Midia Ideologia Fina
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Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v. 8, n. 1, jan./jun. 2015, p. 134-157.
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MDIA, IDEOLOGIA E FINANCEIRIZAO*
MEDIA, IDEOLOGY AND FI NANCIALI ZATION
DOI:http://dx.doi.org/10.15448/2178-3748.2015.1.18591
Muniz SodrProfessor Emrito da Escola de ComunicaoUFRJ
RESUMO: O presente artigo a transcrio da conferncia proferida pelo Prof. Muniz Sodr em 15 de agostode 2013, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Tratou-se da conferncia de encerramentodo II Seminrio Histria e Ideologia: mdia, dominao e resistncia. Nela, Muniz Sodr abordou o impacto doatual contexto de financeirizao do capitalismo sobre a mdia, com nfase para as implicaes ideolgicas,culturais e sociais das transformaes contemporneas dos meios de comunicao.PALAVRAS-CHAVE: Cultura. Ideologia. Mdia.
ABSTRACT: This article is the transcript of a lecture given by Prof. Muniz Sodr on August 15, 2013, inPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. It was the closing conference of the II SeminrioHistria e Ideologia: mdia, dominao e resistncia. In it, Muniz Sodr discussed the impact of the currentcontext of financialization of capitalism on the media, with emphasis on the ideological, cultural and socialimplications of contemporary transformations of the media.KEYWORDS: Culture. Ideology. Media.
Boa tarde e muito obrigado pelo convite e pela presena. Para falar de comunicao,
ideologia e resistncia, eu escolhi tomar a questo da cidadania como um vetor ideolgico da
mdia. Toda vez que ns associamos mdia a cidadania e essa associao ideolgica a
atitude imediata , quase sempre, a de se pensar na mdia como se fosse uma parceira natural
dos direitos sociais - com direitos sociais eu quero dizer educao, sade, habitao, proteo
coletiva ou segurana pblicaque, na sociedade moderna, so posteriores aos direitos civis.
Os direitos sociais aparecem depois dos direitos civis, que so a representao democrtica, a
liberdade de expresso etc. Ento, quando a mdia surge com a fora que surge, o pensamento
geral - digamos, de Estado, de pblico e de eventuais grupos de controle de pensamento da
mdia de associar os direitos sociais. Quer dizer, associar educao, sade a bens pblicos,
pensados coletivamente. Mas se ns nos restringirmos ao caso brasileiro, o foco gerativo
desses direitos sociais certamente a Constituio Federal de 1988. Porque a Constituio de
1988 transferiu os direitos sociais da ordem econmica, como estava na constituio anterior,
* Transcrio da conferncia de encerramento do II Seminrio Histria e Ideologia: mdia, dominao e
resistncia, proferida pelo prof. Prof. Muniz Sodr em 15 de agosto de 2013, na Pontifcia Universidade Catlicado Rio Grande do Sul (transcr. Jaime Valim Mansan).
http://dx.doi.org/10.15448/2178-3748.2015.1.18591http://dx.doi.org/10.15448/2178-3748.2015.1.185917/26/2019 Midia Ideologia Fina
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para a ordem social, e reinterpretou esses direitos como direitos universais de cidadania.
Portanto, o conceito de cidadania se amplia com a Constituio de 1988, e se amplia como
apropriao social de bens coletivos. assim que eu gostaria de caracterizar cidadania aqui,
hoje. Cidadania como a apropriao social de bens coletivos.
Mas uma coisa o formalismo dos direitos. Outra o exerccio efetivo desses direitos.
Realmente, no contexto poltico e econmico em que esses direitos sociais se
institucionalizaram - quer dizer, no contexto da Constituio de 1988a mdia j era parceira
irreversvel de outra coisa. A mdia j era parceira irreversvel do capital financeiro. J era
parceira irreversvel do mercado. E do Estado, empenhado em polticas de ajuste fiscal,
tpicas do modelo neoliberal. Ora, essa dissonncia, esse desacordo no normalmente
apontado pelos estudiosos, pelos analistas de Comunicao. Porque, na prtica, isso implica
uma dissonncia ideolgica entre o ativismo em prol da universalizao dos direitos sociais e
a valorizao, que a mdia faz, da lgica do mercado. Essa lgica do mercado afim
privatizao na apropriao dos bens coletivos que esto implicados nos direitos sociais. Aqui
h, portanto, o que eu chamaria de uma dissonncia ideolgica: de um lado, as instituies
civis caminham em um sentido, enquanto a mdia caminha sempre no sentido do mercado e
do capital financeiro.
A conscincia individualista se sobrepe no espao pblico conscincia solidria,
gerando condies desfavorveis quaisquer novas estratgias de institucionalizao dos
direitos sociais. Portanto, a cidadania serve de referncia para essa nova qualificao histrica
da existncia, que eu chamo de bios miditico, conceito que est em alguns livros meus, como
Antropolgica do Espelho (2002),As Estratgias Sensveis(2006) etc. O bios miditico como
uma nova orientao existencial, uma nova forma de vida que conjuga tecnologia e mercado.
Esse bios miditico, essa nova qualificao histrica da existncia, basicamente a cidadania
consumidora, cidadania definida a partir do consumo. Ento o social passa a ser qualificado
pela capacidade de consumo, e isso o que passa a definir a agenda pblica. Sociabilizar-se consumir.
Ns podemos assinalar, nesse ponto, uma transformao na organizao tradicional da
sociabilidade republicana. O comum republicano se investe, do ponto de vista do Estado-
nao, das formas de ordenamento jurdico e das fronteiras territoriais. Isso o comum
estabelecido pela repblica. Mas na regulao da sociedade civil, se investe da forma de
esfera pblica. Ns entendemos esfera pblica como espao de comunicao em que cada
indivduo passa do discurso dual do dilogo, a dois relao discursiva com a massa
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annima. Portanto, esfera pblica como espao cultural. A moderna ideia de cultura como um
campo autnomo de sentido seria uma espcie de resposta epistmica fragmentao da
unidade mtica tradicional, de propriedade politicamente comum. A culturao termo cultura e
a ideia de cultura aparecem no Ocidente quando a ideia de Deus, como um organizador
geral, comea a declinar. quando a Igreja vai perdendo progressivamente seu estatuto
hegemnico portanto, a ideia do sagrado, do transcendente, como interpelador da
conscincia individualque a cultura aparece como essa sntese de sentido. Assim, a cultura
como campo autnomo de sentido uma resposta fragmentao da unidade mtica, da
unidade teolgica, da unidade divina tradicional. Tanto que cultura e religio, cultura e
catolicismo, so conceitos estreitamente ligados. Basta ler aquele livro de T. S. Eliot (2013)
sobre o conceito de cultura, onde ele destrincha isso dessa maneira.
A poltica e a cultura presidiram a reinterpretao da koin antiga, da comunidade
antiga, na Europa no sculo XVIII. Fragmentando-se a unidade mtica, divina, a poltica e a
cultura aparecem para reinterpretar a unidade. A irrupo dessa realidade nova na Histria foi
um dos efeitos da transformao das relaes de produo a Revoluo Industrialque se
alinhava com a expanso da democracia burguesa. Na esteira das proclamaes tericas e
polticas de Rousseau, eram estratgicas a educao e a cultura como instrumentos de
concepo da democracia, como valor e como fim. Democracia no mais apenas como
mecanismo de governo, mas democracia como valor, como fim social. Para isso, precisava
educao e cultura.
A disseminao dos dogmas de soberania do povo demandava o trnsito livre de
ideias, a liberdade de expresso, que era uma exigncia histrica da soberania popular. As
ideias tinham que transitar. As informaes tinham que passar. Cultura e poltica eram
estreitamente ligadas, estreitamente vinculadas.
O espao pblico se fortalece na Europa ao longo dos sculos XVIII e XIX como
lugar de manifestao da vontade geral, no de vontades particulares. Ento, o espao pblico isso fundamental para entender a mudana da mdia hoje passou pelo que sempre foi
poltico e cultural. Sempre foi uma conjugao de poltica e de letras, na acepo ampla e no
apenas literria da palavra: letras como literatura, fico, poesia, mas tambm como discurso,
publicismo, debate. Isso sempre esteve junto com a poltica. Ento, do ponto de vista do
discurso, o espao pblico se apoiava em instituies literrias mas tambm na arena de
debate, em meios editoriais, alm da imprensa, que era vista, pelos pragmatistas como
Dewey, por exemplocomo um agente promotor da cultura.
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A associao entre o parlamento e as letras era realmente familiar aos intelectuais
oitocentistas. No havia como separar um do outro. Eu estou falando da Europa, mas tambm
no havia como separar, aqui no Brasil, em momentos de afirmao da nacionalidade e da
modernizao do pas. Um deles, por exemplo, foi o abolicionismo. impossvel pensar o
abolicionismo sem o papel da imprensa, mas tambm dos comcios e clubes de discusso
letrase vejam como eram slidos os intelectuais do abolicionismo, negros e brancos. Ento,
para a instncia poltica, isso era muito importante, seno essencial, como Dewey sustentava.
Dewey dizia: o aperfeioamento dos mtodos e de condies de debate, de discusso, de
persuaso: este o problema do pblico. Ou seja, para esse aperfeioamento, precisava-se de
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