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    Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 8, n. 1, jan./jun. 2015, p. 134-157.

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    MDIA, IDEOLOGIA E FINANCEIRIZAO*

    MEDIA, IDEOLOGY AND FI NANCIALI ZATION

    DOI:http://dx.doi.org/10.15448/2178-3748.2015.1.18591

    Muniz SodrProfessor Emrito da Escola de ComunicaoUFRJ

    RESUMO: O presente artigo a transcrio da conferncia proferida pelo Prof. Muniz Sodr em 15 de agostode 2013, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Tratou-se da conferncia de encerramentodo II Seminrio Histria e Ideologia: mdia, dominao e resistncia. Nela, Muniz Sodr abordou o impacto doatual contexto de financeirizao do capitalismo sobre a mdia, com nfase para as implicaes ideolgicas,culturais e sociais das transformaes contemporneas dos meios de comunicao.PALAVRAS-CHAVE: Cultura. Ideologia. Mdia.

    ABSTRACT: This article is the transcript of a lecture given by Prof. Muniz Sodr on August 15, 2013, inPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. It was the closing conference of the II SeminrioHistria e Ideologia: mdia, dominao e resistncia. In it, Muniz Sodr discussed the impact of the currentcontext of financialization of capitalism on the media, with emphasis on the ideological, cultural and socialimplications of contemporary transformations of the media.KEYWORDS: Culture. Ideology. Media.

    Boa tarde e muito obrigado pelo convite e pela presena. Para falar de comunicao,

    ideologia e resistncia, eu escolhi tomar a questo da cidadania como um vetor ideolgico da

    mdia. Toda vez que ns associamos mdia a cidadania e essa associao ideolgica a

    atitude imediata , quase sempre, a de se pensar na mdia como se fosse uma parceira natural

    dos direitos sociais - com direitos sociais eu quero dizer educao, sade, habitao, proteo

    coletiva ou segurana pblicaque, na sociedade moderna, so posteriores aos direitos civis.

    Os direitos sociais aparecem depois dos direitos civis, que so a representao democrtica, a

    liberdade de expresso etc. Ento, quando a mdia surge com a fora que surge, o pensamento

    geral - digamos, de Estado, de pblico e de eventuais grupos de controle de pensamento da

    mdia de associar os direitos sociais. Quer dizer, associar educao, sade a bens pblicos,

    pensados coletivamente. Mas se ns nos restringirmos ao caso brasileiro, o foco gerativo

    desses direitos sociais certamente a Constituio Federal de 1988. Porque a Constituio de

    1988 transferiu os direitos sociais da ordem econmica, como estava na constituio anterior,

    * Transcrio da conferncia de encerramento do II Seminrio Histria e Ideologia: mdia, dominao e

    resistncia, proferida pelo prof. Prof. Muniz Sodr em 15 de agosto de 2013, na Pontifcia Universidade Catlicado Rio Grande do Sul (transcr. Jaime Valim Mansan).

    http://dx.doi.org/10.15448/2178-3748.2015.1.18591http://dx.doi.org/10.15448/2178-3748.2015.1.18591
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    para a ordem social, e reinterpretou esses direitos como direitos universais de cidadania.

    Portanto, o conceito de cidadania se amplia com a Constituio de 1988, e se amplia como

    apropriao social de bens coletivos. assim que eu gostaria de caracterizar cidadania aqui,

    hoje. Cidadania como a apropriao social de bens coletivos.

    Mas uma coisa o formalismo dos direitos. Outra o exerccio efetivo desses direitos.

    Realmente, no contexto poltico e econmico em que esses direitos sociais se

    institucionalizaram - quer dizer, no contexto da Constituio de 1988a mdia j era parceira

    irreversvel de outra coisa. A mdia j era parceira irreversvel do capital financeiro. J era

    parceira irreversvel do mercado. E do Estado, empenhado em polticas de ajuste fiscal,

    tpicas do modelo neoliberal. Ora, essa dissonncia, esse desacordo no normalmente

    apontado pelos estudiosos, pelos analistas de Comunicao. Porque, na prtica, isso implica

    uma dissonncia ideolgica entre o ativismo em prol da universalizao dos direitos sociais e

    a valorizao, que a mdia faz, da lgica do mercado. Essa lgica do mercado afim

    privatizao na apropriao dos bens coletivos que esto implicados nos direitos sociais. Aqui

    h, portanto, o que eu chamaria de uma dissonncia ideolgica: de um lado, as instituies

    civis caminham em um sentido, enquanto a mdia caminha sempre no sentido do mercado e

    do capital financeiro.

    A conscincia individualista se sobrepe no espao pblico conscincia solidria,

    gerando condies desfavorveis quaisquer novas estratgias de institucionalizao dos

    direitos sociais. Portanto, a cidadania serve de referncia para essa nova qualificao histrica

    da existncia, que eu chamo de bios miditico, conceito que est em alguns livros meus, como

    Antropolgica do Espelho (2002),As Estratgias Sensveis(2006) etc. O bios miditico como

    uma nova orientao existencial, uma nova forma de vida que conjuga tecnologia e mercado.

    Esse bios miditico, essa nova qualificao histrica da existncia, basicamente a cidadania

    consumidora, cidadania definida a partir do consumo. Ento o social passa a ser qualificado

    pela capacidade de consumo, e isso o que passa a definir a agenda pblica. Sociabilizar-se consumir.

    Ns podemos assinalar, nesse ponto, uma transformao na organizao tradicional da

    sociabilidade republicana. O comum republicano se investe, do ponto de vista do Estado-

    nao, das formas de ordenamento jurdico e das fronteiras territoriais. Isso o comum

    estabelecido pela repblica. Mas na regulao da sociedade civil, se investe da forma de

    esfera pblica. Ns entendemos esfera pblica como espao de comunicao em que cada

    indivduo passa do discurso dual do dilogo, a dois relao discursiva com a massa

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    annima. Portanto, esfera pblica como espao cultural. A moderna ideia de cultura como um

    campo autnomo de sentido seria uma espcie de resposta epistmica fragmentao da

    unidade mtica tradicional, de propriedade politicamente comum. A culturao termo cultura e

    a ideia de cultura aparecem no Ocidente quando a ideia de Deus, como um organizador

    geral, comea a declinar. quando a Igreja vai perdendo progressivamente seu estatuto

    hegemnico portanto, a ideia do sagrado, do transcendente, como interpelador da

    conscincia individualque a cultura aparece como essa sntese de sentido. Assim, a cultura

    como campo autnomo de sentido uma resposta fragmentao da unidade mtica, da

    unidade teolgica, da unidade divina tradicional. Tanto que cultura e religio, cultura e

    catolicismo, so conceitos estreitamente ligados. Basta ler aquele livro de T. S. Eliot (2013)

    sobre o conceito de cultura, onde ele destrincha isso dessa maneira.

    A poltica e a cultura presidiram a reinterpretao da koin antiga, da comunidade

    antiga, na Europa no sculo XVIII. Fragmentando-se a unidade mtica, divina, a poltica e a

    cultura aparecem para reinterpretar a unidade. A irrupo dessa realidade nova na Histria foi

    um dos efeitos da transformao das relaes de produo a Revoluo Industrialque se

    alinhava com a expanso da democracia burguesa. Na esteira das proclamaes tericas e

    polticas de Rousseau, eram estratgicas a educao e a cultura como instrumentos de

    concepo da democracia, como valor e como fim. Democracia no mais apenas como

    mecanismo de governo, mas democracia como valor, como fim social. Para isso, precisava

    educao e cultura.

    A disseminao dos dogmas de soberania do povo demandava o trnsito livre de

    ideias, a liberdade de expresso, que era uma exigncia histrica da soberania popular. As

    ideias tinham que transitar. As informaes tinham que passar. Cultura e poltica eram

    estreitamente ligadas, estreitamente vinculadas.

    O espao pblico se fortalece na Europa ao longo dos sculos XVIII e XIX como

    lugar de manifestao da vontade geral, no de vontades particulares. Ento, o espao pblico isso fundamental para entender a mudana da mdia hoje passou pelo que sempre foi

    poltico e cultural. Sempre foi uma conjugao de poltica e de letras, na acepo ampla e no

    apenas literria da palavra: letras como literatura, fico, poesia, mas tambm como discurso,

    publicismo, debate. Isso sempre esteve junto com a poltica. Ento, do ponto de vista do

    discurso, o espao pblico se apoiava em instituies literrias mas tambm na arena de

    debate, em meios editoriais, alm da imprensa, que era vista, pelos pragmatistas como

    Dewey, por exemplocomo um agente promotor da cultura.

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    A associao entre o parlamento e as letras era realmente familiar aos intelectuais

    oitocentistas. No havia como separar um do outro. Eu estou falando da Europa, mas tambm

    no havia como separar, aqui no Brasil, em momentos de afirmao da nacionalidade e da

    modernizao do pas. Um deles, por exemplo, foi o abolicionismo. impossvel pensar o

    abolicionismo sem o papel da imprensa, mas tambm dos comcios e clubes de discusso

    letrase vejam como eram slidos os intelectuais do abolicionismo, negros e brancos. Ento,

    para a instncia poltica, isso era muito importante, seno essencial, como Dewey sustentava.

    Dewey dizia: o aperfeioamento dos mtodos e de condies de debate, de discusso, de

    persuaso: este o problema do pblico. Ou seja, para esse aperfeioamento, precisava-se de

    uma retrica particular, uma retrica condicionada a uma cultura especfica, algo como a boa

    retrica platnica e aristotlica. Por exemplo: como se sabe, Scrates, via Plato, empreende

    uma luta contra os sofistas, os mestres da retrica. Plato deixa bem claro que o problema no

    contra a retrica inespecificamente: contra a m retrica. Existia a boa retrica e a m

    retrica. A boa retrica era a dialtica. Ento, no possvel a comunicao e o trnsito de

    ideias sem uma forma retrica, discursiva, expressiva, capaz de fazer a pessoa compreender.

    A retrica, portanto, era e sempre foi necessria para expressar a linguagem das

    massas no espao pblico. Quando a razo pura por mais lgica que ela seja, por mais

    racional que ela seja mais um instrumento de dominao. A desconfiana que grandes

    agitadores de massas tm da razo em si mesma vo no empuxo dessa argumentao.

    conhecida a frase de Lutero, grande reformador, sobre a razo. Ele disse: Die Vernunft,

    diesem Hure - a razo, essa prostituta. Eu disse prostituta porque fica melhor, Hure em

    alemo a forma abreviada... Chamou a razo disso. Porque, sem uma retrica capaz de

    expressar a linguagem das massas, ela s um instrumento de dominao, como outros.

    Por trs dessa retrica, se achava o sistema educacional. A retrica voltada em si

    mesma, como pura tcnica discursiva, como uma tcnica desencarnada da criatividade

    cultural, da poltica e, portanto, desencarnada do ativismo cvico, no nada. Tem que ter portrs o ativismo cvico, educao-cidadania. Mas essa retrica j existia, sempre existiu, e ela

    era o embrio das indstrias de difuso culturalista junto ao grande pblico. Por isso ela foi

    objeto de autores como Tocqueville, Proudhon, Baudelaire, desde meados do sculo XIX,

    desconfiando disso, dessa retria que estava a troco s da seduo.

    Na primeira metade do sculo XX, essa retrica industrializada se tornou objeto novo

    de anlise graas noo de indstria cultural, expresso cunhada, como todo mundo sabe,

    por Adorno. No dele. Se vocs lerem esse grandee divertidoromance de Flaubert, que

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    Bouvard et Pcuchetque tem uma bela traduo em portugus, acho que at de tradutor

    gacho, muito fcil de encontrar vocs encontram em Bouvard et Pcucheta expresso

    cultura industrial. Adorno s inverteu: indstria cultural. O que emBouvard et Pcuchet

    chamado de cultura industrial a mesma coisa: so os folhetins, a imprensa... Essa expresso

    foi teoricamente reforada pelo conceito de reprodutibilidade, de Walter Benjamin. O

    diagnstico de homogeneizao cultural se configura como um ponto de convergncia para

    toda essa linhagem de crtica cultural que a Escola de Frankfurt representou muito bem.

    Mais tarde, essa expresso indstria cultural se estendeu mdia eletrnica, devido

    importncia crescente do rdio e da televiso, perdeu fora com a tecnologia do digital

    ningum fala muito hoje em indstria cultural e foi progressivamente substituda pela

    expresso indstria de contedos, que se fala muito. Fornecer contedos, indstria de

    contedos. No bojo de transio do paradigma industrial que se caracteriza pela tecnologia

    dos motores para o paradigma informacional que a tecnologia eletrnica o espao

    pblico se ampliou tecnologicamente. O espao pblico enorme, imenso. Ele passou a ser

    absorvido pelas indstrias de contedos culturais, mas com uma conexo apenas remota com

    o sistema educacional. Nesse crescimento da indstria cultural, transformando-se em indstria

    de contedos, a educao danou. A educao uma estrela no cu, e s vezes uma estrela

    cadente.

    Entre os anos 1960 e os anos 1990, o espao pblico parecia ter encontrado no

    broadcast televisivo, parecia ter encontrado na televiso em circuito aberto, ou na informao

    em circuito aberto, seu cone principal. Quer dizer, entre 1960 e 1990, a televiso foi o cone

    do espao pblico. Por qu? Pela grande capacidade que a televiso sempre tevee ainda tem

    de transpor as velhas barreiras sociais, as barreiras de classe, de credo, de sexo, de idade. E

    assim a televiso foi constituindo audincias diversificadas, e se imps essa televiso como

    um mediumprototpico do alcance massivo.

    A comearam a se levantar hipteses crticas sobre o potencial de concorrncia, emtermos educacionais, com a famlia e com a escola. Entre os anos 1970 e 1990, o nmero de

    artigos publicados no mundo ocidental sobre esse tpico o mal que a televiso faria s

    crianas, concorrendo com a famlia, com os pais, com a escola inacreditavelmente

    grande. muito, muito grande. Ento, na dcada final do sculo passado, a tecnologia digital

    passou a impulsionar, passou a consolidar a fragmentao dos pblicos da mdia eletrnica

    tradicional sob a forma de individualidades comunicantes, ou indivualidades interativas. Na

    televiso, arguir falar com interao. A interao era regida pelo modelo de uma massa

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    annima, uma massa heterognea. Esse modelo, que vigia sobre a televiso, d lugar

    interatividade, palavra de vinte anos para c. Interatividade uma palavra muito nova.

    Implica o qu, a interatividade? Um processo gradativo de apropriao da tecnologia da

    comunicao pelos usurios. Portanto, a comunicao deixando de ser unidirecional, deixando

    de ir de um centro emissor para a massa annima, para a heterogeneidade, e os usuriosessa

    heterogeneidade - se apropriando da tecnologia. A Internet isso. A Internet o medium, a

    mdia que sintetiza todas as possibilidades da mdia anterior. Sintetiza a imprensa escrita,

    rdio e televiso. A qualidade dessa sntese outra coisa a ser discutida. Ela sintetiza

    tecnicamente, como possibilidade. A Internet tambm acena para novas modalidades de

    trabalho intelectual, afinado com o desenvolvimento da rede mundial de computadores. O

    broadcast, a televiso em circuito aberto, progressivamente substitudo pelopointcast, que

    a transformao da audincia comum em pontos de mira individualizados, que so capazes de

    fragmentar, de provocar a fragmentao do espao pblico que tinha sido midiaticamente

    ampliado. A mdia ampliou o espao pblico mas, nessa ampliao, despolitizou e

    deseducacionalizou o espao pblico. Tecnologicamente amplo, enorme.

    Essa substituio de broadcast porpointcastmdia tradicional ou, como eu chamo,

    mdia jurssica pela nova mdiaque a mdia eletrnica, a Internet, as redes sociais

    essa substituio opera no mbito da atual financeirizao do mundo. Ns estamos em um

    momento em que, mesmo com os recuos do neoliberalismo e das finanas, o mundo hoje

    financeiro. O poder do capitalismo o poder das finanas. A mdia opera essa substituio no

    mbito dessa financeirizao. Mas isso no afeta radicalmente a homogeneizao cultural que

    j tinha sido denunciada, ideologicamente denunciada, pela Escola de Frankfurt. Por qu? H

    um aporte de natureza econmica. Eu vou explicar por que a homogeneizao fundamental

    a essa lgica, a essa retrica da mdia, seja ela qual for.

    Considere-se um produto financeiro. O que um produto financeiro? Moeda, ttulo,

    crdito... Esses produtos financeiros so perfeitamente homogneos. Por qu? Porque osagentes das finanas no se interessam por nenhuma outra caracterstica do produto a no ser

    o preo. Quem se interessa pelas outras caractersticas o comprador e o produtor. Mas o

    agente financeiro no. Ele se interessa pelo preo. No mercado monetrio, por exemplo, voc

    empresta um real. Um real emprestado durante um dia equivalente a qualquer outro real

    emprestado durante um dia. No h diferena entre um real e outro. No h diferena entre

    um dlar e outro, entre um euro e outro. Ou seja, nenhum banco pode praticar uma taxa de

    juros superior s taxas de mercado sob o pretexto de que os reais dele so melhores do que os

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    reais de outro banco, so de melhor qualidade do que os oferecidos por outro banco. Isso

    parece evidente, uma obviedade. Mas, quando voc olha do lado dos mercados no-

    financeiros, a homogeneidade do produto desaparece quase sempre. Quando voc olha o lado

    do mercado produtivista, ele v se o produto serve ao comprador, por exemplo, pegando a

    roupa e esticando-a para ver se boa, ver se dura, se bonita, se a marca boa. No h

    homogeneidade a. Nesse caso nota-se uma heterogeneidade de gostos, de escolhas, de

    seleo. No mercado financeiro, a homogeneidade a regra.

    Essa explicao est valendo aqui como ndice da hegemonia da informao veloz, por

    efeito da tecnologia eletrnica. Porque, sob aqueles velhos pruridos da heterogeneidade

    cultural, da heterogeneidade simblica, no mbito da cultura, o que importa mesmo, agora, no

    mundo regido pelos mercados de capitais, que a informao circule bem e velozmente. No

    importa que informao essa. Importa que ela circule bem e velozmente. Porque todas as

    ofertas, todas as demandas de um mesmo produto, homogneo, podem ser confrontadas

    praticamente em permanncia no mesmo lugar. Por exemplo, pode ser a bolsa, se for produto

    financeiro. Como a rede de telecomunicaes. O mercado monetrio e o mercado das trocas

    lingusticas ou informativas tem uma homologia, uma isonomia e uma isomorfia.

    nesse mbito que aquela velha expresso, que circulava muito no incio da Escola de

    Comunicao e nos EUA, chamada comunicao de massas, uma expresso equivocada.

    na verdade um resultado equivocado da confuso entre comunicao e transmisso. Porque

    o que efetivamente essa expresso designa a informao com informao eu quero dizer

    atualidade, entretenimento, difuso de contedos culturais disseminada pela mdia. isso

    que interessa. Portanto, esse esprito, digamos, distributivista... Isso, vejam s, no to

    novo assim: j nos anos 1920, esse grande educador e filsofo, John Dewey esse honra os

    EUA ele diz isso (eu disse isso hoje tarde, l no programa do Juremir, falando com o

    pessoal da Mdia Ninja). Ele disse o seguinte: que ele achava que os jornais deveriam deixar

    de ficar reportando coisas objetivamente, que a chamada informao, a notcia, e a o jornalreporta. Ele disse que isso, em um determinado momento, cansa. Ele diz we will be fed up,

    fatigados dessa reportagem infinita de acontecimentos, e que o prprio jornalismo inculca

    ideologicamente no seu pblico como se fosse o alimento de cada dia, como se fosse algo

    sabido e necessrio. Ele diz: se deveria, talvez, passar desse ponto de apenas reportar para ser

    um instrumento de conexo, no espao pblico, com vistas educao e alta educao, para

    um mundo que est se abrindo. E essa oportunidade est acontecendo agora, com a Internet.

    Eu no creio que o jornalismo se defina hoje por contedo de qualidade. Eu sou um pouco

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    antigo... O que est importando neste momento conexo. O xito que os meninos da Mdia

    Ninja e outros esto tendo nas ruas iro me dar novos ngulos, eles me disseram. Eu disse a

    eles que ningum est se lixando para esses novos ngulos. O sujeito est no xtase da

    conexo. No h nada mais exttico, no h nada que d mais extse, no h nada que d mais

    gozo pessoal do que conexo. O estar juntos, o conectar-se, fisicamente, corporalmente ou

    tecnologicamente: essa conexo o que importa.

    Mas h, nessa conexo, um esprito distributivista, ou um esprito circulatrio, que

    afeta a velha cultura disseminada no espao pblico. Quer dizer, o espao pblico foi

    tecnologicamente ampliado, ao longo do sculo XX. Ampliou-se muito. Foi progressivamente

    se liberando daquela ideologia cvica que era caracterstica do perodo oitocentista. Mesmo

    monopolizada pela burguesia ascendente, essa ideologia abrigava pretenses universalistas.

    Pretenses como libert, galit, fraternit, para que, no escopo heterogneo das classes

    sociais, se pretendia mobilizar, se pretendia educar, com vistas ao esprito da burguesia. Hoje,

    o espao pblico uma esfera, no digo uma esfera cultural, mas uma esfera culturalizada.

    diferente. Quer dizer, uma esfera de outra coisa, como libi da velha cultura. O que uma

    esfera culturalizada? uma fonte de entretenimento, de contedos fragmentrios de

    conhecimento com a aparncia de vida cultural, mas sem potncia de referenciamento

    comum. Nunca podemos saber tanto quanto agora. uma comodidade. Sempre estiveram a

    as enciclopdias, mas puxar uma enciclopdia e ir atrs mais difcil. Mas hoje, apertei no

    Google e eu sei imediatamente o que . E vou buscando. Nunca o conhecimento fragmentrio

    esteve tanto minha disposio quanto agora. E o entretenimento e a diverso tambm. Com

    o libi da cultura, o libi da velha cultura. Isso o que eu chamo culturalismo, a esfera

    culturalizada. Culturalismo a reduo ideolgica da dinmica da produo simblica

    distribuio de contedos significativos. Para qu? Para uma nova poltica? No, para uma

    nova gesto social. Para uma nova administrao do social. Porque, nessa nova ordem social,

    o que efetivamente toma o lugar da poltica a gesto, a administrao. O que efetivamenteimporta a administrao e a gesto. H pouco eu conversava sobre isso. Eu dirigia um rgo

    pblico, durante o governo Lula: a Biblioteca Nacional. Uma experincia pequena mas uma

    experincia dura. E eu me dei conta do seguinte: dinheiro no o nico problema do estado

    brasileiro. Nunca foi. O problema gesto. O problema administrao. Administrar e gerir

    muito difcil. A incompatibilidade da chamada modernidade no de ordem tecnolgica, de

    ordem gerencial. de ordem gestionria. Essa nova gesto do social operada por

    corporaes de mdia. Quer dizer, no limite, a soberania do mercado toma o lugar da

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    soberania poltica. Essa uma operao ideolgica da modernidade que estamos vivendo. A

    soberania do mercado converte a vida pblica oitocentista vida em pblico. diferente. O

    que a vida em pblico? uma estetizao de tudo, uma estetizao de todos, aptos

    visibilidade coletiva. um poder de natureza esttica com remotas intenes polticas. Nunca

    se estetizou e se visibilizou tanto a vida pessoal quanto agora. verdade que isso estava at

    um tempo atrs no nvel dos atores e atrizes. Atores com revistas, declaraes loucas, eram

    entrevistados para mostrar sua casa, como vivem, quantos filhos tm, quantos namorados,

    quantos amantes... Depois, quebradas as barreiras, como se relacionam amorosamente,

    sexualmente... E neste momento, as redes sociais democratizam isso. Nunca se fala tanto de si

    mesmo como nas redes sociais. Por enquanto no se conta ainda a vida sexual, mas vai se

    contar, porque o passo esse.

    Ao olhar analtico, se configura uma nova realidade em que pontificam desde amplas

    fraes de faixas etrias das classes mdias at a juventude das periferias urbanas, que so

    aglutinadas por meio de redes alternativas de comunicao baseadas na Internet e que so

    socialmente extensivas, por meio de organizaes de entretenimento, que so organizaes

    ldicasshows musicais, jogos coletivos...a quem quiser, a quem puder. O entretenimento

    e no estou fazendo nenhum juzo moralista sobre o entretenimento substituiu a ideia

    oitocentista de cultura. Essa ideia circula na academia, nas universidades, ou ento junto a

    artistas do entretenimento, agentes do entretenimento, que se diferenciam de outros agentes

    do entretenimento dizendo 'olha, eu sou mais culto que vocs'. A voc comea a estabelecer

    uma hierarquia de classes sociais do entretenimento. Ento voc vai dizer assim: olha, Chico

    Buarque, Caetano, Gil, Milton Nascimento, Joo Bosco no estou criticando, inclusive

    alguns deles so amigos meus no so iguais a... no vou dizer os nomes dos outros que

    seria ofensivo. diferente. E voc reconhece, a partir desses padres, uma hierarquia cultural

    nos outros. Por exemplo, eu gosto de violo e nunca tinha ouvido falar, at pouco tempo atrs,

    em um compositor gacho. Eu nunca tinha ouvido falar o nome dele. E e mostraram umamsica dele, com um tema aqui da gauderiada, dos gachos, que no muito a minha praia.

    Eu fiquei fascinado. Eu disse: mas vem c, esse cara a tem a mesma voz do Caetano, mas ele

    canta melhor que o Caetano. E Caetano meu amigo! Ele compe bem... Como que eu

    nunca ouvi? uma beleza. E eu sei, logo, que ele diferente da gauderiada. Chama-se Vitor

    Ramil. E sabem que ele irmo daquela dupla, Kleiton e Kledir, que eu, lamento, no aprecio

    muito. Mas o Vitor Ramil, timo! Nota-se porque entra em um circuito de qualidade, por tais

    e tais caractersticas, que musicalmente a gente poderia dissecar agora, mas o cara timo.

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    Muito bom, voz bonita, canta muito parecido com o Caetano, inclusive melhor que o Caetano.

    E Caetano canta muito bem.

    Ento, no se exercem mais da mesma forma os efeitos da grande mdia jornais,

    revistas, televisosobre esse novo tipo de pblico. No mais o mesmo efeito. Ora, ento

    um comeo, digamos, razovel para se entender o escopo disso que eu estou chamando de

    culturalismo observar a poltrona lie-flat da primeira classe no avio. Ou na executiva, em

    algumas companhias areas. E observar apenas, que eu no sentei nela no, porque muito

    cara. O que elas oferecem ao passageiro, essas poltronas? Oferecem "I.C.E.": Informao,

    Comunicao e Entretenimento. isso que ganha o cara em uma lie-flat. a mesma coisa

    que, no mbito da televiso, se chama de cultura. Oferece cultura ao passageiro: informao,

    entretenimento, variedades. Quer dizer, em ltima anlise, o que se oferece como cultura

    sempre um contedo vendvel. O que se oferece, portanto, sempre um negcio. Essa ideia

    de cultura, que eu chamo de culturalismo, se ajusta perfeitamente a um novo tipo de gesto do

    social, em que o controle pblico do sentido, a administrao total toma o lugar da velha

    poltica. Portanto, se trata a de cultura como uma instncia de conformao do consenso, de

    cultura como hegemonia, hegemonia do sentido. Cultura , aqui, a cena ideolgica em que

    ganha sentido o exerccio do poder de natureza gerencial. essa cultura que estamos

    vivenciando. A cultura como gesto do social. A cultura como um lugar fortemente ideolgico

    dessa gesto.

    A televiso, portanto, ou qualquer outra modalidade de expresso audiovisual para

    grandes pblicos, vinha liderando, h mais de meio sculo, essa cultura que autorreferente,

    que gestionria do social, por meio de imagens. Trata-se de uma combinao da linguagem

    do comrcio, ou a linguagem do dinheiro, com a atmosfera emocional, quer dizer, o ethos, os

    costumes, da vida em sociedade. O poder que resulta da, o poder dessa cultura - eu sustentei

    isso em um livro meu - de natureza moral. O poder da televiso um poder de natureza

    moral. Que moral essa? uma moralidade comerciante. uma moralidade de modernizaodo consumo. Esse poder financeirista sobre o qual no d pra dissertar longamente aqui e

    que correspondeu em um determinado momento doutrina neoliberal no como dizem

    muito os de extrema-esquerda da economia. O neoliberalismo no anacrnico. O

    neoliberalismo modernizador, tem aspectos fortemente modernizadores. preciso rever a

    teoria do neoliberalismo, Hayek, esse grande economista, melhor que o Friedman, mas o

    neoliberalismo tem aspectos de modernizao, est junto com o consumo. O capital

    modernizador. Isso no quer dizer que ele nos resgate, nos salve nem nos console. Tem

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    aspectos modernizadores fortes: junto com o domnio, modernizador. Ento, uma moral de

    modernizao do consumo.

    A televiso, portanto, , no fundo, um eletrodomsticopara usar a frase de Fellini, "a

    televiso um eletrodomstico" financiado por vendedores de eletrodomsticos, desde as

    geladeiras at os aparelhos celulares, mas um eletrodomstico que funciona por imagens, e

    com um pedagogismo ideologicamente implcito. O que esse pedagogismo, que nos inculca

    ideologicamente h sete dcadas? A televiso, nesse espao pblico de imagens, vem

    ensinando, a cada um de ns, o seguinte: cada um de ns deve administrar uma imagem

    prpria. Essa imagem prpria uma atualizao daquela velhapersona, a mscara latinaem

    latim, persona mscara aquela mscara com a qual voc constri a personalidade, a

    individualidade. A personalidade j a aposio da mscara. Quem que mandava

    administrar psicologicamente a persona antes? Era a moral. Era a persona prpria, ou ento a

    dissoluo das diferenas individuais na figura da pessoa jurdica. Agora, a gesto da persona

    de cada um um imperativo das novas formas de relaes sociais, das novas tecnologias da

    comunicao, como a Internet ou as redes sociais, onde cada um, dialogando, conversando,

    administra sua prpria imagem, d sua imagem. A realidade ou a verdade dessa imagem no

    importa muito. Cada mscara que usamos na redeeu falo porque usamos mscara, usamos o

    tempo inteiro, fora da rede ou no, tem sempre a mscara, pode ser uma mscara moral

    um pouco como aquelas mscaras que, nos sculos XVI e XVII, em Veneza, a mscara

    veneziana que os homens e mulheres elegantes usavam, saam mascarados para os bailes,

    encontros amorosos... Fazia parte da elegncia de Veneza usar mscaras. A persona, portanto,

    a mscara de agora, um imperativo dessas novas formas de relaes sociais, dessas novas

    tecnologias de comunicao, como a Internet e as redes sociais. Fora desse ensinamento

    administre sua imagemo que predomina na televiso a reciclagem culturalista. A televiso

    lixo cultural reciclado. Essa a reciclagem culturalista.

    Quando a linguagem do dinheiro est ausente de um sistema televisivo, sobra adimenso da cultura. Por exemplo, a expresso "TV Cultura" de So Paulo, onde eu fui, trs

    meses atrs, dar uma palestra, para a diretoria da TV Cultura. Por que "TV Cultura"? uma

    boa televiso e est sempre ameaada. Um bom canal. Porque ela forosamente diferente da

    TV comercial. Porque a TV comercial recicla interminavelmente produtos j consagrados

    pelo mercado. Vocs no vem as novelas da Globo? So muito bem feitas, realmente muito

    bem feitas, sedutoras. Mas cultura reciclada. como aquele jogo antigo, Quiz, em que voc

    fica acertando: se bota uma novela dessas, o sujeito que for leitor velho vai dizer 'olha, isso

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    aqui est no livro tal, romance tal, tal...' e voc compe um pastiche bem feito daquilo, que d

    outro resultado, mas pastiche. uma reciclagem. Muito bem feita, s vezes muito atraente,

    porque a produo bonita, as atrizes em geral so bonitash as feias, mas tambm h as

    bonitas [risos da plateia]ento agrada o pblico.

    A cultura que aspire representao do valor pblico ainda guarda alguma coisa da

    antiga transcendncia oitocentista, com um pano de fundo de um certo ativismo social por

    meio da cultura. Esse ativismo social por meio da cultura o que est ocorrendo agora com os

    jovens ativistas. Quer dizer, a cultura um meio de fazer ativismo porque a poltica j est

    podre. Esse um problema da atualidade. Mas a cultura um novo instrumento de

    dominao. Porque a dominao pelo mercado se faz pela cultura.

    O problema, portanto, que, apesar da sua real importncia histrica como substituto

    ao determinismo do instinto natural a cultura aparece para substituir o instinto natural , a

    noo de cultura continua hoje, como no passado, ambgua e abstrata. No se sabe muito bem

    o que quer dizer cultura quando se diz cultura: se tenta, mas no se sabe. Essa ambiguidade da

    noo permanece apesar das semelhanas que so evidentes ao longo da evoluo da histria

    ocidental. So semelhanas que persistem at hoje porque, de fato, a ideia de cultura como

    campo autnomo um fenmeno moderno, da modernidade. A cultura tem sido uma forma

    alinhada a outras formas, como a democracia, por exemplo moderna. A democracia dos

    direitos civis moderna. A escola uma forma moderna. A mercadoria , cada vez mais, uma

    forma moderna. Marx nos mostra isso claramente: que tipo de forma a mercadoria. So

    formas constitutivas da sociedade burguesa.

    Mais precisamente, a cultura a forma ideolgica assumida pelo conhecimento

    assentado no comum burgus. a forma ideolgica do conhecimento. A singularidade dessa

    forma que a cultura est em que ela no alguma coisa que a percepo do sujeito apenas

    reconhea, porque a cultura no uma forma comum: ela uma trans-forma. Quer dizer,

    uma forma que modifica a percepo. uma forma que transforma a percepo, porque ela vetor do espao pblico. E espao pblico no puro espao de comunicao, em que todo

    mundo fale. Isso um grande engano. O espao pblico no um aglomerado de vozes,

    apenas, cada um gritando e dizendo sua verdade. Espao pblico aquele em que a voz de um

    pode ser transformada pela de outro. um conversor. como esses conversores com os quais

    voc muda de 220v para 110v ou 110v para 220v. Para, no espao pblico, a voz de um ser

    transformada pela voz de outro, preciso um espao poltico. No a voz em si mesma, no

    a comunicao em si mesma.

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    Cultura, portanto, sendo uma forma ideolgica, no a mesma coisa que

    conhecimento. Isso uma distino que deveramos ter na cabea e estabelecer. Vamos

    imaginar o conhecimento como um mar em que se deva navegar. Cultura no esse mar. A

    cultura o mapa. uma carta de navegao. Se o conhecimento o mar, a cultura o

    portulano, como diziam os navegadores antigos. a carta de navegao. Ento, antes mesmo

    que o conhecimento se imponha, a cultura j se faz presente, como uma matriz de orientao,

    para fazer diferenas, para estabelecer critrios, mas tambm como um mapa de memria do

    saber que pertinente reproduo da conscincia burguesa. S que o conhecimento que

    impulsiona a universalizao da cultura. A fora do conhecimento. Essa matriz, ou esse

    conjunto de formas simblicas, publicamente disponvel, sempre pressups uma elite moral,

    ou uma elite tico-poltica de filiao burguesa. Sempre houve uma elite moral por trs da

    disseminao da cultura. Ou uma elite moral de natureza religiosa, ou uma elite moral de

    natureza efetivamente erudita, livresca. Por isso que eu disse antes que a cultura e no falta

    quem sugira isso pode ser uma resposta muito ambgua fragmentao da experincia

    mtica tradicional, da experincia que era teologicamente orientada. A cultura como uma

    substituio da religio. As teorias da cultura, portanto, seriam coniventes com o desejo de

    restaurao daquela unidade que se perdeu com a institucionalizao da modernidade. Quer

    seja voltada ao passado, insistindo na comunidade, na tradio, no retorno s origens isso

    caracterizou, por exemplo, o romantismo quer seja voltada para o futuro, a cultura voltada

    para o futuro, que o que caracteriza o projetualismo moderno, o projetualismo do progresso,

    que quer recompor a experincia perdida com base em programas fortes ou em ideias

    absolutas, como as ideias de progresso, de emancipao da humanidade. isso que aparenta

    entre si os diversos iluminismos. Essa cultura aqui tem uma potncia forte de negatividade.

    a cultura da crtica. Essa idealizao verdadeiramente teolgica da cultura foi marcante no

    sculo XIX. Mas quando essa idealizao usada como patrimnio de uma classe social, ela

    se universaliza, idealizada e corre o risco de se transformar em uma segunda natureza. Aidealizao da cultura europeia persistiu at a primeira metade do sculo passado. Eu cito aqui

    um texto polmico de Eliot, que , em portugus, "Notas para uma definio da cultura"

    (Notes toward a definition of culture). um texto polmico, em T. S. Eliot, realmente um dos

    grandes poetas ingleses, em que ele tenta definir um conceito de cultura. Para ele, so trs

    instncias que definem cultura: o indivduo, a elite e a sociedade. isso que estrutura a

    cultura. So essas trs instncias que se confrontam, que realizam trocas mtuas, mas sempre

    no interior de uma ordem responsvel pela coeso e pelo avano do todo social. Ento, no

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    modelo dele, a cultura pode ser alta ou baixa. Se a elite est ali, alta; se no est, baixa. Se

    ela alta, patrimnio de uma minoria, que uma elite, ou uma casta, e ela pertence a uma

    classe social que deve ser mantida tal e qual, porque essa classe social quem recruta e forma

    a elite responsvel pela alta cultura. Essa a viso de Eliot. A ideia de educao como meio

    de democratizao universal da cultura seria, para Eliot, uma ingenuidade ideolgica, porque

    conduz necessariamente reduo da qualidade.

    O que aconteceu com esse tipo de ideia, da qual Eliot um grande patamar (porque ele

    um grande intelectual, grande poeta ingls)? Isso ruiu na ps-modernidade. Isso acabou

    agora. Isso est ruindo, est desmoronando. De modo geral, hoje, no existem mais modelos

    definitivos da ideia de cultura. Existem descries, narrativas de como a cultura se inscreve de

    modo autorreferente, sem transcendncia, na vida social. Voc tem hoje alguns socilogos

    falando em processos sociais de significao. Ou seja, voc diz como que uma entidade

    ambgua como cultura se articula com a sociedade. Portanto, como se articula cultura com a

    produo, com a economia e com o poder. A cultura a gerencial. um elemento

    fundamental, estruturante, da ideologia de domnio hoje. O que a no est dito que, na

    medida em que essa cultura autorreferenteno mais com referncia ao sagrado se afirma

    como imprescindvel formao do capital humano, na formao e financeirizao do

    mundo, se verifica uma atrao entre essa cultura e o poder de natureza patrimonial que se

    organiza atravs da transmisso por grupos especficos. Nota-se hoje uma patrimonializao

    clara da cultura, mesmo na sociedade brasileira e sobretudo em grupos especficos. Por

    exemplo, o grupo musical patrimonializa a cultura, entre grupos de amigos, de familiares, em

    circuitos fechados onde o grupo se patrimonializa e se expande.

    H uma tendncia, portanto, patrimonializao do campo da cultura, que uma

    pequena burguesia cultural diversificada, uma pequena burguesia cultural que se constituiu e

    enriqueceualis, ganhou muito dinheiro do incio da ditadura militar para c, dos anos 1960

    at agorauma pequena burguesia cultural diversificada que constitui uma classe cultural queganhou muito dinheiro, e essa pequena burguesia se caracteriza pela incorporao de um saber

    fazer em grupos especficos artistas, esportistas, produtores de evento e o capital desse

    grupo uma linguagem e uma competncia tcnica. Voc no tem mais, portanto, uma grande

    e nica burguesia cultural, mas uma diversidade de grupos patrimoniais, que a democracia

    culturalista da mdia, que demarcam os territrios pelas especificidades das suas competncias

    tcnico-simblicas, principalmente na ordem do espetculo.

    Embora se veja a diferenas em relao s regras do capitalismo industrial puro e

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    simples, no h contradies com o jogo da finana e do mercado. Toda essa cultura de

    entretenimento, de grande ou pequena qualidade, perfeitamente afim ao jogo financeiro do

    mercado. Ou seja, a cultura perdeu a potncia clssica de negatividade em benefcio da

    integrao, pelo entretenimento ou pela informao banalizada. Informao no significa mais

    nada. A informao pblica pura banalizao. E o entretenimento uma forma de integrao

    social. Quer dizer que ningum deixa de se divertir; o efeito ideolgico dele esse.

    Na busca de uma perspectiva poltica, torna-se funcional a concepo de Appadurai

    eu falo de Arjun Appaduraipara quem cultura no um substantivo, assim como uma coisa,

    um objeto. Por exemplo, a minha cultura, a sua cultura, a cultura dos outros. No um

    substantivo. Cultura para Appaduraie eu acho interessante essa observao um adjetivo.

    Quer dizer, ao invs de dizer 'a cultura', diz 'o cultural'. Quer dizer que ns podemos usar

    como recurso heurstico para falar das diferenas. A cultura no uma essncia, no uma

    transcendncia, mas o subconjunto das diferenas que foram selecionadas e foram

    mobilizadas para articular as fronteiras da diferena. Portanto, ao invs de um sistema de

    significados, o cultural nos remete ao conflito de significados nas fronteiras dos campos

    sociais.

    Ora, o que eu apresentei aqui? Uma crtica do poder ideolgico da noo de cultura.

    Eu acho que esse poder se esvanece, se esmaece em funo da transformao do capitalismo

    produtivista em financeirizao, capital financeirizado, mas tambm por efeito das novas

    tecnologias que, de algum modo, impedem a concentrao da fala, a concentrao da voz em

    pontos fixos e espalham esses pontos na direo das classes sociais. Agora, se isso

    auspicioso do ponto de vista de ativismo, de ao social, pra gente de classes diferentes, no

    h mais nenhuma burguesia cultural que se sustente, do ponto de vista ideolgicoideologia

    entendida aqui no como contedo, no como representao doutrinria, mas ideologia

    entendida como a forma que os contedos assumem dentro de um modo de produo essa

    disseminao cultural fortemente ideolgica. Ela tem, portanto, uma secreta aliana, umsecreto conluio com as novas formas de poder. Obrigado.

    Professor, se no me engano, o professor no usou a palavra 'arte', na sua discusso

    da transio de uma poca religiosa a uma poca cultural. Como se situa a arte dentro dessa

    transio simblica, no mbito da cultura?

    Eu acho que a arte, do mesmo modo que a cultura, talvez seja uma palavra da qual ns

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    devamos nos desembaraar. Talvez devamos jog-la fora. Porque a arte se d tanto na

    produo quanto no reconhecimento. arte aquilo que se produz como tal mas que ,

    tambm, como tal reconhecido. Ora, esse reconhecimento se d dentro do quadro daquilo que

    Walter Benjamin chamou "a aura". Ainda uma instncia do sagrado. Ainda um fragmento,

    uma partcula do sagrado para atribuir quele objeto, quela produo de natureza simblica,

    alguma coisa de nico, de singular, alguma coisa, portanto, de real, no sentido em que se

    defina o real como a singularidade. Quer dizer, o real que se representa mas no esgota

    totalmente, nunca. O real voc pode represent-lo, mas ele no esgota, ele escapa de voc

    como um disco voador, como um objeto no identificado. Essa singularidade que a arte d se

    perde com a dessimbolizao sagrada do espao pblico e da cultura. Ento se reproduz, dos

    grandes movimentos criativos das primeiras dcadas do sculo XX para c bom, Hegel j

    tinha anunciado a morte da arte, nesse sentido mas o que ns assistimos como produo

    no quer dizer que essa produo no seja to importante, no seja significativa ns

    assistimos as representaes estticas da morte da arte. sempre a arte em despedaamento,

    sempre o real, a realidade em despedaamento, e a prpria arte como tal, que ns assistimos

    morrer e frumos dessa morte. Frumos desse luto. Assim , pelo menos, como eu vejo.

    Porque, preste ateno, mesmo dos impressionistas para c, mesmo da arte moderna para c,

    quando a subjetividade do artista estava na assinatura e isso valorizava o quadro, isso

    valoriza o quadro era um momento dessa subjetividade singular e nica que ns

    comprvamos. Tanto que voc tem em livros de arte que De Chirico, por exemplo, depois da

    guerraum grande pintor foi preso, condenado a um ano que ele no cumpriu porque

    ele falsificou quadros dele. Falsificou depois da guerra quadros da fase azul, que valia mais,

    quando a fase azul era anterior guerra. Pintou quadro que ele dizia que era da fase azul e

    no era mais, porque a fase azul fora anterior. Falsificou a si prprio. Porque a assinatura valia

    naquele momento. No estava em questo a qualidade nem a beleza do quadro, era a

    assinatura de De Chirico.Quando Picasso fez oitenta anos, eu morava em Paris, e at tentei entrevist-lo, l no

    sul da Frana, mas ele no recebia ningum. Eu era jornalista na poca. Eu me lembro de ver,

    no Ptit Palais, quadros de PicassoPicasso tinha muito quadropor exemplo, eu vi um que

    me chamou muito a ateno, e que depois eu vi em outro lugar, na casa de algum: um

    quadro, com aniagem, pano de aniagem, pano de limpar cho, da casa dele, que ele pregou

    com umas tachinhas, alie um monstro, um grande artista, realmente, do sculo XX, genial

    mas ele fez isso, pregou ali e assinou embaixo: Picasso. Tanto fazia ele botar o pano como

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    no. Se ele assinasse, em um quadro, "Picasso", e eu tivesse um dinheirinho, acho que eu

    comprava! Porque o que valia mesmo era "Picasso": a assinatura se transferiu para a

    subjetividade do artista. Essa subjetividade tambm vai se gastando, mas no se gastou tanto,

    hoje. Ento voc tem a obra de galeria, os quadros, e a burguesia ainda compra muito,

    quadros bonitos, grandes artistas surgem, as pessoas vo visitar aos montes as exposies...

    Por exemplo, h tempos atrs, em Paris, eu tentei visitar uma exposio do Hopper que

    um pintor que eu gosto muito, Edward Hopper, americano e no conseguia, porque tinha

    que ficar horas na fila, debaixo de gelo. Eu desisti, fui ver umas exposies mais fceis de

    visitar. E eu gosto de ver exposies. Mas eu tenho plena conscincia de que alguma coisa

    morreu. Alguma coisa morreu. Eu me lembro, eu era muito amigo, amigo pessoal, do Jean

    Baudrillard, ramos muito amigos, e eu me lembro de uma das ltimas vezes em que estava

    com o Baudrillard conversando sobre um pintor na Holanda que ganha um concurso para

    fazer uma espcie de instalao. O que ele queria fazer na instalao? Ele conseguiu

    convencer, com um projeto arquitetnico muito bonito, que ele queria, nos lugares onde a

    cidade podia apor ainda uma camada de asfalto, ele queria pisar. Ele pisava. Quer dizer, ali ele

    marcou a paisagem, com o peso dele, de tal e tal forma, com a sola do sapato. Ele ganhou

    duzentos mil dlares para isso. E era fotografado. Ele ento fez isso uns dias, mas depois

    pensou 'j basta'. A empresa que deu o dinheiro foi com a polcia em cima dele e o obrigaram

    a botar asfalto e a pisar nas outras, e ele saiu pisando... Isso o que eu chamo o

    esvanecimento, a morte. a subjetividade. A empresa pagou e queria o artista pisando no

    asfalto. um artista. Talvez, ento, o ltimo gesto da arte que vire j est ocorrendo isso

    ser o suicdio do artista. Alguns j esto se matando, com agulhas... O prprio corpo, hoje

    tem uma arte que atravessa o corpo... Ou seja, interessante, mas eu diria que o funeral, que

    o resto do sculo XX veio encenando o funeral da arte.

    Eu sei que h outras posies e eu no sou nenhum crtico de arte, por isso que eu

    evitei a palavra arte e falei em produo simblica. uma palavra mais fcil, para mim, decaracterizar e de mostrar que h uma atitude de simbolizao ali que no carrega a "aura" da

    grande arte do passado, mas que tambm no est ali para vender, para ser reduzida pelo valor

    de uso. alguma coisa que tem tambm uma transcendncia: mesmo esse pisar no asfalto,

    tem uma certa transcendncia. Mas no mais uma transcendncia na esfera de Deus, como a

    do passado. uma transcendncia na imanncia: possvel, dentro da imanncia, ser

    transcendente. Mas, como h outras formas de transcendncia na imanncia, eu ficaria com

    elas. Por exemplo, eu acho que o amor uma transcendncia dentro da imanncia. Talvez

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    devssemos substituir a arte pelo amor.

    Professor, muito obrigado pela palestra. A minha questo, acredito, tem relao com

    sua resposta. O senhor acredita que exista alguma possibilidade de pensar a produo

    simblica, ou alguma produo simblica correlata chamada arte engajada e,

    principalmente, se h alguma possibilidade de pensar, ainda, em uma produo simblica

    engajada com a televiso? Ou o senhor acredita que j no mais possvel pensar essa

    relao com a televiso?

    Eu acho. H alguns italianos que fizeram agora essa experincia, vrias pessoas que

    fizeram essa experincia com televiso. Porque a teramos que entrar na discusso sobre o

    que smbolo. O smbolo no signo. O smbolo no palavra. O smbolo um organizador

    de trocas. A moeda, por exemplo, um smbolo. Por qu? Eu tenho uma moeda, aquele real

    que eu falei aquireal no, vamos pegar uma moeda mais valorizada, o euro ou a libra... - eu

    posso, com um euro com um euro no, com uns vrios euros, com uns cinco euros eu

    posso, digamos, comprar uma boa cerveja em um boulevard parisiense, eu posso comprar um

    livro, eu posso comprar um anel, eu posso comprar po, eu posso comprar um vinho... Eu

    tenho coisas diferentesportanto, heterogeneidadeque a moeda vale, por cada um deles. A

    moeda , portanto, um organizador geral de trocas. Isso um smbolo. O smbolo isso, um

    organizador de trocas. No precisa significar nada. Ele um organizador de trocas. O pai

    tambm. A funo do pai, o pai sempre simblico. Como a moeda se subtrai por valor de

    uso, o pai tambm. Algum pai de algum porque no pai dos outros. Subtrai-se ao

    consumo. Ele organizador das funes no interior da famlia. Portanto, o pai simblico. E

    vai por a. O falo tema importante pros lacanianos o falo tambm simblico. Ento

    vejam s, o smbolo no precisa significar nada. Eu acho que a questo da comunicao, a

    essncia da comunicao, no a palavra nem o signo. A comunicao pode ser muda. Podeser muda e ainda assim altamente significativa. Comunicao uma organizao do comum

    no nvel do simblico. Ento, o meu interesse hoje pelas tecnologias, seja a televiso, seja a

    Internet, porque estou vendo a um retorno do simblico para produo de um novo tipo de

    comum. Independentemente das finanas, da organizao, da ideologia que est ali. nesse

    simblico, nessa dimenso do simblico que no bem a mesma coisa que o imaginrio,

    que outra coisa nessa dimenso do simblico. A arte sempre atuou na dimenso do

    simblico. Sempre. Esses grandes artistas de quem eu falei, ou a poesiaa poesia est a para

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    reduzir tudo que existe a zero e comear de novo. Ou no teria sentido. Seria poesia de quem?

    A poesia plena de significado, de sentido, s da rima, no diz muito. Eu acho que possvel,

    nesse nvel da dimenso do simblico, que um nvel de organizao fundamental, bsica,

    com os materiais que esto a, seja a televiso, seja at o celular, seja que material for, ,

    digamos, retomar ou produzir simbolicamente. Eu acho que possvel. E que, talvez, essas

    tentativas, nas quais eu fui, talvez, irnico demais aqui, da instalao algumas, muito

    interessantespodem ser, s vezes, mesmo nesse nvel. Mas eu acho, de qualquer modo, que

    o artista deveria se dissolver um pouco na paisagem, e guardar o sorriso. Descobrir o sorriso.

    Deixar de ter esse pedantismo da aura e abrir-se pro sorriso, rir de si mesmo um pouco. Talvez

    o simblico venha junto com o riso.

    Aquela frase que eu citei h pouco, do Lawrence Durrell: at os 18 anos, eu me

    considerava um gnio, mas a eu descobri o sorriso. [risos] Ento j no se considerava mais.

    Tem que descobrir o sorriso. Eu acho que essas produes do simblico so possveis, sim, na

    televiso. Eu espero ver, eu quero ver. Talvez estejam se dando por a e eu no saiba. Como eu

    disse, eu no sou crtico de arte.

    Eu espero que eu tenha claro e que no tenha chateado ningum, porque um dos

    pecados mortais para mim ser chato. Por exemplo, eu sou leitor obrigatrio de Aristteles,

    mas eu acho Aristteles meio chato. E Plato no chato.

    Professor, j que voc falou de Aristteles e de Plato, e como no incio voc tinha

    falado da boa retrica e da m retrica, eu pergunto: tem espao, hoje em dia, para a boa

    retrica na mdia de um modo geral? Onde? Internet? Espao que no seja excepcional,

    motivado por iniciativas individuais, mas sim por algo mais consistente.

    A Internet ainda no descobriu a retrica realmente. Gozado, a mdia jurssica,

    tradicional, viveu da m retrica, dessa mesma retrica, com espaos para a retrica dodilogo, que eu acho que est um pouco nesses nichos jornalsticos que se diz jornalismo de

    qualidade: o Le Monde Diplomatique... Mas at isso tem o seu pblico reduzido. E o

    compromisso da retrica , tambm, a compreenso, com a disseminao e ampliao do

    pblico. Eu acho que isso vir, de algum modo, desse dilogo institudo pela internet. Eu acho

    que vir da a boa retrica. Agora, preciso tambm, luz disso que eu trouxe para vocs,

    reinterpretar o que quer dizer dilogo. Porque ns entendemos dilogo como fala e conversa.

    Essa a origem da palavra grega: lgeine dia. Ento, se conversa, se fala, se dialoga, e a se

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    d uma preeminncia muito grande ao que dito, fala. Mas h outra maneira de entender

    dilogo e, portanto, entender a retrica. Esse lgein tambm quer dizer cavar. Esse dia

    atravs do vazio. Esse cavar atravs do vazio, s vezes, quebrar as barreiras onde a fala se d

    tranquilamente, a fala da conciliao. s vezes as pessoas conversam educadamente,

    conversam logicamente, mas no realmente dialogando. dilogo de surdos, exibio. s

    vezes, quebrar uma barreira dialogar, cavar atravs do vazio.

    Ento, por exemplo: eu no tenho nenhuma certeza grande em relao a essas

    manifestaes.1 Em princpio, eu acho legal. Mas eu diria que no dilogo que esto

    buscando. O governo diz 'vamos dialogar'. Mas o jovem , s vezes, como o povo, que sabe,

    mas no sabe que sabe. No dilogo no sentido de conversa a dois. dilogo no sentido de

    quebrar barreiras. Ento eu acho que eu, hesitanto, digo que talvez, nesse ronco das ruas, haja

    um quebrar de barreiras. E por que exatamente nas ruas? Porque dizem 'ns samos do

    facebook'. Samos da mdia. Eu no acho. Eu acho que a mdia um meio de mobilizao, um

    grande megafone. Eles saram mesmo de outro lugar. Foi a rua que produziu essa gente.

    Porque, veja s, sabem o que quer dizer rua, realmente? Tem um latinista aqui. Eu fui

    latinista, mas professor de latim de provncia de Bahia. Mas l tinha uma lngua que eu gosto.

    A palavra rua vem de ruga. Em latim ruga, e isso deu rua. Em ingls street, no tem nada

    a ver com ruga. Em alemo Strae. Mas veio tambm do latim, porque via estrada,

    caminho pavimentado, que deu street, deu Strae etc. Eu acho que a rugosidade da

    paisagem que esse pessoal est representando. Quer dizer, ser ruga ali onde o espao quer ser

    liso. Porque esse dilogo muito culto, muito educado, a linguagem tambm da embromao.

    E da dominao. De repente voc quebra a barreira. um outro tipo de dilogo.

    Ento a retrica pode ser dar tambm sem palavras. Barthes mostrou isso

    magnificamente emFragmentos de um discurso amoroso, quando ele disse 'olha, a frase eu te

    amo no significa nada'. Realmente, se duas pessoas dizem, uma para a outra, eu te amo, e

    j tm uma relao, por que dizer? Evidentemente, tautolgico, tautologia pura. Ele querdizer 'quando voc diz eu te amo, voc quer dizer outra coisa'. Talvez 'eu quero te seduzir', ou

    'eu te seduzo'. Essa frmula, em si mesma, vazia. Mas forte. Tem um poder. Mas quando

    voc, digamos, derruba a frmula, como pode derrubar na rua, voc descobre o corpo em

    outra direo. Ento, eu no vejo comunicao e no dou importncia ao prprio jornalismo,

    como os jornalistas estavam falando, os mais velhos, o pessoal da Mdia Ninja no Roda Viva:

    'no so objetivos'. Nenhum jornalista foi objetivo. Ningum foi objetivo. A mdia, a imprensa

    1 Referncia s diversas mobilizaes de rua ocorridas em vrias capitais do pas em meados de 2013.

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    brasileira, no foi objetiva durante a ditadura, com raras excees. Mentia, calava. Essa

    objetividade tambm muito conveniente. Ento, no reportar objetivamente fatos isso

    que o Dewey disse, 'olha, conectar as pessoas, para que, uma vez no espao pblico, as

    palavras possam ter um sentido alm do convencional que elas tm'. A, essa outra retrica, a

    boa retrica de hoje, a retrica platnica, talvez no se faa apenas com palavras. E nesse

    sentido a nova mdia pode ser importante.

    O senhor falou algo que quase senso comum, que a mdia atual trabalha com uma

    ideia de produo de contedo. S que, se ns observarmos, o que se apresenta, na verdade,

    uma quase mimetizao esttica, geral, em diversos meios. A minha pergunta se no seria

    na verdade uma mdia produtora de forma, muito mais que de contedo, at pelo que o

    senhor acabou de falar. Ento, lidar no tanto com palavras, mas sim com imagens, nesse

    sentido. Se ns pensarmos de um ponto de vista tecnolgico, na ideia de direitos sociais e

    tudo mais, cada vez mais, essa hipervalorizao da forma, do esttico. Algo bem ps-

    moderno.

    Voc acabou de resumir, e resumiu muito bem resumiu no, voc expandiu a

    frmula resumida de Marshall McLuhan: o meio a mensagem. Claro que . Quando eu

    disse aqui 'olha, a ideologia no o contedo, ideologia a forma que os contedos assumem

    socialmente'. A forma de poder que assumem. A forma hoje miditica. essa mdia. O

    compromisso excessivo com a forma faz com que ela tambm se perca nas imagens sobre si

    mesma. E o que a mdia fala mais de si mesma, de seu prprio poder. A mdia eu ia

    dizer 'uma mulher vaidosa', j ia entrar no politicamente incorreto uma pessoa muito

    vaidosa, falando sempre de si mesma. Eu estava dando palestra h um tempo atrs para uns

    professores americanos, queriam que eu falasse em ingls sobre o Brasil, e eu disse 'o homem

    brasileiro uma pessoa irm etc.'. E disseram 'como o homem brasileiro? E a mulherbrasileira?'. Eu disse 'no, brazilian man', e me responderam 'no, diga brazilian person'.

    Pessoa brasileira. Ento, a mdia na verdade isso, fala muito de si mesma. E de seu prprio

    poder. A mdia uma forma. Os contedos so, cada vez mais, importantes. Por isso que hoje,

    era breve a conversaera voc que estava l? Ah, sim; o menino da Mdia Ninja que est a

    ele disse 'ns damos novos ngulos'. Claro que do novos ngulos, mas pra mim no o

    importante. Pra mim, o importante que novas vozes, essa pluralidade de vozes, se levantam

    e digam o que disserem. Digam o que disserem, a pluralidade de vozes que faz uma conexo

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    diferente. Porque esse primado do contedo o primado do velho jornalismo. E nisso eles

    seriam, talvez, insuperveis. Porque paga bem, tem intelectuais: se voc l o Le Monde

    Diplomatique, difcil voc distinguir, saber qual o discurso das Cincias Sociais e o

    discurso do Le Monde Diplomatique. O discurso da Sociologia, hoje, est muito prximo do

    discurso desse jornalismo de qualidade. E muito agradvel ler aqueles bons artigos. Mas

    aquilo vai reduzindo seu pblico. E quando vai reduzindo seu pblico, voc reencontra

    Dewey dizendo assim: 'voc tem que ter uma boa retrica e ampliar o pblico'. S que essa

    nova boa retrica para ampliao do pblico talvez no dependa mais de palavras, mas

    dependa de muitas outras coisas alm de palavras. Dependa de aes. Dependa de danas.

    Quem daqui que conhece bem a Bblia? Lembram quando Davi recebe a arca? Ele no diz

    nada diante da arca, ele simplesmente dana diante da arca. Ele dana diante da arca. um

    episdio clebre de Comunicao, dentro da Bblia. Muito ensinado. S danou. s vezes

    isso: danar, quebrar uma coisinha, tudo isso pode ser comunicao.

    A ideia da tcnica digital, segundo a qual ela ampliou, despolitizou tambm,

    deseducacionalizou a massa. E h ideias que ns vnhamos aprendendo, agora que

    precisamos de reajust-las. Essa tcnica digital, meio de comunicao, hoje em dia, seria

    mais ou menos um quarto poder, que o Estado ou um governo pode ter, para controlar, educar

    as massas. Mas a abordagem do professor pareceu-me distanciar-se desta viso da qual ns

    nos orgulhamos no Brasil, na frica e em outras partes do mundo: organizarmos, educarmos

    a partir do facebook, organizar manifestaes etc. como um poder. Mas o professor diz que

    um poder que j est fora do controle da prpria autoridade governamental, do prprio

    Estado. Eu gostaria de ouvir mais um comentrio sobre se possvel continuarmos a afirmar

    isso, a sustentar a ideia de que um quarto poder de fato, as tecnologias de comunicao e

    informao, ou se j deixou, de fato, de ser, olhando para as manifestaes que so

    organizadas.

    A ideia do quarto poder uma ideia antiga e que decorre da maneira como o Estado se

    organiza. Alm dos poderes constitucionais, bota a imprensa como quarto. Eu no acho que

    seja isso. Eu acho que talvez fosse o caso de ler Foucault, que tem outra ideia de poder. Poder

    como tticas mltiplas, como dispositivos que se enrazam nas relaes, e no centrados,

    unidirecionais. No poder como a fora que move ou que controla, que a ideia de poder de

    Estado. Voc de que pas africano?

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    Eu sou de Moambique.

    H duas palavras, nos cultos da Bahia, aos quais eu perteno. Em nag voc tem duas

    palavras para dizer poder, para dizer poder-fora. Em iorub, voc pode dizer agbar, que

    fora fsica, como eu empurro isto aqui [empurrando a garrafa de gua]. Isso puro agbar.

    Algum me empurra, eu empurro de volta. Isso agbar. Da Ex-bar, Ex-agbar, porque

    a fora que empurra. Mas voc tem um outro tipo de fora, de poder, que no a fora contra,

    a que empurra. a fora pr. Isso se chama, em iorub, ax.Ax quer dizer isso, ax fora

    pr. A informao mais fora pr do que fora contra. Enquanto o Estado ainda est dentro

    da lgica da fora contra, fora de controle fsico, de exerccio fsico. O fortalecer-se da

    ordem do ax. O poder informacional um poder que se abre para o fortalecimento prprio.

    Portanto, ele no pode estar concentrado, como um quarto poder. Ele est em todos os lugares.

    Como essa figura que eu falei h pouco, que Ex. Est em tudo. Est em todos os lugares.

    Isso ax, isso fora pr. Portanto, teramos que rever a ideia de poder, a noo de poder,

    para ento poder entender essa questo. Mas no vejo, portanto, como quarto poder, no.

    REFERNCIAS

    ELIOT, T. S.Notas para uma definio de cultura. Trad. Geraldo Gerson de Souza. SoPaulo: Perspectiva, 2013. (Debates; 215).SODR, Muniz.Antropolgica do espelho:uma teoria da comunicao linear e em rede.Petrpolis/RJ: Vozes, 2002.SODR, Muniz.As estratgias sensveis: afeto, mdia e poltica. Petrpolis/RJ: Vozes, 2006.

    ARTIGO ENVIADO EM: 15/09/2014ACEITO PARA PUBLICAO EM: 06/11/2014