, MS 13176-0, origem: SP, Órgão: CESP, Relator: Dínio Garcia, data: 08/08/1991; Resp 213422/BA (199900406974); ROMS 9613/SP (199800228276) etc.22 MAURER, B. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In: SARLET, I. W. Dimensões da dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 74.

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igualitário que merecem os seres humanos. O fato de ser abstrata não retira seu caráter imperativo. Mais fácil que lhe fixar um conceito é verificar os casos em que foi violada.

Os Tribunais Pátrios vêm decidindo com fundamento na dignidade da pessoa humana, utilizando-a como um critério de interpretação ou em conjunto com outros valores. Raramente o

21atributo é aplicado de forma autônoma dada a sua abstração .Em um sentido mais amplo, Béatrice Maurer assim define

a dignidade da pessoa humana, verbis:

A dignidade da pessoa humana em si seria “no contexto das antropologias que surgem a partir de então, um equivalente da diferença específica entre o homem e outros seres vivos. Dessa característica essencial do homem deduz-se então o dever ético de corresponder a essa característica nas ações concretas ou estabelecer estratégias para evitar a depravação da natureza essencial do homem”. Ela é compreendida, assim, num sentido estático – a diferença entre o homem e o restante do universo – e, ao mesmo tempo, dinâmico – uma vez posta, intangível, ela exige uma ação, um agir. Essas são as

22duas faces da mesma realidade.

Do exposto, podemos concluir que a dignidade humana é um conceito em constante construção, vago, haja vista as mudanças ocorridas na sociedade, a adoção de novos valores e vários casos da era moderna que são de difícil solução, como a eutanásia, a clonagem, alimentos transgênicos, aborto de fetos anencefálicos etc.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008104

A aplicação do princípio da dignidade humana deve ser feita com base na ética e prudência diante do caso concreto.

Parafraseando o professor Marcelo Novelino Camargo, a dignidade não encontrou um conceito unânime, mas há duas perspectivas principais: valor autônomo ou em conjunto com outros valores, bens e utilidades indispensáveis a uma vida digna.

A Constituição e a dignidade da pessoa humana

A Constituição Federal está no topo do ordenamento jurídico brasileiro. Todas as leis, ações dos Poderes, da Administração, devem seguir as diretrizes apontadas pela norma constitucional.

A dignidade da pessoa humana é tratada como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, inciso III, Constituição Federal de 1988). Toda norma constitucional é dotada de imperatividade. O fim visado pela norma deve ser alcançado e seu descumprimento gera consequências.

Como explana Luís Roberto Barroso:

As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídicas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências da insubmissão ao seu comando. As disposições constitucionais são não apenas normas jurídicas, como têm um caráter hierarquicamente superior, não obstante a paradoxal equivocidade que longamente campeou nesta matéria, considerando-as prescrições desprovidas

23de sanção, mero ideário e não jurídico.

A aplicação entre princípios e regras, como já analisamos, é

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 105

23 BARROSO, L. R. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1993. p. 78.

21 Há inúmeros julgados em que a solução foi fundamentada na dignidade humana, seja como princípio ou valor autônomo, tais como: TJPR, acórdão 15748 em apelação cível, Relator Des. Ulysses Lopes, 1ª Câmara Cível, publicado em 07/12/1998; TRF 3ª Região, AC n. 03055909-6, ano 89, UF: SP, Turma: 01; publicado em 31/03/1998; TJSP, MS 13176-0, origem: SP, Órgão: CESP, Relator: Dínio Garcia, data: 08/08/1991; Resp 213422/BA (199900406974); ROMS 9613/SP (199800228276) etc.22 MAURER, B. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In: SARLET, I. W. Dimensões da dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 74.

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diferente. A doutrina tem trabalhado no sentido de conferir uma maior normatividade aos princípios.

Para compreender a imperatividade da dignidade da pessoa humana, devemos investigar o que a Constituição quis garantir ao considerá-la como fundamento do Estado Democrático de Direito.

São titulares da dignidade todas as pessoas naturais em sentido individual ou coletivo, nascituros, falecidos têm direito à proteção, preservação e respeito à sua dignidade.

O artigo 5º, caput, da Constituição Federal determina que:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade [...].

Acrescente-se que o § 1º do mencionado artigo prescreve que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

A igualdade formal significa que todos são iguais perante a lei. Já a igualdade material, ao se relacionar com a dignidade humana, faz surgir a idéia do mínimo existencial.

O mínimo existencial já foi entendido apenas como os meios necessários para que a pessoa vivesse com dignidade. A doutrina e a jurisprudência hodiernas consagraram que o mínimo existencial compreende o direito à moradia, educação fundamental e saúde. Desta forma, as entidades estatais devem garantir ao indivíduo o mínimo necessário para que leve uma vida digna.

Complementa Ana Paula de Barcellos, in verbis: “Registre-se também desde logo que também fazem parte deste conteúdo mínimo da dignidade os chamados direitos da liberdade, v.g., liberdade de

24expressão, liberdade religiosa, direito de personalidade etc.” .Para que estes direitos sejam promovidos é necessária a

existência de recursos disponíveis por parte do Estado. Em razão da falta de verbas, eleição de outras prioridades, falta de planejamento e diversos outros fatores, tais direitos mínimos restam sem efetividade. No entanto, o

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008106

Estado não pode usar o discurso da falta de dinheiro para não promover os meios mínimos necessários para que o homem tenha uma vida digna.

Tal responsabilidade fica mais concentrada nos Poderes Legislativo e Executivo, já que são os responsáveis pelo planejamento e implementação das políticas públicas. Ante a falta de sua concretização, o Judiciário já se manifestou diversas vezes no sentido da necessidade do cumprimento da obrigação pelo ente

25estatal sob pena de tornar eficaz a própria Constituição .A reserva do possível (alegação do Estado de que fez o que

pode, diante das circunstâncias) não pode ser levantada sempre que o indivíduo lhe cobrar uma prestação positiva, salvo comprovada impossibilidade. Como ressaltado por Ana Paula Barcellos:

A limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 107

24 BARCELLOS, A. P. de. Normatividade dos princípios e o princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988, op. cit., p. 179.

25 Apenas para ilustrar o mencionado, vejamos: ADPF 45/DF, Rel. Min. Celso de Mello, proferi decisão assim ementada (Informativo/STF n. 345/2004): “ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILDIADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO)”. No mesmo sentido: RE 472707 / SP – RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO. EMENTA: CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. – A educação infantil

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diferente. A doutrina tem trabalhado no sentido de conferir uma maior normatividade aos princípios.

Para compreender a imperatividade da dignidade da pessoa humana, devemos investigar o que a Constituição quis garantir ao considerá-la como fundamento do Estado Democrático de Direito.

São titulares da dignidade todas as pessoas naturais em sentido individual ou coletivo, nascituros, falecidos têm direito à proteção, preservação e respeito à sua dignidade.

O artigo 5º, caput, da Constituição Federal determina que:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade [...].

Acrescente-se que o § 1º do mencionado artigo prescreve que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

A igualdade formal significa que todos são iguais perante a lei. Já a igualdade material, ao se relacionar com a dignidade humana, faz surgir a idéia do mínimo existencial.

O mínimo existencial já foi entendido apenas como os meios necessários para que a pessoa vivesse com dignidade. A doutrina e a jurisprudência hodiernas consagraram que o mínimo existencial compreende o direito à moradia, educação fundamental e saúde. Desta forma, as entidades estatais devem garantir ao indivíduo o mínimo necessário para que leve uma vida digna.

Complementa Ana Paula de Barcellos, in verbis: “Registre-se também desde logo que também fazem parte deste conteúdo mínimo da dignidade os chamados direitos da liberdade, v.g., liberdade de

24expressão, liberdade religiosa, direito de personalidade etc.” .Para que estes direitos sejam promovidos é necessária a

existência de recursos disponíveis por parte do Estado. Em razão da falta de verbas, eleição de outras prioridades, falta de planejamento e diversos outros fatores, tais direitos mínimos restam sem efetividade. No entanto, o

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008106

Estado não pode usar o discurso da falta de dinheiro para não promover os meios mínimos necessários para que o homem tenha uma vida digna.

Tal responsabilidade fica mais concentrada nos Poderes Legislativo e Executivo, já que são os responsáveis pelo planejamento e implementação das políticas públicas. Ante a falta de sua concretização, o Judiciário já se manifestou diversas vezes no sentido da necessidade do cumprimento da obrigação pelo ente

25estatal sob pena de tornar eficaz a própria Constituição .A reserva do possível (alegação do Estado de que fez o que

pode, diante das circunstâncias) não pode ser levantada sempre que o indivíduo lhe cobrar uma prestação positiva, salvo comprovada impossibilidade. Como ressaltado por Ana Paula Barcellos:

A limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 107

24 BARCELLOS, A. P. de. Normatividade dos princípios e o princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988, op. cit., p. 179.

25 Apenas para ilustrar o mencionado, vejamos: ADPF 45/DF, Rel. Min. Celso de Mello, proferi decisão assim ementada (Informativo/STF n. 345/2004): “ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILDIADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO)”. No mesmo sentido: RE 472707 / SP – RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO. EMENTA: CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. – A educação infantil

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judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do

26possível.

O Estado Democrático de Direito deve cumprir suas próprias leis. Os deveres que constam na Constituição são uma obrigação da Administração Pública e dos representantes do povo.

Como fundamento do Estado e fonte dos direitos fundamentais, a dignidade humana e as demais cláusulas abertas polissêmicas devem ser interpretadas de acordo com o atual

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008108

pensamento da sociedade. Tal aspecto vago não é um descuido do legislador e sim um meio de manter a Constituição atualizada.

Os valores e as necessidades das pessoas são mutáveis de acordo com a realidade vivida. A interpretação dos direitos com base na igualdade, dignidade e proporcionalidade precisa ser sempre atualizada e aprimorada sendo vedado o retrocesso, como ensina Canotilho:

[...] os direitos fundamentais, assim como e acima de tudo, a dignidade da pessoa humana à qual se referem, apresentam como traço comum – e aqui acompanhamos a expressiva e feliz formulação de Alexandre Pasqualini -, o fato de que ambos (dignidade e direitos fundamentais) atuam, no centro do discurso jurídico constitucional, como um DNA, como um código genético, em cuja unifixidade mínima convivem de forma indissociável, os momentos sistemático e heurístico de qualquer ordem

27jurídica verdadeiramente democrática.

Titularidade

Já foi asseverado que a dignidade humana independe de qualquer requisito sendo um valor intrínseco à pessoa independentemente de qualquer requisito. Portanto, a proteção da dignidade humana é dever de todos, tanto da coletividade quanto dos entes públicos.

O Estado tem o dever de promover, proteger e não violar a dignidade do indivíduo. Já asseveramos que são valores afins da dignidade da pessoa humana a igualdade e a liberdade.

Considerações finais

A dignidade humana não é um assunto novo. Não podemos precisar quando foi o início dos estudos acerca desse dever, mas

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 109

representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). – Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal [...].26 BARCELLOS, A. P. de. Normatividade dos princípios e o princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988, op. cit., p. 245-246.

27 CANOTILHO apud SARLET, I. W. Dimensões da dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, p. 83.

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judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do

26possível.

O Estado Democrático de Direito deve cumprir suas próprias leis. Os deveres que constam na Constituição são uma obrigação da Administração Pública e dos representantes do povo.

Como fundamento do Estado e fonte dos direitos fundamentais, a dignidade humana e as demais cláusulas abertas polissêmicas devem ser interpretadas de acordo com o atual

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pensamento da sociedade. Tal aspecto vago não é um descuido do legislador e sim um meio de manter a Constituição atualizada.

Os valores e as necessidades das pessoas são mutáveis de acordo com a realidade vivida. A interpretação dos direitos com base na igualdade, dignidade e proporcionalidade precisa ser sempre atualizada e aprimorada sendo vedado o retrocesso, como ensina Canotilho:

[...] os direitos fundamentais, assim como e acima de tudo, a dignidade da pessoa humana à qual se referem, apresentam como traço comum – e aqui acompanhamos a expressiva e feliz formulação de Alexandre Pasqualini -, o fato de que ambos (dignidade e direitos fundamentais) atuam, no centro do discurso jurídico constitucional, como um DNA, como um código genético, em cuja unifixidade mínima convivem de forma indissociável, os momentos sistemático e heurístico de qualquer ordem

27jurídica verdadeiramente democrática.

Titularidade

Já foi asseverado que a dignidade humana independe de qualquer requisito sendo um valor intrínseco à pessoa independentemente de qualquer requisito. Portanto, a proteção da dignidade humana é dever de todos, tanto da coletividade quanto dos entes públicos.

O Estado tem o dever de promover, proteger e não violar a dignidade do indivíduo. Já asseveramos que são valores afins da dignidade da pessoa humana a igualdade e a liberdade.

Considerações finais

A dignidade humana não é um assunto novo. Não podemos precisar quando foi o início dos estudos acerca desse dever, mas

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representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). – Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal [...].26 BARCELLOS, A. P. de. Normatividade dos princípios e o princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988, op. cit., p. 245-246.

27 CANOTILHO apud SARLET, I. W. Dimensões da dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, p. 83.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008110 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 111

remonta ao século XVI e tem origem no cristianismo.A dignidade da pessoa humana tem um caráter valorativo

para o intérprete do Direito. Atrelada ao princípio da igualdade, busca o tratamento igualitário entre todos, tendo o constituinte a intenção de estender uma vida digna a todos os brasileiros.

No que tange à afirmação de que a dignidade da pessoa humana tem valor supremo e prepondera sobre os outros direitos, já declinamos que não concordamos com tal entendimento.

Por certo que a dignidade tem um “mínimo invulnerável”, mas nenhum direito é absoluto. O que é mais importante: o direito à informação ou o direito à intimidade da pessoa? A vida da mãe ou a do feto? A vida da pessoa ou a sua crença religiosa, como no caso das testemunhas de Jeová?

Não existe escalonamento entre os princípios, um princípio não exclui o outro. Nestes casos de difícil solução surge o chamado “desacordo moral razoável”, em que não há um consenso entre as posições razoáveis que foram levantadas.

Disto, vemos que somente diante do caso concreto, levando em consideração a cultura da sociedade, o valor do bem em debate e também a opinião do indivíduo é que podemos chegar a uma solução válida que não viole a unidade da Constituição e preserve a dignidade da pessoa.

A globalização influenciou a propagação da idéia da dignidade. A sociedade, inobstante a desigualdade e miséria de muitos, é mais informada acerca de seus direitos. É preciso utilizar os meios disponíveis para cobrá-los. A promoção da dignidade também depende da participação desta.

O controle social da lei e as organizações civis têm relevante papel na preservação e defesa da dignidade da pessoa humana.

Todo ser humano deve ser tratado com respeito e ter respeitada sua opinião, não importando sua orientação sexual, etnia, sexo, profissão, classe social etc. Tanto os governantes, a coletividade, os administradores e os legisladores devem interagir para que cada vez mais um grupo maior de pessoas alcance os meios para viver dignamente. Devemos tratar o próximo como gostaríamos de ser tratados.

Referências

ÁVILA, H. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

BARCELOS, A. P. de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.

______. Normatividade dos princípios e o princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, Editora Renovar, n. 221, jul./set. 2000.

BARROSO, L. R. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1993.

BÍBLIA SAGRADA. Gênesis, capítulo I, versículo 27. Edição Pastoral Catequética, Editora Ave Maria.

BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

BULOS, U. L. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 37.

CAMARGO, M. N. Leituras complementares de constitucional – Direitos Fundamentais. Salvador: Editora Podium, 2006.

CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998.

INFORMATIVOS, STF. Disponíveis no site: htpp/www.stf.gov.br.

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In: Os pensadores – Kant (II). Trad. de Paulo Quintela. São Paulo: Abril cultural, 1980.

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remonta ao século XVI e tem origem no cristianismo.A dignidade da pessoa humana tem um caráter valorativo

para o intérprete do Direito. Atrelada ao princípio da igualdade, busca o tratamento igualitário entre todos, tendo o constituinte a intenção de estender uma vida digna a todos os brasileiros.

No que tange à afirmação de que a dignidade da pessoa humana tem valor supremo e prepondera sobre os outros direitos, já declinamos que não concordamos com tal entendimento.

Por certo que a dignidade tem um “mínimo invulnerável”, mas nenhum direito é absoluto. O que é mais importante: o direito à informação ou o direito à intimidade da pessoa? A vida da mãe ou a do feto? A vida da pessoa ou a sua crença religiosa, como no caso das testemunhas de Jeová?

Não existe escalonamento entre os princípios, um princípio não exclui o outro. Nestes casos de difícil solução surge o chamado “desacordo moral razoável”, em que não há um consenso entre as posições razoáveis que foram levantadas.

Disto, vemos que somente diante do caso concreto, levando em consideração a cultura da sociedade, o valor do bem em debate e também a opinião do indivíduo é que podemos chegar a uma solução válida que não viole a unidade da Constituição e preserve a dignidade da pessoa.

A globalização influenciou a propagação da idéia da dignidade. A sociedade, inobstante a desigualdade e miséria de muitos, é mais informada acerca de seus direitos. É preciso utilizar os meios disponíveis para cobrá-los. A promoção da dignidade também depende da participação desta.

O controle social da lei e as organizações civis têm relevante papel na preservação e defesa da dignidade da pessoa humana.

Todo ser humano deve ser tratado com respeito e ter respeitada sua opinião, não importando sua orientação sexual, etnia, sexo, profissão, classe social etc. Tanto os governantes, a coletividade, os administradores e os legisladores devem interagir para que cada vez mais um grupo maior de pessoas alcance os meios para viver dignamente. Devemos tratar o próximo como gostaríamos de ser tratados.

Referências

ÁVILA, H. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

BARCELOS, A. P. de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.

______. Normatividade dos princípios e o princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, Editora Renovar, n. 221, jul./set. 2000.

BARROSO, L. R. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1993.

BÍBLIA SAGRADA. Gênesis, capítulo I, versículo 27. Edição Pastoral Catequética, Editora Ave Maria.

BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

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INFORMATIVOS, STF. Disponíveis no site: htpp/www.stf.gov.br.

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In: Os pensadores – Kant (II). Trad. de Paulo Quintela. São Paulo: Abril cultural, 1980.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008112

MAURER, B. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In: SARLET, I. W. Dimensões da dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

NOGUEIRA, R. W. L. Notas para um ensaio sobre a dignidade da pessoa humana. Conceito fundamental da Ciência Jurídica. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n. 1116, 22 jul. 2006.

SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1998. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SEELMAN, K. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel. In: SARLET, I. W. Dimensões da dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Trad. de Rita Dostal Zanini. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 45-59.

SEGADO, F. F. La dignidad de la persona como valor supremo del ordenamiento jurídico español y como fuente de todos los derechos. Revista de Direito Administrativo e Constitucional, editora Fórum – IPDA – Instituto Paraense de Direito Administrativo, n. 18, v. 18, out./dez. 2004.

SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

UADI, L. B. Constituição Federal anotada. Editora Saraiva: São Paulo, 2000.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 113

Resumo:Este artigo pretende analisar o impacto do discurso carismático sobre as organizações coletivas, bem como verificar os métodos adotados na Era Vagas a fim de submeter os trabalhadores a um regime de enfraquecimento da defesa dos direitos individuais e coletivos, de modo sutil, criando uma falsa idéia de justiça.

Palavras-chave: discurso carismático, organização sindical, irresignação social.

Na década de 30, ganhou força o movimento de defesa dos direitos trabalhistas, em alguns países europeus, na forma de luta de classes, ao passo que no Brasil estas garantias surgiram como forma de concessão estatal.

Para tanto, Vargas fez uso de instrumentos de dominação que podem ser identificados como carismáticos. Assim, garantiu que as leis trabalhistas fossem recebidas de bom grado, não como uma conquista do proletariado, mas como uma “oferenda” estatal.

As consequências são vistas até os dias de hoje, com uma estrutura sindical frágil e sem legitimação. O processo de formação da consciência classista dos trabalhadores brasileiros foi rompida sem que estes se dessem conta. Com a Consolidação das Leis do Trabalho, o Estado se antecipou aos fatos, direcionando a conduta nas relações de trabalho sem que uma reivindicação neste

1sentido tivesse emergido da sociedade .Vargas exerceu o papel de expor as normas definidas por uma

O ENFRAQUECIMENTO DA DEFESA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS COMO CONSEQUÊNCIA

DO USO DO DISCURSO CARISMÁTICO

Taísa Caroline dos Santos Machado*

* Estudante do 5° ano de Direito da Universidade Federal de Goiás, pesquisadora do CNPq / PIBIC e estagiária do MP-GO. E-mail: [email protected] MAIOR, J. L. S. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000. p. 68.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008112

MAURER, B. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In: SARLET, I. W. Dimensões da dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

NOGUEIRA, R. W. L. Notas para um ensaio sobre a dignidade da pessoa humana. Conceito fundamental da Ciência Jurídica. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n. 1116, 22 jul. 2006.

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SEGADO, F. F. La dignidad de la persona como valor supremo del ordenamiento jurídico español y como fuente de todos los derechos. Revista de Direito Administrativo e Constitucional, editora Fórum – IPDA – Instituto Paraense de Direito Administrativo, n. 18, v. 18, out./dez. 2004.

SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

UADI, L. B. Constituição Federal anotada. Editora Saraiva: São Paulo, 2000.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 113

Resumo:Este artigo pretende analisar o impacto do discurso carismático sobre as organizações coletivas, bem como verificar os métodos adotados na Era Vagas a fim de submeter os trabalhadores a um regime de enfraquecimento da defesa dos direitos individuais e coletivos, de modo sutil, criando uma falsa idéia de justiça.

Palavras-chave: discurso carismático, organização sindical, irresignação social.

Na década de 30, ganhou força o movimento de defesa dos direitos trabalhistas, em alguns países europeus, na forma de luta de classes, ao passo que no Brasil estas garantias surgiram como forma de concessão estatal.

Para tanto, Vargas fez uso de instrumentos de dominação que podem ser identificados como carismáticos. Assim, garantiu que as leis trabalhistas fossem recebidas de bom grado, não como uma conquista do proletariado, mas como uma “oferenda” estatal.

As consequências são vistas até os dias de hoje, com uma estrutura sindical frágil e sem legitimação. O processo de formação da consciência classista dos trabalhadores brasileiros foi rompida sem que estes se dessem conta. Com a Consolidação das Leis do Trabalho, o Estado se antecipou aos fatos, direcionando a conduta nas relações de trabalho sem que uma reivindicação neste

1sentido tivesse emergido da sociedade .Vargas exerceu o papel de expor as normas definidas por uma

O ENFRAQUECIMENTO DA DEFESA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS COMO CONSEQUÊNCIA

DO USO DO DISCURSO CARISMÁTICO

Taísa Caroline dos Santos Machado*

* Estudante do 5° ano de Direito da Universidade Federal de Goiás, pesquisadora do CNPq / PIBIC e estagiária do MP-GO. E-mail: [email protected] MAIOR, J. L. S. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000. p. 68.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008114 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 115

minoria sobre o coletivo, garantindo que estas seriam bem recebidas. O conjunto dos instrumentos utilizados em seu governo é característico do sistema de dominação carismático, com técnicas específicas, sobretudo no que tange à intelectualidade oratória nos discursos proferidos, que originavam na mensagem percepções reiterpretativas, que “enfeitiçavam” os mais diferentes tipos de expectadores e ideologias, unindo-os pelo que tinham em comum.

O discurso peculiar foi utilizado de forma sutil, produzindo resultados que vão desde o convencimento até a supressão de manifestações individuais e pensamentos dissidentes, o que teve como resultado o enfraquecimento da defesa dos direitos individuais e coletivos, sejam eles indisponíveis ou não.

Assim, Vargas desenvolveu nos indivíduos a idéia de submissão, ao mesmo tempo em que era reconhecida a sua capacidade de liderar e tomar as decisões. Em consequência, os dominados passaram a agir e pensar conforme sua vontade, legitimando uma ilusão de justiça. Neste contexto, fica consolidada a estrutura de manipulação das massas, de modo a inibir manifestações de irresignação.

Interessante notar que o direito, mais do que como garantia de liberdade, pode ser utilizado como mecanismo de limitação da mesma. Vide, por exemplo, o que ocorre com a greve. Enquanto foi desprezada pelo direito era exercida sem limitações. Depois, quando foi considerada ilegal, continuou sendo exercida, apesar da proibição e igualmente sem limitação. Quando foi considerada um direito, passou

2a ser exercida dentro dos padrões determinados pelas regras legais .E desta forma pode ser considerado o Direito do Trabalho

diante do modo em que foi criado, uma vez que a classe proletária não chegou a atingir sua emancipação. Por isso, já se chegou a dizer que o direito do trabalho é um “direito burguês para operário” ou que o direito do trabalho foi uma espécie de legalização da classe operária. Ele se instala como instrumento da classe dominante para apaziguar os conflitos prováveis da classe trabalhadora. É claramente um instrumento utilizado pelos dominantes, de forma carismática, para impedir a emancipação da classe dominada.

Uma sociedade submetida ao domínio carismático

dificilmente se vê como submissa às vontades do líder que a dirige. Sobretudo porque aparentemente vive sobre o manto da democracia e legalidade. Nas palavras de George Orwell, em sua obra literária 1984,

as massas nunca se revoltarão espontaneamente, e nunca se revoltarão apenas por serem oprimidas. Com efeito, se não lhes permite ter padrão de comparação,

3nem ao menos se darão conta de que são oprimidas .

George Orwell faz referência ao contexto político em que os indivíduos perdem a identidade e a capacidade de pensar por si mesmos, vivendo sob o domínio de um Estado Totalitário, representado pelo “partido” que é personalizado pela figura do “Big Brother”. Interessante referência é feita em relação aos métodos utilizados para se atingir o total domínio sobre a coletividade, sobretudo ao papel que foi atribuído à imprensa, como mecanismo eficiente de manipular a opinião pública, por meio da propaganda

4oficial, fechando todos os outros canais de comunicação .Apesar de se tratar de um livro de ficção, Orwell foi capaz de

descrever uma situação que se aproxima da realidade vivida por países dominados pela mídia. Como um instrumento posto à disposição da classe dominante, a televisão exerce no Brasil um papel de perpetuação dos ideais desta. Tratando desse mesmo assunto, Jorge Luiz Solto Maior, em sua obra O direito do trabalho como instrumento de justiça social, cita uma reportagem do Jornal Nacional, transmitido e reproduzido pela Rede Globo de Televisão, que tratava a respeito do desemprego sobre o reflexo do “alto custo do trabalhador”:

Foi apresentada uma entrevista feita com uma trabalhadora, com aspecto bastante miserável, em que essa pessoa dizia: ‘é preciso que o governo ajude aos patrões para que eles possam nos dar emprego’. O vilão estava, pois identificado: o Estado; assim como os mocinhos: os patrões. O trabalhador: apenas o

5objeto de luta entre os mocinhos e o bandido.

2 MAIOR, J. L. S. O direito do trabalho como instrumento de justiça social, op. cit., p. 22.

3 ORWELL, G. 1984. Trad. de Wilson Veloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006. p. 199.4 ORWELL, G. 1984, op. cit., p. 198.5 MAIOR, J. L. S. O direito do trabalho como instrumento de justiça social, op. cit., p. 116.

Page 116: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS PROCURADORIA … · 2010. 12. 13. · 4 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 APRESENTAÇÃO Revista do MP-GO, Goiânia, ano

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008114 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 115

minoria sobre o coletivo, garantindo que estas seriam bem recebidas. O conjunto dos instrumentos utilizados em seu governo é característico do sistema de dominação carismático, com técnicas específicas, sobretudo no que tange à intelectualidade oratória nos discursos proferidos, que originavam na mensagem percepções reiterpretativas, que “enfeitiçavam” os mais diferentes tipos de expectadores e ideologias, unindo-os pelo que tinham em comum.

O discurso peculiar foi utilizado de forma sutil, produzindo resultados que vão desde o convencimento até a supressão de manifestações individuais e pensamentos dissidentes, o que teve como resultado o enfraquecimento da defesa dos direitos individuais e coletivos, sejam eles indisponíveis ou não.

Assim, Vargas desenvolveu nos indivíduos a idéia de submissão, ao mesmo tempo em que era reconhecida a sua capacidade de liderar e tomar as decisões. Em consequência, os dominados passaram a agir e pensar conforme sua vontade, legitimando uma ilusão de justiça. Neste contexto, fica consolidada a estrutura de manipulação das massas, de modo a inibir manifestações de irresignação.

Interessante notar que o direito, mais do que como garantia de liberdade, pode ser utilizado como mecanismo de limitação da mesma. Vide, por exemplo, o que ocorre com a greve. Enquanto foi desprezada pelo direito era exercida sem limitações. Depois, quando foi considerada ilegal, continuou sendo exercida, apesar da proibição e igualmente sem limitação. Quando foi considerada um direito, passou

2a ser exercida dentro dos padrões determinados pelas regras legais .E desta forma pode ser considerado o Direito do Trabalho

diante do modo em que foi criado, uma vez que a classe proletária não chegou a atingir sua emancipação. Por isso, já se chegou a dizer que o direito do trabalho é um “direito burguês para operário” ou que o direito do trabalho foi uma espécie de legalização da classe operária. Ele se instala como instrumento da classe dominante para apaziguar os conflitos prováveis da classe trabalhadora. É claramente um instrumento utilizado pelos dominantes, de forma carismática, para impedir a emancipação da classe dominada.

Uma sociedade submetida ao domínio carismático

dificilmente se vê como submissa às vontades do líder que a dirige. Sobretudo porque aparentemente vive sobre o manto da democracia e legalidade. Nas palavras de George Orwell, em sua obra literária 1984,

as massas nunca se revoltarão espontaneamente, e nunca se revoltarão apenas por serem oprimidas. Com efeito, se não lhes permite ter padrão de comparação,

3nem ao menos se darão conta de que são oprimidas .

George Orwell faz referência ao contexto político em que os indivíduos perdem a identidade e a capacidade de pensar por si mesmos, vivendo sob o domínio de um Estado Totalitário, representado pelo “partido” que é personalizado pela figura do “Big Brother”. Interessante referência é feita em relação aos métodos utilizados para se atingir o total domínio sobre a coletividade, sobretudo ao papel que foi atribuído à imprensa, como mecanismo eficiente de manipular a opinião pública, por meio da propaganda

4oficial, fechando todos os outros canais de comunicação .Apesar de se tratar de um livro de ficção, Orwell foi capaz de

descrever uma situação que se aproxima da realidade vivida por países dominados pela mídia. Como um instrumento posto à disposição da classe dominante, a televisão exerce no Brasil um papel de perpetuação dos ideais desta. Tratando desse mesmo assunto, Jorge Luiz Solto Maior, em sua obra O direito do trabalho como instrumento de justiça social, cita uma reportagem do Jornal Nacional, transmitido e reproduzido pela Rede Globo de Televisão, que tratava a respeito do desemprego sobre o reflexo do “alto custo do trabalhador”:

Foi apresentada uma entrevista feita com uma trabalhadora, com aspecto bastante miserável, em que essa pessoa dizia: ‘é preciso que o governo ajude aos patrões para que eles possam nos dar emprego’. O vilão estava, pois identificado: o Estado; assim como os mocinhos: os patrões. O trabalhador: apenas o

5objeto de luta entre os mocinhos e o bandido.

2 MAIOR, J. L. S. O direito do trabalho como instrumento de justiça social, op. cit., p. 22.

3 ORWELL, G. 1984. Trad. de Wilson Veloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006. p. 199.4 ORWELL, G. 1984, op. cit., p. 198.5 MAIOR, J. L. S. O direito do trabalho como instrumento de justiça social, op. cit., p. 116.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008116

Com a produção de leis, disseminação de propaganda oficial, manipulação dos meios de comunicação, o grupo que lidera uma estrutura de dominação carismática faz crer que os interesses dos dominadores são o interesse dos dominados. Assim, a recuperação da sociedade, a disposição de direitos passa a ser fruto do aprimoramento das instituições, por ato dos que controlam e lideram o grupo, não tendo repercussão a reação popular, principalmente porque esta não tem condições de se organizar enquanto identificadora de direitos coletivos.

Em resumo, as repercussões do discurso carismático chegam a afetar o indivíduo enquanto objeto de garantias individuais. Isso porque o discurso demagógico atinge índices pragmáticos, dificultando a identificação do sujeito dos direitos. Os meios disponíveis para a defesa e garantia destes são distantes da realidade de grande parte da população, sobretudo diante de sua situação de inércia, resultante da metodologia de dominação baseada no carisma.

Portanto, devido ao poder de dominação, o discurso carismático se apresenta como instrumento de legitimação do pensamento opressor dominante, sobretudo o jurídico, e, em face disso, se responsabiliza por mantê-lo a qualquer custo. A dificuldade de emancipação do indivíduo é justificada devido ao sistema normativo que garante a estabilidade das condições de dominantes e dominados, sem que estes últimos se reconheçam como tal. O resultado é o enfraquecimento da defesa dos direitos individuais, sejam eles indisponíveis ou não, bem como a consolidação do pensamento jurídico dominante.

Referências

MAIOR, J. L. S. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000.

ORWELL, G. 1984. Trad. de Wilson Veloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 117

A TEORIA DA CARGA DINÂMICA PROBATÓRIA SOB A

PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL DE PROCESSO

Lucas Danilo Vaz Costa Júnior*

* Promotor de Justiça em Goiás, Especialista em Direito Processual.

Resumo:O presente artigo científico versa sobre a Teoria da Carga Dinâmica Probatória sob a perspectiva dos princípios constitucionais processuais. A teoria, cuja análise propõe, tem pressupostos que se contrapõem ao sistema estático de distribuição do ônus de prova, acolhido pelo art. 333 do Código de Processo Civil, segundo o qual cabe ao autor a prova dos fatos constitutivos de seu direito e, ao réu, a prova dos fatos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito do autor. Tal sistemática inviabiliza, em diversas situações, a produção satisfatória da prova, razão pela qual deve ser revisitada à luz do texto constitucional, de forma a assegurar efetivamente o acesso à justiça e o devido processo legal. Nesse ponto, a teoria sob exame prontifica-se a densificar o conteúdo dos princípios da cooperação processual e da efetividade, quando estabelece que a prova deve ser produzida por quem tem maiores e melhores condições técnicas de fazê-lo.

Palavras-chave: Carga dinâmica probatória, perspectiva constitucional, acesso à justiça, devido processo legal, cooperação processual e efetividade.

Introdução

É de Lavoisier a idéia de que “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. A sociedade atual, massificada e globalizada, tem conformação cada vez mais complexa e dinâmica. Nessa perspectiva, antigos dogmas e conceitos merecem ser repensados e relidos a partir da nova formatação social. Disso não foge o Direito que, como produção humana, não é um fim em si mesmo, mas instrumento para a estabilização das relações sociais. Nessa sociedade em constante mutação o Direito, principalmente no

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008116

Com a produção de leis, disseminação de propaganda oficial, manipulação dos meios de comunicação, o grupo que lidera uma estrutura de dominação carismática faz crer que os interesses dos dominadores são o interesse dos dominados. Assim, a recuperação da sociedade, a disposição de direitos passa a ser fruto do aprimoramento das instituições, por ato dos que controlam e lideram o grupo, não tendo repercussão a reação popular, principalmente porque esta não tem condições de se organizar enquanto identificadora de direitos coletivos.

Em resumo, as repercussões do discurso carismático chegam a afetar o indivíduo enquanto objeto de garantias individuais. Isso porque o discurso demagógico atinge índices pragmáticos, dificultando a identificação do sujeito dos direitos. Os meios disponíveis para a defesa e garantia destes são distantes da realidade de grande parte da população, sobretudo diante de sua situação de inércia, resultante da metodologia de dominação baseada no carisma.

Portanto, devido ao poder de dominação, o discurso carismático se apresenta como instrumento de legitimação do pensamento opressor dominante, sobretudo o jurídico, e, em face disso, se responsabiliza por mantê-lo a qualquer custo. A dificuldade de emancipação do indivíduo é justificada devido ao sistema normativo que garante a estabilidade das condições de dominantes e dominados, sem que estes últimos se reconheçam como tal. O resultado é o enfraquecimento da defesa dos direitos individuais, sejam eles indisponíveis ou não, bem como a consolidação do pensamento jurídico dominante.

Referências

MAIOR, J. L. S. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000.

ORWELL, G. 1984. Trad. de Wilson Veloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 117

A TEORIA DA CARGA DINÂMICA PROBATÓRIA SOB A

PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL DE PROCESSO

Lucas Danilo Vaz Costa Júnior*

* Promotor de Justiça em Goiás, Especialista em Direito Processual.

Resumo:O presente artigo científico versa sobre a Teoria da Carga Dinâmica Probatória sob a perspectiva dos princípios constitucionais processuais. A teoria, cuja análise propõe, tem pressupostos que se contrapõem ao sistema estático de distribuição do ônus de prova, acolhido pelo art. 333 do Código de Processo Civil, segundo o qual cabe ao autor a prova dos fatos constitutivos de seu direito e, ao réu, a prova dos fatos modificativos, impeditivos ou extintivos do direito do autor. Tal sistemática inviabiliza, em diversas situações, a produção satisfatória da prova, razão pela qual deve ser revisitada à luz do texto constitucional, de forma a assegurar efetivamente o acesso à justiça e o devido processo legal. Nesse ponto, a teoria sob exame prontifica-se a densificar o conteúdo dos princípios da cooperação processual e da efetividade, quando estabelece que a prova deve ser produzida por quem tem maiores e melhores condições técnicas de fazê-lo.

Palavras-chave: Carga dinâmica probatória, perspectiva constitucional, acesso à justiça, devido processo legal, cooperação processual e efetividade.

Introdução

É de Lavoisier a idéia de que “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. A sociedade atual, massificada e globalizada, tem conformação cada vez mais complexa e dinâmica. Nessa perspectiva, antigos dogmas e conceitos merecem ser repensados e relidos a partir da nova formatação social. Disso não foge o Direito que, como produção humana, não é um fim em si mesmo, mas instrumento para a estabilização das relações sociais. Nessa sociedade em constante mutação o Direito, principalmente no

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008118 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 119

segmento processual, deve se prestar a ser instrumental seguro para a transformação positiva da realidade social.

Nesse descortino, para que a jurisdição atinja efetivamente o propósito almejado, é necessário conferir aos jurisdicionados mecanismos concretos para demonstrar a lesão ou ameaça de lesão aos seus direitos. Nesse particular, o direito probatório assume especial relevo, principalmente sob o prisma do direito constitucional, de que nada adianta titularizar direitos sem que se possa concretamente demonstrá-los quando se postula em juízo.

O presente estudo foi estruturado de forma a relacionar a teoria da carga dinâmica probatória e os princípios constitucionais processuais. Nesse desiderato, inicialmente, no capítulo 2, procurou-se identificar a importância dos princípios constitucionais processuais, dentre os quais o devido processo legal e o acesso à justiça.

Em seguida, no capítulo 3, buscou-se apontar a atual conformação do direito probatório. Contextualizado o assunto, o capítulo 4 apresenta a teoria da carga dinâmica probatória, temática central da presente pesquisa, apontando-lhe a origem e os pressupostos. Sob o prisma constitucional, analisa-se a distribuição do ônus da prova de forma dinâmica, fazendo o cotejo com os princípios do devido processo legal e os consectários da efetividade e cooperação.

Por fim, o capítulo 5 destina-se aos pontos conclusivos do presente estudo.

Processo e Constituição

O tema objeto do presente trabalho está inserido no Direito Processual Civil, ramo do direito público, para aqueles que adotam a summa divisio, clássica divisão entre direito público e direito privado. Todavia, antes de adentrar ao tema especificamente e com vistas a contextualizá-lo, mister se faz delinear algumas premissas constitucionais que dão suporte ao processo, de modo a realçar a íntima conexão existente entre processo e constituição.

De ver que a relação entre processo e constituição é de nítida complementaridade. É que o direito processual orienta-se por diversas normas positivadas na Constituição Federal, ao mesmo tempo em que

se estrutura ou deve estruturar-se, no plano infraconstitucional, para concretizar direitos previstos no texto constitucional.

Observa-se então que a parte processual da Constituição pode ser visualizada em dois planos. No primeiro plano estaria o direito constitucional processual e, no segundo, o direito

1processual constitucional .O direito constitucional processual representa o conjunto

de normas processuais, notadamente normas-princípios, previstos no texto constitucional, que se destinam a tutelar a essência do direito processual. São exemplos: a garantia do acesso à justiça (art. 5°, inc. XXXV); o princípio do devido processo legal (art. 5°, inc. LIV); os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5°, inc. LV); o princípio da independência da função jurisdicional (art. 2°); o princípio do juiz natural (art. 5°, inc. XXXVII e LIII).

Por sua vez, o direito processual constitucional seria a reunião de normas constitucionais que regulam: a organização da estrutura jurisdicional; a distribuição de competência entre os respectivos órgãos jurisdicionais; o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos e as chamadas ações constitucionais. Como exemplos de dispositivos constitucionais desse timbre têm-se: o mandado de segurança (art. 5°, inc. LXIX e LXX); a ação popular (art. 5°, inc. LXXIII); o dissídio coletivo (art. 114, §2°); o habeas corpus (art. 5°, inc. LXVIII); o habeas data (art. 5°, inc. LXXII); o mandado de injunção (art. 5°, inc. LXXI); a ação civil pública (art. 129, III); a ação declaratória de constitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade e a ação de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, inc. I, a e §1°).

Nesse contexto, pontual é a observação de Dinamarco, para quem:

A visão analítica das relações entre processo e Constituição revela ao estudioso dois sentidos vetoriais em que elas se desenvolvem, a saber: a) no sentido Constituição-processo, tem-se tutela

1 Sobre o tema ver: NERY JÚNIOR, N. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 19-20. Ver também: ALMEIDA, G. A. de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 31-35.

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segmento processual, deve se prestar a ser instrumental seguro para a transformação positiva da realidade social.

Nesse descortino, para que a jurisdição atinja efetivamente o propósito almejado, é necessário conferir aos jurisdicionados mecanismos concretos para demonstrar a lesão ou ameaça de lesão aos seus direitos. Nesse particular, o direito probatório assume especial relevo, principalmente sob o prisma do direito constitucional, de que nada adianta titularizar direitos sem que se possa concretamente demonstrá-los quando se postula em juízo.

O presente estudo foi estruturado de forma a relacionar a teoria da carga dinâmica probatória e os princípios constitucionais processuais. Nesse desiderato, inicialmente, no capítulo 2, procurou-se identificar a importância dos princípios constitucionais processuais, dentre os quais o devido processo legal e o acesso à justiça.

Em seguida, no capítulo 3, buscou-se apontar a atual conformação do direito probatório. Contextualizado o assunto, o capítulo 4 apresenta a teoria da carga dinâmica probatória, temática central da presente pesquisa, apontando-lhe a origem e os pressupostos. Sob o prisma constitucional, analisa-se a distribuição do ônus da prova de forma dinâmica, fazendo o cotejo com os princípios do devido processo legal e os consectários da efetividade e cooperação.

Por fim, o capítulo 5 destina-se aos pontos conclusivos do presente estudo.

Processo e Constituição

O tema objeto do presente trabalho está inserido no Direito Processual Civil, ramo do direito público, para aqueles que adotam a summa divisio, clássica divisão entre direito público e direito privado. Todavia, antes de adentrar ao tema especificamente e com vistas a contextualizá-lo, mister se faz delinear algumas premissas constitucionais que dão suporte ao processo, de modo a realçar a íntima conexão existente entre processo e constituição.

De ver que a relação entre processo e constituição é de nítida complementaridade. É que o direito processual orienta-se por diversas normas positivadas na Constituição Federal, ao mesmo tempo em que

se estrutura ou deve estruturar-se, no plano infraconstitucional, para concretizar direitos previstos no texto constitucional.

Observa-se então que a parte processual da Constituição pode ser visualizada em dois planos. No primeiro plano estaria o direito constitucional processual e, no segundo, o direito

1processual constitucional .O direito constitucional processual representa o conjunto

de normas processuais, notadamente normas-princípios, previstos no texto constitucional, que se destinam a tutelar a essência do direito processual. São exemplos: a garantia do acesso à justiça (art. 5°, inc. XXXV); o princípio do devido processo legal (art. 5°, inc. LIV); os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5°, inc. LV); o princípio da independência da função jurisdicional (art. 2°); o princípio do juiz natural (art. 5°, inc. XXXVII e LIII).

Por sua vez, o direito processual constitucional seria a reunião de normas constitucionais que regulam: a organização da estrutura jurisdicional; a distribuição de competência entre os respectivos órgãos jurisdicionais; o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos e as chamadas ações constitucionais. Como exemplos de dispositivos constitucionais desse timbre têm-se: o mandado de segurança (art. 5°, inc. LXIX e LXX); a ação popular (art. 5°, inc. LXXIII); o dissídio coletivo (art. 114, §2°); o habeas corpus (art. 5°, inc. LXVIII); o habeas data (art. 5°, inc. LXXII); o mandado de injunção (art. 5°, inc. LXXI); a ação civil pública (art. 129, III); a ação declaratória de constitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade e a ação de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, inc. I, a e §1°).

Nesse contexto, pontual é a observação de Dinamarco, para quem:

A visão analítica das relações entre processo e Constituição revela ao estudioso dois sentidos vetoriais em que elas se desenvolvem, a saber: a) no sentido Constituição-processo, tem-se tutela

1 Sobre o tema ver: NERY JÚNIOR, N. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 19-20. Ver também: ALMEIDA, G. A. de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 31-35.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008120 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 121

3notadamente os de índole processual -, que, segundo Alexy , são mandamentos de otimização, isto é, normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.

Assim, a engenharia processual não deve estruturar-se como um fim em si mesma, ou seja, não pode ter por obra-prima um castelo de fórmulas complexas, esteticamente belas, mas substancialmente ocas. Ao contrário, o processo deve ser pensado para ser mecanismo seguro à concretização de direitos, na maior medida possível, dentro da realidade jurídica e fática existente.

É com essa preocupação, de conformar a estrutura processual com a tábua axiológica constitucional, que será abordado o direito probatório no tocante à distribuição dinâmica do ônus da prova.

Prova

Conceito

A palavra prova tem caráter polissêmico ou plurissignificativo. No sentido comum, significa a demonstração da verdade de uma proposição. No sentido técnico-jurídico, pode ser entendida como o ato de provar, ou seja, a atividade probatória. Também costuma ser empregada como sinônimo de fonte de prova, ou seja, as coisas, pessoas e fenômenos dos quais se extrai a prova. São exemplos de fontes de prova as testemunhas, os peritos, entre outros. Fala-se também em prova no sentido de meio de prova, que é a técnica utilizada para extrair a prova de onde ela jorra. Assim, tem-se a prova testemunhal, a prova pericial, prova documental etc. Outra acepção é a de prova como resultado dos atos ou dos meios de prova que foram produzidos com vistas a influir no convencimento do julgador.

A despeito dessa variedade de acepções, para o presente trabalho entende-se por prova a atividade desenvolvida no processo com vistas à formação de um juízo com o maior grau de certeza possível sobre a ocorrência ou não das alegações das partes.

constitucional deste e dos princípios que devem regê-lo, alçados a nível constitucional; b) no sentido processo-Constituição, a chamada jurisdição constitucional, voltada ao controle de constitucionalidade das leis e atos administrativos e à preservação de garantias oferecidas pela Constituição (jurisdição constitucional das liberdades), mais toda a idéia de instrumentalidade processual em si mesma, que apresenta o processo como sistema estabelecido para a realização da

2ordem jurídica, constitucional inclusive.

Dito de outro modo, no Direito Constitucional Processual a Constituição Federal serve ao processo, ao estabelecer normas-princípios que lhe devem servir de norte e, ao mesmo tempo, consubstanciam garantias àqueles que participam da relação jurídico-processual.

De outro lado, no Direito Processual Constitucional é o processo que passa a servir à defesa da Constituição, ou seja, o conjunto de princípios que regulam a chamada jurisdição constitucional e a organização da estrutura jurisdicional.

No presente trabalho, interessa mais de perto o Direito Constitucional Processual, já que a distribuição do ônus da prova será extraída a partir da principiologia constitucional do processo.

Se assim é, importa anotar que pelo princípio da supremacia a Constituição Federal encontra-se no cimo da pirâmide normativa e, por isso, constitui o fundamento de validade imediato da Lei Processual, conforme se vê no art. 22, inc. I, da CR/88. Daí ser correta a conclusão de que a norma processual, para ser válida, deve conformar-se, formal e materialmente, ao texto constitucional.

Mas não é só. Além da conformação normativa, é preciso que toda atividade de interpretação do processo seja pautada na busca pela realização dos valores eleitos pelo texto constitucional. É dizer: o processo é que deve ser interpretado à luz da Constituição, e não o contrário.

No atual estágio de desenvolvimento do Direito Processual, assume especial relevo o estudo dos princípios -

2 DINAMARCO, C. R. A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 25.

3 ALEXY, R. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 86-87.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008120 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 121

3notadamente os de índole processual -, que, segundo Alexy , são mandamentos de otimização, isto é, normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.

Assim, a engenharia processual não deve estruturar-se como um fim em si mesma, ou seja, não pode ter por obra-prima um castelo de fórmulas complexas, esteticamente belas, mas substancialmente ocas. Ao contrário, o processo deve ser pensado para ser mecanismo seguro à concretização de direitos, na maior medida possível, dentro da realidade jurídica e fática existente.

É com essa preocupação, de conformar a estrutura processual com a tábua axiológica constitucional, que será abordado o direito probatório no tocante à distribuição dinâmica do ônus da prova.

Prova

Conceito

A palavra prova tem caráter polissêmico ou plurissignificativo. No sentido comum, significa a demonstração da verdade de uma proposição. No sentido técnico-jurídico, pode ser entendida como o ato de provar, ou seja, a atividade probatória. Também costuma ser empregada como sinônimo de fonte de prova, ou seja, as coisas, pessoas e fenômenos dos quais se extrai a prova. São exemplos de fontes de prova as testemunhas, os peritos, entre outros. Fala-se também em prova no sentido de meio de prova, que é a técnica utilizada para extrair a prova de onde ela jorra. Assim, tem-se a prova testemunhal, a prova pericial, prova documental etc. Outra acepção é a de prova como resultado dos atos ou dos meios de prova que foram produzidos com vistas a influir no convencimento do julgador.

A despeito dessa variedade de acepções, para o presente trabalho entende-se por prova a atividade desenvolvida no processo com vistas à formação de um juízo com o maior grau de certeza possível sobre a ocorrência ou não das alegações das partes.

constitucional deste e dos princípios que devem regê-lo, alçados a nível constitucional; b) no sentido processo-Constituição, a chamada jurisdição constitucional, voltada ao controle de constitucionalidade das leis e atos administrativos e à preservação de garantias oferecidas pela Constituição (jurisdição constitucional das liberdades), mais toda a idéia de instrumentalidade processual em si mesma, que apresenta o processo como sistema estabelecido para a realização da

2ordem jurídica, constitucional inclusive.

Dito de outro modo, no Direito Constitucional Processual a Constituição Federal serve ao processo, ao estabelecer normas-princípios que lhe devem servir de norte e, ao mesmo tempo, consubstanciam garantias àqueles que participam da relação jurídico-processual.

De outro lado, no Direito Processual Constitucional é o processo que passa a servir à defesa da Constituição, ou seja, o conjunto de princípios que regulam a chamada jurisdição constitucional e a organização da estrutura jurisdicional.

No presente trabalho, interessa mais de perto o Direito Constitucional Processual, já que a distribuição do ônus da prova será extraída a partir da principiologia constitucional do processo.

Se assim é, importa anotar que pelo princípio da supremacia a Constituição Federal encontra-se no cimo da pirâmide normativa e, por isso, constitui o fundamento de validade imediato da Lei Processual, conforme se vê no art. 22, inc. I, da CR/88. Daí ser correta a conclusão de que a norma processual, para ser válida, deve conformar-se, formal e materialmente, ao texto constitucional.

Mas não é só. Além da conformação normativa, é preciso que toda atividade de interpretação do processo seja pautada na busca pela realização dos valores eleitos pelo texto constitucional. É dizer: o processo é que deve ser interpretado à luz da Constituição, e não o contrário.

No atual estágio de desenvolvimento do Direito Processual, assume especial relevo o estudo dos princípios -

2 DINAMARCO, C. R. A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 25.

3 ALEXY, R. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 86-87.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008122 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 123

campo axiológico, da valoração: as afirmações ou são verdades, ou são mentiras – conhecem-se os fatos pelas impressões (valorações) que as pessoas

5têm deles.

Feita essa observação, tem-se que o objeto da prova deve ser então a alegação de fatos que sejam: controvertidos, entendidos como tais aqueles afirmados por uma parte e contestados pela outra; relevantes, ou seja, os que guardam conexão com a causa; e determinados, a saber, aqueles individualizados no tempo e no espaço. Logo, a contrario sensu, descabida a prova sobre fatos indeterminados, indefinidos, inúteis e aqueles física ou juridicamente impossíveis de demonstração.

Conforme disposto no art. 334 do Diploma Processual, também independem de prova a alegação sobre fatos: notórios; afirmados por uma parte e confessados pela contraparte; admitidos como incontroversos; e aqueles em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.

Mas e o direito, é passível de prova? Em regra não, por conta do postulado segundo o qual o juiz conhece o direito (iura novit curia), salvo em relação a direito estrangeiro, estadual, municipal e costumeiro, quando o teor e a vigência não forem do conhecimento do juiz, consoante art. 337 do CPC.

Valoração da prova e o sistema da persuasão racional

Bem, definido o campo da atividade probatória, esta, enquanto atuação destinada à formação do convencimento judicial, deve desenvolver-se nas seguintes etapas: proposição, admissão, produção e valoração. Em síntese, uma vez proposta a prova, o juiz deverá analisar a utilidade e cabimento de sua produção. Se admitida, a prova deve ser produzida e o seu conteúdo passa a pertencer ao processo, em atenção ao princípio da comunhão de prova. Em seguida, por ocasião da prolação da sentença, ao juiz cabe valorar prova, ou seja, revelar o impacto que ela teve na formação de seu convencimento.

Objeto

Mas o que, exatamente, deve ser provado no processo? Muitos, decerto, responderiam: os fatos. É o que, aliás, sugere a redação dos artigos 333 e 334 do CPC. Ocorre, porém, que os fatos, uma vez ocorridos, deixam de existir e o que sobra deles são apenas as histórias. Diante disso, o julgador não tem como reconstruir os fatos já ocorridos, mas pode apenas valorar as alegações (histórias) das partes sobre a ocorrência ou não dos fatos. Portanto, cada parte conta a sua versão e quem contar e demonstrar a melhor, a mais verossímil, terá mais chances de se sagrar vencedora.

Nessa linha, Sérgio Arenhart averba que:

O juiz não é – mais do que qualquer outro – capaz de reconstruir fatos ocorridos no passado; o máximo que se lhe pode exigir é que a valoração que há de fazer das provas carreadas aos autos sobre o fato a ser investigado não divirja da opinião

4comum média que se faria das mesmas provas.

É exatamente por essa razão – de que não se provam os fatos, mas tão-só as alegações sobre eles – que a doutrina processual atual entende que a atividade probatória não tem como perseguir a verdade real, porque esta é inatingível. Busca-se, isto sim, dentro das reconhecidas limitações humanas, o alcance da verdade processual, ou seja, aquela que mais se aproxima do que efetivamente ocorreu. Nesse ponto, merece transcrição a precisa lição de Didier Jr., Braga e Oliveira, para quem:

É utopia imaginar que se possa, com o processo, atingir a verdade real sobre determinado acontecimento, até porque a verdade sobre algo que ocorreu outrora é idéia antitética. Não é possível saber a verdade sobre o que ocorreu; ou aconteceu ou não. O fato não é verdadeiro ou falso; ele existiu ou não. O algo pretérito está no campo ôntico, do ser. A verdade, por seu turno, está no

4 ARENHART, S. C. A verdade substancial. Gênesis - Revista do Direito Processual Civil, Curitiba, n. 3, p. 688, 1996.

5 DIDIER JR., F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. Curso de Direito Processual Civil. v. 2. Salvador: Ed. Jus PODIVM, 2007. p. 21.

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campo axiológico, da valoração: as afirmações ou são verdades, ou são mentiras – conhecem-se os fatos pelas impressões (valorações) que as pessoas

5têm deles.

Feita essa observação, tem-se que o objeto da prova deve ser então a alegação de fatos que sejam: controvertidos, entendidos como tais aqueles afirmados por uma parte e contestados pela outra; relevantes, ou seja, os que guardam conexão com a causa; e determinados, a saber, aqueles individualizados no tempo e no espaço. Logo, a contrario sensu, descabida a prova sobre fatos indeterminados, indefinidos, inúteis e aqueles física ou juridicamente impossíveis de demonstração.

Conforme disposto no art. 334 do Diploma Processual, também independem de prova a alegação sobre fatos: notórios; afirmados por uma parte e confessados pela contraparte; admitidos como incontroversos; e aqueles em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.

Mas e o direito, é passível de prova? Em regra não, por conta do postulado segundo o qual o juiz conhece o direito (iura novit curia), salvo em relação a direito estrangeiro, estadual, municipal e costumeiro, quando o teor e a vigência não forem do conhecimento do juiz, consoante art. 337 do CPC.

Valoração da prova e o sistema da persuasão racional

Bem, definido o campo da atividade probatória, esta, enquanto atuação destinada à formação do convencimento judicial, deve desenvolver-se nas seguintes etapas: proposição, admissão, produção e valoração. Em síntese, uma vez proposta a prova, o juiz deverá analisar a utilidade e cabimento de sua produção. Se admitida, a prova deve ser produzida e o seu conteúdo passa a pertencer ao processo, em atenção ao princípio da comunhão de prova. Em seguida, por ocasião da prolação da sentença, ao juiz cabe valorar prova, ou seja, revelar o impacto que ela teve na formação de seu convencimento.

Objeto

Mas o que, exatamente, deve ser provado no processo? Muitos, decerto, responderiam: os fatos. É o que, aliás, sugere a redação dos artigos 333 e 334 do CPC. Ocorre, porém, que os fatos, uma vez ocorridos, deixam de existir e o que sobra deles são apenas as histórias. Diante disso, o julgador não tem como reconstruir os fatos já ocorridos, mas pode apenas valorar as alegações (histórias) das partes sobre a ocorrência ou não dos fatos. Portanto, cada parte conta a sua versão e quem contar e demonstrar a melhor, a mais verossímil, terá mais chances de se sagrar vencedora.

Nessa linha, Sérgio Arenhart averba que:

O juiz não é – mais do que qualquer outro – capaz de reconstruir fatos ocorridos no passado; o máximo que se lhe pode exigir é que a valoração que há de fazer das provas carreadas aos autos sobre o fato a ser investigado não divirja da opinião

4comum média que se faria das mesmas provas.

É exatamente por essa razão – de que não se provam os fatos, mas tão-só as alegações sobre eles – que a doutrina processual atual entende que a atividade probatória não tem como perseguir a verdade real, porque esta é inatingível. Busca-se, isto sim, dentro das reconhecidas limitações humanas, o alcance da verdade processual, ou seja, aquela que mais se aproxima do que efetivamente ocorreu. Nesse ponto, merece transcrição a precisa lição de Didier Jr., Braga e Oliveira, para quem:

É utopia imaginar que se possa, com o processo, atingir a verdade real sobre determinado acontecimento, até porque a verdade sobre algo que ocorreu outrora é idéia antitética. Não é possível saber a verdade sobre o que ocorreu; ou aconteceu ou não. O fato não é verdadeiro ou falso; ele existiu ou não. O algo pretérito está no campo ôntico, do ser. A verdade, por seu turno, está no

4 ARENHART, S. C. A verdade substancial. Gênesis - Revista do Direito Processual Civil, Curitiba, n. 3, p. 688, 1996.

5 DIDIER JR., F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. Curso de Direito Processual Civil. v. 2. Salvador: Ed. Jus PODIVM, 2007. p. 21.

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inclusive os fundamentais, e pode ser visualizado em tríplice dimensão: direito de requerer a produção da prova; direito de participar de sua produção e direito de se pronunciar sobre a prova produzida.

Acerca do assunto, é expressiva a opinião de Marinoni, para quem:

O direito à prova é resultado da necessidade de garantir ao cidadão a adequada participação no processo. Como demonstra Vigorriti, a estreita conexão entre as alegações dos fatos, com que se exercem os direitos de ação e de defesa, e a possibilidade de submeter ao juiz os elementos necessários para demonstrar os fundamentos das próprias alegações tornou clara a influência das normas em termos de prova sobre os direitos garantidos pelo due process of law. A mesma conexão impõe o reconhecimento, em nível constitucional, de um verdadeiro e próprio direito à prova (right to evidence) em favor daqueles que

7têm o direito de agir ou de se defender em juízo.

Daí que se pode identificar o direito à prova como direito fundamental, não expresso, como aqueles listados nos incisos do art. 5º da CR/88, mas implícito, porque, na esteira do art. 5º, §2º, da CR/88, decorre dos princípios constitucionais do devido processo legal substancial (art. 5º, inc. LIV), do contraditório (art. 5º, inc. LV) e também do acesso à justiça (art. 5º, inc. XXXV).

Na mesma linha, em trabalho específico sobre o tema, Eduardo Cambi encara o direito à prova “como um desdobramento da garantia constitucional do devido processual legal ou um aspecto fundamental das garantias processuais da ação, da defesa e do contraditório”. E mais adiante assinala que “a efetividade do direito à prova significa o reconhecimento da máxima potencialidade possível ao instrumento probatório para que as partes tenham amplas

8oportunidades para demonstrar os fatos que alegam” .Na qualidade de direito fundamental, conclui-se que o direito

Em especial, na fase de valoração da prova, extrai-se dos artigos 131, 165, 436 e 458, II, do CPC, a opção pelo sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão racional. Segundo esse sistema, o julgador tem ampla liberdade para formar sua convicção, mas tem o dever de apontar, a partir do material probatório coletado, os motivos e as circunstâncias que o levaram a adotar essa ou aquela posição.

Sem sombra de dúvida, esse dever de motivar confere maior legitimidade à atuação jurisdicional, na medida em que possibilita o controle da decisão pelas partes por meio dos recursos cabíveis, dos tribunais ao apreciá-los, e, porque não dizer, também da opinião pública, já que a atividade jurisdicional, como forma de poder que é, deve ser exercida em nome do povo. E de outra forma não poderia ser, pois, como adverte Barbosa Moreira, “el Estado de Derecho no está autorizado para

6interferir en nuestra esfera personal sin justificar su interferencia” .Tamanha é a importância disso que a CR/88, em franca

incursão em matéria processual, recepciona o sistema da persuasão racional quando, no art. 93, inc. IX, considera a fundamentação como requisito de validade da decisão judicial.

Convém anotar, contudo, que o sistema da persuasão racional, embora seja a regra, comporta mitigações, pois sobrevivem no CPC resquícios normativos do sistema da prova legal ou da prova tarifada, para o qual as provas têm valor certo. Como exemplos, citam-se os artigos 302, 319, 334, IV, 434 e parágrafo, 359, 364, 366, 368, 370, 2ª parte, 373, 376, 378, 379, 401, 406 e parágrafos.

O direito fundamental à prova

Por certo, de nada adiantaria que o Estado reconhecesse uma lista extensa de direitos individuais e coletivos se, ao mesmo tempo, não conferisse aos seus titulares mecanismos aptos a demonstrar, em juízo, a veracidade das alegações para que, com isso, pudessem exercer influência no convencimento do julgador. Afinal, possuir direitos sem poder demonstrá-los é o mesmo que não os possuir.

Sob essa perspectiva, o direito à prova constitui instrumento necessário para a proteção e concretização de quaisquer direitos,

6 MOREIRA, J. C. B. Prueba y motivación de la sentencia. In: Temas de Direito Processual – 8. série. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 107.

7 MARINONI, L. G. Novas linhas do Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 1999. p 258-259.8 CAMBI, E. Direito constitucional à prova no processo civil. São Paulo: RT, 2001. p. 166 e 170.

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inclusive os fundamentais, e pode ser visualizado em tríplice dimensão: direito de requerer a produção da prova; direito de participar de sua produção e direito de se pronunciar sobre a prova produzida.

Acerca do assunto, é expressiva a opinião de Marinoni, para quem:

O direito à prova é resultado da necessidade de garantir ao cidadão a adequada participação no processo. Como demonstra Vigorriti, a estreita conexão entre as alegações dos fatos, com que se exercem os direitos de ação e de defesa, e a possibilidade de submeter ao juiz os elementos necessários para demonstrar os fundamentos das próprias alegações tornou clara a influência das normas em termos de prova sobre os direitos garantidos pelo due process of law. A mesma conexão impõe o reconhecimento, em nível constitucional, de um verdadeiro e próprio direito à prova (right to evidence) em favor daqueles que

7têm o direito de agir ou de se defender em juízo.

Daí que se pode identificar o direito à prova como direito fundamental, não expresso, como aqueles listados nos incisos do art. 5º da CR/88, mas implícito, porque, na esteira do art. 5º, §2º, da CR/88, decorre dos princípios constitucionais do devido processo legal substancial (art. 5º, inc. LIV), do contraditório (art. 5º, inc. LV) e também do acesso à justiça (art. 5º, inc. XXXV).

Na mesma linha, em trabalho específico sobre o tema, Eduardo Cambi encara o direito à prova “como um desdobramento da garantia constitucional do devido processual legal ou um aspecto fundamental das garantias processuais da ação, da defesa e do contraditório”. E mais adiante assinala que “a efetividade do direito à prova significa o reconhecimento da máxima potencialidade possível ao instrumento probatório para que as partes tenham amplas

8oportunidades para demonstrar os fatos que alegam” .Na qualidade de direito fundamental, conclui-se que o direito

Em especial, na fase de valoração da prova, extrai-se dos artigos 131, 165, 436 e 458, II, do CPC, a opção pelo sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão racional. Segundo esse sistema, o julgador tem ampla liberdade para formar sua convicção, mas tem o dever de apontar, a partir do material probatório coletado, os motivos e as circunstâncias que o levaram a adotar essa ou aquela posição.

Sem sombra de dúvida, esse dever de motivar confere maior legitimidade à atuação jurisdicional, na medida em que possibilita o controle da decisão pelas partes por meio dos recursos cabíveis, dos tribunais ao apreciá-los, e, porque não dizer, também da opinião pública, já que a atividade jurisdicional, como forma de poder que é, deve ser exercida em nome do povo. E de outra forma não poderia ser, pois, como adverte Barbosa Moreira, “el Estado de Derecho no está autorizado para

6interferir en nuestra esfera personal sin justificar su interferencia” .Tamanha é a importância disso que a CR/88, em franca

incursão em matéria processual, recepciona o sistema da persuasão racional quando, no art. 93, inc. IX, considera a fundamentação como requisito de validade da decisão judicial.

Convém anotar, contudo, que o sistema da persuasão racional, embora seja a regra, comporta mitigações, pois sobrevivem no CPC resquícios normativos do sistema da prova legal ou da prova tarifada, para o qual as provas têm valor certo. Como exemplos, citam-se os artigos 302, 319, 334, IV, 434 e parágrafo, 359, 364, 366, 368, 370, 2ª parte, 373, 376, 378, 379, 401, 406 e parágrafos.

O direito fundamental à prova

Por certo, de nada adiantaria que o Estado reconhecesse uma lista extensa de direitos individuais e coletivos se, ao mesmo tempo, não conferisse aos seus titulares mecanismos aptos a demonstrar, em juízo, a veracidade das alegações para que, com isso, pudessem exercer influência no convencimento do julgador. Afinal, possuir direitos sem poder demonstrá-los é o mesmo que não os possuir.

Sob essa perspectiva, o direito à prova constitui instrumento necessário para a proteção e concretização de quaisquer direitos,

6 MOREIRA, J. C. B. Prueba y motivación de la sentencia. In: Temas de Direito Processual – 8. série. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 107.

7 MARINONI, L. G. Novas linhas do Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 1999. p 258-259.8 CAMBI, E. Direito constitucional à prova no processo civil. São Paulo: RT, 2001. p. 166 e 170.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008126 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 127

à prova tem aplicabilidade imediata, deve ser interpretado no sentido que lhe confira a maior efetividade possível e, ainda, diante de eventual colisão com outro direito fundamental, deve passar pelo juízo de ponderação imanente ao princípio da proporcionalidade.

Os poderes instrutórios do juiz

A título de contextualização, em breve resgate histórico, cabe rememorar que no Estado Absolutista o poder estatal concentrava-se nas mãos do Executivo. Com a Revolução Francesa e a consolidação do Estado Liberal, ganhou destaque o Parlamento, ao qual se atribuiu a função de inovar a ordem jurídica, notadamente para assegurar o direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, assumindo o Estado feição garantista e não intervencionista. No século XX, ao perceber a consagração da igualdade apenas formal, o Estado Social, além de garantidor, passou a intervir na sociedade e na economia para assumir o papel de provedor, em ordem a promover os direitos sociais, econômicos e culturais. Nessa fase, o Poder Executivo retorna à posição de destaque, notadamente em razão do poder de inovar a ordem jurídica por meio das medidas provisórias (antigos decretos-lei). No século XXI, além de garantidor e prestador, o Estado Social Democrático de Direito tem o compromisso com a transformação positiva da realidade social, mediante a concretização de direitos na maior medida possível, tarefa que, sem dúvida, confere maior destaque à função jurisdicional.

Dentro dessa visão transformadora da ordem constitucional ganha força, na instrução probatória, a atuação do juiz, que pode determinar, inclusive de ofício, a produção de provas, consoante art. 130 do CPC.

Ora, é certo que o dever de motivar as decisões potencializa a responsabilidade do juiz no processo. Diante deste panorama, a atividade probatória assume papel de extremo relevo, já que repercutirá na maior ou menor capacidade de o juiz formar seu convencimento, com reflexos imediatos na fundamentação da decisão. Assim, é inegável que a falta da prova ou a insuficiência na sua produção compromete a formação da convicção do julgador e, via de consequência, reflete na adequada prestação jurisdicional. Por esse motivo, na processualística atual, ao magistrado deve-se

conferir uma participação mais ativa na produção da prova, respeitadas as demais garantias processuais constitucionais.

Mas esse ativismo judicial no campo probatório não seria meramente complementar e posterior à atividade das partes, mas simultâneo. Isso porque, em relação a algumas provas, a sua não produção no momento oportuno pode esvaziar os efeitos que com elas se pretendiam obter, desfalcando, sobremaneira, o conjunto probatório, de modo a comprometer a efetividade na prestação jurisdicional.

No entanto, ainda há parcela da doutrina que considera a persecução probatória pelo juiz, no processo civil, como violadora dos princípios do dispositivo, da isonomia e da imparcialidade. Não é, com o devido respeito, o entendimento que se adota no presente trabalho. Na verdade, esses princípios devem ser interpretados não mais no contexto do Estado Liberal, mas sob o enfoque do atual Estado Social Democrático de Direito, a que antes se aludiu.

Desse modo, não se vulnera o princípio do dispositivo, porque, como bem anota Bedaque, “se o pedido da tutela e os limites da prestação são privados, o modo como ela é prestada não

9o é” . Ou seja, enquanto a relação jurídica material pode ter forte índole privada, a relação processual tem o timbre público por contar com a participação do Estado-Juiz.

A seu turno, o princípio da isonomia também não é violado, a não ser sob o enfoque meramente formal, o que é incompatível com a visão transformadora própria do Estado Social Democrático de Direito. Na visão substancial, ao revés, a isonomia significa reconhecer eventual desigualdade entre as partes, e tratá-las desigualmente na medida em que se desigualam. Prejudicada, sim, estaria a isonomia se uma das partes, com nítida superioridade na produção de prova, pudesse dela dispor ao seu alvedrio, sem que nada pudesse ser feito. Com a participação ativa do juiz, essas distorções podem ser evitadas e corrigidas.

De igual forma, não está comprometida a imparcialidade do juiz, porque o aprofundamento na apuração dos fatos só vem favorecer a parte que de fato tenha razão. Arguta, nesse particular, a observação de Bedaque ao questionar:

9 BEDAQUE, J. R. dos S. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. São Paulo: RT, 2001. p. 93.

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à prova tem aplicabilidade imediata, deve ser interpretado no sentido que lhe confira a maior efetividade possível e, ainda, diante de eventual colisão com outro direito fundamental, deve passar pelo juízo de ponderação imanente ao princípio da proporcionalidade.

Os poderes instrutórios do juiz

A título de contextualização, em breve resgate histórico, cabe rememorar que no Estado Absolutista o poder estatal concentrava-se nas mãos do Executivo. Com a Revolução Francesa e a consolidação do Estado Liberal, ganhou destaque o Parlamento, ao qual se atribuiu a função de inovar a ordem jurídica, notadamente para assegurar o direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, assumindo o Estado feição garantista e não intervencionista. No século XX, ao perceber a consagração da igualdade apenas formal, o Estado Social, além de garantidor, passou a intervir na sociedade e na economia para assumir o papel de provedor, em ordem a promover os direitos sociais, econômicos e culturais. Nessa fase, o Poder Executivo retorna à posição de destaque, notadamente em razão do poder de inovar a ordem jurídica por meio das medidas provisórias (antigos decretos-lei). No século XXI, além de garantidor e prestador, o Estado Social Democrático de Direito tem o compromisso com a transformação positiva da realidade social, mediante a concretização de direitos na maior medida possível, tarefa que, sem dúvida, confere maior destaque à função jurisdicional.

Dentro dessa visão transformadora da ordem constitucional ganha força, na instrução probatória, a atuação do juiz, que pode determinar, inclusive de ofício, a produção de provas, consoante art. 130 do CPC.

Ora, é certo que o dever de motivar as decisões potencializa a responsabilidade do juiz no processo. Diante deste panorama, a atividade probatória assume papel de extremo relevo, já que repercutirá na maior ou menor capacidade de o juiz formar seu convencimento, com reflexos imediatos na fundamentação da decisão. Assim, é inegável que a falta da prova ou a insuficiência na sua produção compromete a formação da convicção do julgador e, via de consequência, reflete na adequada prestação jurisdicional. Por esse motivo, na processualística atual, ao magistrado deve-se

conferir uma participação mais ativa na produção da prova, respeitadas as demais garantias processuais constitucionais.

Mas esse ativismo judicial no campo probatório não seria meramente complementar e posterior à atividade das partes, mas simultâneo. Isso porque, em relação a algumas provas, a sua não produção no momento oportuno pode esvaziar os efeitos que com elas se pretendiam obter, desfalcando, sobremaneira, o conjunto probatório, de modo a comprometer a efetividade na prestação jurisdicional.

No entanto, ainda há parcela da doutrina que considera a persecução probatória pelo juiz, no processo civil, como violadora dos princípios do dispositivo, da isonomia e da imparcialidade. Não é, com o devido respeito, o entendimento que se adota no presente trabalho. Na verdade, esses princípios devem ser interpretados não mais no contexto do Estado Liberal, mas sob o enfoque do atual Estado Social Democrático de Direito, a que antes se aludiu.

Desse modo, não se vulnera o princípio do dispositivo, porque, como bem anota Bedaque, “se o pedido da tutela e os limites da prestação são privados, o modo como ela é prestada não

9o é” . Ou seja, enquanto a relação jurídica material pode ter forte índole privada, a relação processual tem o timbre público por contar com a participação do Estado-Juiz.

A seu turno, o princípio da isonomia também não é violado, a não ser sob o enfoque meramente formal, o que é incompatível com a visão transformadora própria do Estado Social Democrático de Direito. Na visão substancial, ao revés, a isonomia significa reconhecer eventual desigualdade entre as partes, e tratá-las desigualmente na medida em que se desigualam. Prejudicada, sim, estaria a isonomia se uma das partes, com nítida superioridade na produção de prova, pudesse dela dispor ao seu alvedrio, sem que nada pudesse ser feito. Com a participação ativa do juiz, essas distorções podem ser evitadas e corrigidas.

De igual forma, não está comprometida a imparcialidade do juiz, porque o aprofundamento na apuração dos fatos só vem favorecer a parte que de fato tenha razão. Arguta, nesse particular, a observação de Bedaque ao questionar:

9 BEDAQUE, J. R. dos S. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. São Paulo: RT, 2001. p. 93.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008128 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 129

não seria parcial o juiz que, tendo conhecimento de que a produção de determinada prova possibilitará o esclarecimento de um fato obscuro, deixe de fazê-lo e, com tal atitude, acabe beneficiando a parte que não

10tem razão? .

A resposta à indagação acima é afirmativa. Com efeito, a atividade desenvolvida para atingir, no maior grau possível, a verdade processual não pode ficar condicionada ao maior poderio econômico e cultural de qualquer das partes, sob pena de o juiz declarar o direito a quem não o possua.

Ademais, cabe anotar que as provas produzidas sob a determinação judicial são submetidas ao crivo do contraditório para que as partes, além de poderem participar da produção probatória, possam influir no convencimento do julgador, o que, por si só, afasta o receio de ofensa à imparcialidade judicial.

E não é só. O ativismo judicial no campo probatório não ocorre de forma absoluta, já que o juiz deve fundamentar a necessidade da colheita da prova que determinou e também enunciar os motivos que lhe formaram o convencimento.

Em relação à revelia, cujo principal efeito é tornar o fato incontroverso, é interessante notar que o juiz, ao se deparar com alegações de verossimilhança duvidosa, deve ordenar que o autor produza a prova de suas alegações. Afinal de contas, a alegação de um conto de fadas pelo autor não se torna verdade só pela ausência de contestação do réu.

Portanto, conclui-se que os poderes instrutórios conferidos ao juiz têm o condão de promover o equilíbrio entre as partes no processo, em observância ao princípio da paridade de armas, com vistas a uma prestação jurisdicional mais equânime e legítima, que busque a concretização do direito a quem efetivamente o tenha.

Ônus da prova

Muito comum a confusão que se faz entre ônus e obrigação, como se sinônimos fossem. Esclarece Carnelutti que “existe somente obrigação quando a inércia dá lugar à sanção jurídica (execução ou

pena); entretanto, se a abstenção do ato faz perder somente os efeitos 11úteis do próprio ato, temos a figura do ônus” . Vale dizer, assim, que

enquanto a obrigação tem conotação estática de direito material, o ônus tem a nota dinâmica, própria da relação jurídico-processual.

12Na mesma linha, James Goldschmidt concebe ônus como encargo do qual se desincumbe ou não para figurar em situação de vantagem ou desvantagem perante o direito. Ou seja, se a parte não exerce o ônus que lhe cabe, deixa apenas de desfrutar da vantagem processual que teria se o tivesse exercitado, na forma e no momento previstos nas leis processuais.

Sucede, então, que as disposições sobre o ônus da prova não impõem às partes o dever de provar algo, mas, na verdade, indicam quem, por ocasião da sentença, arcará com as consequências desfavoráveis no caso de ausência da prova sobre certa alegação. São, pois, regras de julgamento e de cunho subsidiário que auxiliam o juiz quando, por ocasião da prolação da sentença, permanecer em estado de dúvida.

Tais regras justificam-se pela vedação imposta ao juiz de pronunciar o non liquet, cláusula do Direito Romano que permitia ao juiz que deixasse de julgar quando o caso não se mostrava claro. Ora, se mesmo diante da falta ou insuficiência de provas o juiz tem o dever de julgar, conforme art. 126 do CPC, torna-se imperiosa a criação de um mecanismo de julgamento capaz de afastar o non liquet. Esse mecanismo é justamente a distribuição do ônus da prova, pelo qual o juiz, diante do estado de incerteza, fica autorizado a proferir julgamento contrário àquele que tinha o ônus de tal prova e dele não se desincumbiu e que, com isso, passou a ostentar posição jurídica de desvantagem.

13Como bem observa Kazuo Watanabe , não tem sentido aplicar regras de distribuição do ônus da prova quando houver no processo juízo de verossimilhança, hipótese em que o juiz julgará consoante o material probatório coligido e o seu livre convencimento.

Nesse contexto, assume especial valia o princípio da

10 BEDAQUE, J. R. dos S. Poderes instrutórios do juiz, op. cit., p. 108.

11 CARNELUTTI, F. A prova civil. Apêndice de Giácomo P. Augenti. Campinas: Bookseller, 2001. p. 255.12 GOLDSCHMIDT, J. Derecho procesal civil. Trad. de Leonardo Prieto Castro. Barcelona: Labor, 1936. p. 7-9.13 WATANABE, K. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 5. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1998. p. 619.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008128 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 129

não seria parcial o juiz que, tendo conhecimento de que a produção de determinada prova possibilitará o esclarecimento de um fato obscuro, deixe de fazê-lo e, com tal atitude, acabe beneficiando a parte que não

10tem razão? .

A resposta à indagação acima é afirmativa. Com efeito, a atividade desenvolvida para atingir, no maior grau possível, a verdade processual não pode ficar condicionada ao maior poderio econômico e cultural de qualquer das partes, sob pena de o juiz declarar o direito a quem não o possua.

Ademais, cabe anotar que as provas produzidas sob a determinação judicial são submetidas ao crivo do contraditório para que as partes, além de poderem participar da produção probatória, possam influir no convencimento do julgador, o que, por si só, afasta o receio de ofensa à imparcialidade judicial.

E não é só. O ativismo judicial no campo probatório não ocorre de forma absoluta, já que o juiz deve fundamentar a necessidade da colheita da prova que determinou e também enunciar os motivos que lhe formaram o convencimento.

Em relação à revelia, cujo principal efeito é tornar o fato incontroverso, é interessante notar que o juiz, ao se deparar com alegações de verossimilhança duvidosa, deve ordenar que o autor produza a prova de suas alegações. Afinal de contas, a alegação de um conto de fadas pelo autor não se torna verdade só pela ausência de contestação do réu.

Portanto, conclui-se que os poderes instrutórios conferidos ao juiz têm o condão de promover o equilíbrio entre as partes no processo, em observância ao princípio da paridade de armas, com vistas a uma prestação jurisdicional mais equânime e legítima, que busque a concretização do direito a quem efetivamente o tenha.

Ônus da prova

Muito comum a confusão que se faz entre ônus e obrigação, como se sinônimos fossem. Esclarece Carnelutti que “existe somente obrigação quando a inércia dá lugar à sanção jurídica (execução ou

pena); entretanto, se a abstenção do ato faz perder somente os efeitos 11úteis do próprio ato, temos a figura do ônus” . Vale dizer, assim, que

enquanto a obrigação tem conotação estática de direito material, o ônus tem a nota dinâmica, própria da relação jurídico-processual.

12Na mesma linha, James Goldschmidt concebe ônus como encargo do qual se desincumbe ou não para figurar em situação de vantagem ou desvantagem perante o direito. Ou seja, se a parte não exerce o ônus que lhe cabe, deixa apenas de desfrutar da vantagem processual que teria se o tivesse exercitado, na forma e no momento previstos nas leis processuais.

Sucede, então, que as disposições sobre o ônus da prova não impõem às partes o dever de provar algo, mas, na verdade, indicam quem, por ocasião da sentença, arcará com as consequências desfavoráveis no caso de ausência da prova sobre certa alegação. São, pois, regras de julgamento e de cunho subsidiário que auxiliam o juiz quando, por ocasião da prolação da sentença, permanecer em estado de dúvida.

Tais regras justificam-se pela vedação imposta ao juiz de pronunciar o non liquet, cláusula do Direito Romano que permitia ao juiz que deixasse de julgar quando o caso não se mostrava claro. Ora, se mesmo diante da falta ou insuficiência de provas o juiz tem o dever de julgar, conforme art. 126 do CPC, torna-se imperiosa a criação de um mecanismo de julgamento capaz de afastar o non liquet. Esse mecanismo é justamente a distribuição do ônus da prova, pelo qual o juiz, diante do estado de incerteza, fica autorizado a proferir julgamento contrário àquele que tinha o ônus de tal prova e dele não se desincumbiu e que, com isso, passou a ostentar posição jurídica de desvantagem.

13Como bem observa Kazuo Watanabe , não tem sentido aplicar regras de distribuição do ônus da prova quando houver no processo juízo de verossimilhança, hipótese em que o juiz julgará consoante o material probatório coligido e o seu livre convencimento.

Nesse contexto, assume especial valia o princípio da

10 BEDAQUE, J. R. dos S. Poderes instrutórios do juiz, op. cit., p. 108.

11 CARNELUTTI, F. A prova civil. Apêndice de Giácomo P. Augenti. Campinas: Bookseller, 2001. p. 255.12 GOLDSCHMIDT, J. Derecho procesal civil. Trad. de Leonardo Prieto Castro. Barcelona: Labor, 1936. p. 7-9.13 WATANABE, K. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 5. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1998. p. 619.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008130 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 131

comunhão da prova, segundo o qual a prova, independente de quem a tenha produzido, ainda que pela parte sobre a qual não recaísse o ônus inicialmente, passa a pertencer ao processo. Assim, se com a prova produzida o julgador obtiver um juízo de certeza processual é desnecessário investigar sobre o ônus da prova.

Em síntese, as regras sobre o ônus da prova permitem ao juiz, quando em dúvida por ocasião do julgamento, onerar a parte que não se desincumbiu de seu encargo probatório com um julgamento desfavorável.

O sistema estático de distribuição do ônus da prova positivado no CPC

Em linhas gerais, a distribuição do ônus da prova é disciplinada pelo art. 333 do CPC, conforme o qual cabe ao autor a prova dos fatos constitutivos de seu direito e, ao réu, a existência de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor.

É dizer: ultimada a instrução probatória, para a qual concorreram as partes e o juiz, e ainda presente o estado de dúvida, o juiz aplicará as regras estáticas do ônus da prova, de forma a onerar com um julgamento desfavorável a parte que não se desvencilhou de seu encargo. Assim, se o encargo era do autor, arcará este com uma decisão de improcedência; se do réu, arcará com uma decisão de procedência do pedido do autor.

Resta claro, pois, a adoção, pelo CPC, de um sistema rígido e estático de ônus de prova, pelo qual o legislador, apriorística e objetivamente, regrou a distribuição do ônus, sem levar em conta as peculiaridades do caso concreto.

Embora se reconheça que tal sistema, apoiado na idéia de calculabilidade do encargo probatório pré-fixado, visa alcançar a segurança jurídica, valor constitucional inserto no caput do art. 5º da CR/88, fato é que em certos casos será difícil ou até mesmo impossível demonstrar em juízo o direito material alegado por uma das partes. Isso se verifica, por exemplo, nas chamadas provas diabólicas, ou seja, aquelas cuja produção, senão impossível, é de difícil ocorrência a uma das partes.

Por conta disso, cresce na doutrina e na jurisprudência um movimento tendente a flexibilizar essa rigidez da norma, de forma a permitir ao julgador que ajuste a distribuição do ônus da prova conforme o

caso concreto. Logo, verificada a manifesta disparidade das condições probatórias entre as partes, o juiz, atento ao caso concreto, estabelecerá que o ônus da prova recaia sobre a parte que disponha das melhores condições de provar os fatos submetidos a julgamento.

Portanto, a regra estática de distribuição do ônus, prevista pelo legislador, em alguns casos deve ceder lugar ao sistema dinâmico, conduzido pelo juiz à luz das particularidades do caso concreto. E isso se afeiçoa com o maior ativismo judicial na produção probatória, referido linhas atrás, como forma de corrigir destemperos na mesma com vistas a uma decisão mais justa e equânime.

Mas essa distribuição do ônus da prova pelo juiz deve pautar-se pelo princípio da proporcionalidade, para que as garantias processuais de ambas as partes não sejam suprimidas. Na verdade, como observa Marinoni, a modificação só deve ocorrer “quando ao autor é impossível, ou mesmo muito difícil, provar o fato constitutivo, mas ao

14réu é viável, ou muito mais fácil, provar a sua inexistência” .Nesse estágio, em contraposição ao sistema estático, opção

expressa do CPC, tem-se o sistema dinâmico de distribuição do ônus da prova, cujo detalhamento será feito a seguir.

Teoria da Carga Dinâmica Probatória

Origem, definição e pressupostos

15Remotamente, o jusfilósofo inglês Jeremias Bentham já sinalizava que a obrigação de provar cabia a quem tivesse melhores condições de satisfazê-la com menos inconvenientes. Mas a repartição dinâmica do ônus da prova foi sistematizada e desenvolvida como proposição teórica pelo jurista argentino Jorge Walter Peyrano, o qual, a partir da concepção de processo como uma situação jurídica dinâmica, tal qual Goldschmidt, defende a necessidade de se levar em conta as peculiaridades do caso concreto para se aferir qual das partes

14 MARINONI, L. G. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo as peculiaridades de caso concreto. Disponível em: http://www.marinoni.adv.br/principal / home/?sistema=conteudos|conteudo&id_conteudo=46. Acesso em: 13 nov. 07.15 BENTHAM, J. Tratado de las pruebas judiciales. Trad. de Manuel Ossorio Florit. Buenos Aires: Granada Editorial Comares, 2001. p. 36.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008130 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 131

comunhão da prova, segundo o qual a prova, independente de quem a tenha produzido, ainda que pela parte sobre a qual não recaísse o ônus inicialmente, passa a pertencer ao processo. Assim, se com a prova produzida o julgador obtiver um juízo de certeza processual é desnecessário investigar sobre o ônus da prova.

Em síntese, as regras sobre o ônus da prova permitem ao juiz, quando em dúvida por ocasião do julgamento, onerar a parte que não se desincumbiu de seu encargo probatório com um julgamento desfavorável.

O sistema estático de distribuição do ônus da prova positivado no CPC

Em linhas gerais, a distribuição do ônus da prova é disciplinada pelo art. 333 do CPC, conforme o qual cabe ao autor a prova dos fatos constitutivos de seu direito e, ao réu, a existência de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor.

É dizer: ultimada a instrução probatória, para a qual concorreram as partes e o juiz, e ainda presente o estado de dúvida, o juiz aplicará as regras estáticas do ônus da prova, de forma a onerar com um julgamento desfavorável a parte que não se desvencilhou de seu encargo. Assim, se o encargo era do autor, arcará este com uma decisão de improcedência; se do réu, arcará com uma decisão de procedência do pedido do autor.

Resta claro, pois, a adoção, pelo CPC, de um sistema rígido e estático de ônus de prova, pelo qual o legislador, apriorística e objetivamente, regrou a distribuição do ônus, sem levar em conta as peculiaridades do caso concreto.

Embora se reconheça que tal sistema, apoiado na idéia de calculabilidade do encargo probatório pré-fixado, visa alcançar a segurança jurídica, valor constitucional inserto no caput do art. 5º da CR/88, fato é que em certos casos será difícil ou até mesmo impossível demonstrar em juízo o direito material alegado por uma das partes. Isso se verifica, por exemplo, nas chamadas provas diabólicas, ou seja, aquelas cuja produção, senão impossível, é de difícil ocorrência a uma das partes.

Por conta disso, cresce na doutrina e na jurisprudência um movimento tendente a flexibilizar essa rigidez da norma, de forma a permitir ao julgador que ajuste a distribuição do ônus da prova conforme o

caso concreto. Logo, verificada a manifesta disparidade das condições probatórias entre as partes, o juiz, atento ao caso concreto, estabelecerá que o ônus da prova recaia sobre a parte que disponha das melhores condições de provar os fatos submetidos a julgamento.

Portanto, a regra estática de distribuição do ônus, prevista pelo legislador, em alguns casos deve ceder lugar ao sistema dinâmico, conduzido pelo juiz à luz das particularidades do caso concreto. E isso se afeiçoa com o maior ativismo judicial na produção probatória, referido linhas atrás, como forma de corrigir destemperos na mesma com vistas a uma decisão mais justa e equânime.

Mas essa distribuição do ônus da prova pelo juiz deve pautar-se pelo princípio da proporcionalidade, para que as garantias processuais de ambas as partes não sejam suprimidas. Na verdade, como observa Marinoni, a modificação só deve ocorrer “quando ao autor é impossível, ou mesmo muito difícil, provar o fato constitutivo, mas ao

14réu é viável, ou muito mais fácil, provar a sua inexistência” .Nesse estágio, em contraposição ao sistema estático, opção

expressa do CPC, tem-se o sistema dinâmico de distribuição do ônus da prova, cujo detalhamento será feito a seguir.

Teoria da Carga Dinâmica Probatória

Origem, definição e pressupostos

15Remotamente, o jusfilósofo inglês Jeremias Bentham já sinalizava que a obrigação de provar cabia a quem tivesse melhores condições de satisfazê-la com menos inconvenientes. Mas a repartição dinâmica do ônus da prova foi sistematizada e desenvolvida como proposição teórica pelo jurista argentino Jorge Walter Peyrano, o qual, a partir da concepção de processo como uma situação jurídica dinâmica, tal qual Goldschmidt, defende a necessidade de se levar em conta as peculiaridades do caso concreto para se aferir qual das partes

14 MARINONI, L. G. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo as peculiaridades de caso concreto. Disponível em: http://www.marinoni.adv.br/principal / home/?sistema=conteudos|conteudo&id_conteudo=46. Acesso em: 13 nov. 07.15 BENTHAM, J. Tratado de las pruebas judiciales. Trad. de Manuel Ossorio Florit. Buenos Aires: Granada Editorial Comares, 2001. p. 36.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008132 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 133

16 PEYRANO, J. W. Nuevos lineamientos de las cargas probatorias dinámicas. En: ED t.153-965.17 ARAZI, R. La carga probatoria. Disponível em: http://www.apdp.com.ar/archivo/ teoprueba.htm. Acesso em: 13 nov. 07.18 ARAZI, R. La carga probatoria.19 DALL’AGNOLJUNIOR, A. J. Distribuição dinâmica do ônus probatório. Revista dos Tribunais, São Paulo, RT, n. 788, p. 98, 2001.

revela as melhores condições de produzir a prova.Segundo Peyrano, se “recomienda que la valoración

probatoria sea estricta al ponderar el material allegado por la parte que 16está em mejores condiciones de producir, vgr. la prueba de descargo” .

Roland Arazi, outro grande autor sobre Teoria da Prova, destaca que

la necesidad de apreciar las omisiones probatorias según las circunstancias del caso dio origen a la denominada carga dinámica, por oposición a las reglas estáticas aplicables en todos los supuestos

17sin distinción .

Esta concepção dinâmica, sem sombra de dúvida, rompe com o sistema rígido e estático de distribuição do ônus da prova ao eleger o caso concreto como referencial adequado a orientar o juiz na distribuição do ônus da prova. Além disso, permite densificar o conteúdo de vários princípios processuais, tais como o da igualdade substancial entre as partes e o da cooperação. Aliás, acentuando o perfil cooperativo do processo, Arazi ensina que “los litigantes tienen el deber de colaborar en el esclarecimiento de los hechos y la carga de probarlos recae, principalmente, en quien estuviese en

18mejores condiciones de cumplirla” .19Em obra específica sobre o assunto, Dall’Agnol Júnior

anota que a distribuição dinâmica leva em conta o processo em sua realidade concreta, desprezando por completo a posição que a parte ocupa (se autor ou réu) ou a espécie do fato alegado (se constitutivo, extintivo, modificativo, impeditivo). A demonstração do fato, ainda que alegado pela parte contrária, cabe àquele que se encontrar em melhores condições de fazê-lo.

Em linhas gerais, a teoria da carga dinâmica probatória estabelece que: a) o encargo probatório seja repartido

casuisticamente e não de forma estática e abstrata; b) é irrelevante a posição assumida pela parte na causa (tanto faz se autor ou réu); c) o que importa não é a natureza do fato probando – se constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo do direito, mas sim quem revelar maiores possibilidades concretas de prová-lo.

Mas, postas essas premissas, é de se indagar sobre a compatibilidade dessa teoria com o ordenamento jurídico brasileiro. É o que se verá no tópico seguinte.

A carga dinâmica probatória no Brasil

Embora não haja regra expressa no CPC que acolha a teoria da carga dinâmica probatória, o art. 6º, inc. VIII, do CDC, estabeleceu a técnica da inversão do ônus da prova, segundo a qual o juiz pode redistribuir o encargo probatório, em favor do consumidor, quando preenchidos pressupostos de aferição circunstancial, a saber, a verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência do consumidor. Eis um exemplo claro de aplicação da teoria dinâmica, embora limitada à defesa dos interesses do consumidor, porque o encargo será redistribuído quando, no caso concreto, o fornecedor revelar melhores condições de produzir a prova.

De um modo geral, é possível identificar essa concepção dinâmica em nosso ordenamento a partir de uma interpretação sistemática e principiológica da legislação processual atual. Como bem anota Didier, Braga e Oliveira, com didática irretocável, extrai-se a carga dinâmica probatória dos seguintes princípios:

a) princípio da igualdade (art.5º, caput, da CR/88 e art. 125, I, do CPC), uma vez que deve haver uma paridade real de armas das partes no processo, promovendo-se um equilíbrio substancial entre elas, o que só será possível se atribuído o ônus da prova àquela que tem meios para satisfazê-lo;

b) princípio da lealdade, boa fé e veracidade (arts. 14, 16, 17, 18 e 125, III, do CPC), pois nosso sistema não admite que a parte aja ou se omita, de forma ardilosa, no intuito deliberado de prejudicar a contraparte, não se valendo de alegações de fato e provas esclarecedoras;

c) princípio da solidariedade e da cooperação (art. 3º, I, da

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008132 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 133

16 PEYRANO, J. W. Nuevos lineamientos de las cargas probatorias dinámicas. En: ED t.153-965.17 ARAZI, R. La carga probatoria. Disponível em: http://www.apdp.com.ar/archivo/ teoprueba.htm. Acesso em: 13 nov. 07.18 ARAZI, R. La carga probatoria.19 DALL’AGNOLJUNIOR, A. J. Distribuição dinâmica do ônus probatório. Revista dos Tribunais, São Paulo, RT, n. 788, p. 98, 2001.

revela as melhores condições de produzir a prova.Segundo Peyrano, se “recomienda que la valoración

probatoria sea estricta al ponderar el material allegado por la parte que 16está em mejores condiciones de producir, vgr. la prueba de descargo” .

Roland Arazi, outro grande autor sobre Teoria da Prova, destaca que

la necesidad de apreciar las omisiones probatorias según las circunstancias del caso dio origen a la denominada carga dinámica, por oposición a las reglas estáticas aplicables en todos los supuestos

17sin distinción .

Esta concepção dinâmica, sem sombra de dúvida, rompe com o sistema rígido e estático de distribuição do ônus da prova ao eleger o caso concreto como referencial adequado a orientar o juiz na distribuição do ônus da prova. Além disso, permite densificar o conteúdo de vários princípios processuais, tais como o da igualdade substancial entre as partes e o da cooperação. Aliás, acentuando o perfil cooperativo do processo, Arazi ensina que “los litigantes tienen el deber de colaborar en el esclarecimiento de los hechos y la carga de probarlos recae, principalmente, en quien estuviese en

18mejores condiciones de cumplirla” .19Em obra específica sobre o assunto, Dall’Agnol Júnior

anota que a distribuição dinâmica leva em conta o processo em sua realidade concreta, desprezando por completo a posição que a parte ocupa (se autor ou réu) ou a espécie do fato alegado (se constitutivo, extintivo, modificativo, impeditivo). A demonstração do fato, ainda que alegado pela parte contrária, cabe àquele que se encontrar em melhores condições de fazê-lo.

Em linhas gerais, a teoria da carga dinâmica probatória estabelece que: a) o encargo probatório seja repartido

casuisticamente e não de forma estática e abstrata; b) é irrelevante a posição assumida pela parte na causa (tanto faz se autor ou réu); c) o que importa não é a natureza do fato probando – se constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo do direito, mas sim quem revelar maiores possibilidades concretas de prová-lo.

Mas, postas essas premissas, é de se indagar sobre a compatibilidade dessa teoria com o ordenamento jurídico brasileiro. É o que se verá no tópico seguinte.

A carga dinâmica probatória no Brasil

Embora não haja regra expressa no CPC que acolha a teoria da carga dinâmica probatória, o art. 6º, inc. VIII, do CDC, estabeleceu a técnica da inversão do ônus da prova, segundo a qual o juiz pode redistribuir o encargo probatório, em favor do consumidor, quando preenchidos pressupostos de aferição circunstancial, a saber, a verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência do consumidor. Eis um exemplo claro de aplicação da teoria dinâmica, embora limitada à defesa dos interesses do consumidor, porque o encargo será redistribuído quando, no caso concreto, o fornecedor revelar melhores condições de produzir a prova.

De um modo geral, é possível identificar essa concepção dinâmica em nosso ordenamento a partir de uma interpretação sistemática e principiológica da legislação processual atual. Como bem anota Didier, Braga e Oliveira, com didática irretocável, extrai-se a carga dinâmica probatória dos seguintes princípios:

a) princípio da igualdade (art.5º, caput, da CR/88 e art. 125, I, do CPC), uma vez que deve haver uma paridade real de armas das partes no processo, promovendo-se um equilíbrio substancial entre elas, o que só será possível se atribuído o ônus da prova àquela que tem meios para satisfazê-lo;

b) princípio da lealdade, boa fé e veracidade (arts. 14, 16, 17, 18 e 125, III, do CPC), pois nosso sistema não admite que a parte aja ou se omita, de forma ardilosa, no intuito deliberado de prejudicar a contraparte, não se valendo de alegações de fato e provas esclarecedoras;

c) princípio da solidariedade e da cooperação (art. 3º, I, da

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008134 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 135

22 Texto disponível em: http://www.direitoprocessual.org.br. Acesso em: 14 nov. 2007.23 KFOURI NETO, M. Culpa médica e ônus da prova. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 137.

CR/88 e arts. 339, 340, 342, 345, 355, do CPC), pois todos têm o dever de colaborar com o magistrado na tarefa de descortinar a verdade dos fatos;

d) princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CR/88), pois um processo devido é aquele que produz resultados justos e equânimes;

e) princípio da adequação do procedimento, que decorre do devido processo legal, a significar uma modelagem procedimental a partir das peculiaridades do caso concreto;

f) princípio do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CR/88), que garante a obtenção de uma tutela jurisdicional justa e efetiva, na medida em que se confere a quem efetivamente tenha um

20direito o mecanismo adequado de demonstrá-lo em juízo.

Percebe-se, portanto, que a teoria da carga dinâmica probatória possui forte substrato constitucional, uma vez que, calcada nos princípios acima referidos, constitui mecanismo apto a densificá-los, de forma a propiciar a concretização dos direitos em juízo na maior medida possível.

Bem por isso é que Robson Renault Godinho, ao relacionar a distribuição do ônus da prova com o exercício dos direitos fundamentais, averba que:

[...] se o cumprimento do ônus probatório pode significar a tutela do direito aclamado em juízo, parece-nos intuitivo que as regras que disciplinam sua distribuição afetam diretamente a garantia do acesso à justiça. Se a distribuição do ônus da prova se der de uma forma que seja impossível que o interessado dele se desincumba, em última análise estará sendo-lhe

21negado o acesso à tutela jurisdicional.

Importante registrar que, de lege ferenda, essa teoria foi incorporada ao Anteprojeto de Código Brasileiro de Processo

Coletivo, de autoria do Instituto Brasileiro de Direito Processual, que no art. 11, §1º estabelece que “o ônus da prova incumbe à parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações específicas

22sobre os fatos, ou maior facilidade em sua demonstração” .

Carga probatória dinâmica e carga probatória compartilhada: duas faces da mesma moeda

Ao discorrer sobre a responsabilidade médica, Miguel Kfouri Neto distingue a carga probatória dinâmica da carga probatória compartilhada. Para o autor, na carga probatória dinâmica opera-se a transferência da posição da parte litigante – autor ou réu – em relação ao do ônus da prova. Ou seja, “por decisão do juiz, tais posições podem variar, e o sistema deixa de ser

23pétreo, para se tornar dinâmico” . A distribuição é dinâmica por apresentar uma mobilidade variável a partir de cada caso concreto.

Já a carga probatória compartilhada seria a atribuição do ônus da prova à parte que tem melhores condições de fazê-lo, como, por exemplo, os conhecimentos técnicos dos médicos em demandas de responsabilidade na área da saúde. Nesses casos, o autor-paciente produz toda a prova de que dispõe para contribuir com a instrução da demanda; e o réu-médico, de forma compartilhada, acaba sendo intimado para agregar elementos àquela mesma prova, mesmo porque lhe é mais fácil anexar aos autos o prontuário do paciente e prestar as demais informações técnicas sobre o procedimento em questão, de forma a contribuir para um julgamento justo e compatível com a realidade.

Na verdade, conquanto distintas na visão de Kfouri Neto, verifica-se que a carga dinâmica e a carga compartilhada são dois aspectos de um mesmo fenômeno, ou seja, são o verso e o anverso da mesma moeda, de forma que, antes de se distinguirem, se complementam enquanto proposição teórica.

20 DIDIER JR., F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. Curso de Direito Processual Civil, p. 61.21 GODINHO, R. R. A distribuição do ônus da prova na perspectiva dos direitos fundamentais. Marcelo Novelino (Org.). Salvador: Editora Jus PODIVM, 2006. p. 182.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008134 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 135

22 Texto disponível em: http://www.direitoprocessual.org.br. Acesso em: 14 nov. 2007.23 KFOURI NETO, M. Culpa médica e ônus da prova. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 137.

CR/88 e arts. 339, 340, 342, 345, 355, do CPC), pois todos têm o dever de colaborar com o magistrado na tarefa de descortinar a verdade dos fatos;

d) princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CR/88), pois um processo devido é aquele que produz resultados justos e equânimes;

e) princípio da adequação do procedimento, que decorre do devido processo legal, a significar uma modelagem procedimental a partir das peculiaridades do caso concreto;

f) princípio do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CR/88), que garante a obtenção de uma tutela jurisdicional justa e efetiva, na medida em que se confere a quem efetivamente tenha um

20direito o mecanismo adequado de demonstrá-lo em juízo.

Percebe-se, portanto, que a teoria da carga dinâmica probatória possui forte substrato constitucional, uma vez que, calcada nos princípios acima referidos, constitui mecanismo apto a densificá-los, de forma a propiciar a concretização dos direitos em juízo na maior medida possível.

Bem por isso é que Robson Renault Godinho, ao relacionar a distribuição do ônus da prova com o exercício dos direitos fundamentais, averba que:

[...] se o cumprimento do ônus probatório pode significar a tutela do direito aclamado em juízo, parece-nos intuitivo que as regras que disciplinam sua distribuição afetam diretamente a garantia do acesso à justiça. Se a distribuição do ônus da prova se der de uma forma que seja impossível que o interessado dele se desincumba, em última análise estará sendo-lhe

21negado o acesso à tutela jurisdicional.

Importante registrar que, de lege ferenda, essa teoria foi incorporada ao Anteprojeto de Código Brasileiro de Processo

Coletivo, de autoria do Instituto Brasileiro de Direito Processual, que no art. 11, §1º estabelece que “o ônus da prova incumbe à parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações específicas

22sobre os fatos, ou maior facilidade em sua demonstração” .

Carga probatória dinâmica e carga probatória compartilhada: duas faces da mesma moeda

Ao discorrer sobre a responsabilidade médica, Miguel Kfouri Neto distingue a carga probatória dinâmica da carga probatória compartilhada. Para o autor, na carga probatória dinâmica opera-se a transferência da posição da parte litigante – autor ou réu – em relação ao do ônus da prova. Ou seja, “por decisão do juiz, tais posições podem variar, e o sistema deixa de ser

23pétreo, para se tornar dinâmico” . A distribuição é dinâmica por apresentar uma mobilidade variável a partir de cada caso concreto.

Já a carga probatória compartilhada seria a atribuição do ônus da prova à parte que tem melhores condições de fazê-lo, como, por exemplo, os conhecimentos técnicos dos médicos em demandas de responsabilidade na área da saúde. Nesses casos, o autor-paciente produz toda a prova de que dispõe para contribuir com a instrução da demanda; e o réu-médico, de forma compartilhada, acaba sendo intimado para agregar elementos àquela mesma prova, mesmo porque lhe é mais fácil anexar aos autos o prontuário do paciente e prestar as demais informações técnicas sobre o procedimento em questão, de forma a contribuir para um julgamento justo e compatível com a realidade.

Na verdade, conquanto distintas na visão de Kfouri Neto, verifica-se que a carga dinâmica e a carga compartilhada são dois aspectos de um mesmo fenômeno, ou seja, são o verso e o anverso da mesma moeda, de forma que, antes de se distinguirem, se complementam enquanto proposição teórica.

20 DIDIER JR., F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. Curso de Direito Processual Civil, p. 61.21 GODINHO, R. R. A distribuição do ônus da prova na perspectiva dos direitos fundamentais. Marcelo Novelino (Org.). Salvador: Editora Jus PODIVM, 2006. p. 182.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008136 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 137

Momento da distribuição do ônus da prova

Tradicionalmente, como dito antes, prevalece na doutrina e na jurisprudência que as regras de ônus da prova previstas no art. 333 do CPC são regras de julgamento e não de procedimento.

Já em relação à inversão do ônus da prova, prevista no CDC, é grande a polêmica sobre a natureza e o momento adequado para a inversão. Sobre o assunto, formaram-se três correntes. Em apertada síntese, há quem entenda tratar-se de regra de procedimento e o momento adequado para a inversão seria no recebimento da inicial. Para outra corrente, embora concorde tratar-se de regra procedimental, o momento ideal seria no despacho saneador. Por fim, há quem afirme tratar-se de regra de juízo, pelo que o momento da inversão dar-se-ia por ocasião do julgamento da causa.

Apresentada a celeuma, convém perguntar: em relação à teoria da carga dinâmica do ônus da prova, qual seria o momento adequado para aplicá-la?

Bem, coerente com os apontamentos feitos ao longo deste trabalho, entende-se que a distribuição dinâmica do ônus da prova deve ser operada pelo juiz antes da fase instrutória. Ora, se a distribuição dinâmica assenta-se na cooperação e lealdade, deve o juiz, de antemão, ao verificar circunstancialmente quem revela melhores condições de produzir determinada prova, declinar a parte sobre quem pesará o ônus, para que, em tempo hábil, possa dele desincumbir-se satisfatoriamente. Não fosse assim, como ressalta Gidi, poder-se-ia conceber a peculiar situação de se atribuir um ônus ao réu e, ao mesmo tempo, negar-lhe a possibilidade de desincumbir-se do encargo que antes inexistia, o que, sem dúvida, compromete as garantias da ampla defesa e do contraditório.

Outro não é o entendimento acolhido pelo Anteprojeto de Código de Processo Coletivo, elaborado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em parceria com a Universidade Estácio de Sá, que no art. 19, §1º, dispõe que

o ônus da prova incumbe à parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos, ou maior facilidade em sua demonstração, cabendo ao juiz deliberar sobre

a distribuição do ônus da prova por ocasião da 24decisão saneadora .

Portanto, o momento mais adequado aplica-se à distribuição dinâmica no saneador, assegurando-se, a um só tempo, a cooperação e a lealdade que devem permear a relação jurídico-processual.

Casuística

Mesmo ausente a regra expressa no CPC, muitos de nossos tribunais, apartados de uma concepção meramente legalista, vêm reconhecendo a aplicabilidade prática à teoria da carga dinâmica probatória, a partir de uma interpretação sistemática e coerente com o texto constitucional, o que é um avanço.

Assim, antes das notas conclusivas, cabe fazer referência, ainda que minimamente, ao enfoque dado à matéria objeto do presente trabalho pela jurisprudência de nossos tribunais:

RESPONSABILIDADE CIVIL. MÉDICO. CLÍNICA. CULPA. PROVA.1. Não viola regra sobre a prova o acórdão que, além de aceitar implicitamente o princípio da carga dinâmica da prova, examina o conjunto probatório e conclui pela comprovação da culpa dos réus.2. Legitimidade passiva da clínica, inicialmente procurada pelo paciente.3. Juntada de textos científicos determinada de ofício pelo juiz. Regularidade.4. Responsabilização da clínica e do médico que atendeu o paciente submetido a uma operação cirúrgica da qual resultou a secção da medula.5. Inexistência de ofensa à lei e divergência não demonstrada.

25Recurso Especial não conhecido. (grife-se)

AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL –

24Texto disponível em: http//www.direitouerj.org.br/2005/download/outros/ cbpc.doc. Acesso em: 14 nov. 2007.25STJ. REsp 69309/SC. Rel(a).: Min. Ruy Rosado de Aguiar. Órgão Julgador: Quarta Turma. Data do Julgamento: 18/06/1996. Data da Publicação/Fonte: DJ 26.08.1996 p. 29688. Disponível em: http://www.stj.gov.br. Acesso em: 15 nov. 2007.

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Momento da distribuição do ônus da prova

Tradicionalmente, como dito antes, prevalece na doutrina e na jurisprudência que as regras de ônus da prova previstas no art. 333 do CPC são regras de julgamento e não de procedimento.

Já em relação à inversão do ônus da prova, prevista no CDC, é grande a polêmica sobre a natureza e o momento adequado para a inversão. Sobre o assunto, formaram-se três correntes. Em apertada síntese, há quem entenda tratar-se de regra de procedimento e o momento adequado para a inversão seria no recebimento da inicial. Para outra corrente, embora concorde tratar-se de regra procedimental, o momento ideal seria no despacho saneador. Por fim, há quem afirme tratar-se de regra de juízo, pelo que o momento da inversão dar-se-ia por ocasião do julgamento da causa.

Apresentada a celeuma, convém perguntar: em relação à teoria da carga dinâmica do ônus da prova, qual seria o momento adequado para aplicá-la?

Bem, coerente com os apontamentos feitos ao longo deste trabalho, entende-se que a distribuição dinâmica do ônus da prova deve ser operada pelo juiz antes da fase instrutória. Ora, se a distribuição dinâmica assenta-se na cooperação e lealdade, deve o juiz, de antemão, ao verificar circunstancialmente quem revela melhores condições de produzir determinada prova, declinar a parte sobre quem pesará o ônus, para que, em tempo hábil, possa dele desincumbir-se satisfatoriamente. Não fosse assim, como ressalta Gidi, poder-se-ia conceber a peculiar situação de se atribuir um ônus ao réu e, ao mesmo tempo, negar-lhe a possibilidade de desincumbir-se do encargo que antes inexistia, o que, sem dúvida, compromete as garantias da ampla defesa e do contraditório.

Outro não é o entendimento acolhido pelo Anteprojeto de Código de Processo Coletivo, elaborado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em parceria com a Universidade Estácio de Sá, que no art. 19, §1º, dispõe que

o ônus da prova incumbe à parte que detiver conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos, ou maior facilidade em sua demonstração, cabendo ao juiz deliberar sobre

a distribuição do ônus da prova por ocasião da 24decisão saneadora .

Portanto, o momento mais adequado aplica-se à distribuição dinâmica no saneador, assegurando-se, a um só tempo, a cooperação e a lealdade que devem permear a relação jurídico-processual.

Casuística

Mesmo ausente a regra expressa no CPC, muitos de nossos tribunais, apartados de uma concepção meramente legalista, vêm reconhecendo a aplicabilidade prática à teoria da carga dinâmica probatória, a partir de uma interpretação sistemática e coerente com o texto constitucional, o que é um avanço.

Assim, antes das notas conclusivas, cabe fazer referência, ainda que minimamente, ao enfoque dado à matéria objeto do presente trabalho pela jurisprudência de nossos tribunais:

RESPONSABILIDADE CIVIL. MÉDICO. CLÍNICA. CULPA. PROVA.1. Não viola regra sobre a prova o acórdão que, além de aceitar implicitamente o princípio da carga dinâmica da prova, examina o conjunto probatório e conclui pela comprovação da culpa dos réus.2. Legitimidade passiva da clínica, inicialmente procurada pelo paciente.3. Juntada de textos científicos determinada de ofício pelo juiz. Regularidade.4. Responsabilização da clínica e do médico que atendeu o paciente submetido a uma operação cirúrgica da qual resultou a secção da medula.5. Inexistência de ofensa à lei e divergência não demonstrada.

25Recurso Especial não conhecido. (grife-se)

AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL –

24Texto disponível em: http//www.direitouerj.org.br/2005/download/outros/ cbpc.doc. Acesso em: 14 nov. 2007.25STJ. REsp 69309/SC. Rel(a).: Min. Ruy Rosado de Aguiar. Órgão Julgador: Quarta Turma. Data do Julgamento: 18/06/1996. Data da Publicação/Fonte: DJ 26.08.1996 p. 29688. Disponível em: http://www.stj.gov.br. Acesso em: 15 nov. 2007.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008138 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 139

CAPACIDADE DE PAGAR DO ALIMENTANTE OU NA NECESSIDADE DO ALIMENTANDO – COMPROVAÇÃO – RECONVENÇÃO – ARGÜIÇÃO DE FATO NEGATIVO – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CARGA DINÂMICA DA PROVA – SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA – DECAIMENTO DE PARTE MÍNIMA PELO AUTOR – INTELIGÊNCIA DO ART. 401 DO CC DE 1916 E ARTS. 21, PARÁGRAFO ÚNICO E 245 AMBOS DO CPC. Nas chamadas nulidades do gênero das não-cominadas, ou mesmo nas irregularidades de ordem processual, não havendo qualquer manifestação, na primeira oportunidade em que a parte falar nos autos, verifica-se a preclusão. Provada a alteração do binômio necessidade/possibilidade, impõe-se a procedência do pleito revisional/exoneratório de alimentos. Pelo princípio da carga dinâmica da prova, a comprovação de determinado fato compete à parte cuja produção da prova está ao seu alcance. Se um litigante decair de parte mínima do pedido, o outro responderá, por inteiro, pelas despesas e honorários.

28Rejeitaram preliminar e negaram provimento.

Conclusão

A guisa de conclusão, tem-se que:

a) o processo civil atual deve ser estruturado para concretizar os direitos fundamentais na maior medida possível;

b) o aumento dos poderes instrutórios do juiz harmoniza-se com a missão de transformação positiva da realidade social, própria de um Estado Social Democrático de Direito, na medida em que visa ao equilíbrio entre as partes no processo;

c) o direito à prova é direito fundamental implícito, conforme art. 5º, §2º, da CR/88, porquanto de nada adiante titularizar direitos sem poder demonstrá-los em juízo;

CONTRATO BANCÁRIO – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA – HIPOSSUFICIÊNCIA DA PARTE – FACILITAÇÃO DA DEFESA DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR – PRINCÍPIO DA CARGA DINÂMICA DA PROVA. – A inversão do ônus da prova tem o objetivo de restabelecer a isonomia entre as partes, mediante a facilitação, na medida certa, da defesa dos direitos do consumidor. – O princípio da carga dinâmica consiste na possibilidade de a prova, em processos com características especiais, receber tratamento diferenciado, devendo o magistrado distribuir o ônus probatório à parte que se encontra em melhores condições de realizar a prova, e não à parte que a requereu. – Nas ações de revisão contratual é presumível a facilidade de exibição de documentos pelos bancos, que certamente mantêm arquivados os contratos celebrados com seus clientes, bem como os extratos de movimentação de conta corrente.

26Negaram provimento ao recurso.

REVISÃO DE CONTRATO BANCÁRIO. APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTO PELO BANCO. PRINCÍPIO DA CARGA DINÂMICA DA PROVA. – De acordo com o princípio da carga dinâmica da prova, aquele que está no controle da prova não pode negá-la. Assim, cabe ao Banco apresentar a documentação relativa aos contratos firmados, não podendo se furtar de fornecê-la. Preliminar rejeitada e recurso não provido. Rejeitaram

27a preliminar e negaram provimento.

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO R E V I S I O N A L D E A L I M E N T O S – CERCEAMENTO DE DEFESA – NULIDADE RELATIVA – PRECLUSÃO – MUDANÇA NA

26Apelação Cível n. 1.0702.06.289424-2/002(1), Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça de MG, Relator: Fabio Maia Viani, Julgado em 03/07/2007. Disponível em: http://www.tjmg.gov.br/juridico. Acesso em: 15 nov. 2007. 27Apelação Cível n. 2.0000.00.398779-5/000(1), Segunda Câmara Cível, Tribunal de Alçada de MG, Relator: Pereira da Silva, Julgado em 16/12/2003. Disponível em: http://www.tjmg.gov.br/juridico. Acesso em: 15 nov. 2007.

28Apelação Cível n. 1.0686.01.019604-2/002(1), Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça de MG, Relator: Dorival Guimarães Pereira, Julgado em 26/08/2004. Disponível em: http://www.tjmg.gov.br/juridico. Acesso em: 15 nov. 2007.

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CAPACIDADE DE PAGAR DO ALIMENTANTE OU NA NECESSIDADE DO ALIMENTANDO – COMPROVAÇÃO – RECONVENÇÃO – ARGÜIÇÃO DE FATO NEGATIVO – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CARGA DINÂMICA DA PROVA – SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA – DECAIMENTO DE PARTE MÍNIMA PELO AUTOR – INTELIGÊNCIA DO ART. 401 DO CC DE 1916 E ARTS. 21, PARÁGRAFO ÚNICO E 245 AMBOS DO CPC. Nas chamadas nulidades do gênero das não-cominadas, ou mesmo nas irregularidades de ordem processual, não havendo qualquer manifestação, na primeira oportunidade em que a parte falar nos autos, verifica-se a preclusão. Provada a alteração do binômio necessidade/possibilidade, impõe-se a procedência do pleito revisional/exoneratório de alimentos. Pelo princípio da carga dinâmica da prova, a comprovação de determinado fato compete à parte cuja produção da prova está ao seu alcance. Se um litigante decair de parte mínima do pedido, o outro responderá, por inteiro, pelas despesas e honorários.

28Rejeitaram preliminar e negaram provimento.

Conclusão

A guisa de conclusão, tem-se que:

a) o processo civil atual deve ser estruturado para concretizar os direitos fundamentais na maior medida possível;

b) o aumento dos poderes instrutórios do juiz harmoniza-se com a missão de transformação positiva da realidade social, própria de um Estado Social Democrático de Direito, na medida em que visa ao equilíbrio entre as partes no processo;

c) o direito à prova é direito fundamental implícito, conforme art. 5º, §2º, da CR/88, porquanto de nada adiante titularizar direitos sem poder demonstrá-los em juízo;

CONTRATO BANCÁRIO – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA – HIPOSSUFICIÊNCIA DA PARTE – FACILITAÇÃO DA DEFESA DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR – PRINCÍPIO DA CARGA DINÂMICA DA PROVA. – A inversão do ônus da prova tem o objetivo de restabelecer a isonomia entre as partes, mediante a facilitação, na medida certa, da defesa dos direitos do consumidor. – O princípio da carga dinâmica consiste na possibilidade de a prova, em processos com características especiais, receber tratamento diferenciado, devendo o magistrado distribuir o ônus probatório à parte que se encontra em melhores condições de realizar a prova, e não à parte que a requereu. – Nas ações de revisão contratual é presumível a facilidade de exibição de documentos pelos bancos, que certamente mantêm arquivados os contratos celebrados com seus clientes, bem como os extratos de movimentação de conta corrente.

26Negaram provimento ao recurso.

REVISÃO DE CONTRATO BANCÁRIO. APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTO PELO BANCO. PRINCÍPIO DA CARGA DINÂMICA DA PROVA. – De acordo com o princípio da carga dinâmica da prova, aquele que está no controle da prova não pode negá-la. Assim, cabe ao Banco apresentar a documentação relativa aos contratos firmados, não podendo se furtar de fornecê-la. Preliminar rejeitada e recurso não provido. Rejeitaram

27a preliminar e negaram provimento.

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO R E V I S I O N A L D E A L I M E N T O S – CERCEAMENTO DE DEFESA – NULIDADE RELATIVA – PRECLUSÃO – MUDANÇA NA

26Apelação Cível n. 1.0702.06.289424-2/002(1), Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça de MG, Relator: Fabio Maia Viani, Julgado em 03/07/2007. Disponível em: http://www.tjmg.gov.br/juridico. Acesso em: 15 nov. 2007. 27Apelação Cível n. 2.0000.00.398779-5/000(1), Segunda Câmara Cível, Tribunal de Alçada de MG, Relator: Pereira da Silva, Julgado em 16/12/2003. Disponível em: http://www.tjmg.gov.br/juridico. Acesso em: 15 nov. 2007.

28Apelação Cível n. 1.0686.01.019604-2/002(1), Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça de MG, Relator: Dorival Guimarães Pereira, Julgado em 26/08/2004. Disponível em: http://www.tjmg.gov.br/juridico. Acesso em: 15 nov. 2007.

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d) o sistema estático do ônus da prova, positivado no art. 333 do CPC, porque alheio à realidade do caso concreto, pode conduzir a julgamentos disparatados, inviabilizando a concretização do direito de quem efetivamente o tenha;

e) a teoria da carga dinâmica probatória, desenvolvida pelo jurista argentino Jorge W. Peyrano, rompe com o sistema estático, ao deslocar para o juiz a tarefa de distribuir o ônus da prova àquele que, no caso concreto, revelar melhores condições técnicas e específicas de produzi-la;

f) para essa concepção teórica, prova quem, casuisticamente, reunir melhores condições a tanto, pouco importando a posição que ocupa no processo ou a natureza do fato probando;

g) embora não expressa no CPC, a teoria da carga dinâmica inspirou a inversão do ônus da prova no CDC. Além disso, a partir de uma interpretação sistemática, pode ser extraída de vários princípios, entre os quais: igualdade, boa fé, cooperação, devido processo legal, adequação do procedimento e acesso à justiça;

h) a distribuição dinâmica do ônus da prova revela-se mecanismo de forte substrato constitucional, que potencializa o direito fundamental à prova, razão pela qual vem sendo absorvida pela doutrina e jurisprudência nacionais;

i) o momento processual adequado para aplicá-la é por ocasião do despacho saneador, para que a parte onerada tenha a possibilidade de desincumbir-se de seu ônus satisfatoriamente.

Referências

ALEXY, R. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002.

ALMEIDA, G. A. de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003.

ARAZI, R. La carga probatoria. Disponível em: http://www.apdp. com.ar/archivo/teoprueba.htm. Acesso em: 13 nov. 07.

ARENHART, S. C. A verdade substancial. Gênesis. Revista do

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008140 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 141

Direito Processual Civil, Curitiba, v. 3, 1996.

BEDAQUE, J. R. dos S. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. São Paulo: RT, 2001.

BENTHAM, J. Tratado de las pruebas judiciales. Trad. de Manuel Ossorio Florit. Buenos Aires: Granada Editorial Comares, 2001.

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CARNELUTTI, F. A prova civil. Apêndice de Giácomo P. Augenti. Campinas: Bookseller, 2001.

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d) o sistema estático do ônus da prova, positivado no art. 333 do CPC, porque alheio à realidade do caso concreto, pode conduzir a julgamentos disparatados, inviabilizando a concretização do direito de quem efetivamente o tenha;

e) a teoria da carga dinâmica probatória, desenvolvida pelo jurista argentino Jorge W. Peyrano, rompe com o sistema estático, ao deslocar para o juiz a tarefa de distribuir o ônus da prova àquele que, no caso concreto, revelar melhores condições técnicas e específicas de produzi-la;

f) para essa concepção teórica, prova quem, casuisticamente, reunir melhores condições a tanto, pouco importando a posição que ocupa no processo ou a natureza do fato probando;

g) embora não expressa no CPC, a teoria da carga dinâmica inspirou a inversão do ônus da prova no CDC. Além disso, a partir de uma interpretação sistemática, pode ser extraída de vários princípios, entre os quais: igualdade, boa fé, cooperação, devido processo legal, adequação do procedimento e acesso à justiça;

h) a distribuição dinâmica do ônus da prova revela-se mecanismo de forte substrato constitucional, que potencializa o direito fundamental à prova, razão pela qual vem sendo absorvida pela doutrina e jurisprudência nacionais;

i) o momento processual adequado para aplicá-la é por ocasião do despacho saneador, para que a parte onerada tenha a possibilidade de desincumbir-se de seu ônus satisfatoriamente.

Referências

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008140 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 141

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DIDIER JR., F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. Curso de Direito Processual Civil. v. 2. Salvador: Ed. Jus PODIVM, 2007.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008142

______. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo as peculiaridades de caso concreto. Disponível em: http://www.marinoni.adv.br. Acesso em: 13 nov. 07.

MOREIRA, J. C. B. Prueba y motivación de la sentencia. Temas de Direito Processual. 8. série. São Paulo: Saraiva, 2004.

NERY JÚNIOR, N. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

PEYRANO, J. W. Nuevos lineamientos de las cargas probatorias dinámicas. In: ED t.153-965.

WATANABE, K. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 5. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1998.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 143

Resumo:Este artigo tem por finalidade demonstrar a importância da ampliação dos intérpretes da constituição e, consequentemente, a superação das técnicas tradicionais de Jurisdição Constitucional, ou seja, os controles abstrato/concentrado e difuso/concreto. Além do mais, tenta-se aqui expor a tendência de democratização do Poder Judiciário brasileiro por meio do amicus curiae, instituto esse influenciado diretamente pelas teorias de Peter Häberle (2002) e Konrad Hesse (1991), ambos na defesa da interpretação aberta e plural da Constituição e a ampliação de sua força normativa.

Palavras-Chave: Constituição, hermenêutica constitucional, sociedade aberta e plural, força normativa, Poder Judiciário.

Constituição e Estado Democrático de Direito

Embora possuam pontos em comum, Estado de Direito e Estado Democrático de Direito não se confundem. Pode-se dizer que, numa análise histórica, aquele foi um pressuposto para a existência deste. Assim sendo, necessita-se fazer a diferenciação entre ambos.

A partir do século XV começam a se estruturar os Estados Nacionais na Europa Continental. Num processo sui generis, “o Leviatã” surge e se fortalece com a colaboração da classe burguesa, pois é ela quem mantinha e fomentava o comércio na época, participando decisivamente de grandes acontecimentos históricos, como as Grandes Navegações pela América, Ásia e África, por exemplo.

No entanto, o Estado Nacional só foi possível pelo fato de alguém centralizar o(s) poder(es) em suas mãos, haja vista que durante a Alta e Baixa Idade Média os fatores políticos e econômicos

A CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE ABERTA E PLURAL PARA AMPLIAÇÃO DA FORÇA

NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO

Hugo Ferreira de Araújo - José Anselmo Curado Fleury - Marco Aurélio Matos*

* Acadêmicos do 6º período de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG).

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008142

______. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo as peculiaridades de caso concreto. Disponível em: http://www.marinoni.adv.br. Acesso em: 13 nov. 07.

MOREIRA, J. C. B. Prueba y motivación de la sentencia. Temas de Direito Processual. 8. série. São Paulo: Saraiva, 2004.

NERY JÚNIOR, N. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

PEYRANO, J. W. Nuevos lineamientos de las cargas probatorias dinámicas. In: ED t.153-965.

WATANABE, K. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 5. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1998.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 143

Resumo:Este artigo tem por finalidade demonstrar a importância da ampliação dos intérpretes da constituição e, consequentemente, a superação das técnicas tradicionais de Jurisdição Constitucional, ou seja, os controles abstrato/concentrado e difuso/concreto. Além do mais, tenta-se aqui expor a tendência de democratização do Poder Judiciário brasileiro por meio do amicus curiae, instituto esse influenciado diretamente pelas teorias de Peter Häberle (2002) e Konrad Hesse (1991), ambos na defesa da interpretação aberta e plural da Constituição e a ampliação de sua força normativa.

Palavras-Chave: Constituição, hermenêutica constitucional, sociedade aberta e plural, força normativa, Poder Judiciário.

Constituição e Estado Democrático de Direito

Embora possuam pontos em comum, Estado de Direito e Estado Democrático de Direito não se confundem. Pode-se dizer que, numa análise histórica, aquele foi um pressuposto para a existência deste. Assim sendo, necessita-se fazer a diferenciação entre ambos.

A partir do século XV começam a se estruturar os Estados Nacionais na Europa Continental. Num processo sui generis, “o Leviatã” surge e se fortalece com a colaboração da classe burguesa, pois é ela quem mantinha e fomentava o comércio na época, participando decisivamente de grandes acontecimentos históricos, como as Grandes Navegações pela América, Ásia e África, por exemplo.

No entanto, o Estado Nacional só foi possível pelo fato de alguém centralizar o(s) poder(es) em suas mãos, haja vista que durante a Alta e Baixa Idade Média os fatores políticos e econômicos

A CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE ABERTA E PLURAL PARA AMPLIAÇÃO DA FORÇA

NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO

Hugo Ferreira de Araújo - José Anselmo Curado Fleury - Marco Aurélio Matos*

* Acadêmicos do 6º período de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG).

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de poder estavam difundidos em inúmeras áreas de influência, as quais ficaram conhecidas como feudos – unidades territoriais agrícolas auto-suficientes.

Com o intuito de reverter esse quadro desfavorável política e economicamente, a burguesia apóia a unificação dos centros de poder – feudos – para formação de uma grande unidade sociopolítica, ou seja, o Estado Nacional, o qual é comandado pelo monarca, detentor do poder político, jurídico e, também, econômico.

Tem-se então o Estado de Direito, que nada mais é do que o Estado submetido a leis pré-estabelecidas. É a submissão do soberano ao império da lei. Essa submissão, contudo, fica mitigada, pois no Antigo Regime – monarquia, mercantilismo e absolutismo – o monarca é o Estado personificado, sendo que acima dele só existia o poder divino – Teoria do poder divino. Nesse diapasão, Estado de Direito está longe de se referir à justiça ou democracia. Pelo contrário, às vezes se identifica intimamente com autoritarismo e, até mesmo, com totalitarismo.

Num pulo histórico, percebe-se que os séculos XVIII e XIX foram imprescindíveis para o modelamento do Estado atual. As Revoluções Burguesas na França, Inglaterra e nos Estados Unidos da América modificaram a Estrutura do Estado. As lutas liberais se deram por meio do fenômeno conhecido por “Constitucionalismo”, em que grupos organizados politicamente buscaram limitar o poder do governante através da implantação de um conjunto de normas jurídicas responsáveis pela proteção dos direitos dos cidadãos, bem como pelas reformulações política e administrativa do Estado constitucional.

Surgem, então, as idéias de direitos fundamentais do homem, de instituições essenciais ao Estado e de suas finalidades, todas inseridas num texto normativo intitulado Constituição, que recebeu status de superioridade em relação às demais normas. Há, assim, o incipiente aparecimento do Estado Democrático de Direito, que ainda hoje passa por um processo de construção.

A Constituição brasileira de 1988 traz, explicitamente, em seu Título I, “Dos Princípios Fundamentais”, os princípios que regulamentam o Estado Brasileiro Democrático de Direito, com a seguinte redação:

Art. 1. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e

do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I- a soberania; II- a cidadania; III- a dignidade da pessoa humana; IV- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V- o pluralismo político.

Jurisdição Constitucional Brasileira: a interpretação aberta de Häberle

A Constituição tem papel fundamental na conformidade do Estado Democrático de Direito. Num conceito singelo, pode-se definir Constituição como o conjunto de normas e princípios,

1hierarquicamente superior às demais normas , cuja incumbência é definir os direitos fundamentais do homem e as instituições e institutos estruturantes do Estado. Portanto, Constituição e Estado Democrático de Direito possuem íntima relação de dependência, sendo que este não pode existir sem aquela.

Dessa relação de dependência, e com o escopo de se manter a unicidade do ordenamento jurídico, os constitucionalistas criaram todo um processo de defesa da Constituição, conhecido por Jurisdição Constitucional. Segundo o professor Juliano Taveira (2007), Jurisdição Constitucional:

São todos os mecanismos de defesa da constitucionalidade. Daí envolver também a interpretação das disposições constitucionais e a correta aplicação das normas constitucionais, sem que essas atividades despertem necessariamente problemas ligados a antinomias envolvendo a supremacia da constituição.

Por conseguinte, Jurisdição Constitucional envolve tanto os processos judiciais de controle de constitucionalidade (ADPF, ADIN, ADC) quanto a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais (interpretação conforme a Constituição,

1 Na teoria de Hans Kelsen, o ordenamento jurídico é formado por um conjunto de normas jurídicas escalonadas, onde uma norma inferior busca fundamento em sua norma superior. No topo da pirâmide de escalonamento de normas jurídicas está a Constituição, denominada de norma fundamental.

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de poder estavam difundidos em inúmeras áreas de influência, as quais ficaram conhecidas como feudos – unidades territoriais agrícolas auto-suficientes.

Com o intuito de reverter esse quadro desfavorável política e economicamente, a burguesia apóia a unificação dos centros de poder – feudos – para formação de uma grande unidade sociopolítica, ou seja, o Estado Nacional, o qual é comandado pelo monarca, detentor do poder político, jurídico e, também, econômico.

Tem-se então o Estado de Direito, que nada mais é do que o Estado submetido a leis pré-estabelecidas. É a submissão do soberano ao império da lei. Essa submissão, contudo, fica mitigada, pois no Antigo Regime – monarquia, mercantilismo e absolutismo – o monarca é o Estado personificado, sendo que acima dele só existia o poder divino – Teoria do poder divino. Nesse diapasão, Estado de Direito está longe de se referir à justiça ou democracia. Pelo contrário, às vezes se identifica intimamente com autoritarismo e, até mesmo, com totalitarismo.

Num pulo histórico, percebe-se que os séculos XVIII e XIX foram imprescindíveis para o modelamento do Estado atual. As Revoluções Burguesas na França, Inglaterra e nos Estados Unidos da América modificaram a Estrutura do Estado. As lutas liberais se deram por meio do fenômeno conhecido por “Constitucionalismo”, em que grupos organizados politicamente buscaram limitar o poder do governante através da implantação de um conjunto de normas jurídicas responsáveis pela proteção dos direitos dos cidadãos, bem como pelas reformulações política e administrativa do Estado constitucional.

Surgem, então, as idéias de direitos fundamentais do homem, de instituições essenciais ao Estado e de suas finalidades, todas inseridas num texto normativo intitulado Constituição, que recebeu status de superioridade em relação às demais normas. Há, assim, o incipiente aparecimento do Estado Democrático de Direito, que ainda hoje passa por um processo de construção.

A Constituição brasileira de 1988 traz, explicitamente, em seu Título I, “Dos Princípios Fundamentais”, os princípios que regulamentam o Estado Brasileiro Democrático de Direito, com a seguinte redação:

Art. 1. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e

do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I- a soberania; II- a cidadania; III- a dignidade da pessoa humana; IV- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V- o pluralismo político.

Jurisdição Constitucional Brasileira: a interpretação aberta de Häberle

A Constituição tem papel fundamental na conformidade do Estado Democrático de Direito. Num conceito singelo, pode-se definir Constituição como o conjunto de normas e princípios,

1hierarquicamente superior às demais normas , cuja incumbência é definir os direitos fundamentais do homem e as instituições e institutos estruturantes do Estado. Portanto, Constituição e Estado Democrático de Direito possuem íntima relação de dependência, sendo que este não pode existir sem aquela.

Dessa relação de dependência, e com o escopo de se manter a unicidade do ordenamento jurídico, os constitucionalistas criaram todo um processo de defesa da Constituição, conhecido por Jurisdição Constitucional. Segundo o professor Juliano Taveira (2007), Jurisdição Constitucional:

São todos os mecanismos de defesa da constitucionalidade. Daí envolver também a interpretação das disposições constitucionais e a correta aplicação das normas constitucionais, sem que essas atividades despertem necessariamente problemas ligados a antinomias envolvendo a supremacia da constituição.

Por conseguinte, Jurisdição Constitucional envolve tanto os processos judiciais de controle de constitucionalidade (ADPF, ADIN, ADC) quanto a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais (interpretação conforme a Constituição,

1 Na teoria de Hans Kelsen, o ordenamento jurídico é formado por um conjunto de normas jurídicas escalonadas, onde uma norma inferior busca fundamento em sua norma superior. No topo da pirâmide de escalonamento de normas jurídicas está a Constituição, denominada de norma fundamental.

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princípio da proporcionalidade, inconstitucionalidade sem redução de texto, mutação constitucional etc.).

Dito isso, é preciso ressaltar que o Direito Constitucional brasileiro passa por um processo novo no que diz respeito à Jurisdição Constitucional. Aquelas fórmulas convencionais de controle de constitucionalidade, como Ação Direta de Constitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade, dão espaço a novas teorias mais democráticas, fundadas em jusfilósofos como Peter Häberle (2002) e Konrad Hesse (1991), fato esse que representa um grande avanço ao ordenamento jurídico pátrio.

Häberle (2002), em seu livro intitulado Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição, sustenta a ampliação dos legitimados para a interpretação da Constituição. Já que a Constituição é um texto que possui uma supremacia em relação às demais normas, pois contem interesses de todos os cidadãos de uma comunidade politicamente organizada, sua interpretação e proteção não devem ficar adstritas tão-somente aos órgãos do poder judiciário – juízes e tribunais. Pelo contrário, a todo cidadão é partilhada a “competência” de ser o guardião das normas constitucionais e suas devidas aplicações. Nesse sentido, Häberle (idem) trouxe grandes avanços à teoria constitucional, além de defender a abertura e democratização do judiciário, esfera de poder tão formal e distante da população.

O Direito brasileiro, depois de muito tempo, acompanhou a teoria de Häberle (2002), por meio da Emenda Constitucional n. 45/2004 e com as leis 9868/99 e 9882/99.

A Emenda Constitucional n. 45 ampliou os legitimados para a propositura da ação direta de constitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade, o que representa um extraordinário avanço na democratização do Estado e do Poder Judiciário. Assim, diz o artigo 103 da CF:

Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade: I) o Presidente da República; II) a Mesa do Senado Federal; III) a Mesa da Câmara dos Deputados; IV) a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V) o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI) o Procurador-Geral da República; VII) O Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil; VIII) Partido Político com representação no Congresso Nacional e IX) confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Por sua vez, a lei 9868/99, em seu art. 7, § 2, traz a figura do 2amicus curiae :

O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo do parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.

Foi o que aconteceu no julgamento da ADIN da Lei de Biossegurança, na análise da constitucionalidade da norma que permitia a manipulação de embriões para pesquisa com células embrionárias com o intuito de se obter células-tronco. O Supremo Tribunal Federal realizou inúmeras audiências públicas com as entidades interessadas no assunto, além de permitir que elas se manifestassem no processo, defendendo ou não as pesquisas com embriões.

Nesse sentido, o professor Juliano Taveira (2007) relata:

[...] a intervenção do amicus curiae promove democrática abertura do rol de intérpretes da constituição no processo de controle da constitucionalidade. Assim, é difícil negar que se trata de repercussão da tese de Häberle acerca da chama sociedade aberta dos intérpretes da constituição.

Portanto, tem-se a flexibilização do Judiciário e o fortalecimento do Estado Democrático de Direito através do controle de constitucionalidade com a participação da sociedade civil organizada. Assim, a sociedade é livre e aberta na medida em que se amplia o círculo dos intérpretes da constituição em sentido lato.

2 Etimologicamente, amicus curiae significa amigos da corte. No direito constitucional-processual quer significar terceiros interessados no controle de constitucionalidade, nas formas difuso-concreta ou concentrado-abstrata, de acordo com as Leis 9868/99, 9882/99 e CPC.

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princípio da proporcionalidade, inconstitucionalidade sem redução de texto, mutação constitucional etc.).

Dito isso, é preciso ressaltar que o Direito Constitucional brasileiro passa por um processo novo no que diz respeito à Jurisdição Constitucional. Aquelas fórmulas convencionais de controle de constitucionalidade, como Ação Direta de Constitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade, dão espaço a novas teorias mais democráticas, fundadas em jusfilósofos como Peter Häberle (2002) e Konrad Hesse (1991), fato esse que representa um grande avanço ao ordenamento jurídico pátrio.

Häberle (2002), em seu livro intitulado Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição, sustenta a ampliação dos legitimados para a interpretação da Constituição. Já que a Constituição é um texto que possui uma supremacia em relação às demais normas, pois contem interesses de todos os cidadãos de uma comunidade politicamente organizada, sua interpretação e proteção não devem ficar adstritas tão-somente aos órgãos do poder judiciário – juízes e tribunais. Pelo contrário, a todo cidadão é partilhada a “competência” de ser o guardião das normas constitucionais e suas devidas aplicações. Nesse sentido, Häberle (idem) trouxe grandes avanços à teoria constitucional, além de defender a abertura e democratização do judiciário, esfera de poder tão formal e distante da população.

O Direito brasileiro, depois de muito tempo, acompanhou a teoria de Häberle (2002), por meio da Emenda Constitucional n. 45/2004 e com as leis 9868/99 e 9882/99.

A Emenda Constitucional n. 45 ampliou os legitimados para a propositura da ação direta de constitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade, o que representa um extraordinário avanço na democratização do Estado e do Poder Judiciário. Assim, diz o artigo 103 da CF:

Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade: I) o Presidente da República; II) a Mesa do Senado Federal; III) a Mesa da Câmara dos Deputados; IV) a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V) o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI) o Procurador-Geral da República; VII) O Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil; VIII) Partido Político com representação no Congresso Nacional e IX) confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Por sua vez, a lei 9868/99, em seu art. 7, § 2, traz a figura do 2amicus curiae :

O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo do parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.

Foi o que aconteceu no julgamento da ADIN da Lei de Biossegurança, na análise da constitucionalidade da norma que permitia a manipulação de embriões para pesquisa com células embrionárias com o intuito de se obter células-tronco. O Supremo Tribunal Federal realizou inúmeras audiências públicas com as entidades interessadas no assunto, além de permitir que elas se manifestassem no processo, defendendo ou não as pesquisas com embriões.

Nesse sentido, o professor Juliano Taveira (2007) relata:

[...] a intervenção do amicus curiae promove democrática abertura do rol de intérpretes da constituição no processo de controle da constitucionalidade. Assim, é difícil negar que se trata de repercussão da tese de Häberle acerca da chama sociedade aberta dos intérpretes da constituição.

Portanto, tem-se a flexibilização do Judiciário e o fortalecimento do Estado Democrático de Direito através do controle de constitucionalidade com a participação da sociedade civil organizada. Assim, a sociedade é livre e aberta na medida em que se amplia o círculo dos intérpretes da constituição em sentido lato.

2 Etimologicamente, amicus curiae significa amigos da corte. No direito constitucional-processual quer significar terceiros interessados no controle de constitucionalidade, nas formas difuso-concreta ou concentrado-abstrata, de acordo com as Leis 9868/99, 9882/99 e CPC.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008148 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 149

A força normativa da Constituição: o poder de transformar a realidade

Todo cidadão é um ser político potencialmente capaz de interpretar a constituição e, desse modo, influenciar as decisões de seu país e fortalecer o regime democrático do seu Estado. No entanto, cada cidadão faz parte de um grupo num determinado Estado. E cada Estado é composto por inúmeros grupos que, reunidos, formam o que Lassalle (2004) chamou de “fatores reais e efetivos de poder”.

Os fatores de poder de uma sociedade são, portanto, a força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições políticas da sociedade em questão, fazendo com que não possam ser, em substância, mais do que tal e como são. Assim, a política, a economia, a mídia, o capital financeiro etc. são exemplos de fatores de poder que interferem direta e decisivamente na conformação da constituição de um país.

Lassalle (2004) cria uma teoria sociológica de constituição. O autor germânico afirma haver dois tipos de constituição: a real, formada pelos fatores de poder; e a jurídica, que nada mais é do que um conjunto de normas escritas numa folha de papel subordinada aos fatores reais e efetivos de poder. Então, segundo Lassalle (2004), a Constituição jurídica está subordinada à Constituição real.

Embora seja louvável a tese de Lassalle (2004), não se pode com ela concordar, pelo menos em sua plenitude.

Foi abordado que as constituições atualmente passam por um processo de democratização no que diz respeito aos legitimados a sua proteção e interpretação, e na Constituição brasileira não é diferente. Esse processo, sem dúvida alguma, fortalece o poder de vinculação das normas infraconstitucionais às normas constitucionais. Então, há um efeito reversível entre a realidade e a Constituição, uma modelando, concomitantemente, a outra. É o que Hesse (1991), confrontando Lassalle (2004), denomina de força normativa da Constituição.

Hesse (1991), assim, demonstra que quando houver um confronto entre os fatores de poder e a Constituição jurídica, não necessariamente esta terá que sucumbir perante aqueles. Isso porque a Constituição possui uma mínima força normativa capaz de conformar o mundo do ser. E essa força normativa, por conseguinte, é tão mais forte quanto maior for sua legitimidade,

qualificada essa legitimação pela pluralidade de seus intérpretes e pelo seu conteúdo, o qual deve conter os interesses dos diversos grupos de uma sociedade politicamente organizada.

Há que se mencionar que a estabilidade do texto constitucional é de suma importância para sua força normativa e regulamentação do mundo do ser. Então, as inúmeras reformas constitucionais – a Constituição de 1988 já recebeu 56 emendas – refletem de certa maneira a fragilidade da norma fundamental perante os fatores reais de poder, diminuindo sensivelmente sua força normativa.

Explicando esse fenômeno, Hesse (1991) afirma:

Igualmente perigosa para força normativa da Constituição afigura-se a tendência para a freqüente revisão constitucional sob a alegação de suposta e inarredável necessidade política. Cada reforma constitucional expressa a idéia de que, efetiva o aparentemente, atribui-se maior valor às exigências de índole fática do que à ordem normativa vigente.

Para proteger a Constituição dessas possíveis anomalias, uma das formas é através da interpretação das normas constitucionais e, segundo Häberle (2002), construindo uma sociedade aberta e plural dos intérpretes da constituição. Nesse sentido, a interpretação adequada é capaz de consolidar e preservar o real objetivo da norma e a preservação da Constituição, bem como da sua força normativa e influência no mundo do ser.

Considerações finais

O Estado Democrático de Direito tem como princípio uma Constituição legítima, no sentido formal e material. Essa legitimação só se consolida quando os cidadãos têm a possibilidade de participar ativamente das decisões políticas e jurídicas de seu país.

Demonstrou-se neste trabalho que, apoiando-se nas teses de Häberle (2002) e Hesse (2001), as técnicas tradicionais de Jurisdição Constitucional não são mais suficientes para satisfazer os interesses de uma sociedade aberta e plural.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008148 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 149

A força normativa da Constituição: o poder de transformar a realidade

Todo cidadão é um ser político potencialmente capaz de interpretar a constituição e, desse modo, influenciar as decisões de seu país e fortalecer o regime democrático do seu Estado. No entanto, cada cidadão faz parte de um grupo num determinado Estado. E cada Estado é composto por inúmeros grupos que, reunidos, formam o que Lassalle (2004) chamou de “fatores reais e efetivos de poder”.

Os fatores de poder de uma sociedade são, portanto, a força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições políticas da sociedade em questão, fazendo com que não possam ser, em substância, mais do que tal e como são. Assim, a política, a economia, a mídia, o capital financeiro etc. são exemplos de fatores de poder que interferem direta e decisivamente na conformação da constituição de um país.

Lassalle (2004) cria uma teoria sociológica de constituição. O autor germânico afirma haver dois tipos de constituição: a real, formada pelos fatores de poder; e a jurídica, que nada mais é do que um conjunto de normas escritas numa folha de papel subordinada aos fatores reais e efetivos de poder. Então, segundo Lassalle (2004), a Constituição jurídica está subordinada à Constituição real.

Embora seja louvável a tese de Lassalle (2004), não se pode com ela concordar, pelo menos em sua plenitude.

Foi abordado que as constituições atualmente passam por um processo de democratização no que diz respeito aos legitimados a sua proteção e interpretação, e na Constituição brasileira não é diferente. Esse processo, sem dúvida alguma, fortalece o poder de vinculação das normas infraconstitucionais às normas constitucionais. Então, há um efeito reversível entre a realidade e a Constituição, uma modelando, concomitantemente, a outra. É o que Hesse (1991), confrontando Lassalle (2004), denomina de força normativa da Constituição.

Hesse (1991), assim, demonstra que quando houver um confronto entre os fatores de poder e a Constituição jurídica, não necessariamente esta terá que sucumbir perante aqueles. Isso porque a Constituição possui uma mínima força normativa capaz de conformar o mundo do ser. E essa força normativa, por conseguinte, é tão mais forte quanto maior for sua legitimidade,

qualificada essa legitimação pela pluralidade de seus intérpretes e pelo seu conteúdo, o qual deve conter os interesses dos diversos grupos de uma sociedade politicamente organizada.

Há que se mencionar que a estabilidade do texto constitucional é de suma importância para sua força normativa e regulamentação do mundo do ser. Então, as inúmeras reformas constitucionais – a Constituição de 1988 já recebeu 56 emendas – refletem de certa maneira a fragilidade da norma fundamental perante os fatores reais de poder, diminuindo sensivelmente sua força normativa.

Explicando esse fenômeno, Hesse (1991) afirma:

Igualmente perigosa para força normativa da Constituição afigura-se a tendência para a freqüente revisão constitucional sob a alegação de suposta e inarredável necessidade política. Cada reforma constitucional expressa a idéia de que, efetiva o aparentemente, atribui-se maior valor às exigências de índole fática do que à ordem normativa vigente.

Para proteger a Constituição dessas possíveis anomalias, uma das formas é através da interpretação das normas constitucionais e, segundo Häberle (2002), construindo uma sociedade aberta e plural dos intérpretes da constituição. Nesse sentido, a interpretação adequada é capaz de consolidar e preservar o real objetivo da norma e a preservação da Constituição, bem como da sua força normativa e influência no mundo do ser.

Considerações finais

O Estado Democrático de Direito tem como princípio uma Constituição legítima, no sentido formal e material. Essa legitimação só se consolida quando os cidadãos têm a possibilidade de participar ativamente das decisões políticas e jurídicas de seu país.

Demonstrou-se neste trabalho que, apoiando-se nas teses de Häberle (2002) e Hesse (2001), as técnicas tradicionais de Jurisdição Constitucional não são mais suficientes para satisfazer os interesses de uma sociedade aberta e plural.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008150

A força normativa da norma fundamental aumenta na medida em que se dá a possibilidade da sociedade organizada participar do processo de controle e interpretação das normas constitucionais. E, como foi exposto alhures, o Brasil e o Supremo Tribunal Federal seguem esta tendência, ainda que de forma incipiente, por meio do amicus curiae e audiências públicas.

Referências

BOBBIO, N. Teoria geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

HÄBERLE, P. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição - contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002.

HESSE, K. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991.

LASSALLE, F. O que é uma Constituição? Trad. de Hiltomar Martins de Oliveira. Belo Horizonte: Cultura Jurídica, 2004.

TAVEIRA, J. Processo Constitucional. Goiânia: Sinapse Jurídico, 2007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 151

Resumo:O presente estudo tem como objetivo justificar e analisar o papel da instituição Tribunal de Contas enquanto partícipe do círculo dos intérpretes da Constituição, assim como sua importância no zelo pela supremacia daquela lei. Para tanto, fez-se um apanhado histórico acerca daquele órgão, de sua autonomia constitucional, legitimidade e de seu papel e peculiaridades na aferição e controle de constitucionalidade de leis e atos normativos.

Palavras-chave: Tribunal de Contas, controle de constitucionalidade, legitimidade, aferição, leis, atos normativos.

Introdução

Muito se tem discutido acerca da ampliação do círculo dos intérpretes da Constituição para efetivação daquilo que é preconizado pelo Estado Democrático de Direito, sendo, por conseguinte, louvável qualquer iniciativa que se aprofunde no estudo do tema.

Nesse sentido é que o estudo ora proposto se insere, i.e., verificar o papel do Tribunal de Contas – órgão constitucionalmente autônomo e que tem como principal atribuição zelar pela correta aplicação dos recursos públicos – no controle de constitucionalidade das leis e atos normativos.

A despeito da pouca bibliografia acerca do assunto – o que só valoriza o presente trabalho –, já que não há nenhuma obra que cuide especificamente do tema, valemo-nos, sobretudo, de artigos

LEGITIMIDADE DOS TRIBUNAIS DE CONTAS BRASILEIROS NA AFERIÇÃO DA

CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS E ATOS NORMATIVOS

Pedro Ivo Gomes da Silva Mafra*

* Advogado, especialista em Direito Constitucional (UFG, 2007), assessor de Orientação Legislativa (TCM-GO), membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-GO e do Instituto Goiano de Direito Constitucional – IGDC. E-mail: [email protected].

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008150

A força normativa da norma fundamental aumenta na medida em que se dá a possibilidade da sociedade organizada participar do processo de controle e interpretação das normas constitucionais. E, como foi exposto alhures, o Brasil e o Supremo Tribunal Federal seguem esta tendência, ainda que de forma incipiente, por meio do amicus curiae e audiências públicas.

Referências

BOBBIO, N. Teoria geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

HÄBERLE, P. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição - contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002.

HESSE, K. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991.

LASSALLE, F. O que é uma Constituição? Trad. de Hiltomar Martins de Oliveira. Belo Horizonte: Cultura Jurídica, 2004.

TAVEIRA, J. Processo Constitucional. Goiânia: Sinapse Jurídico, 2007.

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 151

Resumo:O presente estudo tem como objetivo justificar e analisar o papel da instituição Tribunal de Contas enquanto partícipe do círculo dos intérpretes da Constituição, assim como sua importância no zelo pela supremacia daquela lei. Para tanto, fez-se um apanhado histórico acerca daquele órgão, de sua autonomia constitucional, legitimidade e de seu papel e peculiaridades na aferição e controle de constitucionalidade de leis e atos normativos.

Palavras-chave: Tribunal de Contas, controle de constitucionalidade, legitimidade, aferição, leis, atos normativos.

Introdução

Muito se tem discutido acerca da ampliação do círculo dos intérpretes da Constituição para efetivação daquilo que é preconizado pelo Estado Democrático de Direito, sendo, por conseguinte, louvável qualquer iniciativa que se aprofunde no estudo do tema.

Nesse sentido é que o estudo ora proposto se insere, i.e., verificar o papel do Tribunal de Contas – órgão constitucionalmente autônomo e que tem como principal atribuição zelar pela correta aplicação dos recursos públicos – no controle de constitucionalidade das leis e atos normativos.

A despeito da pouca bibliografia acerca do assunto – o que só valoriza o presente trabalho –, já que não há nenhuma obra que cuide especificamente do tema, valemo-nos, sobretudo, de artigos

LEGITIMIDADE DOS TRIBUNAIS DE CONTAS BRASILEIROS NA AFERIÇÃO DA

CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS E ATOS NORMATIVOS

Pedro Ivo Gomes da Silva Mafra*

* Advogado, especialista em Direito Constitucional (UFG, 2007), assessor de Orientação Legislativa (TCM-GO), membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-GO e do Instituto Goiano de Direito Constitucional – IGDC. E-mail: [email protected].

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publicados em periódicos especializados e de jurisprudência específica, para que se pudesse desenvolver o estudo com um mínimo de coerência e profundidade sem, contudo, ter a presunção de querer esgotar o tema, já que seria necessário estudo de maior fôlego, dadas as variantes e peculiaridades que lhe são afetos.

Daí, partindo-se de estudo histórico acerca da fiscalização das finanças públicas e da instituição Tribunal de Contas, desde sua criação que, entre nós, deu-se por iniciativa de Rui Barbosa, até sua nova feição dada pela Constituição Federal de 1988, discutindo, inclusive, sua autonomia constitucional para, em seguida, iniciar-se o estudo acerca das características peculiares, bem como da importância do controle de constitucionalidade realizado no âmbito daquele órgão.

Em seguida, se aprofundou na questão da fiscalização da arrecadação de receitas e realização de despesas e seu controle, para, finalmente, tecer-se considerações acerca das características peculiares sobre a importância do controle de constitucionalidade naqueles órgãos fiscalizadores para efetivação dos ideais democráticos.

Por fim, o que se espera com o presente estudo é o aprofundamento na discussão do importante papel realizado pelos Tribunais de Contas, bem como contribuir para sua efetivação enquanto instituição pública que deve zelar pela supremacia da Constituição e pela concretização dos ideais democráticos nela insculpidos.

Aspectos históricos acerca da fiscalização das finanças públicas

Com o objetivo de proteger bens e valores públicos, impedindo a prática de ilegalidades pelos administradores, desde a antiguidade surgiram órgãos responsáveis pela fiscalização das finanças públicas.

Tal fiscalização, da qual se tem notícia desde a Grécia antiga, era feita pela assembléia popular, a Eclésia, reunida na Ágora, a praça pública, onde eram eleitos dez oficiais, anualmente, para que tomassem contas de arcontes, embaixadores, generais, comandantes de galeras, sacerdotes e todos aqueles que geriam o dinheiro público. Em Roma, a fiscalização era exercida pelo

Senado Romano que, por vezes, a delegou a comissões especiais. No medievo, existiam os Conselhos de Contas, que tinham como competência fiscalizar as finanças do Monarca, embora, ainda,

1dissociada do parlamento .Depois, já em 1789, o direito à prestação de contas foi

erigido a direito fundamental, como se pode ver no art. 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, dizendo que “a sociedade tem o direito de pedir conta a todo agente público de sua administração”. Podendo-se inferir, daí, que a previsão daquele direito tem como fundamento outro direito, que é maior e que o justifica, i.e., o direito a um governo honesto, que tenha como

2finalidade suprir necessidades e interesses sociais .Como diz Elke Andrade Soares de Moura Silva:

Nos Estados Democráticos de Direito, como é o caso brasileiro, é imprescindível que os atos de índole financeira da Administração sejam controlados por um órgão externo à própria Administração, dotado de autonomia e garantias para o desempenho de suas funções, afinal se está diante da res publica, cuja destinação e emprego não podem se dar senão da forma determinada nas leis legitimamente instituídas. Foi a partir dessa premissa que se institucionalizou, ao lado do controle interno, o chamado controle externo das

3unidades administrativas dos Poderes do Estado.

Entre nós, a instituição Tribunal de Contas nasceu por iniciativa de Rui Barbosa, enquanto Ministro da Fazenda do Governo provisório, através do Decreto n. 966-A, de 07/11/1890, cujo trecho de sua exposição de motivos destacamos:

1 MARANHÃO, J. Tribunal de Contas e Poder Judiciário. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 27, n. 107, p. 161-164, jul./set. 1990.2 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 52, n. 3, p. 69, jul./set. 2004a.3 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 69.

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publicados em periódicos especializados e de jurisprudência específica, para que se pudesse desenvolver o estudo com um mínimo de coerência e profundidade sem, contudo, ter a presunção de querer esgotar o tema, já que seria necessário estudo de maior fôlego, dadas as variantes e peculiaridades que lhe são afetos.

Daí, partindo-se de estudo histórico acerca da fiscalização das finanças públicas e da instituição Tribunal de Contas, desde sua criação que, entre nós, deu-se por iniciativa de Rui Barbosa, até sua nova feição dada pela Constituição Federal de 1988, discutindo, inclusive, sua autonomia constitucional para, em seguida, iniciar-se o estudo acerca das características peculiares, bem como da importância do controle de constitucionalidade realizado no âmbito daquele órgão.

Em seguida, se aprofundou na questão da fiscalização da arrecadação de receitas e realização de despesas e seu controle, para, finalmente, tecer-se considerações acerca das características peculiares sobre a importância do controle de constitucionalidade naqueles órgãos fiscalizadores para efetivação dos ideais democráticos.

Por fim, o que se espera com o presente estudo é o aprofundamento na discussão do importante papel realizado pelos Tribunais de Contas, bem como contribuir para sua efetivação enquanto instituição pública que deve zelar pela supremacia da Constituição e pela concretização dos ideais democráticos nela insculpidos.

Aspectos históricos acerca da fiscalização das finanças públicas

Com o objetivo de proteger bens e valores públicos, impedindo a prática de ilegalidades pelos administradores, desde a antiguidade surgiram órgãos responsáveis pela fiscalização das finanças públicas.

Tal fiscalização, da qual se tem notícia desde a Grécia antiga, era feita pela assembléia popular, a Eclésia, reunida na Ágora, a praça pública, onde eram eleitos dez oficiais, anualmente, para que tomassem contas de arcontes, embaixadores, generais, comandantes de galeras, sacerdotes e todos aqueles que geriam o dinheiro público. Em Roma, a fiscalização era exercida pelo

Senado Romano que, por vezes, a delegou a comissões especiais. No medievo, existiam os Conselhos de Contas, que tinham como competência fiscalizar as finanças do Monarca, embora, ainda,

1dissociada do parlamento .Depois, já em 1789, o direito à prestação de contas foi

erigido a direito fundamental, como se pode ver no art. 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, dizendo que “a sociedade tem o direito de pedir conta a todo agente público de sua administração”. Podendo-se inferir, daí, que a previsão daquele direito tem como fundamento outro direito, que é maior e que o justifica, i.e., o direito a um governo honesto, que tenha como

2finalidade suprir necessidades e interesses sociais .Como diz Elke Andrade Soares de Moura Silva:

Nos Estados Democráticos de Direito, como é o caso brasileiro, é imprescindível que os atos de índole financeira da Administração sejam controlados por um órgão externo à própria Administração, dotado de autonomia e garantias para o desempenho de suas funções, afinal se está diante da res publica, cuja destinação e emprego não podem se dar senão da forma determinada nas leis legitimamente instituídas. Foi a partir dessa premissa que se institucionalizou, ao lado do controle interno, o chamado controle externo das

3unidades administrativas dos Poderes do Estado.

Entre nós, a instituição Tribunal de Contas nasceu por iniciativa de Rui Barbosa, enquanto Ministro da Fazenda do Governo provisório, através do Decreto n. 966-A, de 07/11/1890, cujo trecho de sua exposição de motivos destacamos:

1 MARANHÃO, J. Tribunal de Contas e Poder Judiciário. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 27, n. 107, p. 161-164, jul./set. 1990.2 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 52, n. 3, p. 69, jul./set. 2004a.3 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 69.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008154 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 155

A medida que vem propor-vos é a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediária à administração e à legislatura que, colocando em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil [...]. Convém levantar entre o poder que autoriza periodicamente a despesa e o poder que quotidianamente a executa um mediador independente, auxiliar de um e de outro, que, comunicando com a legislatura e intervindo na administração, seja não só o vigia como a mão forte da primeira sobre a segunda, obstando a perpetuação das infrações orçamentárias por um veto oportuno aos atos do executivo, que direta ou indireta, próxima ou remotamente, discrepam da linha rigorosa das leis de finanças.

Surgiu então, o Tribunal de Contas, em sede constitucional, na Carta da República de 1891, porém foi tratado no capítulo pertinente às Disposições Gerais, e não nos capítulos que cuidavam da organização e funcionamento dos poderes. Tinha como competência liquidar as

4contas da receita e da despesa e verificar sua legalidade (art. 89) .A Constituição de 1934 ampliou suas competências.

Coube-lhe, então, acompanhar a execução orçamentária e julgar as contas dos responsáveis por dinheiro e bens públicos, além de proceder ao registro prévio dos contratos e outros atos administrativos que consistissem em despesa pública. Nesta Carta, o Tribunal foi inserido no capítulo que cuidava dos órgãos de cooperação nas atividades governamentais.

Na Constituição de 1937 o Tribunal de contas foi colocado no âmbito do Poder Judiciário e, em virtude do regime político que vigorava na época, teve suas competências limitadas ao controle e julgamento das contas dos responsáveis por haveres públicos e

contratos celebrados pela União. Situação que durou até 1945, quando a Lei Constitucional n. 9, de 28/02/1945, reintroduziu o acompanhamento da execução orçamentária entre suas atribuições.

Contudo, foi a partir da Constituição de 1946 que o Tribunal de Contas passou a ser tratado no capítulo que cuidava do Poder Legislativo sem, no entanto, integrá-lo. Essa Carta restabeleceu também sua competência quanto ao registro dos atos da Administração Pública que importassem em obrigação de pagamento pelo tesouro, com a distinção de que o referido registro poderia ser prévio ou posterior.

Na Constituição de 1967, alterada pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, criou-se seção específica dentro do capítulo destinado ao Poder Legislativo, que dispôs sobre a fiscalização financeira e orçamentária, sendo introduzida, na oportunidade, a competência do Tribunal de Contas para apreciar a legalidade das concessões de aposentadorias, reformas e pensões.

Atualmente, com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a prestação de contas da administração direta e indireta foi erigida como princípio constitucional, cuja inobservância pode motivar a intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal (art. 34, VII, “d”). Vê-se também, que muito se conquistou desde a Constituição de 1946, já que as competências do Tribunal de Contas foram ampliadas, dando-se novo perfil à

5fiscalização efetuada por aquele órgão .Por fim, parece-nos interessante ressaltar que existem hoje,

no País, trinta e quatro Tribunais de Contas, i.e, o Tribunal de Contas da União, somado a mais vinte e sete Tribunais de Contas estaduais, bem como o competente para analisar as contas do Distrito Federal.

4 Para estudo mais profundo acerca do regime jurídico dos Tribunais de Contas, bem como de instituições assemelhadas no direito comparado, ver: GUALLAZZI, E. L. B. Regime jurídico dos Tribunais de Contas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992.

5 Nesse sentido também caminha o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “[...] com a superveniência da nova Constituição ampliou-se, de modo extremamente significativo, a esfera da competência dos Tribunais de Contas, os quais foram investidos de poderes políticos mais amplos, em decorrente de uma consciente opção política feita pelo legislador constituinte, a revelar a inquestionável essencialidade dessa instituição surgida nos albores da República. A atuação dos Tribunais de Contas assume, por isso, importância no campo do controle externo e constitui, como natural decorrência do fortalecimento de sua ação institucional, tema de irrecusável relevância” (ADI 215 MC/PB. Rel. Min. Celso de Mello. Decisão de 7.6.1990. Tribunal Pleno. DJ 3.8.1990, p. 7.234).

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A medida que vem propor-vos é a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediária à administração e à legislatura que, colocando em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil [...]. Convém levantar entre o poder que autoriza periodicamente a despesa e o poder que quotidianamente a executa um mediador independente, auxiliar de um e de outro, que, comunicando com a legislatura e intervindo na administração, seja não só o vigia como a mão forte da primeira sobre a segunda, obstando a perpetuação das infrações orçamentárias por um veto oportuno aos atos do executivo, que direta ou indireta, próxima ou remotamente, discrepam da linha rigorosa das leis de finanças.

Surgiu então, o Tribunal de Contas, em sede constitucional, na Carta da República de 1891, porém foi tratado no capítulo pertinente às Disposições Gerais, e não nos capítulos que cuidavam da organização e funcionamento dos poderes. Tinha como competência liquidar as

4contas da receita e da despesa e verificar sua legalidade (art. 89) .A Constituição de 1934 ampliou suas competências.

Coube-lhe, então, acompanhar a execução orçamentária e julgar as contas dos responsáveis por dinheiro e bens públicos, além de proceder ao registro prévio dos contratos e outros atos administrativos que consistissem em despesa pública. Nesta Carta, o Tribunal foi inserido no capítulo que cuidava dos órgãos de cooperação nas atividades governamentais.

Na Constituição de 1937 o Tribunal de contas foi colocado no âmbito do Poder Judiciário e, em virtude do regime político que vigorava na época, teve suas competências limitadas ao controle e julgamento das contas dos responsáveis por haveres públicos e

contratos celebrados pela União. Situação que durou até 1945, quando a Lei Constitucional n. 9, de 28/02/1945, reintroduziu o acompanhamento da execução orçamentária entre suas atribuições.

Contudo, foi a partir da Constituição de 1946 que o Tribunal de Contas passou a ser tratado no capítulo que cuidava do Poder Legislativo sem, no entanto, integrá-lo. Essa Carta restabeleceu também sua competência quanto ao registro dos atos da Administração Pública que importassem em obrigação de pagamento pelo tesouro, com a distinção de que o referido registro poderia ser prévio ou posterior.

Na Constituição de 1967, alterada pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, criou-se seção específica dentro do capítulo destinado ao Poder Legislativo, que dispôs sobre a fiscalização financeira e orçamentária, sendo introduzida, na oportunidade, a competência do Tribunal de Contas para apreciar a legalidade das concessões de aposentadorias, reformas e pensões.

Atualmente, com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a prestação de contas da administração direta e indireta foi erigida como princípio constitucional, cuja inobservância pode motivar a intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal (art. 34, VII, “d”). Vê-se também, que muito se conquistou desde a Constituição de 1946, já que as competências do Tribunal de Contas foram ampliadas, dando-se novo perfil à

5fiscalização efetuada por aquele órgão .Por fim, parece-nos interessante ressaltar que existem hoje,

no País, trinta e quatro Tribunais de Contas, i.e, o Tribunal de Contas da União, somado a mais vinte e sete Tribunais de Contas estaduais, bem como o competente para analisar as contas do Distrito Federal.

4 Para estudo mais profundo acerca do regime jurídico dos Tribunais de Contas, bem como de instituições assemelhadas no direito comparado, ver: GUALLAZZI, E. L. B. Regime jurídico dos Tribunais de Contas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992.

5 Nesse sentido também caminha o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “[...] com a superveniência da nova Constituição ampliou-se, de modo extremamente significativo, a esfera da competência dos Tribunais de Contas, os quais foram investidos de poderes políticos mais amplos, em decorrente de uma consciente opção política feita pelo legislador constituinte, a revelar a inquestionável essencialidade dessa instituição surgida nos albores da República. A atuação dos Tribunais de Contas assume, por isso, importância no campo do controle externo e constitui, como natural decorrência do fortalecimento de sua ação institucional, tema de irrecusável relevância” (ADI 215 MC/PB. Rel. Min. Celso de Mello. Decisão de 7.6.1990. Tribunal Pleno. DJ 3.8.1990, p. 7.234).

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008156 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 157

E, finalmente, mais seis Tribunais de Contas municipais, localizados em Goiás, Bahia, Pará, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo, observando-se, quanto aos dois últimos, que estes são competentes apenas para análise das contas das respectivas cidades, e não de todos os municípios do Estado, como é o caso dos outros.

Autonomia constitucional do Tribunal de Contas

Na segunda metade do século passado a Constituição italiana de 1948 e, logo após, a alemã, de 1949, outorgaram a suas respectivas cortes de contas autonomia constitucional, alçando-as,

6como diz Canotilho, à “órgãos constitucionais de soberania” . Nasceu, então, uma nova etapa para essa secular instituição de controle administrativo, que havia precedido até mesmo o Estado-Nação, sintonizando-a, com isso, com o conceito fundante de Estado Democrático de Direito. Assim, Portugal, em sua Constituição de 1976, assegurou também à sua Corte de Contas o mesmo status dos demais tribunais (art. 209, 1, “c”).

Entre nós, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 instituiu o Tribunal de Contas da União (art. 96) como padrão para os órgãos congêneres estaduais e municipais (art. 75), gozando das mesmas prerrogativas de autonomia asseguradas aos tribunais que compõem o Poder Judiciário (arts. 73 e 96), de modo que, de maneira enfática, no elenco de suas atribuições constitucionalmente dispostas, satisfaz concomitantemente a todos os critérios que igualmente o identificam e o distinguem como uma das estruturas políticas de soberania, no desempenho de diversas funções de proteção de direitos

7fundamentais de sede constitucional .Nesse sentido, afirma Diogo de Figueiredo Moreira Neto que:

[...] além de ser formalmente órgão de matriz constitucional, do mesmo modo, materialmente,

ostenta todas as condições requeridas na 8classificação de Spagna Musso , a saber.

Primeiro, a de ser órgão constitucional subordinante, uma vez que lhe são cometidas doze funções constitucionais (art. 71, § 2º), que permitem evidenciar relações de supraordinação em face às funções de outros órgãos ou de conjuntos orgânicos do Estado independentes.Segundo, a de ser órgão constitucional essencial, por desempenhar funções políticas, assim entendidas as que são expressões imediatas da soberania (art. 73, I, c/c art. 70, caput), uma vez que:1. aprecia a legitimidade e não apenas a legalidade das contas (art. 71, I e II);2. julga as contas de administradores públicos, com exceção das contas do Chefe do Poder Executivo (art. 71, II);3. fiscaliza aplicações de recursos repassados pela União aos demais entes da Federação (art. 71, VI);4. aplica sanções pecuniárias a agentes financeiros (art. 71, VIII);5. susta a execução de atos financeiramente impugnados de todos os Poderes (art. 71, X); e6. decide a respeito de contratos se o Poder Legislativo não tomar medidas a respeito depois de provocado (art. 71, §§ 1º e 2º).Terceiro, por ser órgão garantidor dos valores políticos-constitucionais do Estado Democrático de Direito, ou seja, porque exerce funções indispensáveis ao funcionamento dos princípios republicano e democrático, no tocante a um dos mais delicados aspectos de qualquer complexo juspolítico, que é, desde a Magna Carta, a gestão fiscal, como a disposição político-administrativa dos recursos retirados impositivamente dos

9contribuintes.

Com efeito, se é certo que se pode afirmar que a repartição de

8 Enrico Spagna Musso, publicista italiano e autor de: Diritto Costituzionale, Pádua: Cedam, 1992, obra na qual desenvolve a classificação usada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto.9 MOREIRA NETO, D. de F. et al. O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho dos Tribunais de Contas, op. cit., p. 60-61.

6 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1991. p. 709.7 MOREIRA NETO, D. de F. et al. O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho dos Tribunais de Contas. In: O novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2003. p. 60-61.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008156 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 157

E, finalmente, mais seis Tribunais de Contas municipais, localizados em Goiás, Bahia, Pará, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo, observando-se, quanto aos dois últimos, que estes são competentes apenas para análise das contas das respectivas cidades, e não de todos os municípios do Estado, como é o caso dos outros.

Autonomia constitucional do Tribunal de Contas

Na segunda metade do século passado a Constituição italiana de 1948 e, logo após, a alemã, de 1949, outorgaram a suas respectivas cortes de contas autonomia constitucional, alçando-as,

6como diz Canotilho, à “órgãos constitucionais de soberania” . Nasceu, então, uma nova etapa para essa secular instituição de controle administrativo, que havia precedido até mesmo o Estado-Nação, sintonizando-a, com isso, com o conceito fundante de Estado Democrático de Direito. Assim, Portugal, em sua Constituição de 1976, assegurou também à sua Corte de Contas o mesmo status dos demais tribunais (art. 209, 1, “c”).

Entre nós, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 instituiu o Tribunal de Contas da União (art. 96) como padrão para os órgãos congêneres estaduais e municipais (art. 75), gozando das mesmas prerrogativas de autonomia asseguradas aos tribunais que compõem o Poder Judiciário (arts. 73 e 96), de modo que, de maneira enfática, no elenco de suas atribuições constitucionalmente dispostas, satisfaz concomitantemente a todos os critérios que igualmente o identificam e o distinguem como uma das estruturas políticas de soberania, no desempenho de diversas funções de proteção de direitos

7fundamentais de sede constitucional .Nesse sentido, afirma Diogo de Figueiredo Moreira Neto que:

[...] além de ser formalmente órgão de matriz constitucional, do mesmo modo, materialmente,

ostenta todas as condições requeridas na 8classificação de Spagna Musso , a saber.

Primeiro, a de ser órgão constitucional subordinante, uma vez que lhe são cometidas doze funções constitucionais (art. 71, § 2º), que permitem evidenciar relações de supraordinação em face às funções de outros órgãos ou de conjuntos orgânicos do Estado independentes.Segundo, a de ser órgão constitucional essencial, por desempenhar funções políticas, assim entendidas as que são expressões imediatas da soberania (art. 73, I, c/c art. 70, caput), uma vez que:1. aprecia a legitimidade e não apenas a legalidade das contas (art. 71, I e II);2. julga as contas de administradores públicos, com exceção das contas do Chefe do Poder Executivo (art. 71, II);3. fiscaliza aplicações de recursos repassados pela União aos demais entes da Federação (art. 71, VI);4. aplica sanções pecuniárias a agentes financeiros (art. 71, VIII);5. susta a execução de atos financeiramente impugnados de todos os Poderes (art. 71, X); e6. decide a respeito de contratos se o Poder Legislativo não tomar medidas a respeito depois de provocado (art. 71, §§ 1º e 2º).Terceiro, por ser órgão garantidor dos valores políticos-constitucionais do Estado Democrático de Direito, ou seja, porque exerce funções indispensáveis ao funcionamento dos princípios republicano e democrático, no tocante a um dos mais delicados aspectos de qualquer complexo juspolítico, que é, desde a Magna Carta, a gestão fiscal, como a disposição político-administrativa dos recursos retirados impositivamente dos

9contribuintes.

Com efeito, se é certo que se pode afirmar que a repartição de

8 Enrico Spagna Musso, publicista italiano e autor de: Diritto Costituzionale, Pádua: Cedam, 1992, obra na qual desenvolve a classificação usada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto.9 MOREIRA NETO, D. de F. et al. O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho dos Tribunais de Contas, op. cit., p. 60-61.

6 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1991. p. 709.7 MOREIRA NETO, D. de F. et al. O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho dos Tribunais de Contas. In: O novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2003. p. 60-61.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008158 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 159

funções dá origem à teoria da divisão de poderes, também procede concluir-se que, em termos de expressão do Poder Estatal, hoje prevalece como técnica de separação de centros de expressão do Poder

10Estatal, o policentrismo institucional, a que se refere Canotilho .Assim, a estruturação do poder do Estado é historicamente

dinâmica, pois tem seguido a linha da contenção de monopólios e oligopólios do poder político, como uma providencial garantia da sociedade contra os males que eles historicamente semearam, mesmo em passado recente.

O processo organizativo do poder, como não se esgotou no constitucionalismo clássico, está longe de se ter acabado no moderno constitucionalismo, e prossegue a destacar novas funções específicas, que passam a ser desempenhadas por órgãos independentes, que não mais se incluem nos complexos orgânicos denominados de “Poderes” porque exerciam, como ainda o exercem, o que eram antes as únicas segmentações do poder do Estado, mas hoje se alinham apenas como as mais importantes, tanto pelas funções que desempenham quanto pela

11especial investidura de seus exercentes .Os Tribunais de Contas brasileiros são, assim, um nítido

exemplo de órgãos dotados de autonomia constitucional, no contexto da ordem jurídica brasileira, mas não são os únicos, porquanto, do mesmo modo, também o são as funções essenciais à justiça, tanto em seu órgão do ministério privado, a Ordem dos Advogados do Brasil, quanto em seus três órgãos de ministério público – da sociedade (Ministério Público tout court), do Estado (Advocacia Geral da União e Procuradores dos Estados) e dos hipossuficientes (Defensoria Pública), uma relação que poderá ser, em curto prazo, acrescida do Banco Central do Brasil, como já ocorre

12em vários países e na organização da Comunidade Européia .

O controle de constitucionalidade e o Tribunal de Contas

De inspiração norte-americana, foi atribuído o controle de constitucionalidade, entre nós, ao Poder Judiciário, conforme dispõe o caput do art. 102 da Constituição Federal, dizendo ser do Supremo Tribunal Federal a guarda da mesma.

O controle de constitucionalidade adotado no Brasil, em sua forma difusa e concentrada, é, sem dúvida, o jurisdicional, haja vista que pertence ao Judiciário, e não a um órgão político, a última palavra acerca da constitucionalidade de leis e atos normativos.

Contudo, em razão de toda a base teórico-filosófica sob a qual está delineado o Estado Democrático de Direito, a garantia das normas consubstanciadas na Constituição não deve ficar restrita aos órgãos do Poder Judiciário.

A partir do reconhecimento de que, dentro de um sistema democrático, a Constituição é de todos, uma vez que a legitimidade do Direito só pode advir de sua raiz democrática, i.e., da livre participação dos cidadãos na formação da opinião e da vontade públicas, de modo que todos sejam considerados não só destinatários da norma, mas também autores do direito que instituem para reger suas vidas, é que decorre a necessidade de se assegurar a sociedade aberta de intérpretes da Constituição apregoada por Peter Häberle (1997). Nesse sentido, ainda que a competência para o exercício do controle de constitucionalidade, em sentido estrito, só diga respeito aos órgãos do Poder Judiciário, a vista do modelo jurisdicional de controle adotado entre nós, a garantia da Constituição é atribuição que interessa a todos os cidadãos e órgãos que se encontram sob sua égide, os quais devem participar ativamente do processo de interpretação constitucional.

Com base neste relevante argumento, que compreende a imprescindibilidade de consideração da equiprimordialidade das autonomias pública e privada dos cidadãos, bem como o entendimento da dimensão do conteúdo das palavras como Direito, democracia, cidadania e constitucionalismo, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, que se busca enfocar o poder-dever do Tribunal de Contas, órgão de controle por excelência, que não integra a estrutura do Poder Judiciário, nem de nenhum dos poderes constituídos, mas cuja relevância é inegável

10 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição, op. cit., p. 62.11 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição, op. cit., p. 62.12 MOREIRA NETO, D. de F. et al. O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho dos Tribunais de Contas, op. cit., p. 62.

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funções dá origem à teoria da divisão de poderes, também procede concluir-se que, em termos de expressão do Poder Estatal, hoje prevalece como técnica de separação de centros de expressão do Poder

10Estatal, o policentrismo institucional, a que se refere Canotilho .Assim, a estruturação do poder do Estado é historicamente

dinâmica, pois tem seguido a linha da contenção de monopólios e oligopólios do poder político, como uma providencial garantia da sociedade contra os males que eles historicamente semearam, mesmo em passado recente.

O processo organizativo do poder, como não se esgotou no constitucionalismo clássico, está longe de se ter acabado no moderno constitucionalismo, e prossegue a destacar novas funções específicas, que passam a ser desempenhadas por órgãos independentes, que não mais se incluem nos complexos orgânicos denominados de “Poderes” porque exerciam, como ainda o exercem, o que eram antes as únicas segmentações do poder do Estado, mas hoje se alinham apenas como as mais importantes, tanto pelas funções que desempenham quanto pela

11especial investidura de seus exercentes .Os Tribunais de Contas brasileiros são, assim, um nítido

exemplo de órgãos dotados de autonomia constitucional, no contexto da ordem jurídica brasileira, mas não são os únicos, porquanto, do mesmo modo, também o são as funções essenciais à justiça, tanto em seu órgão do ministério privado, a Ordem dos Advogados do Brasil, quanto em seus três órgãos de ministério público – da sociedade (Ministério Público tout court), do Estado (Advocacia Geral da União e Procuradores dos Estados) e dos hipossuficientes (Defensoria Pública), uma relação que poderá ser, em curto prazo, acrescida do Banco Central do Brasil, como já ocorre

12em vários países e na organização da Comunidade Européia .

O controle de constitucionalidade e o Tribunal de Contas

De inspiração norte-americana, foi atribuído o controle de constitucionalidade, entre nós, ao Poder Judiciário, conforme dispõe o caput do art. 102 da Constituição Federal, dizendo ser do Supremo Tribunal Federal a guarda da mesma.

O controle de constitucionalidade adotado no Brasil, em sua forma difusa e concentrada, é, sem dúvida, o jurisdicional, haja vista que pertence ao Judiciário, e não a um órgão político, a última palavra acerca da constitucionalidade de leis e atos normativos.

Contudo, em razão de toda a base teórico-filosófica sob a qual está delineado o Estado Democrático de Direito, a garantia das normas consubstanciadas na Constituição não deve ficar restrita aos órgãos do Poder Judiciário.

A partir do reconhecimento de que, dentro de um sistema democrático, a Constituição é de todos, uma vez que a legitimidade do Direito só pode advir de sua raiz democrática, i.e., da livre participação dos cidadãos na formação da opinião e da vontade públicas, de modo que todos sejam considerados não só destinatários da norma, mas também autores do direito que instituem para reger suas vidas, é que decorre a necessidade de se assegurar a sociedade aberta de intérpretes da Constituição apregoada por Peter Häberle (1997). Nesse sentido, ainda que a competência para o exercício do controle de constitucionalidade, em sentido estrito, só diga respeito aos órgãos do Poder Judiciário, a vista do modelo jurisdicional de controle adotado entre nós, a garantia da Constituição é atribuição que interessa a todos os cidadãos e órgãos que se encontram sob sua égide, os quais devem participar ativamente do processo de interpretação constitucional.

Com base neste relevante argumento, que compreende a imprescindibilidade de consideração da equiprimordialidade das autonomias pública e privada dos cidadãos, bem como o entendimento da dimensão do conteúdo das palavras como Direito, democracia, cidadania e constitucionalismo, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, que se busca enfocar o poder-dever do Tribunal de Contas, órgão de controle por excelência, que não integra a estrutura do Poder Judiciário, nem de nenhum dos poderes constituídos, mas cuja relevância é inegável

10 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição, op. cit., p. 62.11 CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição, op. cit., p. 62.12 MOREIRA NETO, D. de F. et al. O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho dos Tribunais de Contas, op. cit., p. 62.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008160 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 161

no bojo de um regime democrático que garanta o respeito à Constituição, opondo-se, no desempenho de suas funções, à

13aplicação de leis manifestamente inconstitucionais .É necessário observar que, enquanto se reconhece a qualidade

de legítimos intérpretes da Constituição a todos os cidadãos, do qual 14resulta o direito de não cumprir norma que considere inconstitucional ,

ao Tribunal de Contas, apesar de não possuir competência para o exercício do controle de constitucionalidade em sentido estrito, pelas razões já expostas, se impõe o dever de negar aplicação a leis que considere incompatíveis com a Constituição. Esse dever pode ser extraído dos dispositivos que cuidam da competência e justificam a existência de uma instituição de controle das finanças públicas em um Estado que se diz democrático.

Como diz Elke Soares de Andrade e Moura Silva:

Deve ser enfatizada, ainda, como decorrência dessa atuação, a contribuição dos Tribunais de Contas para ampliação da arena de debate público acerca da interpretação constitucional. A partir do momento em que se provoca o Poder Judiciário, instância competente para o exercício do controle de constitucionalidade em sentido estrito, para que reaprecie decisão do Tribunal de Contas que negou aplicação a lei por considerá-la inconstitucional, se abrem possibilidades pra instauração do discurso acerca de leituras constitucionais conflitantes,

15fomentando a cidadania.

Raros são os trabalhos, para não dizer inexistentes, tanto aqui como alhures, acerca do papel exercido pelo Tribunal de Contas no controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Razão que motiva o estudo do controle de constitucionalidade realizado por um órgão autônomo e que não compõe o Poder Judiciário, vislumbrando a partir daí o respeito à supremacia da Constituição.

Arrecadação de receitas e realização de despesas e seu controle

Em suas atividades de fiscalização e julgamento, os Tribunais de Contas devem apreciar a legalidade dos atos dos administradores públicos que importem em arrecadação de receitas e realização de

16despesas (arts. 70-71 da Constituição Federal de 1988) .Com efeito, é pertinente ressaltar que o art. 75 da

Constituição Federal de 1988 estende o disposto na Seção IX, Capítulo I, Título IV – Da Fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária, cuja referência restringe-se ao Tribunal de Contas da União, no que couber à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.

Partindo-se da premissa de que a Constituição ocupa o ápice da pirâmide, em se tratando da hierarquia das normas, e a ela todo ordenamento jurídico deve adequar-se, incumbe àquelas instituições, i.e., aos Tribunais de Contas – e está aí o fundamento do direito que os legitima –, exercerem o controle de constitucionalidade, no sentido geral da expressão, quando do desempenho de suas atribuições. Se os atos submetidos à análise daqueles órgãos não se acham conforme a Constituição, logo, são contrários à lei, e, portanto, não devem ser aplicados por serem eivados de inconstitucionalidade.

Como observa Elke Soares de Andrade e Moura Silva:

Filosoficamente, o que assegura às Cortes de Contas a legitimidade para a realização da referida função são os próprios princípios em que se assenta o Estado Democrático de Direito, merecendo frisar o reconhecimento da legitimidade de todos para a interpretação e defesa da Constituição, porquanto dela fazem parte.Dessa forma, pode-se dizer que a Competência das C o r t e s d e C o n t a s p a r a o e x a m e d a constitucionalidade de leis e atos normativos

13 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 84.14 Direito esse conhecido como desobediência civil.15 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 85.

16 Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade [...], será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo [...] (grifado). Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União [...].

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008160 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 161

no bojo de um regime democrático que garanta o respeito à Constituição, opondo-se, no desempenho de suas funções, à

13aplicação de leis manifestamente inconstitucionais .É necessário observar que, enquanto se reconhece a qualidade

de legítimos intérpretes da Constituição a todos os cidadãos, do qual 14resulta o direito de não cumprir norma que considere inconstitucional ,

ao Tribunal de Contas, apesar de não possuir competência para o exercício do controle de constitucionalidade em sentido estrito, pelas razões já expostas, se impõe o dever de negar aplicação a leis que considere incompatíveis com a Constituição. Esse dever pode ser extraído dos dispositivos que cuidam da competência e justificam a existência de uma instituição de controle das finanças públicas em um Estado que se diz democrático.

Como diz Elke Soares de Andrade e Moura Silva:

Deve ser enfatizada, ainda, como decorrência dessa atuação, a contribuição dos Tribunais de Contas para ampliação da arena de debate público acerca da interpretação constitucional. A partir do momento em que se provoca o Poder Judiciário, instância competente para o exercício do controle de constitucionalidade em sentido estrito, para que reaprecie decisão do Tribunal de Contas que negou aplicação a lei por considerá-la inconstitucional, se abrem possibilidades pra instauração do discurso acerca de leituras constitucionais conflitantes,

15fomentando a cidadania.

Raros são os trabalhos, para não dizer inexistentes, tanto aqui como alhures, acerca do papel exercido pelo Tribunal de Contas no controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Razão que motiva o estudo do controle de constitucionalidade realizado por um órgão autônomo e que não compõe o Poder Judiciário, vislumbrando a partir daí o respeito à supremacia da Constituição.

Arrecadação de receitas e realização de despesas e seu controle

Em suas atividades de fiscalização e julgamento, os Tribunais de Contas devem apreciar a legalidade dos atos dos administradores públicos que importem em arrecadação de receitas e realização de

16despesas (arts. 70-71 da Constituição Federal de 1988) .Com efeito, é pertinente ressaltar que o art. 75 da

Constituição Federal de 1988 estende o disposto na Seção IX, Capítulo I, Título IV – Da Fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária, cuja referência restringe-se ao Tribunal de Contas da União, no que couber à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.

Partindo-se da premissa de que a Constituição ocupa o ápice da pirâmide, em se tratando da hierarquia das normas, e a ela todo ordenamento jurídico deve adequar-se, incumbe àquelas instituições, i.e., aos Tribunais de Contas – e está aí o fundamento do direito que os legitima –, exercerem o controle de constitucionalidade, no sentido geral da expressão, quando do desempenho de suas atribuições. Se os atos submetidos à análise daqueles órgãos não se acham conforme a Constituição, logo, são contrários à lei, e, portanto, não devem ser aplicados por serem eivados de inconstitucionalidade.

Como observa Elke Soares de Andrade e Moura Silva:

Filosoficamente, o que assegura às Cortes de Contas a legitimidade para a realização da referida função são os próprios princípios em que se assenta o Estado Democrático de Direito, merecendo frisar o reconhecimento da legitimidade de todos para a interpretação e defesa da Constituição, porquanto dela fazem parte.Dessa forma, pode-se dizer que a Competência das C o r t e s d e C o n t a s p a r a o e x a m e d a constitucionalidade de leis e atos normativos

13 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 84.14 Direito esse conhecido como desobediência civil.15 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 85.

16 Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade [...], será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo [...] (grifado). Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União [...].

Page 163: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS PROCURADORIA … · 2010. 12. 13. · 4 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 APRESENTAÇÃO Revista do MP-GO, Goiânia, ano

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008162 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 163

decorre das próprias atribuições constitucionais do Tribunal de Contas, extraídas não só da letra fria do texto que as consagra, mas, essencialmente, a partir de uma interpretação sistêmica da Constituição, que exige adequação e impede o desrespeito aos princípios fundamentais em que se assenta,

17corolários do regime democrático de governo.

Daí, partindo-se dessa idéia foi que o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu a competência do Tribunal de Contas para esse fim, conforme se depreende da Súmula n. 347, que assim dispõe: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”.

Nesse sentido, o Regimento Interno do Tribunal de Contas da União, como também o de outros Tribunais de Contas brasileiros, prevê, expressamente, em seu art. 19, I, “e”, a competência daquele órgão para aferição da constitucionalidade de normas, dispondo o seguinte:

Art. 19. Compete privativamente ao Plenário, dirigido pelo Presidente do Tribunal:I – deliberar originariamente sobre:[...]e) conflito de lei ou de ato normativo do Poder Público com a Constituição Federal, em matéria de competência do Tribunal.

Seria realmente absurdo negar tal competência às Cortes de Contas, vez que, independentemente do reconhecimento do exercício de atividade jurisdicional, exercem a função de dizer o direito, quando estiverem em foco as matérias a elas confiadas, tendo em vista os aspectos da legalidade, legitimidade e economicidade. O fato é que toda despesa pública imprescinde de lastro legal para sua realização, o mesmo ocorrendo em relação à arrecadação de receitas, pela simples razão de que se trata da administração da res publica, função que requer a limitação da liberdade de atuação, delineada nos exatos termos da lei, daí resulta uma vasta produção normativa,

objetivando resguardar a legalidade daquilo que se pretende praticar. Ocorre, porém, que nem sempre a legislação produzida, ainda que observados os procedimentos formais de elaboração e a competência legal, pode ser considerada válida. Isso porque existem condicionantes de origem material, presentes em normas de escalão superior, que precisam ser respeitadas. Essas condicionantes podem ser traduzidas pelos princípios constitucionais, os quais determinam a leitura de todo o ordenamento jurídico. Não pode, assim, o Tribunal de Contas, cuja competência precípua está na verificação da legalidade, legitimidade e economicidade de arrecadação de receitas e realização de despesas, deixar de proceder ao exame de constitucionalidade das normas invocadas para respaldar os atos praticados ou que se pretenda praticar. Se, ao contrário, abdicasse desse mister, estaria relegando as atribuições que lhe foram

18confiadas pela Constituição .Em teoria, apesar de o juízo de constitucionalidade exercido

pelo Tribunal de Contas se operar apenas quando estiverem presentes as matérias que lhe são afetas, a inconstitucionalidade pode ser aferida a partir de qualquer preceito da Constituição, expresso ou implícito.

Contudo, é certo que ao Tribunal de Contas não é permitido declarar a inconstitucionalidade da norma, haja vista que a referida função está reservada exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal e aos Tribunais de Justiça estaduais, quando em conflito norma municipal ou estadual e dispositivo da Constituição do respectivo Estado, na realização do controle abstrato de constitucionalidade. No entanto, deve-se negar-lhe aplicação, se constatar divergência com as disposições constitucionais.

Nesse sentido, são as palavras de Themístocles Cavalcanti:

A declaração de inconstitucionalidade é, entretanto, prerrogativa do Poder Judiciário, de que não se pode utilizar o Tribunal de Contas sem invadir a esfera daquele Poder, mas, ao apurar a sua própria competência em face da Constituição e das leis e ao apreciar os atos sujeitos ao seu julgamento, nada impede que o Tribunal de Contas

18 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 89.

17 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 87.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008162 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 163

decorre das próprias atribuições constitucionais do Tribunal de Contas, extraídas não só da letra fria do texto que as consagra, mas, essencialmente, a partir de uma interpretação sistêmica da Constituição, que exige adequação e impede o desrespeito aos princípios fundamentais em que se assenta,

17corolários do regime democrático de governo.

Daí, partindo-se dessa idéia foi que o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu a competência do Tribunal de Contas para esse fim, conforme se depreende da Súmula n. 347, que assim dispõe: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”.

Nesse sentido, o Regimento Interno do Tribunal de Contas da União, como também o de outros Tribunais de Contas brasileiros, prevê, expressamente, em seu art. 19, I, “e”, a competência daquele órgão para aferição da constitucionalidade de normas, dispondo o seguinte:

Art. 19. Compete privativamente ao Plenário, dirigido pelo Presidente do Tribunal:I – deliberar originariamente sobre:[...]e) conflito de lei ou de ato normativo do Poder Público com a Constituição Federal, em matéria de competência do Tribunal.

Seria realmente absurdo negar tal competência às Cortes de Contas, vez que, independentemente do reconhecimento do exercício de atividade jurisdicional, exercem a função de dizer o direito, quando estiverem em foco as matérias a elas confiadas, tendo em vista os aspectos da legalidade, legitimidade e economicidade. O fato é que toda despesa pública imprescinde de lastro legal para sua realização, o mesmo ocorrendo em relação à arrecadação de receitas, pela simples razão de que se trata da administração da res publica, função que requer a limitação da liberdade de atuação, delineada nos exatos termos da lei, daí resulta uma vasta produção normativa,

objetivando resguardar a legalidade daquilo que se pretende praticar. Ocorre, porém, que nem sempre a legislação produzida, ainda que observados os procedimentos formais de elaboração e a competência legal, pode ser considerada válida. Isso porque existem condicionantes de origem material, presentes em normas de escalão superior, que precisam ser respeitadas. Essas condicionantes podem ser traduzidas pelos princípios constitucionais, os quais determinam a leitura de todo o ordenamento jurídico. Não pode, assim, o Tribunal de Contas, cuja competência precípua está na verificação da legalidade, legitimidade e economicidade de arrecadação de receitas e realização de despesas, deixar de proceder ao exame de constitucionalidade das normas invocadas para respaldar os atos praticados ou que se pretenda praticar. Se, ao contrário, abdicasse desse mister, estaria relegando as atribuições que lhe foram

18confiadas pela Constituição .Em teoria, apesar de o juízo de constitucionalidade exercido

pelo Tribunal de Contas se operar apenas quando estiverem presentes as matérias que lhe são afetas, a inconstitucionalidade pode ser aferida a partir de qualquer preceito da Constituição, expresso ou implícito.

Contudo, é certo que ao Tribunal de Contas não é permitido declarar a inconstitucionalidade da norma, haja vista que a referida função está reservada exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal e aos Tribunais de Justiça estaduais, quando em conflito norma municipal ou estadual e dispositivo da Constituição do respectivo Estado, na realização do controle abstrato de constitucionalidade. No entanto, deve-se negar-lhe aplicação, se constatar divergência com as disposições constitucionais.

Nesse sentido, são as palavras de Themístocles Cavalcanti:

A declaração de inconstitucionalidade é, entretanto, prerrogativa do Poder Judiciário, de que não se pode utilizar o Tribunal de Contas sem invadir a esfera daquele Poder, mas, ao apurar a sua própria competência em face da Constituição e das leis e ao apreciar os atos sujeitos ao seu julgamento, nada impede que o Tribunal de Contas

18 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 89.

17 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 87.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008164 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 165

examine a validade e a eficácia das leis e dos atos administrativos perante a Constituição, deixe de aplicá-los e reconheça o seu vigor, quando

19manifesta a inconstitucionalidade.

Seguindo a mesma linha, são as considerações de Pedro Chaves, então ministro do Supremo Tribunal Federal, manifestas no julgamento do Recurso no Mandado de Segurança n. 8.372-CE, cuja decisão constituiu precedente para a Súmula n. 347: “Mas há que distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta é a obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos poderes do Estado”.

Por fim, cabe salientar que essa aferição de constitucionalidade realizada pelo Tribunal de Contas poderá ser revista pelo Poder Judiciário mediante provocação por parte de quem se sentir lesado, em prol da defesa de direitos, conforme dispõe o art. 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988, pois que, nessa hipótese, não estão em jogo questões que exijam os conhecimentos técnico-especializados que afastariam a competência daquele Poder para substituição do mérito, mas, ao contrário, matéria que está a demandar uma ampliação, o quanto possível, do círculo dos intérpretes da Constituição. E, ainda, conforme já ressaltado, tendo em vista o sistema de controle de constitucionalidade consagrado pelo direito brasileiro, i.e., jurisdicional, ao Poder Judiciário cabe a

20última palavra em matéria constitucional .

O controle de constitucionalidade efetuado pelos Tribunais de Contas no exercício de suas competências constitucionais e legais

Os Tribunais de Contas brasileiros vêm exercendo corriqueiramente, por ocasião de seus julgados, a aferição de constitucionalidade das leis e atos normativos de qualquer espécie e esfera de governo, afastando-os quando eivados de inconstitucionalidade, seja em face de Leis Orgânicas Municipais,

das Constituições Estaduais ou em decorrência de norma estabelecida na Constituição Federal de 1988. O exame de constitucionalidade de normas invocadas para dar suporte aos ordenamentos de despesa praticados pelos administradores das finanças públicas tem sido alvo de inúmeras decisões, o que evidencia a preocupação e o compromisso com os fins a que se propõe um Estado que se proclama democrático.

A referida análise pode se dar, inclusive, na apreciação da norma em tese, i.e., através de consulta ao Tribunal, que, no caso do Tribunal de Contas da União, está disciplinada no art. 1º, XII, § 2º, bem como no art. 216 de seu Regimento Interno, que assim dispõem:

Art. 1º. Ao Tribunal de Contas da União, órgão de controle externo, compete, nos termos da Constituição Federal e na forma estabelecida nesta lei:[...]XVII – decidir sobre consulta que lhe seja formulada por autoridade competente, a respeito de dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes a matéria de sua competência, na forma estabelecida no Regimento Interno.§ 2º - a resposta à consulta a que se refere o inciso XVII deste artigo tem caráter normativo e constitui prejulgamento de tese, mas não do fato ou caso concreto.[...]Art. 216. O plenário decidirá sobre consultas, quanto à dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes a matéria de sua competência, que lhe forem formuladas pelas seguintes autoridades [...].[...]§ 2º - As consultas devem conter a indicação precisa de seu objeto, ser formulada articuladamente e instruídas, sempre que possível, com parecer da assistência técnica ou jurídica da autoridade consulente.§ 3º - A resposta à consulta a que se refere este artigo tem caráter normativo e constitui prejulgamento de tese, mas não do fato ou caso concreto.

Assim, evidencia-se a competência do Tribunal para o

19 CAVALCANTI, T. B. O Tribunal de Contas e sua competência constitucional. Revista de Direito Administrativo, v. III, p. 13-22, 1946.20 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 91.

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examine a validade e a eficácia das leis e dos atos administrativos perante a Constituição, deixe de aplicá-los e reconheça o seu vigor, quando

19manifesta a inconstitucionalidade.

Seguindo a mesma linha, são as considerações de Pedro Chaves, então ministro do Supremo Tribunal Federal, manifestas no julgamento do Recurso no Mandado de Segurança n. 8.372-CE, cuja decisão constituiu precedente para a Súmula n. 347: “Mas há que distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta é a obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos poderes do Estado”.

Por fim, cabe salientar que essa aferição de constitucionalidade realizada pelo Tribunal de Contas poderá ser revista pelo Poder Judiciário mediante provocação por parte de quem se sentir lesado, em prol da defesa de direitos, conforme dispõe o art. 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988, pois que, nessa hipótese, não estão em jogo questões que exijam os conhecimentos técnico-especializados que afastariam a competência daquele Poder para substituição do mérito, mas, ao contrário, matéria que está a demandar uma ampliação, o quanto possível, do círculo dos intérpretes da Constituição. E, ainda, conforme já ressaltado, tendo em vista o sistema de controle de constitucionalidade consagrado pelo direito brasileiro, i.e., jurisdicional, ao Poder Judiciário cabe a

20última palavra em matéria constitucional .

O controle de constitucionalidade efetuado pelos Tribunais de Contas no exercício de suas competências constitucionais e legais

Os Tribunais de Contas brasileiros vêm exercendo corriqueiramente, por ocasião de seus julgados, a aferição de constitucionalidade das leis e atos normativos de qualquer espécie e esfera de governo, afastando-os quando eivados de inconstitucionalidade, seja em face de Leis Orgânicas Municipais,

das Constituições Estaduais ou em decorrência de norma estabelecida na Constituição Federal de 1988. O exame de constitucionalidade de normas invocadas para dar suporte aos ordenamentos de despesa praticados pelos administradores das finanças públicas tem sido alvo de inúmeras decisões, o que evidencia a preocupação e o compromisso com os fins a que se propõe um Estado que se proclama democrático.

A referida análise pode se dar, inclusive, na apreciação da norma em tese, i.e., através de consulta ao Tribunal, que, no caso do Tribunal de Contas da União, está disciplinada no art. 1º, XII, § 2º, bem como no art. 216 de seu Regimento Interno, que assim dispõem:

Art. 1º. Ao Tribunal de Contas da União, órgão de controle externo, compete, nos termos da Constituição Federal e na forma estabelecida nesta lei:[...]XVII – decidir sobre consulta que lhe seja formulada por autoridade competente, a respeito de dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes a matéria de sua competência, na forma estabelecida no Regimento Interno.§ 2º - a resposta à consulta a que se refere o inciso XVII deste artigo tem caráter normativo e constitui prejulgamento de tese, mas não do fato ou caso concreto.[...]Art. 216. O plenário decidirá sobre consultas, quanto à dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes a matéria de sua competência, que lhe forem formuladas pelas seguintes autoridades [...].[...]§ 2º - As consultas devem conter a indicação precisa de seu objeto, ser formulada articuladamente e instruídas, sempre que possível, com parecer da assistência técnica ou jurídica da autoridade consulente.§ 3º - A resposta à consulta a que se refere este artigo tem caráter normativo e constitui prejulgamento de tese, mas não do fato ou caso concreto.

Assim, evidencia-se a competência do Tribunal para o

19 CAVALCANTI, T. B. O Tribunal de Contas e sua competência constitucional. Revista de Direito Administrativo, v. III, p. 13-22, 1946.20 SILVA, E. A. S. de M. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis, op. cit., p. 91.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008166 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 167

21 Há quem diga (FERNADES, J. U. J. Tribunais de contas e o exame de constitucionalidade de lei. Revista do Tribunal de Contas do Distrito Federal, v. 26, p. 45-46, 2000), inclusive, que pode o controle de constitucionalidade efetuado pelos Tribunais de Contas incidir também sobre projetos de lei.

exame de preceito normativo, inclusive em tese, como é o exemplo 21da consulta .

Como forma de sistematizar esse controle, dada a sua feição dinâmica, é o Ministério Público, através do Procurador-Geral, autoridade competente o bastante, constitucionalmente legitimado como defensor da legalidade e da ordem social e jurídica, para arguir perante o plenário contra todo ato que a ela tenha causado ofensa, no interesse da proteção e defesa do patrimônio público, devendo o Tribunal assim deliberar, em conformidade com as normas processuais, toda vez que se lhe oferecer arguição sobre inconstitucionalidade de lei, em matéria de sua competência, conforme prevê o art. 118 do Regimento Interno do Tribunal de Contas da União: “Art. 118. Compete ao Procurador-Geral [...]: I – promover a defesa da ordem jurídica, requerendo, perante o Tribunal, as medidas de interesse da Justiça, da Administração e do Erário [...]”.

Como já dito, não se pretende que o Tribunal de Contas julgue a constitucionalidade de lei, com o mesmo objetivo do Supremo Tribunal Federal, haja vista que o Supremo julga leis, dizendo de seu valor objetivo em nosso ordenamento jurídico, e sua competência abrange a própria lei, emprestando-lhe validade, ou suprimindo sua existência no campo da realidade jurídica.

O Tribunal de Contas, por outro lado, aprecia a constitucionalidade, não é o fato de ser incidental ou não, que retira a faculdade de julgamento, o que importa é que o efeito decorrente desse julgamento, diversamente do que o Supremo Tribunal Federal impõe, é tão somente o de conduzir a interpretação da lei a parâmetros centrados na Constituição Federal, sem, de fato, implicar em efeito objetivo sobre a norma.

Conclusão

Como visto, tem-se buscado, nas modernas democracias,

resgatar o vínculo entre o controle difuso de constitucionalidade e a sociedade aberta, com o objetivo de se ampliar o círculo dos intérpretes da Constituição.

Daí, partindo-se dessa idéia é que deve não só ser admitida, como também defendida, a legitimidade do Tribunal de Contas, órgão autônomo de controle externo, de natureza constitucional, que não integra nenhum dos Poderes, pois a todos fiscaliza quanto à gestão das finanças públicas, para realizar, no exercício de suas competências, a aferição de constitucionalidade de leis e atos normativos. Mesmo em um sistema de controle jurisdicional de constitucionalidade, como é o caso brasileiro, em que a última palavra em matéria constitucional cabe ao Poder Judiciário, não se pode olvidar que ao Tribunal de Contas cumpre tomar parte no processo de interpretação constitucional, deixando de aplicar leis que com a Constituição não se coadunem.

Não se trata, apenas, de reconhecer a competência daquela instituição de controle externo para o desempenho desta função, mas, sobretudo, à vista de sua inserção em um sistema democrático, em que se respeita o princípio da supremacia das normas constitucionais, e em face das atribuições que lhe foram confiadas de controle da legalidade, legitimidade e economicidade dos atos de administradores públicos que impliquem arrecadação de receita e realização de despesas, torna-se necessário concebê-la como um poder-dever, no sentido de contribuir para a efetivação da jurisdição constitucional.

Claro é que os Tribunais de Contas, embora não detenham competência para declarar a inconstitucionalidade das leis ou dos atos normativos em abstrato, pois essa prerrogativa é do Supremo Tribunal Federal, poderá, no caso concreto, reconhecer a desconformidade formal ou material das normas jurídicas incompatíveis com a Constituição, podendo, então, deixar de aplicar ato por considerá-lo inconstitucional, bem como sustar outros atos praticados com base em leis vulneradoras da Constituição (art. 71, X), na via incidental, no caso concreto.

Por fim, das afirmações acima esposadas e considerando, inclusive, os ideais democráticos, pode-se concluir que a defesa da Constituição cabe a todos, cidadãos e instituições, a fim de que se concretizem os direitos fundamentais capazes de viabilizar uma vida digna a todos.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008166 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 167

21 Há quem diga (FERNADES, J. U. J. Tribunais de contas e o exame de constitucionalidade de lei. Revista do Tribunal de Contas do Distrito Federal, v. 26, p. 45-46, 2000), inclusive, que pode o controle de constitucionalidade efetuado pelos Tribunais de Contas incidir também sobre projetos de lei.

exame de preceito normativo, inclusive em tese, como é o exemplo 21da consulta .

Como forma de sistematizar esse controle, dada a sua feição dinâmica, é o Ministério Público, através do Procurador-Geral, autoridade competente o bastante, constitucionalmente legitimado como defensor da legalidade e da ordem social e jurídica, para arguir perante o plenário contra todo ato que a ela tenha causado ofensa, no interesse da proteção e defesa do patrimônio público, devendo o Tribunal assim deliberar, em conformidade com as normas processuais, toda vez que se lhe oferecer arguição sobre inconstitucionalidade de lei, em matéria de sua competência, conforme prevê o art. 118 do Regimento Interno do Tribunal de Contas da União: “Art. 118. Compete ao Procurador-Geral [...]: I – promover a defesa da ordem jurídica, requerendo, perante o Tribunal, as medidas de interesse da Justiça, da Administração e do Erário [...]”.

Como já dito, não se pretende que o Tribunal de Contas julgue a constitucionalidade de lei, com o mesmo objetivo do Supremo Tribunal Federal, haja vista que o Supremo julga leis, dizendo de seu valor objetivo em nosso ordenamento jurídico, e sua competência abrange a própria lei, emprestando-lhe validade, ou suprimindo sua existência no campo da realidade jurídica.

O Tribunal de Contas, por outro lado, aprecia a constitucionalidade, não é o fato de ser incidental ou não, que retira a faculdade de julgamento, o que importa é que o efeito decorrente desse julgamento, diversamente do que o Supremo Tribunal Federal impõe, é tão somente o de conduzir a interpretação da lei a parâmetros centrados na Constituição Federal, sem, de fato, implicar em efeito objetivo sobre a norma.

Conclusão

Como visto, tem-se buscado, nas modernas democracias,

resgatar o vínculo entre o controle difuso de constitucionalidade e a sociedade aberta, com o objetivo de se ampliar o círculo dos intérpretes da Constituição.

Daí, partindo-se dessa idéia é que deve não só ser admitida, como também defendida, a legitimidade do Tribunal de Contas, órgão autônomo de controle externo, de natureza constitucional, que não integra nenhum dos Poderes, pois a todos fiscaliza quanto à gestão das finanças públicas, para realizar, no exercício de suas competências, a aferição de constitucionalidade de leis e atos normativos. Mesmo em um sistema de controle jurisdicional de constitucionalidade, como é o caso brasileiro, em que a última palavra em matéria constitucional cabe ao Poder Judiciário, não se pode olvidar que ao Tribunal de Contas cumpre tomar parte no processo de interpretação constitucional, deixando de aplicar leis que com a Constituição não se coadunem.

Não se trata, apenas, de reconhecer a competência daquela instituição de controle externo para o desempenho desta função, mas, sobretudo, à vista de sua inserção em um sistema democrático, em que se respeita o princípio da supremacia das normas constitucionais, e em face das atribuições que lhe foram confiadas de controle da legalidade, legitimidade e economicidade dos atos de administradores públicos que impliquem arrecadação de receita e realização de despesas, torna-se necessário concebê-la como um poder-dever, no sentido de contribuir para a efetivação da jurisdição constitucional.

Claro é que os Tribunais de Contas, embora não detenham competência para declarar a inconstitucionalidade das leis ou dos atos normativos em abstrato, pois essa prerrogativa é do Supremo Tribunal Federal, poderá, no caso concreto, reconhecer a desconformidade formal ou material das normas jurídicas incompatíveis com a Constituição, podendo, então, deixar de aplicar ato por considerá-lo inconstitucional, bem como sustar outros atos praticados com base em leis vulneradoras da Constituição (art. 71, X), na via incidental, no caso concreto.

Por fim, das afirmações acima esposadas e considerando, inclusive, os ideais democráticos, pode-se concluir que a defesa da Constituição cabe a todos, cidadãos e instituições, a fim de que se concretizem os direitos fundamentais capazes de viabilizar uma vida digna a todos.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008168 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 169

Resumo:O Direito Sanitário ganha espaço no texto constitucional em caráter de norma dirigente, auto-aplicável, individual, subjetiva e exigível contra o Estado. Naturalmente indisponível e assegurado na Carta Política impinge ao Ministério Público exigi-lo quando postergado individual, coletivo ou difuso, mesmo porque só é direito quando se concretiza, quando se faz realidade, sendo concreto pela atuação do Promotor de Justiça e do Juiz de Direito face à postulação do primeiro e o exercício de jurisdição do segundo, efetivamente.

Palavras-chave: dirigente, dispensar, terapia, hipossuficiência, relevância pública, resolutividade.

Partindo da certeza de que o direito à saúde é assegurado na Constituição brasileira em vários de seus dispositivos, em particular em uma seção específica, do artigo 196 ao artigo 200, posto que é nos seus comandos que estabelece ser “direito de todos”. Portanto, é norma de caráter material e de aplicação imediata nos termos do §1º de seu artigo 5º, pelo que se caracteriza “dirigente” no momento em que diz ser: “dever do Estado”. Além do mais, quis e escreveu o legislador constituinte ser de relevância pública as ações e serviços de saúde, artigo 197. Enfim, trata-se de um direito público subjetivo, individual, especialmente exigível porque as garantias individuais que dizem respeito aos direitos fundamentais são abalizadoras na concretização deste direito, vez que cada pessoa paciente é hipossuficiente frente ao Estado.

Tamanha foi sua vontade em consolidar este direito dentro do texto constitucional que determinou como o Estado brasileiro

DIREITO SANITÁRIO / SAÚDE PROTEÇÃO PELO JUDICIÁRIO

Dr. Isaac Benchimol Ferreira*

* Promotor de Justiça do Estado de Goiás, in memorian.

Referências

CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1991.

CAVALCANTI, T. B. O Tribunal de Contas e sua competência constitucional. Revista de Direito Administrativo, v. III, 1946.

FERNANDES, J. U. J. Os tribunais de contas e o exame de constitucionalidade de lei. Revista do Tribunal de Contas do Distrito Federal, v. 26, p. 33-53, 2000.

______. Tribunais de Contas do Brasil: jurisdição e competência. Belo Horizonte: Fórum, 2003.

GUALLAZZI, E. L. B. Regime jurídico dos Tribunais de Contas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992.

HÄBERLE, P. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição sobre a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997.

MARANHÃO, J. Tribunal de Contas e Poder Judiciário. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 27, n. 107, jul./set. 1990.

SILVA, E. A. S. de M. Controle difuso de constitucionalidade como salvaguarda do Estado Democrático de Direito. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 50, n. 1, p. 37-74, jan./mar. 2004b.

______. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 52, n. 3, p. 67-119, jul./set. 2004a.

MOREIRA NETO, D. de F. et al. O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho do Tribunal de Contas. O novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2003.

Page 170: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS PROCURADORIA … · 2010. 12. 13. · 4 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 APRESENTAÇÃO Revista do MP-GO, Goiânia, ano

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008168 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 169

Resumo:O Direito Sanitário ganha espaço no texto constitucional em caráter de norma dirigente, auto-aplicável, individual, subjetiva e exigível contra o Estado. Naturalmente indisponível e assegurado na Carta Política impinge ao Ministério Público exigi-lo quando postergado individual, coletivo ou difuso, mesmo porque só é direito quando se concretiza, quando se faz realidade, sendo concreto pela atuação do Promotor de Justiça e do Juiz de Direito face à postulação do primeiro e o exercício de jurisdição do segundo, efetivamente.

Palavras-chave: dirigente, dispensar, terapia, hipossuficiência, relevância pública, resolutividade.

Partindo da certeza de que o direito à saúde é assegurado na Constituição brasileira em vários de seus dispositivos, em particular em uma seção específica, do artigo 196 ao artigo 200, posto que é nos seus comandos que estabelece ser “direito de todos”. Portanto, é norma de caráter material e de aplicação imediata nos termos do §1º de seu artigo 5º, pelo que se caracteriza “dirigente” no momento em que diz ser: “dever do Estado”. Além do mais, quis e escreveu o legislador constituinte ser de relevância pública as ações e serviços de saúde, artigo 197. Enfim, trata-se de um direito público subjetivo, individual, especialmente exigível porque as garantias individuais que dizem respeito aos direitos fundamentais são abalizadoras na concretização deste direito, vez que cada pessoa paciente é hipossuficiente frente ao Estado.

Tamanha foi sua vontade em consolidar este direito dentro do texto constitucional que determinou como o Estado brasileiro

DIREITO SANITÁRIO / SAÚDE PROTEÇÃO PELO JUDICIÁRIO

Dr. Isaac Benchimol Ferreira*

* Promotor de Justiça do Estado de Goiás, in memorian.

Referências

CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1991.

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GUALLAZZI, E. L. B. Regime jurídico dos Tribunais de Contas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992.

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______. Os Tribunais de Contas e o controle de constitucionalidade das leis. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 52, n. 3, p. 67-119, jul./set. 2004a.

MOREIRA NETO, D. de F. et al. O parlamento e a sociedade como destinatários do trabalho do Tribunal de Contas. O novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2003.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008170 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 171

(União), em solidariedade com os demais entes federativos, deve executá-lo com resolutividade, por três basilares atividades: promoção, proteção e recuperação. Para tanto, não se esqueceu de reservar os recursos financeiros necessários, vinculando-os na Emenda Constitucional 29, cuja dinâmica deve ocorrer de fundo a fundo como suporte às tarefas e ao gerenciamento do Sistema Único de Saúde, que também instituiu. Nesse diapasão as Constituições dos Estados-membros e as Leis Orgânicas de cada um dos Municípios seguiram e dispõem no mesmo sentido e vernáculo. Extrai-se, pois, do texto constitucional, que o Estado brasileiro se obrigou a dispensar integralmente toda e qualquer terapia que vier a precisar a pessoa doente para recuperar sua saúde, bem como manter efetivos programas de prevenção e proteção a cada uma das pessoas, alcançando toda a população brasileira. Assim, com status constitucional, o direito à saúde passou a ser dispensado a todas as pessoas, coletiva e individualmente, pelo Ministério da Saúde, nas três atividades suso mencionadas, editando-se as normas de cunho legislativo e administrativo necessárias.

Muitos são os diplomas legais, infraconstitucionais, relativos ao Direito Sanitário, editados por quem de competência, numa espécie de hierarquia. Como dito, começamos com a Constituição Federal, a Constituição do Estado de Goiás, a Lei Orgânica do Município de Goiânia, a Lei n. 8080/90 e a Lei n. 8142/90, estas no âmbito institucional. No que concerne especificamente às terapias, temos: Constituição Federal de 1988 (artigos 5°, 6°, 7°, 23, 24, 30, 127, 129, 182, 193, 195, 196, 197, 198, 199, 200, 220, 225, 227); Constituição do Estado de Goiás (artigos 152 e 153); Lei Orgânica do Município de Goiânia (213 a 227); Lei n. 5.991, de 17 de dezembro de 1973 (dispõe sobre o Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatas); Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989 (dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiências); Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999 (regulamenta a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989); Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990 (dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes); Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990 (dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as

transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde); Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente, artigos 11 e 12); Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor, artigos 8, 9 e 10); Lei n. 9.273, de 3 de maio de 1996 (torna obrigatória a inclusão de dispositivo de segurança para evitar a reutilização de seringas descartáveis); Lei n. 9.431/97, de 06 de janeiro de 1997 (dispõe sobre programas de controle de infecções hospitalares); Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 (dispõe sobre remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento); Decreto n. 2.268, de 30 de junho de 1997 (regulamenta a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997); Lei n. 9.728, de janeiro de 1999 (define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária); Lei n. 9.797, de 6 de maio de 1999 (estabelece a obrigatoriedade da cirurgia plástica reparadora da mama pela rede do SUS); Lei n. 9.961/00, de 28 de janeiro de 2000 (regula a Agência Nacional de Saúde Suplementar); Emenda Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000; Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001 (dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental); Medida provisória n. 2.190-34, de 23 de agosto de 2001 (altera dispositivos das Leis n. 9.782 e n. 6.437, de 20 de agosto de 1977); Lei n. 10.741, de 1° de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso, artigos 15, 16, 17 e 18). Não é o todo legislativo a respeito.

Quando a pessoa é acometida de uma doença e procura imediatamente o médico para aliviar seu sofrimento, o faz na expectativa, de fato, de eliminá-la pela terapia prescrita. Nasce, então, a questão em pauta, a partir da possibilidade de comprá-la, de adquiri-la esteja onde estiver. Dentre as terapias a mais prescrita é a medicamentosa, cujo valor pode ser ínfimo ou de vulto financeiro inatingível. Anotando-se que é usual a expressão “alto custo”, excepcional na administração do SUS, esta não significa somente alto valor financeiro, mas também forte impacto do preparado químico, o remédio, no organismo da pessoa, dentro da máxima custo-benefício.

Temos, pois, o fato traduzido em direito material, o qual deve ser dispensado por quem nominado legalmente, ou sejam, os

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(União), em solidariedade com os demais entes federativos, deve executá-lo com resolutividade, por três basilares atividades: promoção, proteção e recuperação. Para tanto, não se esqueceu de reservar os recursos financeiros necessários, vinculando-os na Emenda Constitucional 29, cuja dinâmica deve ocorrer de fundo a fundo como suporte às tarefas e ao gerenciamento do Sistema Único de Saúde, que também instituiu. Nesse diapasão as Constituições dos Estados-membros e as Leis Orgânicas de cada um dos Municípios seguiram e dispõem no mesmo sentido e vernáculo. Extrai-se, pois, do texto constitucional, que o Estado brasileiro se obrigou a dispensar integralmente toda e qualquer terapia que vier a precisar a pessoa doente para recuperar sua saúde, bem como manter efetivos programas de prevenção e proteção a cada uma das pessoas, alcançando toda a população brasileira. Assim, com status constitucional, o direito à saúde passou a ser dispensado a todas as pessoas, coletiva e individualmente, pelo Ministério da Saúde, nas três atividades suso mencionadas, editando-se as normas de cunho legislativo e administrativo necessárias.

Muitos são os diplomas legais, infraconstitucionais, relativos ao Direito Sanitário, editados por quem de competência, numa espécie de hierarquia. Como dito, começamos com a Constituição Federal, a Constituição do Estado de Goiás, a Lei Orgânica do Município de Goiânia, a Lei n. 8080/90 e a Lei n. 8142/90, estas no âmbito institucional. No que concerne especificamente às terapias, temos: Constituição Federal de 1988 (artigos 5°, 6°, 7°, 23, 24, 30, 127, 129, 182, 193, 195, 196, 197, 198, 199, 200, 220, 225, 227); Constituição do Estado de Goiás (artigos 152 e 153); Lei Orgânica do Município de Goiânia (213 a 227); Lei n. 5.991, de 17 de dezembro de 1973 (dispõe sobre o Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatas); Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989 (dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiências); Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999 (regulamenta a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989); Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990 (dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes); Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990 (dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as

transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde); Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente, artigos 11 e 12); Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor, artigos 8, 9 e 10); Lei n. 9.273, de 3 de maio de 1996 (torna obrigatória a inclusão de dispositivo de segurança para evitar a reutilização de seringas descartáveis); Lei n. 9.431/97, de 06 de janeiro de 1997 (dispõe sobre programas de controle de infecções hospitalares); Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 (dispõe sobre remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento); Decreto n. 2.268, de 30 de junho de 1997 (regulamenta a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997); Lei n. 9.728, de janeiro de 1999 (define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária); Lei n. 9.797, de 6 de maio de 1999 (estabelece a obrigatoriedade da cirurgia plástica reparadora da mama pela rede do SUS); Lei n. 9.961/00, de 28 de janeiro de 2000 (regula a Agência Nacional de Saúde Suplementar); Emenda Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000; Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001 (dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental); Medida provisória n. 2.190-34, de 23 de agosto de 2001 (altera dispositivos das Leis n. 9.782 e n. 6.437, de 20 de agosto de 1977); Lei n. 10.741, de 1° de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso, artigos 15, 16, 17 e 18). Não é o todo legislativo a respeito.

Quando a pessoa é acometida de uma doença e procura imediatamente o médico para aliviar seu sofrimento, o faz na expectativa, de fato, de eliminá-la pela terapia prescrita. Nasce, então, a questão em pauta, a partir da possibilidade de comprá-la, de adquiri-la esteja onde estiver. Dentre as terapias a mais prescrita é a medicamentosa, cujo valor pode ser ínfimo ou de vulto financeiro inatingível. Anotando-se que é usual a expressão “alto custo”, excepcional na administração do SUS, esta não significa somente alto valor financeiro, mas também forte impacto do preparado químico, o remédio, no organismo da pessoa, dentro da máxima custo-benefício.

Temos, pois, o fato traduzido em direito material, o qual deve ser dispensado por quem nominado legalmente, ou sejam, os

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gestores do Sistema Único de Saúde, o Ministro da Saúde, o Secretário de Saúde do Estado-membro e do Município, solidariamente. De modo que, não havendo a realização do direito por quem de incumbência tanto individual quanto coletivamente, exsurge a procura necessária ao Poder Judiciário que exerce a função do Poder Nacional de dizer e fazer valer o Direito, uma vez que se trata, no caso, de direito público subjetivo exigível contra o Estado, como dito alhures.

Emerge naturalmente a indagação, a quem é destinado o direito à saúde?

Todos os brasileiros e estrangeiros que vivem no Brasil devem ter, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie, independentemente de vínculo previdenciário ou qualquer tipo de seguro-saúde. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 63)

A todos é dado o direito, independente de poder aquisitivo, raça, cor, credo etc. O acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, com igualdade e equidade, significa que todas as pessoas, por terem direito à saúde, têm direito à igualdade de acesso, de chegada e de ingresso às ações e serviços de saúde, próprios estatais, ou nos privados conveniados com o público. Universalidade da cobertura e do atendimento. (CF 194, I (16))

Saúde direito de todos [...]. (CF 196 (16))

A universalidade da cobertura e do acesso não permite nem a discriminação dos que menos têm, nem daqueles que mais têm: todos são iguais perante a lei. (CF 5, A (16))

A universalidade de acesso aos serviços de saúde, em todos os níveis de assistência. A igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie. (Lei 8080, 7, I, IV(16))

É, pois, legitimada a pessoa doente carente de uma terapia. (CARVALHO, 2002, p. 25)

A propósito,

quando nos referimos à medicina curativa, as ações e serviços de saúde voltados à recuperação da saúde, é preferível nos referirmos ao princípio da equidade: permitir a cada um, em função de sua liberdade, se beneficiar dos serviços de saúde de que necessita. (COMPARATO, 2003, p. 263)

Notória, pois, a existência deste Direito e a sua destinação, ou seja, a pessoa face o princípio esculpido na Constituição Federal, artigo 1º, III – dignidade da pessoa humana, no caso doente, carente de uma terapia prescrita pelo médico. Diz respeito à vida.

Surge uma outra indagação: onde receber tal terapia? Existem três portas de entrada no Sistema Único de Saúde: uma, pela rede básica, que deverá existir na periferia de todos os Municípios brasileiros, Centros de Saúde destinados ao atendimento ambulatorial e pequenos socorros, em clínica geral e especialidades mais usuais, como, por exemplo, a pediatria e a ginecologia; duas, através de Programa de Saúde da Família, cuja equipe multiprofissional realiza este direito em visita individual objetivando o controle epidemiológico e a existência de portadores de doenças para ministrar a terapia que se fizer necessária e dispensá-la imediatamente; três, pela urgência e emergência, tendo em vista o imediatismo da terapia, via de regra de cirurgias e medicamentosa de alta complexidade, com internação hospitalar.

A propósito, resta indagar: e no caso de ser negado este direito à pessoa portadora de uma doença devidamente diagnosticada? Resta-lhe a dedução em juízo para assegurá-lo. Sendo legitimada, como dito retro, a própria pessoa ou seu representante legal através de advogado constituído.

E o Ministério Público? Bem, esta instituição tem a incumbência expressa na Carta Política brasileira bem explícita, artigo 129, II, o qual lhe autoriza a substituição processual de qualquer pessoa para garantir os direitos que ela assegura; mormente quando se tratar de serviço de relevância pública. Como acentua Germano Schwarts (2001, p. 121),

Daí que todas as garantias individuais concernentes a direitos fundamentais são legítimas na busca de efetivação do direito à saúde mediante a oposição de um vínculo obrigacional entre o cidadão-credor e o Estado-devedor.

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gestores do Sistema Único de Saúde, o Ministro da Saúde, o Secretário de Saúde do Estado-membro e do Município, solidariamente. De modo que, não havendo a realização do direito por quem de incumbência tanto individual quanto coletivamente, exsurge a procura necessária ao Poder Judiciário que exerce a função do Poder Nacional de dizer e fazer valer o Direito, uma vez que se trata, no caso, de direito público subjetivo exigível contra o Estado, como dito alhures.

Emerge naturalmente a indagação, a quem é destinado o direito à saúde?

Todos os brasileiros e estrangeiros que vivem no Brasil devem ter, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie, independentemente de vínculo previdenciário ou qualquer tipo de seguro-saúde. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 63)

A todos é dado o direito, independente de poder aquisitivo, raça, cor, credo etc. O acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, com igualdade e equidade, significa que todas as pessoas, por terem direito à saúde, têm direito à igualdade de acesso, de chegada e de ingresso às ações e serviços de saúde, próprios estatais, ou nos privados conveniados com o público. Universalidade da cobertura e do atendimento. (CF 194, I (16))

Saúde direito de todos [...]. (CF 196 (16))

A universalidade da cobertura e do acesso não permite nem a discriminação dos que menos têm, nem daqueles que mais têm: todos são iguais perante a lei. (CF 5, A (16))

A universalidade de acesso aos serviços de saúde, em todos os níveis de assistência. A igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie. (Lei 8080, 7, I, IV(16))

É, pois, legitimada a pessoa doente carente de uma terapia. (CARVALHO, 2002, p. 25)

A propósito,

quando nos referimos à medicina curativa, as ações e serviços de saúde voltados à recuperação da saúde, é preferível nos referirmos ao princípio da equidade: permitir a cada um, em função de sua liberdade, se beneficiar dos serviços de saúde de que necessita. (COMPARATO, 2003, p. 263)

Notória, pois, a existência deste Direito e a sua destinação, ou seja, a pessoa face o princípio esculpido na Constituição Federal, artigo 1º, III – dignidade da pessoa humana, no caso doente, carente de uma terapia prescrita pelo médico. Diz respeito à vida.

Surge uma outra indagação: onde receber tal terapia? Existem três portas de entrada no Sistema Único de Saúde: uma, pela rede básica, que deverá existir na periferia de todos os Municípios brasileiros, Centros de Saúde destinados ao atendimento ambulatorial e pequenos socorros, em clínica geral e especialidades mais usuais, como, por exemplo, a pediatria e a ginecologia; duas, através de Programa de Saúde da Família, cuja equipe multiprofissional realiza este direito em visita individual objetivando o controle epidemiológico e a existência de portadores de doenças para ministrar a terapia que se fizer necessária e dispensá-la imediatamente; três, pela urgência e emergência, tendo em vista o imediatismo da terapia, via de regra de cirurgias e medicamentosa de alta complexidade, com internação hospitalar.

A propósito, resta indagar: e no caso de ser negado este direito à pessoa portadora de uma doença devidamente diagnosticada? Resta-lhe a dedução em juízo para assegurá-lo. Sendo legitimada, como dito retro, a própria pessoa ou seu representante legal através de advogado constituído.

E o Ministério Público? Bem, esta instituição tem a incumbência expressa na Carta Política brasileira bem explícita, artigo 129, II, o qual lhe autoriza a substituição processual de qualquer pessoa para garantir os direitos que ela assegura; mormente quando se tratar de serviço de relevância pública. Como acentua Germano Schwarts (2001, p. 121),

Daí que todas as garantias individuais concernentes a direitos fundamentais são legítimas na busca de efetivação do direito à saúde mediante a oposição de um vínculo obrigacional entre o cidadão-credor e o Estado-devedor.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008174 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 175

Vale a citação da Ementa:

Ementa Constitucional. Processual Civil. Mandado de Segurança. Hipossuficiência. I – Nos termos do artigo 129 da CF/88; artigo 32, inciso I, da Lei Federal n. 8.625/93 e do artigo 58, inciso I, da LC Estadual n. 025/98. Não se nega legitimidade aos promotores de justiça para, na condição de substitutos processuais, impetrarem mandado de segurança, inclusive perante o Tribunal de Justiça para, na condição de substitutos processuais, impetrarem mandado de segurança, visando o resguardo do direito a vida e saúde de cidadãos. II – A evidência, o princípio igualitário norteia a norma do artigo 196, mas e sob a ótica da igualdade perante a lei que o operador do direito aplica a norma no caso concreto, não se podendo dispender tratamento diferenciado à guisa de isonomia, pois o sentido maior da norma é banir as desigualdades a prestação de assistência a saúde, no contexto normativo alinhado, tem distributividade (artigo 194) e, ainda, do orçamento, bem como no contexto social, não prescinde da condição de hipossuficiência do necessitado, sem o que o Estado supriria o medicamento só para alguns, inclusive que poderiam custeá-los, e do outro tanto, deixaria de prestar saúde em sua acepção integral, que inclui também a nutrição, a todos, na forma da lei esta realidade que não se pode olvidar. Segurança Concedida. (4ª Câm. Cível, DJ 14549 de 07/07/2005, Acórdão de 09/06/2005, Rel. Des. Beatriz Figueredo Franco, Mandado de Segurança NR. 12519-6/101 – TJGO).

Portanto, se qualquer dos Gestores do SUS vir a postergar o direito a qualquer paciente carente de uma terapia, pode e deve essa pessoa utilizar-se de uma das medidas judiciais para fazer valer o seu direito, como tem ocorrido no Judiciário brasileiro como um todo. Dentre esses instrumentos, são mais corriqueiramente utilizados: Mandado de Segurança (individual e coletivo), Medida Cautelar Inonimada, Ação Ordinária com apelo à Tutela Antecipada e Ação Civil Pública, esta para os casos de omissão de prestações de ações e serviços à proteção de direitos

difusos e coletivos. De consequência, cumpre ao obreiro do Direito observar a ação e a competência adequadas ao caso concreto, tendo como referência a posição administrativa do Gestor. De sorte, resta que se propague, divulgue e se difunda este direito, a bem do ordenamento jurídico pátrio e em favor do culto do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, com total resolutividade pela efetividade da prestação jurisdicional.

Referências

ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE MEDICINA. O que você precisa saber sobre o SUS. v. 1. São Paulo: Editora Atheneu, 2002.

CARVALHO, G. de C. M. Financiamento público federal do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Editora Papercrom, 2002.

COMPARATO, F. K. Afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

DALLARI, S. G. Os estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 1995.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Direito sanitário e saúde pública. v. I e II, Série E. Legisl. e Saúde, Brasília: Ministério da Saúde, 2003.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS. Lei Orgânica Estadual. 2. ed. rev. e atual. Goiânia, 2005.

ROSEN, G. Uma história da Saúde Pública. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 1994.

SCHWARTS, G. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

Page 176: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS PROCURADORIA … · 2010. 12. 13. · 4 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 APRESENTAÇÃO Revista do MP-GO, Goiânia, ano

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008174 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 175

Vale a citação da Ementa:

Ementa Constitucional. Processual Civil. Mandado de Segurança. Hipossuficiência. I – Nos termos do artigo 129 da CF/88; artigo 32, inciso I, da Lei Federal n. 8.625/93 e do artigo 58, inciso I, da LC Estadual n. 025/98. Não se nega legitimidade aos promotores de justiça para, na condição de substitutos processuais, impetrarem mandado de segurança, inclusive perante o Tribunal de Justiça para, na condição de substitutos processuais, impetrarem mandado de segurança, visando o resguardo do direito a vida e saúde de cidadãos. II – A evidência, o princípio igualitário norteia a norma do artigo 196, mas e sob a ótica da igualdade perante a lei que o operador do direito aplica a norma no caso concreto, não se podendo dispender tratamento diferenciado à guisa de isonomia, pois o sentido maior da norma é banir as desigualdades a prestação de assistência a saúde, no contexto normativo alinhado, tem distributividade (artigo 194) e, ainda, do orçamento, bem como no contexto social, não prescinde da condição de hipossuficiência do necessitado, sem o que o Estado supriria o medicamento só para alguns, inclusive que poderiam custeá-los, e do outro tanto, deixaria de prestar saúde em sua acepção integral, que inclui também a nutrição, a todos, na forma da lei esta realidade que não se pode olvidar. Segurança Concedida. (4ª Câm. Cível, DJ 14549 de 07/07/2005, Acórdão de 09/06/2005, Rel. Des. Beatriz Figueredo Franco, Mandado de Segurança NR. 12519-6/101 – TJGO).

Portanto, se qualquer dos Gestores do SUS vir a postergar o direito a qualquer paciente carente de uma terapia, pode e deve essa pessoa utilizar-se de uma das medidas judiciais para fazer valer o seu direito, como tem ocorrido no Judiciário brasileiro como um todo. Dentre esses instrumentos, são mais corriqueiramente utilizados: Mandado de Segurança (individual e coletivo), Medida Cautelar Inonimada, Ação Ordinária com apelo à Tutela Antecipada e Ação Civil Pública, esta para os casos de omissão de prestações de ações e serviços à proteção de direitos

difusos e coletivos. De consequência, cumpre ao obreiro do Direito observar a ação e a competência adequadas ao caso concreto, tendo como referência a posição administrativa do Gestor. De sorte, resta que se propague, divulgue e se difunda este direito, a bem do ordenamento jurídico pátrio e em favor do culto do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, com total resolutividade pela efetividade da prestação jurisdicional.

Referências

ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE MEDICINA. O que você precisa saber sobre o SUS. v. 1. São Paulo: Editora Atheneu, 2002.

CARVALHO, G. de C. M. Financiamento público federal do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Editora Papercrom, 2002.

COMPARATO, F. K. Afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

DALLARI, S. G. Os estados brasileiros e o direito à saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 1995.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Direito sanitário e saúde pública. v. I e II, Série E. Legisl. e Saúde, Brasília: Ministério da Saúde, 2003.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS. Lei Orgânica Estadual. 2. ed. rev. e atual. Goiânia, 2005.

ROSEN, G. Uma história da Saúde Pública. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 1994.

SCHWARTS, G. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008176 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 177

Parecer: 1 / 3593 / 2007Natureza: Recurso em sentido estrito n. 2007-0244-2261Comarca: Caldas NovasRecorrente: Ministério PúblicoRecorrido(s): Sirley José de OliveiraCâmara: 1ª CriminalRelator: Des. Jamil Pereira de MacedoProcurador de Justiça: Edison Miguel da Silva Jr

Colenda Câmara Criminal julgadora,

Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pela acusação (fls. 34-35), presente pelo Ministério Público com atuação perante o juízo de origem, em face de decisão que rejeitou denúncia contra o acusado Sirley José de Oliveira. Razões (fls. 37-41).

Em contra-razões, a defesa técnica do acusado busca o improvimento do recurso (fls. 47-49).

No juízo de retratação, previsto pelo art. 589 do Código de Processo Penal, a decisão foi mantida (fls. 50).

Na Procuradoria Geral de Justiça, os autos foram distribuídos à 18ª Procuradoria de Justiça, para parecer – custos legis.

É o relatório, nos limites da controvérsia.

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO N. 2007-0244-2261

Edison Miguel da Silva Jr*

PEÇA FUNCIONAL

* Procurador de Justiça do Ministério Público de Goiás.

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Parecer: 1 / 3593 / 2007Natureza: Recurso em sentido estrito n. 2007-0244-2261Comarca: Caldas NovasRecorrente: Ministério PúblicoRecorrido(s): Sirley José de OliveiraCâmara: 1ª CriminalRelator: Des. Jamil Pereira de MacedoProcurador de Justiça: Edison Miguel da Silva Jr

Colenda Câmara Criminal julgadora,

Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pela acusação (fls. 34-35), presente pelo Ministério Público com atuação perante o juízo de origem, em face de decisão que rejeitou denúncia contra o acusado Sirley José de Oliveira. Razões (fls. 37-41).

Em contra-razões, a defesa técnica do acusado busca o improvimento do recurso (fls. 47-49).

No juízo de retratação, previsto pelo art. 589 do Código de Processo Penal, a decisão foi mantida (fls. 50).

Na Procuradoria Geral de Justiça, os autos foram distribuídos à 18ª Procuradoria de Justiça, para parecer – custos legis.

É o relatório, nos limites da controvérsia.

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO N. 2007-0244-2261

Edison Miguel da Silva Jr*

PEÇA FUNCIONAL

* Procurador de Justiça do Ministério Público de Goiás.

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008178 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 179

Juízo de admissibilidade

Para que o recurso seja examinado são necessários certos requisitos, denominados pressupostos objetivos e subjetivos, que são as exigências legais para que seja conhecido.

No caso dos autos, esses pressupostos foram atendidos. Cabimento, adequação e tempestividade de acordo com o CPP, art. 593: intimação da sentença para o apelante (fls. 35-v) em 14/05/07; recurso por petição (fls. 36) em 16/05/07.

Presentes os demais pressupostos.

Assim, o recurso deve ser conhecido.

Juízo de mérito

1. “O pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal reside na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade -, dentro do quadro axiológico constitucional ou decorrente da concepção de Estado de Direito democrático (teoria constitucional ampla ou intermediária)”.

1.1. “Reveste-se tal orientação de capital importância, pois não há delito sem que haja lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico determinado”.

1.2. “Por influência, sobretudo, da doutrina italiana, esse aspecto (ofensa ou lesão) costuma ser autonomamente denominado princípio da ofensividade ou da lesividade. Não obstante, convém frisar que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos opera nas fases legislativa (ou de criação do tipo de injusto) e judicial (ou de aplicação da lei penal). O que significa o agasalho da exigência de que tanto a figura delitiva quanto a conduta concreta do agente envolvam lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido”.

1.3. “Disso ressai que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos abrange a idéia de ofensividade ou lesividade, visto que esta última é conata ao delito que necessariamente há de pressupor uma lesão ou perigo de lesão a determinado bem jurídico”.

(PRADO, L. R. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. v. 1. 7. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 140-141)

2. Para a teoria moderna, portanto, a lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado (princípio da necessária lesividade do tipo penal) abrange todos os crimes: “Não há crime sem lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico”.

2.1. Logo, também nos crimes de perigo abstrato ou presumido, se exige a existência da situação de perigo na conduta realizada, sob pena de se punir alguém por conduta que não é crime.

2.2. Trata-se de espécie de crime de perigo na qual o perigo constitui unicamente a ratio legis, “o motivo que dá lugar à vedação legal de determinada conduta” (PRADO, 2007, p. 250).

2.3. Enfim, nos crimes de perigo abstrato ou presumido não é necessário que a conduta lesione o bem jurídico ou concretamente coloque em risco um determinado bem jurídico, mas é indispensável que tenha potencialidade de lesionar o bem jurídico penalmente protegido.

3. No caso dos autos, o princípio da necessária lesividade do tipo penal basta para elidir a pretensão acusatória. Falta-lhe interesse de agir ou ausência de justa causa para a ação penal.

3.1. A simples constatação de que as mercadorias estavam com o prazo de “validade expirados” (fls. 06-07) não é suficiente para se inferir a potencialidade lesiva da conduta, ou seja, “em condições impróprias para o consumo”.

4. A elementar “em condições impróprias para o consumo”, prevista no art. 7º, inc. IX, da Lei 8.137/90 tem conteúdo na realidade concreta: é fato da vida em sociedade e não da lei.

4.1. O art. 18, §6º, da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor) não faz referência aos crimes contra as relações de consumo previstos na Lei 8.137/90. Suas consequências são administrativas (multa, confisco e fechamento do estabelecimento).

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Juízo de admissibilidade

Para que o recurso seja examinado são necessários certos requisitos, denominados pressupostos objetivos e subjetivos, que são as exigências legais para que seja conhecido.

No caso dos autos, esses pressupostos foram atendidos. Cabimento, adequação e tempestividade de acordo com o CPP, art. 593: intimação da sentença para o apelante (fls. 35-v) em 14/05/07; recurso por petição (fls. 36) em 16/05/07.

Presentes os demais pressupostos.

Assim, o recurso deve ser conhecido.

Juízo de mérito

1. “O pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal reside na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade -, dentro do quadro axiológico constitucional ou decorrente da concepção de Estado de Direito democrático (teoria constitucional ampla ou intermediária)”.

1.1. “Reveste-se tal orientação de capital importância, pois não há delito sem que haja lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico determinado”.

1.2. “Por influência, sobretudo, da doutrina italiana, esse aspecto (ofensa ou lesão) costuma ser autonomamente denominado princípio da ofensividade ou da lesividade. Não obstante, convém frisar que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos opera nas fases legislativa (ou de criação do tipo de injusto) e judicial (ou de aplicação da lei penal). O que significa o agasalho da exigência de que tanto a figura delitiva quanto a conduta concreta do agente envolvam lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido”.

1.3. “Disso ressai que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos abrange a idéia de ofensividade ou lesividade, visto que esta última é conata ao delito que necessariamente há de pressupor uma lesão ou perigo de lesão a determinado bem jurídico”.

(PRADO, L. R. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. v. 1. 7. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 140-141)

2. Para a teoria moderna, portanto, a lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado (princípio da necessária lesividade do tipo penal) abrange todos os crimes: “Não há crime sem lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico”.

2.1. Logo, também nos crimes de perigo abstrato ou presumido, se exige a existência da situação de perigo na conduta realizada, sob pena de se punir alguém por conduta que não é crime.

2.2. Trata-se de espécie de crime de perigo na qual o perigo constitui unicamente a ratio legis, “o motivo que dá lugar à vedação legal de determinada conduta” (PRADO, 2007, p. 250).

2.3. Enfim, nos crimes de perigo abstrato ou presumido não é necessário que a conduta lesione o bem jurídico ou concretamente coloque em risco um determinado bem jurídico, mas é indispensável que tenha potencialidade de lesionar o bem jurídico penalmente protegido.

3. No caso dos autos, o princípio da necessária lesividade do tipo penal basta para elidir a pretensão acusatória. Falta-lhe interesse de agir ou ausência de justa causa para a ação penal.

3.1. A simples constatação de que as mercadorias estavam com o prazo de “validade expirados” (fls. 06-07) não é suficiente para se inferir a potencialidade lesiva da conduta, ou seja, “em condições impróprias para o consumo”.

4. A elementar “em condições impróprias para o consumo”, prevista no art. 7º, inc. IX, da Lei 8.137/90 tem conteúdo na realidade concreta: é fato da vida em sociedade e não da lei.

4.1. O art. 18, §6º, da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor) não faz referência aos crimes contra as relações de consumo previstos na Lei 8.137/90. Suas consequências são administrativas (multa, confisco e fechamento do estabelecimento).

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008180

4.2. Enfim, entre essas duas Leis não existe uma relação de complementaridade penal. O art. 7º da Lei 8.137/90 tem um enfoque voltado às relações de consumo mais abrangentes, entrelaçando-se com a proteção à ordem econômica em geral, enquanto a Lei 8.078/90 diz respeito à proteção do consumidor individual, sem preocupação na regulação do mercado como um todo.

5. Ademais, expor para venda mercadoria em condições impróprias ao consumo é situação que deixa vestígio material, preenchendo o disposto no art. 158 do Código de Processo Penal.

5.1. “Por isso, cremos indispensável à realização de exame pericial para atestar que a mercadoria [...], pela avaliação de especialistas, é imprópria para o consumo. Não pode a questão ficar restrita à avaliação do juiz, que se serviria de testemunhas e outras provas subjetivas para chegar a uma conclusão” (NUCCI, G. de S. Leis penais e processuais penais comentadas. 2. ed. São Paulo: RT. 2007. p. 920).

Assim, o recurso deve ser improvido, sob pena de se negar vigência aos arts. 158 e 564, inc. III, letra “b”, do Código de Processo Penal, com ofensa indireta às garantias constitucionais do devido processo legal e necessária lesividade do tipo penal.

Isto posto, o Ministério Público, com atuação perante esse egrégio Tribunal de Justiça, opina pelo conhecimento e improvimento do recurso.

É o parecer – custos legis (Essa segunda função do Ministério Público no processo penal – parecerista e não autor/acusação – é exigência da garantia da liberdade individual lato sensu, pois: “a tutela da inocência do imputado não é só um interesse individual, mas social” – LOPES JR., A. Introdução crítica ao processo penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 235).

Goiânia (GO), 13 de setembro de 2007.

Edison Miguel da Silva Jr.Procurador de Justiça

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 181

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS

?O Conselho Consultivo da ESMP-GO definiu que a Revista do Ministério Público é de opinião doutrinária, cujo objetivo é fomentar o debate jurídico em temas que guardem pertinência e oportunidade com a atuação ministerial.

?Os artigos deverão ser preferencialmente inéditos.?Serão aceitos artigos doutrinários e peças funcionais,

observada a gramática normativa.?Cada artigo, na primeira lauda, deverá vir acompanhado de:

1- resumo (com o máximo de setenta palavras), sem parágrafos;2- palavras-chave (no máximo cinco palavras);3- título do trabalho;4- nome completo do autor (ou autores);5- minicurrículo (créditos), contendo o nome do autor (ou autores), endereço, fax e e-mail, situação acadêmica, títulos, instituições às quais pertença e a principal atividade exercida.

?Formatação: fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5, justificado, sem recuos, deslocamentos ou espaçamentos, antes ou depois, e, tampouco, tabulador para determinar os parágrafos, os quais serão abertos automaticamente. Tamanho de papel A4, margens superior e esquerda 3,0 cm e direita e inferior 2,0 cm. Os artigos deverão conter de 3 a 6 laudas, utilizando os editores de texto Word (Microsoft) ou Writer (BrOffice).

?Bibliografia: as referências bibliográficas seguirão as normas da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas, atendendo ao disposto na NBT ABNT 6023/2002. As citações deverão ser feitas em sistema de chamada, numérico ou autor/data, conforme especificado na NBR 10520/2002. A exatidão e a adequação das referências a trabalhos que tenham sido consultados e mencionados no corpo do artigo são de responsabilidade exclusiva do autor (ou autores).

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Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008180

4.2. Enfim, entre essas duas Leis não existe uma relação de complementaridade penal. O art. 7º da Lei 8.137/90 tem um enfoque voltado às relações de consumo mais abrangentes, entrelaçando-se com a proteção à ordem econômica em geral, enquanto a Lei 8.078/90 diz respeito à proteção do consumidor individual, sem preocupação na regulação do mercado como um todo.

5. Ademais, expor para venda mercadoria em condições impróprias ao consumo é situação que deixa vestígio material, preenchendo o disposto no art. 158 do Código de Processo Penal.

5.1. “Por isso, cremos indispensável à realização de exame pericial para atestar que a mercadoria [...], pela avaliação de especialistas, é imprópria para o consumo. Não pode a questão ficar restrita à avaliação do juiz, que se serviria de testemunhas e outras provas subjetivas para chegar a uma conclusão” (NUCCI, G. de S. Leis penais e processuais penais comentadas. 2. ed. São Paulo: RT. 2007. p. 920).

Assim, o recurso deve ser improvido, sob pena de se negar vigência aos arts. 158 e 564, inc. III, letra “b”, do Código de Processo Penal, com ofensa indireta às garantias constitucionais do devido processo legal e necessária lesividade do tipo penal.

Isto posto, o Ministério Público, com atuação perante esse egrégio Tribunal de Justiça, opina pelo conhecimento e improvimento do recurso.

É o parecer – custos legis (Essa segunda função do Ministério Público no processo penal – parecerista e não autor/acusação – é exigência da garantia da liberdade individual lato sensu, pois: “a tutela da inocência do imputado não é só um interesse individual, mas social” – LOPES JR., A. Introdução crítica ao processo penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 235).

Goiânia (GO), 13 de setembro de 2007.

Edison Miguel da Silva Jr.Procurador de Justiça

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 181

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS

?O Conselho Consultivo da ESMP-GO definiu que a Revista do Ministério Público é de opinião doutrinária, cujo objetivo é fomentar o debate jurídico em temas que guardem pertinência e oportunidade com a atuação ministerial.

?Os artigos deverão ser preferencialmente inéditos.?Serão aceitos artigos doutrinários e peças funcionais,

observada a gramática normativa.?Cada artigo, na primeira lauda, deverá vir acompanhado de:

1- resumo (com o máximo de setenta palavras), sem parágrafos;2- palavras-chave (no máximo cinco palavras);3- título do trabalho;4- nome completo do autor (ou autores);5- minicurrículo (créditos), contendo o nome do autor (ou autores), endereço, fax e e-mail, situação acadêmica, títulos, instituições às quais pertença e a principal atividade exercida.

?Formatação: fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5, justificado, sem recuos, deslocamentos ou espaçamentos, antes ou depois, e, tampouco, tabulador para determinar os parágrafos, os quais serão abertos automaticamente. Tamanho de papel A4, margens superior e esquerda 3,0 cm e direita e inferior 2,0 cm. Os artigos deverão conter de 3 a 6 laudas, utilizando os editores de texto Word (Microsoft) ou Writer (BrOffice).

?Bibliografia: as referências bibliográficas seguirão as normas da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas, atendendo ao disposto na NBT ABNT 6023/2002. As citações deverão ser feitas em sistema de chamada, numérico ou autor/data, conforme especificado na NBR 10520/2002. A exatidão e a adequação das referências a trabalhos que tenham sido consultados e mencionados no corpo do artigo são de responsabilidade exclusiva do autor (ou autores).

Page 183: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS PROCURADORIA … · 2010. 12. 13. · 4 Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008 APRESENTAÇÃO Revista do MP-GO, Goiânia, ano

Revista do MP-GO, Goiânia, ano XI, n. 16, Dez/2008182

?Remessa: Todo o material deverá ser gravado em CD e enviado via e-mail, em arquivo anexo, para o seguinte endereço eletrônico < [email protected] >. É obrigatório, ainda, que sejam enviadas à ESMP-GO (duas) cópias impressas, devidamente assinadas pelo seu autor (ou autores).

?Aprovação: a ESMP-GO, ao receber os trabalhos, fará a sua análise pelo Conselho Editorial. O relator designado analisará o artigo que lhe for distribuído, conforme as regras estabelecidas pelo Conselho Consultivo.

?O trabalho, caso aprovado, será submetido à revisão gramatical e, se for o caso, será submetido à concordância do autor.

?Em caso de rejeição do artigo para publicação, somente será feita a comunicação ao seu autor (ou autores) havendo consulta pessoal à direção da ESMP-GO.

?Os trabalhos recebidos para seleção não serão devolvidos.?Não serão devidos direitos autorais ou qualquer remuneração

pela publicação dos trabalhos na revista.?Os artigos publicados a partir da 16ª edição já seguem o novo

acordo ortográfico da Língua Portuguesa.