J e a n - L u c G o d a r d e a c r í t i c a d o t e m p o h i s t ó r i c o · 2020. 10....
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Jean-Luc Godard e a crítica do tempo histórico Antoine de Baecque 1Tradução: Humberto Pereira da Silva 2
História(s) do Cinema (1989-1999), de Jean-Luc Godard.
O passado não existe nos primeiros filmes de Jean-Luc Godard.
François Truffaut, em 1966, se surpreende e fica mesmo
impressionado: “Em doze filmes, Godard jamais faz alusão ao
passado, mesmo nos diálogos: nenhum personagem fala de seus
pais ou de sua infância, isso é extraordinário. Ele filma apenas o
1 Publicado originalmente em Vingtième Siècle. Revue D´Histoire 2013/1 (Nº 117), pp. 149-164 (https://www.cairn.info/revue-vingtieme-siecle-revue-d-histoire-2013-1-page-149.htm) 2 Professor de história do cinema na Faap e na Academia Internacional de Cinema, autor de Glauber Rocha: cinema, estética e revolução (Paco Editorial, 2016). Coorganizador, com Fatimarlei Lunardelli e Ivonete Pinto, de Ismail Xavier – um pensador de cinema brasileiro (Sesc/Abraccine, 2019). Membro da Abraccine.
https://www.cairn.info/revue-vingtieme-siecle-revue-d-histoire-2013-1-page-149.htm
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que é moderno”. Trinta anos mais tarde, no fim dos anos 1990, 3
quase podemos inverter essa proposição, assim como ignorar o
termo “extraordinário”: não existe mais nos filmes de Godard, de
História(s) do Cinema a Filme Socialismo, da Nouvelle Vague à
exposição no Centro Georges Pompidou em 2006, senão retorno
ao passado, por meio de personagens, imagens, citações,
histórias, sua própria persona. “Duas histórias nos acompanham,
ele diz numa entrevista em dezembro de 1977, retomando à sua
maneira uma metáfora de Fernand Braudel. A história que se
aproxima de nós a passos apressados e outra que nos acompanha
a passos lentos. Os passos apressados terminaram para mim;
agora, estou na história a passos lentos”. Para Godard, o cinema 4
é desde então a forma de arte que permite “tornar visível” a
história de seu século, e com isso salvá-la. “Minha ideia, bastante
ambiciosa, é que Jules Michelet não detinha elementos em seu
tempo, mesmo quando terminou sua monumental História da
França, para dizer o que é propriamente a história, pois só o
cinema pode torná-la visível”. O cinema conquistou em nosso 5
tempo um papel histórico, uma missão face a face com o passado:
“Ele é tão somente um mascate que nos fornece a um bom preço
os sinais da história”. 6
O cineasta explica a relação de seu cinema com o passado a partir
de sua situação singular, ao se colocar no centro de uma dupla
história sobreposta: um lugar geracional, o de um artista que teve
origem na Nouvelle Vague, “talvez a única geração que se
encontra no meio do século e do cinema” (Godard parece ter 7
compreendido e assumido a força dessa encarnação) e o
cruzamento entre a história pessoal e a do século, que tem como
ponto preciso a Nouvelle Vague, o trampolim do qual ele se
lançou para tornar visível a história. Esse destino é formulado no
segundo episódio das História(s) do Cinema: “O cinema foi a única
3 Le cinéma selon François Truffaut, Paris, Flammarion, 1988, p. 239. 4 “La vie vécue depuis”, Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, Paris, Éd. des Cahiers du cinéma, 1998, t. II, p. 10. 5 “À propos de cinéma et d´histoire”, discurso de Godard ao receber o prêmio Adorno em 1995. Reproduzido em Ibid., p. 401-4015. 6 Ibid. 7 Ibid.
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forma de fazer, de contar que há a minha história, eu tenho uma
história enquanto eu, dentro da história de todos. Se não
houvesse cinema, eu não saberia que tenho uma história nem que
a história existe”. A única forma de contar a história, ou de fazer 8
a história, é pelo cinema. Como se Godard fosse o depositário de
uma herança que o supera e ao mesmo tempo o enriquece com
uma promessa a ser cumprida: mover a história do século para a
história do cinema e vice-versa.
A respeito de Godard vale destacar, entre muitos retratos
possíveis, o de um artista que devaneia, e assim ele pode ser visto
também como historiador. Para ele se trata sempre de “montar e
mostrar ao mesmo tempo” o que é (foi) o cinema e o que é (foi) o 9
século. O cineasta criou uma forma de montagem-ensaio com
vocação para incorporar a história à maneira de uma epopeia
íntima e coletiva, uma forma de confissão infantil do século que
seria também um “cine-filho”. Nos colocamos frente a uma 10
forma cinematográfica de autobiografia de todos, na qual o
cineasta, ao buscar a razão de ser como ele é em sua própria
história, acaba iluminando as razões da história, e tenta mesmo
salvá-la, conferindo ao cinema, que faz o registro, uma
responsabilidade moral. Contudo, Godard trabalha a história da
vida do cinema em dois tempos: o presente, na primeira parte de
sua obra, a dos anos 1960; e em seguida o passado, em um
segundo momento a partir dos anos 1980. Mas, cada um destes
tempos possui uma virtude crítica, a que põe em causa no
presente a insatisfação com a civilização ocidental. Godard
começa a criticar o presente em nome do presente, que ele
registra como um quase cineasta sociólogo; em seguida, ataca o
presente tendo como arma o passado, que é resgatado com
lirismo graças à montagem. Nos dois casos, trata-se da postura
de artista historiador, no sentido em que a escrita da história
pode ser definida como uma abordagem crítica dos tempos, um
8 Jean-Luc Godard, Histoire(s) du cinéma, episódio 1B. 9 Antoine de Baecque, “Sur les Histoir(s) du cinema”, Cahiers du Cinéma, 513, maio de 1997. 10 Serge Daney, “Itinéraire d´un ciné-fils”, Éd. Montparnasse, 2004.
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confronto conflituoso dos tempos produzindo uma interpretação
histórica.
Historicidades do cinema
O cinema é a arte que dá forma à história, pois é aquela que pode
mostrar a realidade histórica dispondo de fragmentos da própria
realidade segundo uma organização original e estética: a
encenação. É assim que ele torna visível sua própria historicidade.
É a arte de uma forma sensível da história e sensível à história;
como escreve Jacques Rancière, o cinema “tece o tecido que é
sensível ao mundo comum”. Jean-Luc Godard tão somente 11
propõe que filmes permitam um jogo no qual a estética revele a
história. A estética, dimensão formal, tem um papel essencial na
historicidade do cinema, ou seja, na transformação de alguns
filmes em história. Pela encenação, pelo estilo cinematográfico,
um filme pode provocar vivas reações sociais: a forma, aqui,
responde às necessidades de conhecimento histórico de uma
sociedade, enquanto corresponde às intenções precisas do
realizador, que é simultaneamente artista criador e intérprete.
Siegfried Kracauer defende a ideia de que o cinema, ao menos
alguns filmes, representa uma “forma social” que revela um
estado psicológico de opinião, mesmo físico, e igualmente uma
“estética social” que é um dos meios de conhecimento da
identidade histórica de uma sociedade. Trata-se de passar pela 12
arte para expressar os motivos sociais, históricos, por vezes
latentes ou reprimidos ou ainda opacos. Em alguns momentos de
crise, de trauma, de guerra, de autoquestionamento sobre o Eu
coletivo, a forma cinematográfica aparece como um dos melhores
índices de conhecimento da história, pois essa forma torna
inteligível certo estado histórico da sociedade. Isso de duas
maneiras. A forma cria, de um lado, um espaço de diálogo, em que
se pode provocar um debate de opinião, uma recepção social ou
11 Jacques Rancière, “Les mots de l´histoire du cinéma”, Cahiers du Cinéma, 496, outubro de 1995. 12 Siegfried Kracauer, Théorie du film, Paris, Flammarion, 2010, p. 21-22.
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política. Por outro lado, a forma, uma vez formatada, é como uma
empreitada que cruza a sociedade, a qual se vê e por vezes se
reconhece revelada pela estética.
Há um marco primordial: enfrentar o problema da forma como
historiador. Trata-se de provocar um corte cômodo nos campos
de pesquisa e nos problemas: aos historiadores e historiadores de
cinema, a contextualização de filmes populares, de gênero,
mesmo de minorias, de “filmes sem qualidades” relevantes na
cultura de massa; e aos estudos cinematográficos, a análise
formal e o estudo de caso. Não acreditamos na definição nem na
limitação de “filme histórico” ou mesmo de “filme de história”.
Mas distinguiremos, sem regras nem normatização de campo
disciplinar, três linhas no horizonte das relações entre o cinema e
a história. A atitude do cinema em que se faz a reconstituição do
passado, o que de fato, dizia Abel Gance, “entra definitivamente
no templo das artes pela gigantesca porta da história”; a 13
capacidade do cinema para “embalsamar o real”, isso que 14
metamorfoseia todo filme em testemunha histórica em
potencial, que se pense no presente de 1960 captado pelas obras
da Nouvelle Vague; enfim, o potencial do cinema para se oferecer
como forma ao processo histórico: ferramentas ideais para 15
elaborar uma interpretação da história, cujos motivos podem ser
o olhar-câmara, a montagem, os efeitos de estilo etc. Assim, o
cinema, em sua diversidade, opera com registros tão vastos que
autoriza o historiador, que os observa e os utiliza como
instrumentos de revelação, a ver, analisar, compreender tão bem
os excessos quanto a frágil veemência, o lirismo quanto a
contemplação, a violência quanto a calma, o grande espetáculo
quanto o tedioso, a emoção quanto a banalidade do cotidiano.
Todas essas manifestações da história são possíveis em um filme.
Siegfried Kracauer é apaixonado pela homologia entre história e
cinema (a historicidade do cinema), vendo uma analogia entre
13 Abel Gance, “Appel à tous les collaborateus de Napoléon”, Paris, 4 de junho de 1924. 14 Antoine de Baecque, Histoire et cinéma, Paris, Éd. Cahiers du cinema, 2007, p. 27. 15 Antoine de Baecque, L´Histoire-caméra, Paris, Gallimard, 2008, p. 19-52.
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dois “estados intermediários pré-cozidos”. Com Kracuaer, 16
pensamos que a operação historiográfica e a cinematográfica têm
em comum a capacidade de dar uma forma inteligível aos traços
materiais de uma realidade que elas testemunham, a forma
escrita no caso da história e visual no do cinema. Podemos dizer
que o historiador e o cineasta apelam a todos recursos formais
para dissolvê-los nos fenômenos da vida banal, pois os
reconfiguram por meio da escrita (a história) ou da montagem
visual (o cinema), de tal forma que os fenômenos da realidade
sejam lidos ou vistos segundo uma aptidão que diz respeito à
imaginação e aos sentidos, e então eles assumem um sentido
histórico.
Godard e a doença do presente
Jean-Luc Godard é um radar, a placa tectônica sensível de sua
época, o melhor sismógrafo dos movimentos da sociedade e das
rupturas que percorrem a vida coletiva. Existe nele a vontade
constante de ir até o topo e tocá-lo, de ser contemporâneo. Ele
possui uma relação por vezes soturna, mas sempre sensível com o
presente de sua época. “Filho de seu tempo, assim como seu pai”,
escreve Marc Bloch. Isso transforma cada filme, cada palavra, 17
cada engajamento, em testemunho. Mas não o impede de ter
estilo, ao contrário, há um estilo Godard reconhecível entre
todos, frequentemente imitado, mas inimitável: nele, o estilo faz
a época, que imediatamente se torna uma forma cinematográfica
da história. Godard vive no mundo em que filma e filma o mundo
em que vive, mesmo que deseje, por vezes, se ausentar, se manter
distante. Ele envia sua imagem com um potencial inigualável.
Isso é mais que uma petição de princípio: um protocolo
epistemológico, um constante recurso metodológico, uma
incitação sempre articulada com o presente e o mundo.
16 Siegfried Kracauer, L`Histoire: de avants-derniers choses, Paris, Stock, 2006, p. 117. 17 Marc Bloch, Apologie pour l´histoire ou Métier d´historien, Paris, Armand Colin, 1949, p. 14.
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Assim, Godard ficou preso a seu tempo porque não estava à
vontade nele. De modo que todos seus heróis dos anos 1960
acabaram mal, menos em Alphaville: Poiccard morreu com um
tiro nas costas, Nana de bala perdida no fim de Viver a Vida, os
carabineiros fuzilados às escondidas com uma rajada de
metralhadora, Camille de O Desprezo abalroada em seu carro
vermelho por um caminhão, Paul Doinel em Masculino-Feminino
caiu do quarto andar sem que se saiba se foi suicídio ou acidente,
os dois, sem dúvida. Essas mortes são isoladas, sem causas, sem
passado, são mortes absurdas, mas ainda não são a de todo o
cinema, nem da sociedade. O primeiro, ao contrário, está em
plena forma; já a sociedade deixa a impressão de viver seus
“Trinta gloriosos”. * Em contrapartida, o indivíduo em Godard 18
está imediatamente em plena desordem, pouco à vontade diante
da história, entre o dandismo e a melancolia. Encontramos o
traço desse desespero face a face com o presente desde o primeiro
filme manifesto godardiano, O Pequeno Soldado (1960). A relação
com sua época é o sinal de uma crise profunda, o que exprime
exemplarmente Bruno Forestier, o herói do filme, encarnado por
Michel Subor, em sua confissão final de jovem cooptado pela
política da desilusão, do desencantamento, do mal-estar, que se
torna testemunha irônica, cínica, maliciosa, de seu próprio
declínio:
“É terrível hoje, se você permanecer tranquilo sem fazer nada, se esgoelar, justamente porque você não faz nada. Então, fazemos coisas sem convicção, e acho perigoso ir para a guerra sem convicção. Há uma frase muito bela, de quem é ela? Acho que é de Lênin: ‘a ética é a estética do futuro...’ Acho essa frase bem comovente. Ela reconcilia a direita e a esquerda. Em que pensam as pessoas de direita e as de esquerda? A partir do momento que um governo reacionário chega ao poder, ele aplica uma política de esquerda, e o contrário... Em meados da década de 1930, os jovens esperavam a revolução. Por exemplo, Malraux, Drieu la Rochelle, Aragon. Nós não esperamos nada. Eles tinham diante deles a guerra espanhola, nós não temos mesmo uma guerra diante de nós”
18* A expressão, usual na França, designa o período de forte crescimento econômico e de aumento de nível de vida na maioria dos países desenvolvidos entre 1946 e 1975. (N. T.)
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Forestier, anarquista de direita, mas leitor de autores de
esquerda, dândi de estilo desesperado, está à procura de um ideal.
Ele não o encontra. “Pode ser que, apesar de tudo, levantar
questões seja mais importante que achar respostas”, acaba por
concluir. É muito difícil (isso é um eufemismo) encontrar uma
posição política definida em O Pequeno Soldado, como além disso
no pensamento de Godard nessa época, em que ele alterna
tomada de posição e provocações.
Mas é certo que o cineasta e seus heróis, e mais geralmente a
Nouvelle Vague, partilham o sentimento de mal-estar com
respeito a seu tempo: ambos profundamente deslocados,
conscientes da pouca espessura histórica do presente e
fascinados pelos perdedores da história. Esse “outro
acampamento” de que fala Godard mistura todos aqueles que não
têm razão face ao engajamento massivo dos intelectuais
franceses de esquerda: ex-colaboradores da ocupação purificados
com a libertação, hussardos que se tornam “escritores fascistas”
para a prosa progressista da revista Les Temps modernes *, 19
pequenos soldados da extrema direita da OAS * vistos como tema 20
de interesse romântico e romanesco no momento em que são
perseguidos tanto pela polícia gaullista quanto pelos militantes
do anticolonialismo. Mais do que um engajamento reivindicado e
contextualizado, trata-se de um desarranjo temporal face ao
mundo e à sua história recente. O que caracteriza o espírito da
Nouvelle Vague não é a ausência de contexto presente (ao
contrário, ele é muito mais persistente do que no cinema francês
de duas décadas antes), mas a recusa de simplificações que
fariam a eficácia do engajamento. A ideia segundo a qual o mundo
é mais complexo do que sustentam os militantes é a força de um
movimento que, politicamente, sempre quis embaralhar as
19* Revista política, literária e filosófica francesa mais prestigiosa no período pós-guerra; em seu corpo editorial destacavam-se Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Raymond Aron e Maurice Merleau-Ponty. (N. T.) 20* OAS – Organisation armée secrèt - foi uma organização político-militar clandestina que defendia a presença francesa na Argélia, e isso incluía a adoção de atos de terror em grande escala. (N. T.)
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pistas; como se a Nouvelle Vague, que dificilmente admirou seu
tempo, tenha preferido romantizá-lo, transformá-lo em lenda
em preto e branco graças ao estilo soberano de uma forma
cinematográfica muito poderosa.
O verdadeiro tema de O Pequeno Soldado e de Godard dos
anos1960, mesmo quando ele passa da direita à esquerda no
tabuleiro de xadrez político por volta de 1964, e igualmente nas
múltiplas censuras de seus filmes pelo poder gaullista, é a doença
na história da geração Nouvelle Vague: uma juventude
amplamente despolitizada que não tem mais os referenciais de
seus pais, pois estes vivenciaram engajamentos claros, heroicos,
na Resistência ou na Espanha republicana por exemplo, e com
isso, por meio da figura de Malraux e de numerosas referências,
assombram literalmente Bruno Forestier. Essa relação delicada
com sua época ou nostálgica com o passado é o sinal de uma
interrogação sobre o presente historicamente não resolvido.
Um sociólogo crítico do presente
Em 1965, para resumir Masculino-Feminino, o cineasta escreve:
“Um dos 121 filmes que eu deveria consagrar à juventude e não o fiz... Dezembro de 1965 em Paris. No clima de eleições presidenciais, Paul acaba de cumprir o serviço militar. Madeleine encontra emprego para ele, com ajuda de um amigo. Paul ama Madeleine. Madeleine é cantora. Ela registra seu cotidiano num diário e mora com duas companheiras de quarto, Élisabeth e Catherine. Paul busca a ternura e encontra o desespero...”
21
Eis aqui duas juventudes: a dos rapazes, Paul e seu amigo 22
Robert, que leem France nouvelle, militam à esquerda, se
sindicalizam, se aproximam do Partido Comunista, se engajam
contra a guerra do Vietnã e o imperialismo americano, se
encontram para discutir política nos cafés. E a das moças: que
21 Bibliotèque de l´institue Lumière, Lyon, collection Anatole Dauman/Argos films, dossiê Masculin Féminin. 22 Jean-Pierre Esquenazi, Godard et la societé française des années 1960, Paris, Armand Colin, 2004, p. 237-242.
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falam da vida, de sexo, hesitam fazer amor e se engajar; elas
preferem esperar e se encontrar nos cafés para falarem dos
rapazes, amam comprar roupas, mas a identidade profunda delas
é musical, geração iêiê. Para definir essa juventude dividida, 23
Godard se serve de uma fórmula datada: “as crianças de Marx e
da Coca-Cola”. O mais contemporâneo, para Godard, é 24
seguramente a tomada de consciência política: nisso está seu
terreno comum de conivência com a juventude masculina de seu
filme. Entre novembro e dezembro de 1965, o cineasta segue
atentamente as eleições presidenciais, mesmo não sendo
militante. François Mitterrand ameaça a vitória de Charles de
Gaulle, pois obteve, em 19 de dezembro, 45,5% dos votos, o que
não era esperado alguns meses antes. A esquerda francesa retoma
a esperança, o poder do general de Gaulle é falível. Essa
mobilização política é o principal vetor de identificação de Godard
com Paul/Léaud em Masculino-Feminino, que vende jornais e cola
cartazes de esquerda, que picha “paz no Vietnã” em um
automóvel da embaixada americana, que ousa um grafite
proibido pela censura gaullista: “DE GAULLE=UBU”. Os rapazes
de Masculino-Feminino descobrem a política como herdeiros dos
comunistas. As moças do filme ficam na superficialidade do modo
de vida da sociedade de consumo, o principal tema de conversa
para elas, quase uma obsessão, é o controle de natalidade, os
meios de contracepção. Mas, por isso mesmo, elas também
descobrem a política militando pela legalização da pílula, pois a
contracepção, ilegal na França, foi um dos temas centrais da
campanha de Mitterrand em 1965.
Masculino-Feminino é oportuno, pois consegue reter os sinais
efêmeros do contemporâneo pelo prisma da enquete. A enquete
está presente na imagem, mas é igualmente origem de
informação, objeto de crítica e método de trabalho, pois o
cineasta reuniu o essencial de sua matéria e seus diálogos
entrevistando propriamente os cinco atores principais do filme.
23 Ludivine Bantigny et Ivan Jablonka (org.), Jeunesse oblige: histoire des jeunes en France, Paris, PUF, 2008, p. 183-197. 24 Le Monde, 22 de abril de 1966.
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Masculino-Feminino incorpora o que há de melhor em Godard, um
gênero de filme do presente que está muito ligado à metade dos
anos 1960: a enquete sociológica. Mas esta acaba sempre em
xeque, mesmo que consiga sublinhar verdades profundas, pois
não alcança a descrição “objetiva” de um grupo social ou de uma
situação dada. É um modo de filmar a enquete enquanto faz sua
crítica. Assim, Jean-Pierre Léaud faz pesquisa, após vagamente
ter sido jornalista e escritor. Ele trabalha para L´Institute français
d´opinion publique (IFOP) e pergunta: “Com o que sonham as
moças em Paris?”. Ele entrevista Elsa Leroy, a jovem eleita
“Garota 19 anos” na revista Mademoiselle âge tendre. “Diálogo
com um produto de consumo”, diz o letreiro, impiedosamente.
Paul leva a sério sua missão de pesquisador, “que é observar a
realidade coletiva”, e se inscreve, de forma consciente para
Godard, num contexto em que as pesquisas, desde a do L´Express
sobre a Nouvelle Vague no outono de 1957 até Rapport sur le
comportement sexuel des Français, em 1970, passando por La
Française et l´Amour em 1961 e La France et sa Jeunesse em 1962,
têm expandido, popularizado, legitimado, o olhar sociológico
sobre o objeto de estudo “jovem”, que elas também contribuem
para construir. A questão e sua resposta dão forma à pesquisa que
inspira Masculino-Feminino. Esse protocolo de palavras e de 25
investigações se sustenta então igualmente no domínio da ficção.
Georges Perec, aos 29 anos, publicou Les Choses, “romance
documentário” com subtítulo Um Roman des annèes soixante. Jean
Rouch e Edgar Morin exerceram mais influência em Godard que
Pierre Bourdieu, notadamente com Crônica de um verão, de 1960,
sobre a vida de um grupo de jovens revelados pela questão
lancinante: “você é feliz?”. Há igualmente Chris Marker e Le Joli
Mai, de 1963, que toma o modelo de entrevista para se voltar para
a política francesa, as mortes em Charonne * e o fim da guerra da 26
Argélia. Além disso, Morin escreveu a propósito de
Masculino-Feminino: “Antes, pensava-se que além da ficção
25 Ludivine Bantigny et Ivan Jablonka (org.), op. cit. p. 225-237. 26* Antoine de Baecque se refere às vítimas da violência policial no metrô de Charonne, em fevereiro de 1962, quando uma manifestação protestou contra o terrorismo de extrema direita nos últimos dias da guerra da Argélia. (N. T.)
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havia o documentário, e que além do documentário havia o filme
de ficção. Agora, com Masculino-Feminino, estamos ao mesmo
tempo além do realismo de ficção e do cinema-verdade, isso é
para mim o primeiro resultado de cinema ensaio que há anos se
procura”. Godard presta explicitamente homenagem a Crônica 27
de um verão e Le Joli Mai em Masculino-Feminino, considerando
seu filme a terceira parte de uma trilogia sobre a entrevista como
veículo e objeto de uma crítica da sociedade por meio do cinema.
Se bem que o filme de Godard seja ao mesmo tempo sobre sua
época e crítico do presente, o que Paul claramente expressa,
quando toma consciência da irrelevância de sua tarefa: “Pouco a
pouco eu percebi que todas essas questões, em lugar de refletirem
uma mentalidade coletiva a traíam e a deformavam. À minha falta
de objetividade mesmo inconsciente correspondia, com efeito, a
maior parte do tempo, uma falta de sinceridade entre mim e
aqueles que eu interrogava”. Godard sociólogo, certamente, mas
não entusiasta, consciente de que a entrevista também está a
caminho de se tornar instrumento para os estudos de mercado, as
reportagens jornalísticas, as enquetes publicitárias, as sondagens
políticas, tanto quanto para as ciências sociais. Godard é um
pesquisador cético. O que Italo Calvino, em resposta a um
questionário sobre a narrativa nos Cahiers du Cinéma, em
dezembro de 1966, descreve muito justamente a propósito de
Masculino-Feminino: “O filme de enquete sociológica tem sentido
apenas se for algo diferente de uma ilustração filmada sobre uma
verdade que a sociologia ou a historiografia já estabeleceram, se
for uma intervenção para contestar alguma coisa que a sociologia
ou a historiografia sustentam. Considero esse verdadeiro
‘filme-ensaio’ um gesto não pedagógico, mas de interrogação”. 28
Essa vontade de testemunhar e sobretudo de analisar graças a um
filme um estado social não cansa de perseguir Godard, como
27 Anatole Dauman, Argos Films: souvenir-écrain, Paris, Centre Georges Pompidou, 1989, p. 194. 28 Italo Calvino, Cahiers du Cinéma, 185, dezembro de 1966.
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testemunha o longo texto que ele escreveu ao Nouvel Obsevateur,
em 12 de outubro de 1966, “A vida moderna”:
“Indago que raramente um país oferece tantos temas de filmes como a França hoje. O número de temas excitantes é surpreendente. Posso fazer o que quiser sobre esportes, política e mesmo mercearia; observemos um homem como Édouard Leclerc, é apaixonante, eu adoraria fazer um filme sobre ele, ou com ele. Quando me perguntam por que falo, ou tenho falado do Vietnã, de Jacques Anquetil, de uma dama que engana o marido, respondo que não tenho em mente ninguém em seu cotidiano habitual. Para mim, tudo é e está justaposto. É por isso que estou tão atraído pela televisão. Ela está entre as mais interessantes expressões da vida moderna. Um jornal televisivo feito com documentos oficiais, isso seria extraordinário”.
O que Godard consegue formalmente reter, com um propósito
gráfico por vezes entorpecente, é uma estética do presente. O
presente se expressa por meio da color (o vermelho,
evidentemente, que sucede rapidamente o preto e branco tão
particular de Masculino-Feminino), da matéria, de roupas e
aparências, de corpos e poses ritualizadas, de cartas e slogans
utilizados como os balões nos HQs, da cenografia e dos
happenings. O presente é uma plástica tanto quanto uma política,
atualização pré-68 de um princípio godardiano de sempre: a
forma dita o fundo, o fundo é a forma. Esse presente político
passa pela intensidade de uma cor, pela decupagem de uma
sequência, pelas rimas de um slogan, pelo travelling ao longo de
um balcão, pela maneira de filmar uma conversa tão bem quanto
um rosto. Ele é antes de qualquer coisa um material estético.
Como escreve Jean-Louis Comolli, redator chefe dos Cahiers du
Cinéma:
“O que é visível e audível é cinematograficamente. As imagens de A Chinesa não descrevem uma realidade, nem mesmo uma ficção política, elas são a realidade, ou a ficção; melhor, as fazem. A forma está em Godard antes da formulação. Assim, está distante da política estender sua armadilha sobre o filme, ela nasce e se desenrola ao mesmo
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tempo que outras aventuras formais, ela se movimenta plasticamente”.
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O presente aqui se transformou em material estético.
Godard e a morte do cinema
Jean-Luc Godard completou 82 anos. É difícil imaginá-lo um
patriarca. As imagens que vêm naturalmente ao espírito, quando
seu nome é evocado, correspondem mais à superatividade
desenvolta do trintenário, à sombra da clandestinidade rebelde
do quarentenário, à maturidade coroada de sucesso do
quinquagenário. Passa o tempo e Godard não projeta
propriamente a imagem de um ancião. Ele disse em várias
ocasiões que pensava morrer jovem e de morte violenta. Que
assim seja, François Truffaut morreu primeiro, aos 52 anos em
1984, e foi para ele uma surpresa atroz. Godard esteve com
frequência próximo da morte entre os 20 e 40 anos, de tentativas
de suicídio a acidentes. E quando ele se retira (talvez mesmo por
se retirar), encontra refúgio no país de sua infância, o cantão
suíço de Vaud. Nesse período, ele desponta fantasmagórico,
inebriante, menos em sua própria existência que em seus filmes,
ideias, ambiente familiar, na história: a “morte do cinema” é
parte importante do pensamento godardiano, e funda o segundo
momento de sua obra, no início dos anos 1980, e se torna então
cada vez mais presente até ocupar o centro das História(s) do
cinema.
A ideia de morte do cinema , que sempre existiu na história da 30
sétima arte, é não obstante mais particularmente datada dos anos
1980, e encontra seu apogeu na primeira metade da década de
1990, como se um pensamento milenarista tivesse acompanhado
e esperado a vinda de seu centenário, tal qual uma contra
celebração melancólica. Dois pensadores concentram e
29 Jean-Louis Comolli, Cahiers du Cinéma, 194, outubro de 1967. 30 Antoine de Baecque et Philippe Chevallier (org.) Dictionnaire de la pensée du cinéma, Paris, PUF, 2012, p. 462-466.
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expressam amplamente essa ideia: Jean-Luc Godard, cineasta
filósofo e profeta, e Serge Daney, o crítico e “cine-filho”. Os 31
dois foram intimamente persuadidos de que encarnavam os
últimos sobreviventes de sua espécie: o último crítico para Daney
, que morreu em 1992 aos 48 anos; o último cineasta para 32
Godard, que conta então a história de uma arte e de um século
com seu inevitável desaparecimento nas História(s) do cinema,
empreendimento que acompanha, entre 1988 e 1998, a escalada
ao poder do passado e do pensamento histórico em sua obra.
Em Godard, a “morte do cinema” representa a oscilação entre a
onipresença do presente e a obsessiva marca do passado. Esse
momento dura uns quinze anos e a proposição aparece em Lettre
à Freddy Buache, filme ensaio em onze minutos absolutamente
essencial às História(s) do cinema, série assombrada, visitada,
pelo espectro do cinema defunto no momento de seu centenário.
De fato, ele manifesta o traço da morte do cinema antes: quando
os Cahiers du Cinéma lhe pedem, em 1965, para falar sobre o
futuro imediato, e menos imediato, do cinema. Godard responde:
“espero a morte do cinema com otimismo”. Isso dá o tom de seu 33
último filme dos anos 1960, Weekend à Francesa, rodado no
outono de 1967, o ponto de inflexão na direção da revolução
apocalíptica, cujo letreiro registra, após a sequência final com
sangue e alegria, a morte da civilização: “FIM DO CINEMA”.
Em 1983, o cineasta responde à questão “o cinema vai morrer
com você?” com esse silogismo incontornável: “Essa é mesmo a
única esperança que tenho. Esse o objetivo de minha vida. Eu
acreditava, quando jovem, que era eterno, mas isso porque eu
acreditei que era eterno”. Ora, todo o cinema desaparece e 34
morre para Godard a partir dos anos 1980. Ele passou dos
cinquenta anos e retorna ao cinema após uma década de
experiências (aventuras com vídeo), um exílio (em Grenoble,
31 Serge Daney, op. cit. 32 Serge Daney, Persévérance, Paris, POL, 1994. 33 Jean-Luc Godard, Cahiers du Cinéma, 161-162, janeiro de 1965. 34 Le Nouvel Observateur, 30 de dezembro de 1983.
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depois em Rolle) e muita provação (acidente, solidão, travessia do
deserto); ele próprio se toma como morto psíquica,
cinematográfica, midiaticamente para a profissão no cinema,
após ter enterrado com suas mãos seu próprio cinema, aquele dos
anos 1960, ao renunciar, denunciar e relegá-lo ao passado.
No início de 1981, La Lettre à Freddy Buache aparece como um
autorretrato do cineasta no momento em que “há urgência: há a
paisagem, há luz e o cinema vai morrer”. Esse autorretrato, no
ponto preciso em que “o cinema vai morrer”, será retomado em
outras ocasiões: de Carmen de Godard a Rei Lear, ele acampa seu
personagem, “JLG” torna-se “tio Jean” ou “Jeannot”, cineasta
aposentado que vive em um hospital no meio de loucos e
impotentes. O personagem de Carmen de Godard espera no
hospício, acompanhado por Jean-Pierre Mocky, o fim do cinema.
Ele volta em Atenção à Direita como “Idiota”, palhaço patético no
meio de bobinas de “velhos filmes” e de pilhas de “velhos
livros”, depois em Rei Lear, vestindo sacos de lixo, é o professor
Pluggy (de plug, “plugado”, com o penteado feito de fios elétricos
de todas as cores), inventor solitário que mora entre duas paredes
sem teto, e tenta aperfeiçoar sua última criação: “a imagem”. Ele
fuma e fala com trejeitos que deformam seus lábios e o lado
direito de seu rosto. É um personagem pós-catástrofe: ele
acompanha o fim do mundo, escolhe se retirar, à margem, como
uma espécie de vagabundo das imagens. Godard, então, filma
certo cinema que se despede, como sublinha em Detetive (1985) e
Grandeza e decadência de um pequeno negócio de cinema (1986). No
primeiro, Alain Cuny, espectro surgido do passado, encarna a
morte. Mas a morte é a do próprio cinema. Em outro momento,
no episódio 3A das História(s) do cinema, “A moeda do absoluto”,
Cuny aparece subitamente no plano, se aproxima e bate na 35
janela, e seu rosto de 1942, nos Visitantes da Noite de Marcel
Carné, se alterna com a imagem do presente. Trata-se de um
jovem e de um velho, separados por cinquenta anos, e o mesmo
35 Jean-Luc Godard, História(s) do cinema, episódio 3A.
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homem, sobretudo a mesma voz que chama do passado, se
alterna com a voz de uma atriz, Juliette Binoche em início de
carreira, sentada e lendo Charles Baudelaire, que conclama os
vivos para segui-lo rumo à morte. Este rosto e essa voz são o
cinema caminhando para a morte.
Grandeza e decadência... mostra o chamado dos mortos, nomes
citados, desaparecidos no “campo de honra do cinema”. Ao lado 36
de Jean-Pierre Mocky, produtor à antiga, “a caminho de
desaparecer”, encontra-se Jean-Pierre Léaud, o “adolescente” 37
que Godard teve com Truffaut, motivo de disputa entre eles no
momento em que romperam, doze anos antes. Léaud incorpora
em Godard uma espécie comovente de remorso vivo, o de nunca
ter se reconciliado com Truffaut antes da morte do inventor de
Doinel. Mocky escreve a propósito de Grandeza e decadência...:
“Godard pensa que somos os últimos moicanos, os últimos a
fazer cinema como o Chaplin dos primórdios. Eu indago se isso
não existirá mais quando homens como nós estiverem mortos”. 38
Esse cinema desparece com Jean Eustache, que cometeu suicídio
em 1981, com Truffaut, que morreu em 1984, com os produtores
Raoul Lévy, Georges de Beauregard, Gérard Lebovici, Jean-Pierre
Rassam, Pierre Braunberger, todos recentemente falecidos. O
filme é assombrado por esses fantasmas, cujos rostos despontam
subitamente em flashes, e Godard identifica sua própria morte,
que ocorrerá, e a do cinema, que está em curso, assim como
confidencia a propósito de Truffaut: “Truffaut talvez esteja
morto. Eu talvez esteja vivo. Não há diferença, não é?” 39
Jean-Luc Godard, último dos moicanos, o sobrevivente de um
cinema que está a caminho do desaparecimento, é uma primeira
interpretação de “a morte do cinema”: fim de certo cinema,
aquele que ele conheceu e fez. Mas a partir das História(s) do
cinema, uma outra variação, mais profunda, sobre o mesmo tema,
36 Jean-Luc Godard, Grandeur et décadence d´um petit commerce du cinéma, Paris, POL, 1994. 37 Ibid., p. 14. 38 Jean-Pierre Mocky, Télérama, 21 de maio de 1986. 39 Prefácio à correspondência de François Truffaut, Paris, Hatier/Cinq Continents, 1988.
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atravessa seus filmes: se o cinema vai morrer, está a caminho da
morte, é o que a história impõe. Não mais o fim do cinema e de
suas figuras, míticas ou pessoais, mas a “morte de uma
civilização do cinema”. O contexto histórico da concepção dos
primeiros episódios das História(s) do cinema, o fim dos anos
1980, resume essa orientação, centrada na responsabilidade do
cinema diante da guerra, no extermínio, no poder destrutivo dos
totalitarismos e dos imperialismos. Para Godard, esta “era
histórica” se abre com a exibição de Shoah, filme síntese de
Claude Lanzmann, de abril de 1985, que o afeta profundamente,
suscitando-lhe reservas e polêmicas. Philippe Sollers, em uma
entrevista aos Cahiers du Cinéma, resume muito apropriadamente
o alvo das História(s), ao mencionar que se trata de um “filme de
último julgamento”:
“A prédica de santo Godard é clara: de imediato, ele trata do reino dos mortos, e o tema do apocalipse assombra esse filme. Godard está lá, sentado atrás de seu micro, ou de sua máquina de escrever, ou então em pé, como um maestro da orquestra dos espectros, e dá vida a milhares de sombras que são projetadas na tela: ele as julga e as salva. Este é o último julgamento dos filmes, reconhecidos como culpados ou inocente em relação à história do século.”
40
A prova da verdade do cinema é a história que impõe, e Godard
ordena o julgamento. Esta história é a seguinte, a do cinema que
deve morrer: um primeiro meio século esquecido, do qual
ninguém ainda vivo tem memória; um segundo meio século
desmemoriado, devorado pelo dinheiro, pela televisão, se
precipita lentamente para a morte; e no meio, o corte essencial,
nascido da história, da guerra, do extermínio, da morte em
massa, dos totalitarismos, estes traumas do século que o cinema
não pôde impedir e não soube filmar.
A morte do cinema pode assim ser observada de muitas maneiras
na obra de Godard. De início, ele nos diz: “eu morro, vou morrer,
eu encarno o cinema, logo eu desapareço com ele”. Essa é uma
40 Philippe Sollers, Cahiers du Cinéma, 513, maio de 1997.
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leitura egocêntrica, angustiante e narcísica, à maneira depois de
mim vem o dilúvio. Em seguida, Godard nos murmura com sua
voz além-túmulo: “o cinema morre, e isso me faz morrer, isso
põe fim a meus filmes, que têm por fim mostrá-lo; o cinema
morre, logo eu devo desaparecer”. Esta é uma leitura das eras
sucessivas da vida das imagens: como um dinossauro, um
cineasta que encarna uma arte, um momento dessa arte, morre
com o fim dessa arte, era que se abre com os Lumières e se fecha
com Godard e suas História(s). Enfim, em Godard a morte do
cinema acompanha a morte de um tempo histórico: é não
somente o desaparecimento de uma arte, mas também de uma
civilização, da história, uma espécie de fim do mundo, de
julgamento último dos filmes. Não obstante, a grandeza, o dever
de Godard, o último suspiro dessa arte agonizante, às vezes
sublime e suicida, consiste em registrar o que sobrevive no
presente, uma última vez: o fim, a queda. A morte do cinema é o
fim de Godard como homem, do cinema como arte inventada no
século XIX, e a queda de um tempo histórico. É sobretudo o
próprio movimento de filmar e dar testemunho. Esse movimento
não tem nostalgia para Godard, é como uma energia inspirada
pela arte do cinema para agir uma última vez: morrer com beleza.
Evidentemente, a morte do cinema não ocorre: a ideia é antes de
tudo um conceito para reflexão. É nesse sentido que ela
permanece viva. E o vazio mortífero deixado pela cinefilia
clássica, por seus heróis (os cineastas) e seus arautos (os críticos
ou os aficionados), é rapidamente preenchido por uma
proliferação de formas e de corpos que dominamos com
dificuldade e que nos deixam frequentemente perplexos,
intrigados, por vezes deslumbrados. Desde então, o pensamento
sobre o cinema retoma seu trabalho de Sísifo: ele percebe,
classifica, interpreta o que vem após a morte do cinema, que
ainda é cinema.
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A passagem ao passado em Godard, cineasta historiador
Em 17 de setembro de 1995, em Frankfurt, Jean-Luc Godard
recebeu o prêmio Adorno, uma recompensa que lhe tocou o
coração. Na ocasião, ele pronunciou a conferência “A respeito de
cinema e de história”, na qual fala sobre sua consciência de
ocupar um lugar na história: “Eu estou hoje em estreita
solidariedade com o passado. Recuso o esquecimento, pois não
desejo definhar”. O cineasta está então no momento crucial da 41
realização das História(s) do cinema, seu principal projeto nos
anos 1990, década na qual se torna sexagenário, assim como do
centenário do cinema e de efervescência na Europa, queda do
comunismo e retorno da guerra, desintegração da ex-Iugoslávia.
Todos esses fios de tempo se cruzam, se imbricam e, para
Godard, eis a ocasião para um triplo retorno ao passado: dele, do
cinema e da história.
Godard não consegue manter juntos dois fragmentos do passado,
o cinema e a história, pois nesse instante visita seu próprio
passado. Essa exploração é nova para ele, preparada pelo retorno
ao país de infância (ele se instala em Rolle, às bordas do lago
Léman, em 1977), com marcas na consciência, reavaliações,
desaparecimentos e luto. Na ficção, ele se exprime mais
geralmente no cruzamento de três filmes, Nouvelle Vague,
Infelizmente para mim, For Ever Mozart, e em um ensaio
autobiográfico, JLG/JLG. Contudo, os traços do passado pessoal e
familiar estão tão apagados que Alain Bergala chega a ponto de
interrogar, na ausência de documentos: “Godard foi criança?” 42
Esses traços aparecem pouco a pouco nos filmes, no correr dos
anos 1990, resultado de um trabalho de reminiscência íntima.
Primeiro, acha-se em um pequeno filme de encomenda, realizado
em alguns dias no início do verão de 1988, Le Dernier Mot,
financiado por Le Figaro magazine por seus dez anos, no seio de
uma série intitulada Os franceses vistos por... Godard adapta em
41 “À propos de cinéma et d´histoire”, op. cit. 42 Alan Bergala, “Godard a-t-il été petit?”, Cahiers du Cinéma, número especial sobre Godard, novembro de 1990, p. 28-29.
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doze minutos o fim trágico de Valentin Feldman, jovem filósofo
fuzilado pelos alemães em 1942 que grita para o pelotão de
fuzilamento: “Imbecis, é por vocês que eu morro”. Esse raro
filme histórico de costumes coloca em correspondência os
tempos da história ao retornar a Anthy, à beira do lago Léman, na
antiga propriedade em que Godard brincava em sua infância e
passava o verão, tão descuidada trinta anos depois, comprada por
um príncipe iraniano que a deixou abandonada. “Essa é a
infância, confessa o cineasta, essa é casa dos meus avós, cujo
aspecto é de decadência. Como ela ainda se mantém intacta, eu a
aluguei para filmar For Ever Mozart. Essa a casa onde estive, lugar
real [...] Eu retornei a ela: tudo ainda está reconhecível, nada foi
modificado depois de cinquenta anos”. Doravante, nos filmes e 43
na vida de Godard, essas impressões do passado vão se
multiplicar.
Nesse impulso na direção do passado estilhaçado, o dele e o da
história, Godard reivindica a influência dos historiadores. Ele os
lê, os exercita à sua maneira, que não é propriamente a de
especialista. Encontra de preferência nessas leituras ideias,
reconciliações, visões que o estimulam, e não hesita em afiliar
suas História(s) a uma genealogia de historiadores; evoca Marc
Bloch, Fernand Braudel, a Escola dos Annales. * “Apenas os 44
franceses fazem história, diz ao receber o prêmio Adorno. Pelo
menos, mais que os outros, eles não duvidam que estavam numa
história, e desejam saber qual história aconteceu, a deles na
grande, ou a grande na deles?”. Dificilmente causaria surpresa 45
que alguns historiadores importantes se apoiem nas História(s) de
Godard. Desde sua concepção, seu projeto recebeu a assistência
de Georges Duby, professor de história medieval do Collège de
France, que em 1986 se tornou presidente da SETP * e 46
43 “La vie vécue depuis”, op. cit., t. II, p. 41. 44* A Escola dos Annales foi um movimento historiográfico do século XX, surgido na França, que substituiu o tempo breve da história dos acontecimentos pelos processos de longa duração, com o objetivo de tornar inteligíveis o sentido de uma civilização e a mentalidade de uma época. Fernand Braudel e Marc Bloch são os expoentes mais representativos do movimento. (N. T.) 45 “À propos de cinéma et d´histoire”, op. cit. 46* Société européenne de programmes de télévision, atual Arte France, é uma sociedade francesa de edição de programas de televisão criada em 1986. (N. T)
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manifestou vivo interesse pela história do audiovisual, vendo nas
História(s) um elemento da “plêiade audiovisual” com a qual ele 47
sonhava para sua rede de difusão cultural. Godard mostra em
seguida seu ensaio histórico cinematográfico para outros
historiadores. Não mais a Duby, que morreu em 1996, mas a
Pierre-Vidal Naquet, Marc Ferro, François Furet. Só este último,
historiador da revolução francesa e do comunismo, convidado
por Godard em seu escritório em Paris para ver os quatro
primeiros episódios das História(s), discutiu com o cineasta antes
de confiar aos Cahiers du Cinéma suas reflexões sobre o que ele
considera uma “visão lírica e sagrada da história”, mesmo que 48
ele levante questões sobre o filme em seu conjunto. O encontro se
deu em junho de 1997, algumas semanas antes da morte do
historiador. Para Furet, o movimento do cinema em Godard
parece coincidir com o de um século percorrido por revoluções e
agitação: “Só o cinema ainda pode levar a que se acredite na
beleza do movimento de uma revolução, pode reter alguma coisa
profunda nas grandes ofensivas da história. Os filmes de Godard
têm uma força verdadeira, pois relatam o século como uma
epopeia”. Isso oferece ao cineasta um poder de historiador 49
multiplicado: “O filme trata assim de um caos cosmogônico que
conta a história de nosso século. Eu tenho muita admiração por
esse poder de dar sentido pelo excesso e pelo épico, pois é um
poder de evocação que nenhum historiador jamais dispõe”. 50
Assim como Furet sustenta, podemos legitimamente considerar o
trabalho de Godard como o de um historiador, mesmo que seja
singular: a tentativa, visionária e épica, de forjar uma forma
cinematográfica suscetível para mostrar a história.
Para filmar a história, Godard, que se define como “um prático,
um jardineiro do cinema”, tem necessidade de um método 51
teórico e prático. A montagem é o método. Na conferência para o
47 Christian Delage, “Le vaste appétit de l´histoire de Jean-Luc Godard”, Vingtième Siècle. Revue d´histoire, 64, outubro-dezembro de 1999, p. 145-148. 48 François Furet, Cahiers du Cinéma, número especial, “Le Siècle du cinéma”, novembro de 2000, p. 6-9. 49 Ibid. 50 Ibid. 51 Libération, 26 de dezembro de 1988.
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prêmio Adorno, o cineasta multiplica os exemplos: como a
montagem, ao aproximar duas ideias, fabrica uma imagem
histórica.
“Se dissermos que Copérnico, por volta de 1540, lançou a ideia de que a terra gira em torno do sol, e dissermos que Vesálio publicou De corporis humanis fabrica três anos depois, então temos o livro de Copérnico e o de Vesálio. Em um livro, o universo é infinitamente grande. No outro o interior do corpo humano é infinitamente pequeno. E depois, 450 anos mais tarde, temos o biólogo François Jacob, que escreve: ‘No mesmo ano, Copérnico e Vesálio...’, eh, bem, de fato ele não é biólogo, mas cineasta. A história está tão somente lá, aqui ela é juntada pela montagem”.
52
Esta é a montagem que, tudo ao mesmo tempo, inicia, justifica e
autoriza o trabalho histórico de Godard, aproximando sem cessar
recortes, planos, palavras. E Godard conclui:
“Existe então essa coisa que permanece de modo estrito no interior do cinema, crisálida que nunca se tornará borboleta, essa coisa é a montagem. O que busca a montagem? A aproximação de alguma coisa distante com outra próxima, sobretudo no tempo... Minha ideia, de médico de campanha do cinema, é que um dos objetivos do cinema seria inventar ou descobrir a montagem para poder fazer a história.”
53
A demonstração de Godard põe em jogo o poder histórico do
cinema e uma relação de associação permanente: em suas
História(s), toda imagem pode ser aproximada de outra e assim
ser condenada ou salva. Ele faz de cada imagem a imagem de
outra coisa, que é susceptível de revelar a verdade.
“É isso que vemos, explica ele, aproximando duas imagens: uma moça que sai de um filme soviético não é a mesma quando sai de um filme nazista. E o Chaplin de Tempos modernos, como ponto de partida, é exatamente o mesmo operário da Ford, quando filmados seguindo os princípios de Frederick Taylor. Fazer história, isso é, passar horas olhando imagens e depois, com um corte, aproximá-las, provoca uma faísca. Isso constrói constelações de estrelas que se aproximam e se afastam, como queria Walter
52 “À propos de cinéma et d´histoire”, op.cit. 53 Ibid.
23
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Benjamin. O cinema vive assim, funciona então como uma metáfora do mundo. Ele permanece como arquétipo, envolvendo no todo a estética, a técnica, a moral”.
54
Quanto mais as relações entre duas realidades aproximadas por
meio de imagens estejam distantes, mais o sentimento de
historicidade é forte, adianta Godard, “porque a condensação
existe também na história”. 55
O passado como crítica histórica do presente
Não obstante, a tese que resume o projeto da série godardiana das
História(s), como adianta Jacques Rancière, de início revela-se 56
frágil: a história do cinema falha ao se encontrar com a história,
contratempo que Godard tenta remediar. A renúncia abre as
História(s): os dois primeiros episódios são amplamente
centrados na falha coletiva do cinema no momento da escalada
perigosa do nazismo, da guerra, da colaboração e da “Solução
final”. O episódio 1B sobretudo, “Uma só história”, é assombrado
pela culpabilidade dos intelectuais do cinema, esses grandes
realizadores incapazes de controlar a vingança e a violência que
encenam vinte vezes, que vemos entregues como responsáveis, 57
pela montagem godardiana, impiedosamente acusadora, assim
como de outra forma talvez incrivelmente salvos da catástrofe
estalinista e hitlerista. A sucessão ilustrada de cronologias
hollywoodiana, realista socialista, fascista, nacional socialista é
bastante cruel: o cinema teria se servido à indústria,
instrumentalizado pela propaganda, e finalmente se
transformado num vetor de morte. Godard remonta os filmes que
os cineastas (aqueles que esqueceram a história ou se afastaram
dela) não fizeram. História(s) torna-se desde então um
empreendimento de salvação: subitamente, dessas imagens
54 Jean-Luc Godard, Libération, 6 de abril de 2002. 55 Jean-Luc Godard, JLC/JLC, Paris, POL, 1996, p. 124. 56 Jacques Rancière, op. cit. Os dois primeiros episódios das História(s) foram lançados em 1988. Na versão de 1998, na série completa com os oito episódios, os dois primeiros foram alterados em razão das observações de Rancière. (N. T.) 57 Jean-Luc Godard, Histoire(s) du cinéma, episódio 1B.
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culpáveis (de terem abandonado a história, cegado os homens,
conduzido à catástrofe), Godard é inocente desde a montagem, a
aproximação, a poética, o lirismo dos fragmentos, as associações
e os paralelos; elas são susceptíveis de salvar o mundo,
tornando-se ícones da história, “mesmo arranhado até a morte,
um simples retângulo de 35 mm salva a honra de toda realidade”,
ele resume em uma frase impressionante. 58
Nessa redenção do cinema pelo confronto com a história, passam
dois grandes momentos, segundo Godard, que salvam toda a
história, mesmo as piores traições ou dissensões: as notícias
filmadas por cinegrafistas americanos na abertura dos campos da
morte e, na sequência, o neorrealismo italiano. Se o cinema traiu,
falhou, é por não ter filmado os campos da morte. O cinema
deveria estar presente em Auschwitz, pois era de sua essência e
seu dever estar lá, hic et nunc. Ele não esteve. São os
documentários, unicamente, que podem resgatar essa ausência,
aqueles registros do inverno e da primavera de 1945. E essas
notícias, esses filmes com os sobreviventes da morte em massa,
podem mesmo salvar a Babilônia moderna, Hollywood: “Se
George Stevens não utilizou o primeiro filme em 16mm colorido
em Auschwitz e em Ravensbrück, sem dúvida jamais a felicidade
de Elizabeth Taylor teria encontrado um lugar ao sol”. Stevens, 59
cinegrafista em Dachau, eleva assim o mesmo homem, que se
tornou o realizador americano de Um lugar ao sol, à gloria
histórica. Depois, há o neorrealismo e “o grande cinema italiano”
que, no episódio 3A das História(s), apaga todos os compromissos
do cinema com a indústria dos estúdios: saindo enfim para as
ruas e filmando a vida onde ela está, esse cinema não reencontra
unicamente as origens ideais da arte dos Lumières, é um tipo de
ressurreição das imagens. Jamais Godard foi tão lírico assim. O
neorrealismo salvou todo o cinema, cumprindo assim sua
missão, filmar a história no momento em que ela acontece,
58 Ibid. 59 Ibid.
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submeter seus personagens, suas intrigas, suas pequenas
histórias, à grande história.
Em junho de 1995, a associação de críticos de Nova York premia
Godard pelo conjunto de sua obra e o convida para uma cerimônia
de recepção e homenagem. Ele recusa e se explica:
“Agradeço que aceitem as muito incompletas razões que seguem. JLG, ao longo de toda a sua carreira de movie maker, não foi capaz de: impedir Spielberg de reconstruir Auschwitz, convencer a Senhora Turner a não pintar as queridas Fanny Faces desgastadas, condenar o Senhor Bill Gates por ter nomeado Rosebud sua fábrica de pulgas, constranger os críticos de Nova York a não esquecer Shirley Clark, [...] obrigar os membros do Oscar a votarem em Kiarostami e não em Kieslowski, persuadir o Senhor Kubrick a assistir os curtas metragens de Santiago Alvarez durante a guerra do Vietnã, ler para a Senhorita Keaton a biografia do fundador de Las Vegas, refazer O Desprezo com Sinatra e Novak. Minha long voyage home até a morada do cinematografo ainda não foi concluída, Senhor, mas eu perdi o ingresso, de onde se conclui que não mereço nenhuma honra”.
60
O cineasta assina sua carta com um deslumbrante “Godard
1995”.
Não escapa a ninguém que o cinema se aproxima de seu
centenário. As comemorações são numerosas, sobretudo na
França, país do cinematógrafo e pátria da comemoração
generalizada, coordenada por uma missão ministerial especial, a
associação Primeiro Século do cinema, presidida por Michel
Piccoli, dirigida por Alain Crombecque e Serge Toubiana. Godard,
como outros (Agnès Varda, Bertrand Tavernier, etc.), mas mais
que outros, sem dúvida, foi solicitado. Sua posição é rapidamente
fixada: ele é contra toda celebração ao cinema. “Celebrar cem
anos de cinematografia – que palavra rudimentar, orgulhosa e
inútil”, ele escreve na carta de 1995. Godard é contra porque, 61
sendo profundamente melancólico, não tem gosto mortífero pelo
passado; para ele, um filme jamais é “velho” ou “antigo”, mas
60 Jean-Luc Godard, JLG/JLG, op. cit., t. II, p. 344. 61 Ibid., p. 345.
26
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sempre visto no presente. Ele não aprecia o que o cinema se
tornou, com algumas exceções. Sobretudo, seu espírito
“negativo”, ao menos cético ou histórico, o conduz a ver antes o
que o cinema não fez do que o que foi feito. O cineasta recusa
celebrar, ou seja, “tornar célebre” tudo o que “a última das artes
– bem entendido o sentido da palavra, a última – fez bem, mas
sobretudo celebrar o que não fez ou fez mal, ou tão pouco quanto
nada, como escreveu o assistente de Malraux após L´Espoir” . 62
Sustentamos que essa é uma das teses, a mais forte seguramente,
das História(s): a falha do cinema, suas falhas (que Godard atribui
também a si próprio, quando escreve que não soube prevenir
Spielberg de reconstruir Auschwitz ), consiste em não ter sido 63
capaz de “salvar a história” de suas principais tragédias. Godard
contesta triplamente o centenário porque recusa celebrar uma
arte que não tem memória, uma arte que já está quase morta e
uma arte culpável diante da história. Quando a revista Studio, no
número especial “Cem anos de cinema” escolheu dois grandes
testemunhos, Spielberg e Godard, e foi encontrá-los, ele
declarou: “O cinema não cumpriu seu papel”. Essa missão 64
falhou, e ele a retoma sem cessar:
“Privilegiamos os direitos do cinema e não seus deveres. O cinema não tem feito seu papel de instrumento do pensamento, fizemos um chocalho. [....] A conclusão ocorreu no momento em que não foram filmados os campos de concentração. Naquele instante o cinema falhou totalmente em seu dever. Houve seis milhões de pessoas mortas nas câmaras de gás, principalmente judeus, e o cinema não estava lá. Contudo, O Grande Ditador e A Regra do Jogo anunciaram todos esses dramas. Ao não filmar os campos, o cinema se resignou totalmente”.
65
Jean-Luc Godard, então, está agarrado ao passado, à história e
mesmo a historiadores que ele lê e interroga, a fim de falar sobre
sua insatisfação com o tempo presente, que nele passa de início
62 Ibid. L´Espoir (“A Esperança”), filme dirigido por André Malraux e Boris Peskine, de 1945; adaptação de livro escrito por Malraux, aborda sua participação na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos. (N. T.) 63 Ibid. 64 Jean-Luc Godard, Studio, 156, março de 1995. 65 Ibid.
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por uma impiedosa crítica endereçada ao cinema, que não cessa
de se autocelebrar, de comemoração em comemoração,
esquecendo, negando, apagando seu papel diante da história. Do
sociólogo crítico da juventude de seu tempo, o cineasta se tornou
o profeta das desgraças do cinema, que está a caminho da morte
com sua presentificação frenética que o cega e o leva a esquecer
todo o passado. Por meio dessa posição delicada, em que o
cineasta construiu sua crítica dos tempos históricos, Jean-Luc
Godard se tornou, contudo, se não um estranho historiador ao
menos um assunto para a história.
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