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Jesuino, F.M. 48 Saúde em Diálogo, Fortaleza, v.ii, n.2, p.48-51, jan-jun, 2012 Uma Mulher e o Espírito: Sobre o Primeiro Volume dos Seminários The Animus de Barbara Hannah A Woman and the Spirit: on the First Volume of Barbara Hannah’s The Animus Seminars Filipe de Menezes Jesuino I [email protected] I Psicólogo e mestre em psicologia pela UFC, professor da FATECI e da FaC. Editor da Revista Eletrônica Saúde em Diálogo HANNAH, Barbara. The animus: the spirit of inner truth in women, vol. 1. 314 pags. Editado por Emmanuel Kennedy e David Eldred. Illinois, Chiron Publications, 2011. O conceito de animus é um dos fundamentais para a arti- culação da reflexão prática e para o exercício da clínica analítica. A despeito de sua posição nuclear, é possível afirmar com justeza que Jung não deixou legado vasto a seu respeito. Seu desenvolvimento se apresenta em suas obras mais sofisticadas e de caráter mais hermético. Em Psicologia e Alquimia, confirmou certa inacessibilidade do domínio da psique por se tratar de um dos mais obs- curos e misteriosos campos da experiência. Jung encon- trou em textos da antiga alquimia documentação empí- rica para os processos análogos aos dos recônditos da análise. Tal material, entretanto, permanece inacessível, em larga medida, exceto aos mais ávidos e obstinados investigadores, como a imensidão do material referido em Mysterium Coniunctionis. Em seus seminários sobre análise de sonhos (1928-30) e acerca das visões (1930-36) há ainda desenvolvimento da ideia de animus, mas, ali mesmo, o próprio Jung argumenta sobre a necessidade de maior aprofundamento. Coube à inglesa Barbara Hannah, em numerosos seminários, ensaios e conferências, desenvolver a noção e não apenas relativizar o hermetismo clínico e alquí- mico como também lhe conferir maior sistematicidade e abrangência. Os dois volumes da obra The animus: the Spirit of Inner Truth in Women, ainda sem publica- ção nacional, carregam a grande responsabilidade de apresentar uma implementação prática da Psicologia Analítica com ênfase no conceito de animus. Sua publi-

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Uma Mulher e o Espírito: Sobre o Primeiro Volume dos Seminários

The Animus de Barbara HannahA Woman and the Spirit:

on the First Volume of Barbara Hannah’s The Animus Seminars

Filipe de Menezes JesuinoI

[email protected]

I Psicólogo e mestre em psicologia pela UFC, professor da FATECI e da FaC. Editor da Revista Eletrônica Saúde em Diálogo

HANNAH, Barbara. The animus: the spirit of inner

truth in women, vol. 1. 314 pags. Editado por

Emmanuel Kennedy e David Eldred. Illinois,

Chiron Publications, 2011.

O conceito de animus é um dos fundamentais para a arti-culação da reflexão prática e para o exercício da clínica analítica. A despeito de sua posição nuclear, é possível afirmar com justeza que Jung não deixou legado vasto a seu respeito. Seu desenvolvimento se apresenta em suas obras mais sofisticadas e de caráter mais hermético. Em Psicologia e Alquimia, confirmou certa inacessibilidade do domínio da psique por se tratar de um dos mais obs-curos e misteriosos campos da experiência. Jung encon-trou em textos da antiga alquimia documentação empí-rica para os processos análogos aos dos recônditos da análise. Tal material, entretanto, permanece inacessível, em larga medida, exceto aos mais ávidos e obstinados investigadores, como a imensidão do material referido em Mysterium Coniunctionis. Em seus seminários sobre análise de sonhos (1928-30) e acerca das visões (1930-36) há ainda desenvolvimento da ideia de animus, mas, ali mesmo, o próprio Jung argumenta sobre a necessidade de maior aprofundamento.

Coube à inglesa Barbara Hannah, em numerosos seminários, ensaios e conferências, desenvolver a noção e não apenas relativizar o hermetismo clínico e alquí-mico como também lhe conferir maior sistematicidade e abrangência. Os dois volumes da obra The animus: the Spirit of Inner Truth in Women, ainda sem publica-ção nacional, carregam a grande responsabilidade de apresentar uma implementação prática da Psicologia Analítica com ênfase no conceito de animus. Sua publi-

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cação se soma a textos importantes sobre o tema – como Animus e anima nos contos de fadas, de Marie Louise von Franz, e Animus e anima de Emma Jung –, mas traz elabora-ção ímpar para o tema.

Barbara Hannah acompanhou o desen-volvimento da Psicologia Analítica desde 1916 até o fim de seus dias, na década de 1980. Foi amiga e companheira de estudos tanto do casal Carl Gustav e Emma Jung quanto de Marie Louise von Franz e se tor-nou uma das primeiras conferencistas do C.G. Jung Institute de Zurique. Distingue-se, em sua escrita, o amor à literatura e o vigor e transparência de sua letra, lavrada em numerosas obras dentre as quais Striving towards Wholeness (1988); Lectures on Jung’s Aion (2004) e os seus textos sobre o simbo-lismo arquetípico dos animais.

No primeiro dos dois volumes de The Animus, o embate com o animus se apre-senta vivo. A obra proporciona riqueza de conteúdo, rigor científico e segurança na análise do material, e confere um sen-timento de legitimidade enquanto se per-correm situações do dia a dia, obras literá-rias e casos clínicos desenvolvidos em suas páginas. A proposta de Jung em Símbolos da Transformação, de que se produza uma psico-logia, e não somente uma teoria, se faz pre-sente no embate de Hannah com o Espírito.

O tomo se compõe de oito capítulos que são ensaios ou conjuntos de conferên-cias, além de dois sucintos prefácios e dois apêndices explicativos. Ao longo da leitura, circulam temas abordados com mais ou menos verticalidade e as seções impressio-nantemente se intercomunicam como se o livro houvesse sido planejado de antemão. Alguns argumentos se repetem, mas sem nunca se deixar de acrescentar em profun-didade e abrangência.

No primeiro ensaio, O problema do con-tato com o animus é designado como relação entre a consciência feminina e o Espírito

masculino, ou mente inconsciente na mulher. O animus está vinculado ao intelecto, à bra-vura, à vivacidade e ao Espírito, corres-pondendo ao sentido de Logos. Atua como promotor de opiniões desvinculadas da realidade, força de possessão, impedimento nos relacionamentos e, ao mesmo tempo, pode adquirir a função de intermediário entre a mulher e a fonte de seus impulsos criativos. Assim, o animus é a contrapartida do princípio de Eros que orienta do desen-volvimento da consciência feminina.

Barbara Hannah afiança que, dada a condição inconsciente primária do animus, a consciência precisa passar pelo confronto com seu lado sombrio a fim de estabelecer um contato legítimo. Para isso, não bastam especulações ou entendimento, a experiên-cia real é indispensável e percorre diversas etapas, tais como o estágio não problemático da atuação do inconsciente, o confronto com a sombra e o contato e a negociação com o próprio animus. Para demonstrar na prática seu argumento, a autora recorre a rica casu-ística, marcante em todo o livro, e ao estudo mais aprofundado da freira francesa do sec. XVI, Jeanne Fery, e do conto A guardadora de gansos, dos irmãos Grimm. Nas duas situa-ções, contrastam atitudes diversas da cons-ciência diante do animus e as consequências negativas e positivas do contato.

Em Animus e Eros, Barbara Hannah faz uma análise, com enfoque feminino, do texto Introitus Apertus, de Eirenaeus Philaleta, discutido por Jung em sua obra Mysterium Coniunctionis. Distingue for-mas de expressão mais inicial do animus: sua ocorrência na forma de opiniões que interferem nos relacionamentos e em tudo o que lhe é caro; sua forma dissociada e autônoma, como nos casos de possessão, e aquela que supervaloriza superfluidades do contexto de vida.

Barbara argumenta que caso não haja uma atitude consciente adequada, o animus

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destrói, com a intensidade energética carac-terística dos arquétipos, os relacionamentos, a integridade e o vínculo da mulher com a realidade, fundamentos de sua consciência feminina. A perda do contato com o animus, por outro lado, acaba por resultar em vida superficial e pouco criativa. As considera-ções sobre a atitude da consciência diante do animus se desdobram e se aprofundam no segmento seguinte do livro.

Em O problema do animus na mulher moderna, apresentam-se as duas principais resultantes da atividade do animus: por um lado, a ruptura da mulher com seu entorno por meio de uma teia de opiniões anímicas e, pelo outro, desde que o animus seja reali-zado, o contato permite que o espírito femi-nino deixe a posição de larva e ganhe asas.

A autora assevera que, para que a rela-ção da consciência com o animus frutifique, a mulher deve ser capaz de resistir aos impulsos anímicos mais elementares, tarefa das mais difíceis, uma vez que ao longo de tal desenvolvimento, o animus aparece idên-tico à própria mente feminina. Daí, quando a mulher tenta resistir às suas investidas por meio da argúcia do espírito, cai na armadi-lha do animus. Para a mulher, pois, é neces-sário criar, simbolicamente, uma retorta, casulo ou resina, com supedâneo no próprio Eros feminino, que possa ao mesmo tempo conter e preservar a ação do animus.

Nesse ponto, a argumentação se apro-xima do problema da mulher contemporâ-nea que, assoberbada pelo logos perde con-tato com sua própria feminilidade e tenta se utilizar de métodos e planejamentos (logos!) para reaver sua feminilidade, acabando, na maioria dos casos, ainda mais envene-nada. Barbara Hannah destaca o aforismo de Jung de que uma das melhores coisas que uma mulher pode fazer por si mesma e pela humanidade é se resolver com seu animus. A empreitada, todavia, é tão árdua que somente o desespero ou um amor pro-

fundo o suficiente poderão ser suficientes para justificá-la.

Com o texto Figuras do animus na litera-tura e na vida moderna, o leitor adentra na segunda seção do livro, dedicada à discus-são de obras de escritoras inglesas. Hannah indica que a literatura feminina merece tratamento diverso da masculina, pois, ao invés de aparecer autorrepresentado em um personagem masculino, o animus é o spiritus rector que traça o fio condutor da obra. Esta pode e deve ser vista, então, como resultado de um exercício de imagi-nação ativa que configura um espelho do próprio animus. Hannah conduz cuidadosa visita aos dados biográficos das autoras e os confronta com a simbologia anímica de seus textos.

A rigorosa exegese do processo de indi-viduação contido nas obras inicia com a discussão do livro de contos The Harsh Voice de Rebecca West. De acordo com Hannah, o animus conduz, ali, sua função de subs-tituto opinioso da vida, com efeito domi-nante e destrutivo sobre os relacionamen-tos e resulta em uma apresentação quase nula da individuação. O aspecto sombrio se destaca a tal ponto que exige uma com-pensação pela anima.

Segue-se a análise com Jane Austen, cujo spiritus rector é compreendido como fortemente centrado nos dramas quotidia-nos, distante tanto da contextura socio-política quanto da perspectiva espiritual. Os escritos da autora, no entanto, fasci-nam pelo esforço reconhecível por reter o animus na “resina”. Isso é observável na evolução de sua obra. Em Orgulho e Preconceito¸ de 1913, os protagonistas são representações puristas dos aspectos aní-micos, tão carentes de humanidade que Mr. Darcy se apresentar como veleidade. Já em Persuasão, obra póstuma, Anne e Wentworth são mais humanos, com pre-tensões e conflitos da vida real.

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Precious Bane, de Mary Webb é enten-dido, por sua vez, como uma produção marcada pela inspiração mística. A narra-tiva acompanha a protagonista Prue Sarn em seu pacto, firmado com o irmão – repre-sentação do animus glorificado e, ao mesmo tempo, o seu lado mais negro, que desvalo-riza Prue por um defeito físico. A jovem se liberta desse engodo por meio de um rela-cionamento insurgente com Kester, homem comum, tecelão, que favorece a projeção do animus positivo e que a enreda e arranca da armadilha do animus negativo.

Os quatro últimos capítulos do livro de Hannah são focados na discussão dos romances e poemas das irmãs Brönte. Segundo a analista, o célebre trio das jovens literatas produziu documentos dotados de longevidade em razão do princípio de realização que neles pulsa. Os textos de Charlotte e Anna se concentram nas apostas de suas heroínas diante da vida. O Espírito da primeira se expressa com sólida funda-ção na realidade a as personagens, embora vinculadas à tradição, dialogam vivida-mente com seus sentimentos interiores. A caçula Anne, por sua vez, apresenta mulhe-res medíocres que enfrentam as moderni-dades do século XIX.

Emily mereceu tratamento especial de Hannah, visto que seu Morro dos Ventos Uivantes é admitido pela estudiosa como a melhor representação do animus na litera-

tura inglesa. Ela reconhece no romance, e nos poemas, da escritora o tom da experi-ência mística. Heathcliff encarna o leitmotif da narrativa e se apresenta como demônio que carrega o deus absconditus, responsável por destruir tudo aquilo que é supérfluo para produzir, ou revelar, o que é indes-trutível. Como o Mefistófeles, de Goethe, é, enfim, levado para outro mundo quando sua influência se prova suficientemente realizada neste.

Em cada uma das obras e com todas as escritoras, a autora expõe seu entendi-mento da simbologia do processo de indivi-duação. Confere, dessa maneira, plenitude à sua proposta psicológica, pois desvela aspectos muitas vezes difíceis de perceber nas relações anímicas.

Barbara Hannah argumenta que, mal-grado todas as dificuldades, o animus, para a mulher, é uma ponte para um mundo invisível cujas possibilidades são arranca-das de si pela unilateralidade e a perda do vínculo instintivo. Somente quando uma mulher vivencia a conflagração do espírito anímico e se responsabiliza consciente-mente pelo que aí se revela torna-se capaz de um relacionamento real e criativo com um homem, com sua família e, mais funda-mentalmente ainda, com sua própria vida.

Recebido em 31 de Maio de 2012Aceito em 15 de Junho de 2012