issu.fildarte

download issu.fildarte

of 154

Transcript of issu.fildarte

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    1/154

    1

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    2/154

    2

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    3/154

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTONcleo de Educao Aberta e a Distncia

    Aissa Aonso Guimares

    V i t r i a

    2011

    Filosofia

    da

    Arte

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    4/154

    LDI coordenao

    Heliana Pacheco,Jos Otavio Lobo NameHugo Cristo

    Gerncia

    Isabela Avancini

    Editorao

    Weberth FreitasCapa

    Weberth Freitas

    Impresso

    GM Grfca e Editora

    Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP)(Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    _____________________________________________________________

    Guimares, Aissa Aonso.

    Filosofa da arte / Aissa Aonso Guimares. - Vitria : UFES,Ncleo de Educao Aberta e a Distncia, 2011.

    150 p. : il.ISBN:

    1. Arte - Filosofa. I. Ttulo.

    CDU: 7.01

    G963

    Presidente da RepblicaDilma Rousse

    Ministro da EducaoFernando Haddad

    DED - Diretoria de Educao aDistncia Sistema Universidade Abertado Brasil Programa Pr-LicenciaturaCelso Jos da Costa

    ReitorRubens Sergio Rasseli

    Vice-Reitor e Diretor-Presidentedo Ncleo de Educao Aberta e aDistncia - NeaadReinaldo Centoducatte

    Pr-Reitora de GraduaoPro. Sebastio Pimentel

    Coordenadora do SistemaUniversidade Aberta do Brasil na UFESMaria Jos Campos Rodrigues

    Diretor Pedaggico do NeaadJlio Francelino Ferreira Filho

    Diretora do Centro de ArtesCristina Engel de Alvarez

    Coordenao do Curso deArtes Visuais -Licenciatura naModalidade a DistnciaMaria Gorete Dadalto Gonalves

    Reviso de ContedoMaria Regina Rodrigues

    Reviso OrtogrfcaJlio Francelino Ferreira Filho

    Design GrfcoLDI - Laboratrio de DesignInstrucional

    NeaadAv. Fernando Ferrari, n.514 -CEP 29075-910, Goiabeiras -

    Vitria - ES4009 2208

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

    Imagem da Capa

    A Escola de Atenas, de Raael Sanzio.1506 - 1510. (500 cm 700 cm)Palcio Apostlico, Vaticano.Disponvel em:http://pt.wikipedia.org

    A reproduo de imagens de obras em (nesta) obra tem o carter pedaggico e cientifco, amparado pelos limites do direito de autor no art.46 da Lei no. 9610/1998, entre elas as previstas no inciso III (a citao em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicao, depassagens de qualquer obra, para fns de estudo, crtica ou polmica, na medida justifcada para o fm a atingir, indicando-se o nome do autore a origem da obra), sendo toda reproduo realizada com amparo legal do regime geral de direito de autor no Brasil.

    Copyright 2010. Todos os direitos desta edio esto reservados ao ne@ad. Nenhuma parte deste material poder ser reproduzida,transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, por otocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordenao Acadmicado Curso de Licenciatura em Artes Visuais, na modalidade a distncia.

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    5/154

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    6/154

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    7/154

    Apresentao 6

    I Filosoa, Educao e Arte na Grcia Clssica 10

    Filosoa e Educao na ormao contempornea 10

    Sobre a esttica platnica 23

    Artes poticas no pensamento de Aristteles 45Orientaes de estudo 62

    Filmes indicados 63

    IIAs unes da arte na Idade Mdia 64

    Imagem e Pensamento na Idade Mdia Ocidental 64

    Orientaes de estudo 82Filmes indicados 83

    IIIModernidade e autonomia da arte 84

    Filosoa da Arte e Esttica: um caminho e muitos desvios 84

    Orientaes de estudo 114Filmes indicados 115

    IVArte e Cultura na contemporaneidade 116

    Notas sobre produo e reproduo da arte na Idade Mdia 116

    Orientaes de estudo 131

    Filmes indicados 132

    Notas 133

    Sumrio

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    8/154

    8

    Este livro oi produzido como material de reerncia

    para a disciplina Filosoa da Arte, do Curso de Licencia-

    tura em Artes Visuais, modalidade ead da Universidade

    Federal do Esprito Santo, e organizado com o obje-

    tivo de introduzir a leitura e a refexo loscas sobre

    questes relativas arte.

    A elaborao do material seguiu a proposta da ead, no

    sentido de descentralizar o processo de ensino e aprendi-

    zagem da reerncia do proessor, e buscar a diversidade

    de metodologias; de modo que o livro uma coletnea de

    artigos de dierentes autores , com estilos e abordagens

    particulares sobre temas pertinentes ao campo da arte; da

    losoa; da losoa da arte; da histria da losoa da

    arte e da histria da arte.

    Nossa meta oi reunir dierentes artigos que apresen-

    tasse um panorama de importantes conceitos e autores

    da losoa da arte, em dierentes perodos. As Unidades

    seguem uma sequncia cronolgica por uma opo di-

    dtica, no entanto a proposta aqui no realizar uma

    introduo histria da losoa da arte, mas sim o

    aproundamento da leitura dos textos, que nos permite

    estudar temas signicativos para a introduo do pen-

    samento sobre o belo, a arte e a cultura.

    Desse modo, caber aos alunos investigar os concei-

    tos apresentados nos textos a partir dos pensadores em

    ApreSentAo

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    9/154

    9

    pauta; retomar a histria da arte, para refetir sobre a

    produo artstica da poca e levantar questes para o

    debate na Plataorma Moodle. Este processo ser orien-

    tado e acompanhado, em suas etapas, pelos componen-

    tes que atuam na rede de ensino aprendizagem, proes-

    sor, tutor presencial, tutor a distncia e aluno; assim

    como o contedo do material impresso est vinculado

    ao programa da disciplina e as atividades indicadas na

    Plataorma Virtual Moodle.

    O livro apresenta-se dividido em quatro unidades.

    Cada uma das Unidades est relacionada a um perodo

    especco da losoa da arte, a antiguidade clssica; a

    idade mdia; a modernidade e a contemporaneidade, e

    todas so perpassadas, ainda que indiretamente, pelos

    conceitos: de arte, de belo e de mmesis.

    O que arte? O que belo? O que mmesis? So,

    portanto, as questes ormulares para leitura e com-

    preenso de cada um dos textos; do mesmo modo so

    undamentais as Orientaes para estudo, pesquisa e

    interpretao ao nal de cada Unidade, de modo a a-

    cilitar o estudo e a investigao sobre os textos, seguidas

    de indicaes de lmes para complementar a discusso

    dos temas.

    A Unidade I introduz temas da losoa, da educao e

    da arte na Grcia Clssica, e composta por trs textos;

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    10/154

    10

    o primeiro apresenta uma abordagem geral do surgi-

    mento da losoa e da educao no pensamento grego

    e suas refexes; o segundo reere-se ao pensamento de

    Plato e o terceiro ao pensamento de Aristteles, que

    so os primeiros e principais pensadores gregos clssi-

    cos da losoa da arte. De orma que, os conceitos de

    tchne, mmesis, asthesis, etc. e as dierentes teoriza-

    es do belo e da arte so abordados nos trs artigos que

    compem esta unidade.

    O texto da Unidade II se relaciona com a histria da

    arte, por meio de uma refexo terico-metodolgica so-

    bre os procedimentos comparativos, nas investigaes

    acerca das imagens medievais e das imagens sacras em

    geral. A opo pela perspectiva da Histria das Ima-

    gens ou Antropologia das Imagens para a abordagem

    da arte medieval, se deu pelo dilogo estabelecido entre

    os contedos das imagens e as relaes com a histria

    e o pensamento, assim como pelas amplas possibilida-

    des de investigao no que diz respeito ao contedo da

    arte sacra, e pelo distanciamento da losoa medieval

    a respeito dos temas pertinentes arte, tema que ser

    desenvolvido no decorrer da disciplina Filosoa da Arte

    na plataorma Moodle.

    O texto da Unidade III retoma os conceitos e as questes

    undamentais apresentados na Unidade I, relacionando

    autores da antiguidade, da modernidade e da contem-

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    11/154

    11

    poraneidade no contexto da esttica como experincia

    sensorial do sujeito no mundo, como losoa da arte,

    e como experincia existencial, histrica e poltica.

    Na Unidade IV o artigo introduz a discusso contem-

    pornea da crtica da cultura, colocando em pauta as

    questes relativas reprodutibilidade tcnica, otogra-

    a, ao cinema, expanso da comunicao de massa e

    da indstria cultural, desde sua ormulao pelos pen-

    sadores da Escola de Frankurt at anlises e crticas

    posteriores relativas ao campo terico da comunicao

    e da cultura.

    Este livro o resultado de um empenho conjunto, dos

    autores convidados (Fernando Santoro; Luciana da

    Cunha e Souza; Lus Felipe Bellintani Ribeiro; Maria

    Cristina Correia Leandro Pereira; Priscila Rossinetti Ru-

    noni), e de toda a equipe envolvida na elaborao do

    material didtico do curso de Licenciatura em Artes Vi-

    suais. Constitui um importante elemento pedaggico na

    articulao da rede de ensino e aprendizagem que cons-

    troem a ead, atravs da Plataorma Virtual Moodle; dos

    Plos Regionais; neaad/ufes; da coordenao do Curso

    de Artes Visuais; dos proessores; dos tutores e dos alu-

    nos. Seu contedo apresenta, luz de dierentes escritas,

    tpicos e pensadores undamentais para introduzir os

    estudos no campo da losoa da arte e orientar investi-

    gaes sobre arte e cultura na contemporaneidade.

    Aissa Aonso Guimares(Organizadora)

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    12/154

    12

    Este artigo desenvolve uma refexo acerca das

    condies gerais da educao e da cultura na reali-

    dade contempornea mundializada e cienticizada.

    De modo que retomaremos as origens do ideal de

    ormao e de tica no mundo ocidental a partir

    da losoa grega, como instrumento terico para

    entender o lugar do pensamento e da educao

    como plena ormao cultural.

    A losoa teve seu incio nas ilhas jnicas da

    Grcia Antiga no sculo vi a.C., posteriormente se

    expandiu para o continente (Atenas), para a p-

    lis democrtica, atravs da prtica pedaggica. De

    orma que, em sua origem, a losoa e a educao

    (paidia), enquanto ormao integral do esprito,encontram-se voltadas para a ormao do cida-

    do; e tinham como uno prepar-lo para a vida

    tica e poltica da sociedade. justamente, esta

    onte de valores, da qual se originou a pedagogia, a

    poltica, a tica, a esttica e a cincia, que queremos

    filosofia, educaoeartena Grcia clssica

    I

    Aissa Aonso Guimares

    Filosoa e Educao na ormao contempornea1

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    13/154

    13

    resgatar como undamento para pensarmos a crise

    de valores que vivemos na contemporaneidade.

    Momento em que est posta em questo toda a

    ideia de educao, erudio e cultura construda

    pelos intelectuais, a partir da ideologia europeia

    ocidental, que viam na cincia o caminho natural

    de ascenso da humanidade. O ideal de esprito

    cultivado, a cultura intelectual homogeneizada, a

    antiga esperana de que o desenvolvimento da ci-

    ncia se realizasse paralelo ao desenvolvimento da

    complexidade histrica das sociedades; todo este

    reerencial deve ser repensado diante da radicali-

    zao do mundo cientco e do progresso tecnol-

    gico nas sociedades ocidentais.

    Vivemos um processo de globalizao em que acincia e o discurso cientco esto presentes at

    mesmo no senso comum, e parecem determinantes

    da verdade e da realidade. Esta perspectiva de vida

    se impe como uma ordem planetria, cada vez

    mais ampliada e diundida atravs da tecnologia

    Rodin O Pensador

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    14/154

    14

    e dos meios de comunicao de massa. A comuni-

    cao na atualidade a atividade totalizante que

    invade todos os espaos de relao do homem com

    o mundo. E, neste contexto de domnio cientco,

    nos perguntamos sobre o papel da educao e da

    losoa na sociedade do terceiro milnio.

    Para encaminharmos esta anlise recorreremos

    losoa grega, como instrumento terico para

    pensarmos o sentido dos valores, ou seja, os un-

    damentos que deram origem ao modo de vida oci-

    dental contemporneo. Privilegiamos neste traba-

    lho uma refexo hermenutica2 do pensamento

    grego antigo, porque os conceitos e os ideais oci-

    dentais de educao, tica, poltica, esttica, etc.

    brotam: da mesma onte o esprito humano; na

    mesma poca Antiguidade Clssica e no mesmo

    lugar Grcia.

    Seguiremos a investigao hermenutica destes

    conceitos, desde a palavra oracularaltheia (ver-

    dade) ao surgimento da losoa (no sculo vi a.C.),

    com o estudo dos sicos (pr-socrticos), a peda-

    gogia dos sostas, at os ideais depaidia (educa-

    o) e episteme undados por Plato (427 a.C. - 347

    a. C.) e Aristteles (384 a.C. 321 a. C.)

    Estudar questes que se expressam na nossa reali-dade, implica pensar na vida, ou losoar. Mas em

    uma sociedade pragmtica, dominada pela produ-

    o cientca e pela ideia de produtibilidade e con-

    sumo, gerenciada pelo capital das grandes empre-

    sas, de ato espantoso pensar na vida; anal para

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    15/154

    15

    o que serve o pensamento? Qual ser a serventia

    daquilo que no produz nada de imediato?

    Justamente isto, que no mundo contemporneo nos

    parece um absurdo, era o que na Antigidade legi-

    timava a losoa como conhecimento superior a

    vida contemplativa (bos teorticos), nica atividade

    que tem a nalidade em si mesma. Contudo, para

    refetirmos sobre a crise epistemolgica e tica que

    ameaa todas as ormas de conhecimento na atua-

    lidade, necessrio resgatarmos a trajetria do co-

    nhecimento desde o entendimento mtico (mthos)

    da palavra altheia3 ao conceito de episteme.

    Antes da pedagogia e da losoa ter sua gnese

    na antiguidade, a sabedoria era um privilgio inal-

    canvel, coisa dos deuses. Os nicos homens que

    tinham acesso a ela eram os chamados Mestres da

    Verdade4, representados pelas guras: do adivinho

    aquele que diz as aes dos homens e dos deuses,

    sua palavra traz o uturo para o presente; do po-

    eta o que conta os eitos dos deuses e dos heris,

    atravs das teogonias e epopeias, sua palavra traz o

    passado para o presente; e do rei-da-justia deten-

    tor da justia (dke) e do destino dos homens, cuja

    palavra determina o presente. A palavra dos Mes-

    tres ecaz, pura atividade, az acontecer em todasas dimenses temporais do universo. Eles eram os

    mensageiros dos deuses, intermedirios da sabedo-

    ria, viam o invisvel, a palavra oracular, a altheia

    A losoa s oi assim batizada tardiamente; tal

    palavra no consta nos poemas de Homero e He-

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    16/154

    16

    sodo, de modo que, para designar uma habilidade,

    arte ou competncia, eram usadas as palavras so-

    phs, sopha, traduzidas por sbio, sabedoria. Em

    Herclito aparece o uso do substantivo concreto -

    lsoo, vide ragmento 35: bem necessrio serem

    os homens amantes da sabedoria, lsoos, para

    investigar e testemunhar muitas coisas.5 Contudo,

    segundo a doxograa insegura de Digenes Lar-

    cio6, Pitgoras oi o primeiro a utilizar o substan-

    tivo abstrato, losoa.

    com a juno destes dois verbos gregos:philo

    (amar com amizade, amor admirativo), e os subs-

    tantivos,philos (amigo) ephila (amizade, amor);

    e sophzo (saber) donde vem sophs (sbio), sopha

    (sabedoria), que se nomeia a radicalidade do pen-

    samento. Interrogar a losoa desde j pensar o

    conhecimento e a educao, levando em conside-

    rao o seu carter pedaggico por natureza.

    Foi com o estudo daphsis nas ilhas gregas, que

    teve origem o pensamento dos sicos ou pr-so-

    crticos; a losoa comea pensando a cosmolo-

    gia, a ordem universal - origem e movimento da

    vida material, da qual o homem participa. atravs

    desta atividade do pensamento que surgem as pri-

    meiras escolas do ocidente.As escolas jnicas, atravs dos estudos cosmol-

    gicos, desenvolveram os undamentos dos diversos

    campos do conhecimento. Como exemplo, pode-

    mos citar a Escola de Mileto que desenvolveu, atra-

    vs de seus principais representantes - Tales, Ana-

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    17/154

    17

    ximandro e Anaxmenes, a doutrina dos elementos,

    o estudo sobre a arkh (origem) daphsis, a ma-

    temtica, a astronomia, etc.; a Escola Pitagrica e

    os estudos sobre matemtica, msica, tica, etc.;

    a Escola Atomista, representada por Demcrito e

    Leucipo de Abdera, que pensam a ideia e o movi-

    mento dos tomos, dentre outras. Tambm estabe-

    leceram as condies para o desenvolvimento da

    metasica, atravs das perspectivas da pluralidade

    e da unidade, no pensamento de Herclito de eso

    e de Parmnides de Elia, a partir das discusses

    entre o ser e o devir.

    E oi assim que a losoa se expandiu (sculos

    vi-v a.C.), ainda pag, sem nome de batismo para o

    continente, por intermdio dos sostas. Estes eram

    estrangeiros que chegavam a Atenas para ensinar

    as virtudes necessrias nova ordem social, ins-

    taurada com as reormas de Slon (594 a.C.) e Cls-

    tenes (510 a.C.) - a democracia. Assim era chamada

    a nova organizao dos gnos (amlias, cls) e

    dos dmos (povos, culturas) naplis. A educao

    como ormao cultural completa visava, para os

    gregos, a permitir que se realizasse a aret7.

    Por isso, os cidados deveriam aprender as tc-

    nicas necessrias para bem discutir as questes daplis ou Estado, que uncionava como um media-

    dor de oras para manter o equilbrio entre os di-

    erentes dmos (povos/culturas), evitando a tirania.

    Pois tal equilbrio, a democracia, sustentava-se

    pela educao voltada no apenas para as virtudes

    Raael - A Escola de Atenas

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    18/154

    18

    (arets) sicas e cvicas, mas tambm para as vir-

    tudes estticas e polticas.

    Os sostas, esses undadores da pedagogia demo-

    crtica, eram mestres no ensino das artes e habili-

    dades teis para o homem daplis, pois levavam

    para Atenas o debate jnico travado ente o Ser e o

    Devir; o conhecimento da histria, inventada por

    Herdoto (para narrar as guerras entre os gregos

    e os persas); da culinria e da diettica (distino

    e combinao de alimentos), que deram origem

    medicina; da infuncia da lgica de Parmnides;

    da pluralidade no pensamento de Herclito e ou-

    tros, que iluminaram a composio das tcnicas de

    linguagem, o instrumento da poltica, a retrica,

    arte da persuaso.

    A retrica era exercida enquanto arte ou habi-

    lidade, que podia ser transmitida e apereioada

    com o exerccio virtuoso do esprito de refexo

    do nmos8 , das leis e dos costumes, das tradies

    polticas, intelectuais e religiosas. Neste momento,

    o pensamento volta-se para o comportamento hu-

    mano (sc.V a.C.), coloca-se, pela primeira vez na

    histria das sociedades, a questo da tica, que

    nasce do entendimento da aret (virtude - exceln-

    cia) como nmos (hbito); ou seja, a virtude en-tendida como um costume que pode ser ensinado

    e deve ser exercido, atravs da ormao desde a

    inncia (paidia)9.

    No caso grego, os poetas picos ensinavam e valo-

    rizavam a aret do guerreiro belo e justo, os valores

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    19/154

    19

    aristocrticos do sangue; os trgicos legitimavam a

    vida democrtica undada nas leis, nas assembleias,

    em confito com os ideais de sangue, de amlia;

    e os sostas, os educadores, estrangeiros instru-

    dos, eram aqueles que consolidavam o terreno para

    tal democracia, desenvolvendo nos jovens, junto

    com a retrica (oratria voltada para a persuaso

    poltica), diversas capacidades (tchnes), atravs

    daquela inteligncia prtica a qual os gregos deno-

    minavam mtis10.

    Entretanto, no podemos esquecer que na con-

    cepo da politea, na cidade ideal de Plato,

    contida na Repblica11, excluem-se os sostas e

    os poetas: tanto os picos como os trgicos. O que

    motiva tais excluses , propriamente, a relao

    inseparvel que Plato estabelece entre episteme

    e dxa. Na concepo platnica, a identidade en-

    tre os ideais de bem, belo, justo e verdadeiro ex-

    clui todas as ormas de conhecimento que no se

    comprometam com a descoberta destes valores

    transcendentes. A partir das mximas socrticas

    Sei que nada sei e Conhece-te a ti mesmo"12, o

    discpulo Plato desenvolve a ideia de conceito

    universal (episteme), aquele que est acima de to-

    das as tchnes e mtis. A episteme, portanto, nopode ser ensinada, mas alcanada atravs de um

    mtodo (met - objetivo + ods caminho) a

    dialtica (dialgo/dialegmai verbo: conversar,

    separar, distinguir, explicar, discutir com algum,

    trocar, etc).

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    20/154

    20

    A episteme ope-se, justamente e diretamente, s

    opinies de cunho social, ou seja, as discusses co-

    letivas dos cidados sobre a sociedade (plis). Neste

    contexto, a dxa tida como a opinio vulgar, des-

    provida da universalidade to undamental para o

    pensamento cientco. A dialtica o primeiro m-

    todo a excluir as evidncias da nossa experincia

    imediata, o sensvel passa a ser pura iluso. O mundo

    sensvel deve ser superado para chegarmos ao con-

    ceito, ao mundo puramente inteligvel, nesta esca-

    lada (dialtica) para o conhecimento undamenta-se

    toda dicotomia ocidental entre mundo sensvel (re-

    alidade) e mundo inteligvel (pensamento); corpo e

    alma; teoria (theora) e prtica (prxis/tchne), senso

    comum (dxa) e conhecimento cientco (episteme).

    A metasica platnica e a teoria da reminiscn-

    cia aastam toda pedagogia que no compartilhe

    com o mtodo dialtico da anmnesis, ou do re-

    conhecimento ou re-memorao; caminho condu-

    tor para o grau mais alto do conhecimento da alma

    ou esprito, a episteme, o conhecimento cientco.

    Hoje, vivemos a realizao radical deste valor de

    verdade, idealizado em conceitos, atravs da cin-

    cia; o valor do discurso cientco atrelado ao pro-

    gresso tecnolgico exclui no s toda e qualquermetasica como a prpria losoa.

    Decorridos tantos sculos de histria, pergun-

    tamo-nos - Ser possvel resguardar alguns valores

    e criar condies para uma educao mais huma-

    nitria e menos cienticista, ou ser preciso que

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    21/154

    21

    expulsemos todas as ormas de pedagogia que no

    se submetem ao carter pragmtico e dominador

    do ideal tecno-cientco? Onde habita ainda a -

    losoa, qual o lugar do pensamento refexivo e da

    educao como plena ormao cultural?

    A educao, nesta perspectiva, a viabilidade da

    propagao da existncia social e espiritual de um

    determinado povo, pois participa na expanso e

    no crescimento da vida social, tanto no seu carter

    externo de enmeno, quanto na condio interna

    do desenvolvimento do esprito. Esta cultura do es-

    prito, o humanismo grego, no a descoberta do

    eu subjetivo ou o culto contemporneo do indivi-

    dualismo, mas a gradual tomada de conscincia das

    leis gerais que regem o esprito humano conorme

    a natureza (phsis), o undamento originrio que

    brota da vida em comunidade, a necessidade de

    elevao espiritual e desenvolvimento das capaci-

    dades humanas atravs da cultura.

    A conscincia grega descobre atravs da contempla-

    o daphsis e da escuta do lgos: a educao, a tica,

    a esttica, a cincia e todas as demais artes do esprito.

    Na antiguidade, a sistematizao dos diversos

    campos do conhecimento se deu com Aristteles

    no sculo iv a.C.; para o pensador o conhecimento uma inclinao natural do ser humano, Todos

    os homens, por natureza, tm o desejo de conhecer

    (Livro i - Metasica); e a episteme (origem losca

    da cincia) uma obra do esprito coletivo, assim

    justica Aristteles13 (Livro i i, da Metasica):

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    22/154

    22

    O estudo da verdade , num sentido, dicil e, nou-

    tro, cil. [...] Cada lsoo tem algo a dizer sobre a

    Natureza em si mesma; esta contribuio no nada

    ou pouca coisa, mas o conjunto de todas as refexes

    produz um resultado ecundo.

    A losoa, vida contemplativa (bos teortikos),

    grau mais elevado dos saberes, assegurava todas as

    artes do esprito. Para Aristteles, nela habitava a

    totalidade de todos os saberes. E, mesmo aps tan-

    tos sculos, destituda desta uno , justamente,

    nela que reside a liberdade de suscitar questes que

    perpassam dierentes campos do saber.

    A losoa moderna atravs de Descartes, Kant,

    Hegel e outros pensadores, trabalha no sentido de

    undamentar a conana epistemolgica herdada

    dos pensadores gregos, que estruturou e mapeou

    todo o campo terico no qual avana a cincia

    ainda hoje. Toda dicotomia entre conhecimento

    cientco e senso comum, to legitimada na moder-

    nidade, para armar a superioridade e a condio

    paradigmtica das cincias exatas (e, mais especi-

    camente, da matemtica), encontra suas origens na

    ideia grega de episteme, ormulada por Plato, em

    oposio dxa.Na crise de valores que vivemos na contempo-

    raneidade, paradoxalmente, nos deparamos com a

    distncia e a proximidade dos valores e dos pensa-

    mentos que undamentaram a educao, a cultura

    e o conhecimento desde a Antiguidade.

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    23/154

    23

    O potencial tecnolgico no qual se traduziu os co-

    nhecimentos cientcos ao longo destes sculos, no

    atinge apenas a tcnica e a tecnologia, mas todo dis-

    curso sobre elas, pondo em xeque toda conscincia

    losca e conana epistemolgica; assim como

    todo ideal de educao, de erudio e de cultura,

    construdo pelos intelectuais, a partir da ideologia

    europeia ocidental, que viam na cincia o caminho

    natural de desenvolvimento do esprito humano.

    O ideal de uma cultura intelectual homogeneizada,

    alentada pelo modelo de racionalidade cientca

    com princpios epistemolgicos e regras metodol-

    gicas preestabelecidas, que se estendeu aos estudos

    humansticos, a partir do sculo xviii, est, hoje,

    posto em questo, assim como o mito burgus do

    esprito cultivado; a uno da educao, como

    meio de constituio do ser social no indivduo; a

    antiga esperana de que o desenvolvimento da cin-

    cia se realizasse paralelamente ao desenvolvimento

    da complexidade social, todo este reerencial hist-

    rico e terico, est hoje posto em questo.

    Esta desterritorializao dos acontecimentos e da

    prpria histria nos remete ao que Nietzsche apon-

    tou como o aproundamento do processo histrico

    do Niilismo Ocidental, quando nem mais Deusnem a moral geram valores capazes de conter o

    desenvolvimento da cincia, que conduz ao esva-

    ziamento dos signicados (contedos), ao total es-

    gotamento dos valores tradicionais, a ascenso do

    niilismo europeu.

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    24/154

    24

    nesta perspectiva, quando a metasica tecno-

    cientca domina todos os valores ticos e episte-

    molgicos, que Nietzsche aponta para uma Trans-

    valorao de todos os Valores, para o retorno aos

    princpios originrios da vida, anteriores histria

    (judaico-crist) e construo do sujeito social.

    Na estrutura social contempornea, o papel do Es-

    tado e seus desdobramentos, a educao; a alta tecno-

    logia; o capital transnacional; a globalizao; todos

    reicados pela eetiva e ecaz atuao dos sistemas

    de comunicao de massa ou dos media modernos,

    impem-se como questes to explcitas e emergentes,

    que parece no dar mais tempo de pens-las. De ato,

    o tempo e o espao histrico parecem ter chegado ao

    esgotamento, como sugere Baudrillard, para dar pas-

    sagem ao tempo e ao espao de simulaes, no qual

    avana a cincia, atropelando as culturas, as ticas

    e as estticas, em nome de uma diuso planetria.

    precisamente o que vivemos nas sociedades

    actuais, que se empenham em acelerar todos os corpos,

    todas as mensagens, todos os processos, em todos os

    sentidos e que, com os media modernos, criaram para

    cada acontecimento, para cada narrativa, para cada

    imagem, uma simulao de trajetria at o innito14.

    Tais simulaes espao-temporais surgem como

    desdobramentos do desenvolvimento cientco,

    que tem a tecnologia como agente modicador do

    sujeito, da tica, da sociedade.

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    25/154

    25

    E todo processo educacional se encontra subme-

    tido ao poderoso domnio da cincia; saber e poder

    se identicam na estrutura social a partir do dis-

    curso das competncias. E, neste movimento totali-

    zante, a cincia tende a mediar atravs do discurso

    legitimado, da ala do proessor especialista, a ex-

    perincia da dicotomia entre o cientco e a vida

    cotidiana. Por isso, optamos por resgatar o sentido

    primeiro da educao, em que o processo educacio-

    nal antes de tudo umaprxis social, que est dire-

    tamente relacionada ormao do cidado. E onde

    o proessor age como mediador interativo entre o

    aluno e o conhecimento e no como transmissor

    legitimado do conhecimento cientco.

    Nesta perspectiva, entendemos a educao de

    orma transdisciplinar e humanstica, como um

    processo que busca os undamentos e a constru-

    o do conhecimento, da tica, da esttica. Pensar

    a educao e o conhecimento como exerccio co-

    letivo ouprxis social tambm resgatar a peda-

    gogia como arte democrtica, ou ormao integral

    do esprito humano paidia (ormao).

    Sobre a esttica platnica1Lus Felipe Bellintani Ribeiro

    O ponto de partida

    Esttica platnica... No seria esse ttulo uma

    espcie de oximoro, como ogo rio ou noite

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    26/154

    26

    ensolarada? Quem aceitar a provocao dessa

    pergunta tender a pensar que a sugerida incon-

    gruncia entre esttica e platonismo se deve bem

    conhecida hostilidade de Plato rente arte e aos

    artistas, simbolizada emblematicamente pela no

    menos conhecida expulso do poeta da cidade,

    operada na Repblica, e pela consequente passa-

    gem do cetro dapaidea s mos do lsoo. Em-

    bora isso tambm seja, em alguma medida, correto,

    a razo daquela provocao provm de uma con-

    siderao do prprio corao, diga-se, metasico

    da losoa platnica; a saber, do sempre reiterado

    desprestgio da sensao e do sensvel em avor

    da inteligncia e do inteligvel, isto , do enalteci-

    mento do notico puro em detrimento do esttico,

    em sentido rigoroso, como aquilo que relativo

    sensao [asthesis].

    [...] h muitas coisas belas e muitas coisas boas

    e outras da mesma espcie, que dizemos que

    existem e que distinguimos pela linguagem. [...]

    E existe o belo em si, e o bom em si, e, do

    mesmo modo, relativamente a todas as coisas

    que ento postulamos como mltiplas, e,

    inversamente, postulamos que a cada uma

    corresponde uma idia, que nica, e

    chamamos-lhe a sua essncia. [...]

    E diremos ainda que aquelas so visveis, mas

    no inteligveis, ao passo que as idias so

    inteligveis, mas no visveis.2

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    27/154

    27

    E, no entanto, essa dupla acepo de esttico e

    de sua respectiva recusa, no caso de Plato, que

    no conhece investigao nem especicamente es-

    ttica nem especicamente metasica, desdobra-se

    a partir de uma nica onte, a um s tempo esttica

    e metasica, se se quer. No toa que o recal-

    camento denitivo da arte se undamente no ato

    de a ela corresponder o modo-de-ser nmo numa

    escala trina que aparta o ser uno e verdadeiro da

    ideia de seus mltiplos participantes, e mais ainda

    das meras imitaes desses participantes, aastadas

    trs pontos da verdade.

    Acaso no existem trs ormas de cama? Uma que

    a orma natural, e da qual diremos, segundo entendo,

    que deus a coneccionou. Ou que outro ser poderia

    az-lo?

    Nenhum outro, julgo eu.

    Outra, a que executou o marceneiro.

    Sim.

    Outra eita pelo pintor. Ou no?

    Seja.

    Logo pintor, marceneiro, deus, esses trs seres presi-

    dem aos tipos de leito.

    So trs.

    [...]

    [...] deus, querendo ser realmente o autor de uma cama

    real, e no de uma qualquer, nem um marceneiro qualquer,

    criou-a, na sua natureza essencial, una.

    Assim parece.

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    28/154

    28

    Queres ento que o intitulemos artce natural da

    cama, ou algo semelhante?

    justo, uma vez que oi ele o criador disso e de tudo

    o mais na sua natureza essencial.

    E quanto ao marceneiro. Acaso no lhe chamaremos

    o artce da cama?

    Chamaremos.

    E do pintor, diremos tambm que o artce e autor

    de tal mvel?

    De modo algum.

    Ento que dirs que ele , em relao cama?

    O ttulo que me parece que se lhe ajusta melhor o

    de imitador daquilo que os outros so artces.3

    A condio ontolgica (desavorvel) da mi-

    mese, alis, o que permite que, a um s golpe,

    alm da arte, tambm a sostica sucumba pre-

    tenso de hegemonia da losoa.

    ESTRANGEIRO: E ento, quando se arma que tudo

    se sabe e que tudo se ensinar a outrem, por quase

    nada, e em pouco tempo, no caso de pensar que

    se trata de uma brincadeira?

    TEETETO: Creio que sim inteiramente.

    ESTRANGEIRO: Ora, conheces alguma orma de

    brincadeira mais sbia e mais graciosa

    que a mimtica?

    [...]

    Assim, o homem que se julgasse capaz, por uma

    nica arte, de tudo produzir, como sabemos, no

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    29/154

    29

    abricaria, anal, seno imitaes e homnimos das

    realidades. Hbil, na sua tcnica de pintar, ele poder,

    exibindo de longe os seus desenhos, aos mais ingnuos

    meninos dar-lhes a iluso de que poder igualmente

    criar a verdadeira realidade, e tudo o que quiser azer.4

    E de novo, por outro lado, na elevao da con-

    dio ontolgica da asthesis que estaria o erro de

    Protgoras e seu squito de poetas, sicos e sostas,

    conorme a clebre exposio do Teeteto5 : Ao que

    parece, pois, trata-se de maniesta impossibilidade

    armar que sensao e conhecimento so idnticos.

    E, no livro gama daMetasica6 de Aristteles, l-se:

    Porque, certamente, conundem pensamento e sensa-

    o, e esta com uma alterao, dizem que o enmeno

    segundo a sensao verdadeiro por necessidade.

    Por tais razes, antes de sair cata de um con-

    tedo doutrinrio para uma eventual esttica pla-

    tnica, deve-se perguntar se o que quer que seja

    que merea a adjetivao de platnico no seria,

    antes, antiesttico por excelncia. possvel que a

    pura e simples ideia de uma esttica seja como

    legislao (ainda que dissimulada sob a orma de

    descrio) losca da arte (legislao no arts-

    tica da arte), seja como refexo racional acerca dasensibilidade (refexo no sensvel da sensibili-

    dade) j encerre em si o paradoxo que se quer ver

    no platonismo especicamente. Por ora, entretanto,

    cabe apenas constatar que to bvio quanto dever

    toda histria da esttica comear por Plato o

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    30/154

    30

    ato de ser ele at hoje o espantalho mor de todas

    as investidas antimetasicas interessadas na reabi-

    litao da arte, da sostica, do corpo, do devir, do

    mundo sensvel, da nitude, do que or, e que isso

    insinua uma ambivalncia digna de considerao.

    O incio da reverso

    Uma, por enquanto, hipottica recusa do hipot-

    tico oximoro acima sugerido comea timidamente,

    como no poderia deixar de ser, com a consta-

    tao de que, ao azer da arte tema explcito, no

    bojo de uma discusso de primeira ordem acerca

    da pedagogia apropriada a uma determinada or-

    dem poltica proposta, por sua vez, no intuito de

    encontrar a essncia da justia e da injustia, para

    alm de suas eventuais vantagens e desvantagens,

    e isso, em ltima instncia, como ator de xito

    ou malogro da vida Plato levou muitssimo a

    srio os poderes da arte em todos esses domnios.

    Falar, bem ou mal, sobre algo j acontecimento

    da histria da logia desse algo.

    claro que levar a srio a arte por seus poderes

    pedaggicos, polticos, ticos, etc. pode signicar

    exatamente no lev-la a srio. Far-se-ia mais pelaarte, talvez, indagando pelos poderes artsticos de

    toda e cada pedagogia, poltica, tica. Mas como

    decidir, em se tratando de Plato, e a rigor de toda

    cultura pr-moderna, o que o determinante e o

    que o determinado? Ora, numa ordem em que o

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    31/154

    31

    mbito da arte , de sada, inseparvel dos demais

    mbitos da vida, todo linguajar que parte da sepa-

    rao para depois tentar dar conta de uma uso

    originria ou uma determinao de c para l ou

    de l para c racassa inclusive este, que j se

    expressou em termos de mbitos discernveis.

    Limitaes de linguagem parte, registre-se ape-

    nas o carter nada simples da situao em que o

    processo de emancipao e autonomia da arte,

    que deveria corresponder enm irrupo do arts-

    tico propriamente dito, leva ao seu aniquilamento

    pela necessidade de libertao de todo resqucio

    essencialista, seja quanto ao sujeito artista, seja

    quanto ao objeto obra de arte ou quanto ao m-

    todo. No que diz respeito a Plato (e a rigor a toda

    cultura pr-moderna), inversamente, o enreda-

    mento da arte nas malhas dos demais mbitos su-

    prarreeridos deve ser compreendido no como re-

    duo condio de meio para um m alheio, mas

    como rede originria de uma vida no seccionada,

    em que nem a arte, nem nada mais est livre do

    restante e, por isso mesmo, vigora plenamente em

    tudo, como meio e m, recproca e simultaneamente.

    [...] a boa qualidade do discurso, da harmonia,

    da graa e do ritmo dependem da qualidade

    do carter [...].7

    [...] a educao pela msica capital, porque o ritmo

    e a harmonia penetram mais undo na alma e aetam-

    na mais ortemente [...].8

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    32/154

    32

    Plato no desdenha os poderes da arte, em ltima

    instncia, porque tambm no desdenha os poderes

    da sensibilidade. Nada que chegue aos olhos e ou-

    vidos dos mais jovens inoensivo no processo de

    ormao de suas almas. Por isso, aps legislar sobre

    as partes da msica, no livro ii i da Repblica, par-

    tindo do princpio de que h um nexo intrnseco en-

    tre o tipo de msica e o tipo de carter, virtuoso ou

    vicioso, estende os preceitos da legislao pintura,

    tecelagem, arte de bordar, arte de construir

    prdios e, at mesmo, marcenaria e abricao

    dos demais utenslios. Bem dierente a condio

    hodierna. No obstante sejam hoje todas as quin-

    quilharias cotidianas de alguma maneira esteticiza-

    das, nem mesmo a arte que ainda se pretenda mais

    do que simples indstria do entretenimento chega a

    sugerir o menor abalo na posio ontolgica domi-

    nante. E o discurso tedioso da bonomia pr-cultura,

    a sosticao tediosa dos meios artsticos e das

    prprias obras completam-se com o desleixo pela

    orma dos apetrechos mais ordinrios, pela tex-

    tura dos pisos para o acolhimento dos ps e pela

    atmosera dos ambientes, sob teto e luz quaisquer.

    A considerao de Plato pela arte e pelo sensvel,

    porm, no se restringe a um respeito desconadoe resignado diante de seus poderes inquestionveis.

    Certamente, na hostilidade diante do rival, reco-

    nhecido como tal, j vai boa dose de estima diante

    de um igual. Mas no apenas na condio de opo-

    sitor Plato se pe no mesmo patamar dos artistas.

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    33/154

    33

    Artista ele mesmo, no queimou junto com suas

    tragdias o talento de tragedigrao. Se o alcance

    do preceito do livro ii i da Repblica, segundo o

    qual se deve banir a msica inteiramente baseada

    na imitao como a tragdia e a comdia, e a que

    mistura narrao e imitao, como a epopeia, para

    reter apenas a simples narrao osse evidente e

    incontroverso, por que ento a prpria obra de Pla-

    to, baseada no dilogo direto, no o aplica? No

    seria a sugesto original do nal do Banquete, de

    que deveria caber a um mesmo homem a composi-

    o de tragdias e comdias, reerncia ao prprio

    Plato, autor, anal de contas, dos discursos de

    Aristanes e Agato?

    O ato evidente de os textos platnicos pertence-

    rem tanto histria da literatura quanto da lo-

    soa acilita deveras a apresentao de um Plato

    artista. Muito mais importante que isso, entretanto,

    reconhecer Plato como expoente dessa tarea

    histrica que a inveno da prpria losoa. No

    havia, quela altura, nenhuma histria da litera-

    tura que corresse separadamente de uma histria

    da losoa. A conuso do elemento mtico, no

    seio da obra de Plato, com o elemento dito racio-

    nal mais o testemunho do processo de criao deuma tradio por vir do que incipincia perdovel

    de estgio primitivo de um dado necessrio. Ora,

    a razo que opera naturalmente as separaes

    exatamente a obra de arte dessa criao: o rebento

    no pode ser o critrio de julgamento do parto, por-

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    34/154

    34

    que o critrio deve existir antes daquilo que julga.

    Tudo isso ainda pouco: Plato legislador-peda-

    gogo reverente ao poder da msica. Plato mimeta

    de todas as suas personagens, inclusive das anti-

    platnicas, mimeta de Grgias, de Protgoras, de

    Trasmaco, de Hermgenes e de Crtilo, de Lsias e

    de Scrates com e sem inspirao, de Eutidemo e

    de Dionisodoro... Plato criador, pelo dilogo mi-

    mtico, da losoa como gnero literrio mpar.

    Tudo isso pouco porque ainda v o artstico da

    obra platnica pela posio do sujeito Plato,

    ou pelo carter do remate de sua mo. preciso

    v-lo, porm, no prprio contedo dessa obra, na

    sua objetividade.

    preciso problematizar acima de tudo o conceito

    de imitao, j que no contexto do dilogo a par-

    tir do qual normalmente se depreende a esttica

    platnica, a Repblica, somente a msica, par-

    cial ou totalmente, mimtica que rejeitada. Uma

    msica puramente diegtica (narrativa) no o

    no livro ii i, bem como no seria no livro x uma

    pintura que contemplasse diretamente a ideia e

    no um homnimo sensvel, e que, com isso, dei-

    xasse de ser mimtica para se elevar condio

    de demirgica dois, e no mais trs pontosaastada da verdade.

    Quanto ao problema da imitao em Plato, con-

    vm distinguir, de um lado, a ocorrncia, aparente-

    mente controlada, e o respectivo campo semntico

    dos substantivos mmesis e mmema, do verbo mi-

    David A Morte de Scrates

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    35/154

    35

    momai, do adjetivo mimetiks, , n e derivados,

    e, por outro lado, a presena, nada espordica, de

    nveis distintos de experincias caracterizveis

    como imitao, ainda que no expressas por essas

    palavras. claro que, se o seu emprego de ato

    controlado por Plato, o intrprete no deve ser

    ingnuo a ponto de buscar semelhana onde de-

    veria buscar dierena. Seja como or, o primeiro

    e mais elementar desses nveis de experincia, e

    pelo qual os dois sentidos de esttica se tocam de

    modo igualmente elementar, o ato de os homens

    ormarem o seu ser, naturalmente inorme, pela

    imitao das ormas circunstantes, notadamente

    pelo mundo cultural j ormado pelos outros ho-

    mens. A pedagogia, em sentido rigoroso como a

    conduo das crianas, questo cara a Plato

    por ser a instncia capaz de operar sobre o crculo

    conservador da tradio cultural, pelo qual cada

    um educa os demais e por eles educado vale

    dizer, serve de modelo para a imitao dos demais

    e os imita. Colorindo, sonorizando, perumando a

    circunstncia da criana, se lhe molda o carter de

    modo correspondente, pois ela h de imitar o que

    v, ouve, sente.

    Interessante: a ormao do carter da crianapor via esttica comparvel ao processo de gra-

    vura e escultura. Imprimir [ensemano] o carter

    na alma e moldar [plsso] a alma so as expres-

    ses utilizadas. Como o demiurgo molda o mundo

    no Timeu, como o onomaturgo nomoteta molda

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    36/154

    36

    os nomes no Crtilo, e como o nomoteta Scra-

    tes molda com seus interlocutores, na Repblica, a

    politea que d nome ao dilogo, assim tambm o

    pedagogo dessapolitea (que o prprio nomoteta,

    j que estabelecer sua lei outra coisa no seno

    educar para essa lei) molda as almas das crianas

    e jovens que sero seuspoltai. O resultado dessa

    modelagem, o homem belo e bom, obra boa de

    contemplar pelo simples prazer de sua ruio. O

    resultado desse processo de imitao de paradig-

    mas ministrados conscientemente aos sentidos

    ele mesmo paradigma para outras imitaes.

    Logo, quem zer convergir, intimamente, na sua

    alma, boas disposies, que, no seu aspecto externo,

    condigam e se harmonizem com aquelas, por

    participarem do mesmo modelo, tal pessoa ser a

    mais bela viso para quem puder contempl-la?9

    Aquilo que posto em relao nos processos de

    engendramento supracitados, por intermdio dos

    respectivos intermedirios, no pouca coisa,

    bem se sabe, no contexto da metasica platnica.

    Trata-se da (re)ligao de sensvel e inteligvel, al-

    mejada pela doutrina da participao, como des-dobramento da doutrina da separao previamente

    admitida. O dilogo Parmnides mostra quo cons-

    ciente estava Plato, pelo menos a partir de certo

    momento de sua trajetria, das consequncias ca-

    tastrcas de uma separao sem a participao

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    37/154

    37

    correlata: sensvel e inteligvel seriam instncias

    paralelas incomunicveis, nem os homens co-

    nheceriam as ideias, nem, pior, deus conheceria

    as coisas do mundo humano. Da ser preciso de-

    monstrar a participao para evitar uma espcie

    de ceticismo bem peculiar. Da haver o platonismo

    tombado eetivamente nesse ceticismo diante da

    impossibilidade daquela demonstrao. Para Aris-

    tteles, a insucincia nesse terreno que sela a

    impropriedade da infao ontolgica operada pela

    doutrina da separao, espcie de duplicao.

    Os que pem as idias como causas, buscando primeiro

    apreender as causas dos entes daqui, aduziram depois

    outros, iguais em nmero a esses, como se algum,

    querendo contar, achasse no ser capaz de contar

    menos entes, e contasse, depois de az-los mais.10

    E dizer que estas (as idias) so modelos e as

    outras coisas participam delas alar no vazio

    e dizer metoras poticas.11

    Das dierentes modalidades de participao ex-

    perimentadas no Parmnides e malogradas diante

    das crticas do eleata, mais as mencionadas de

    passagem no Fdon e no investigadas, participa-o por presena [parousa] e por comunidade

    [koinona], mais as pressupostas em ormulaes

    que no a problematizam, aquela que, margem

    das objees, expressa a ora do dogma a que se

    vale da imagem mtica de um artce transerindo

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    38/154

    38

    para uma espcie de matria inorme previamente

    disponvel as propriedades de ormas contempla-

    das como modelos. Quase nunca, para caracterizar

    esse processo, so empregadas as palavras da am-

    lia de mmesis. A noo central a de semelhana

    e de imagem: as coisas so semelhantes [homoi-

    mata] s ideias, so imagens delas [eikasthnai

    autos] como mostra a tentativa mais contundente

    do Parmnides de caracterizar o modo de ser da

    separao e da participao:

    Por um lado, as ormas em si, como modelos, jazem na

    natureza, por outro lado, as outras coisas se parecem

    com elas e lhes so semelhantes, e a participao como

    tal das outras coisas nas ormas no consiste seno em

    se parecerem.

    [T mn ede tata hsper paradegmata estnai en t

    phsei, t d lla totois eoiknai ka enai homoi-

    mata, ka he mthexis hate tos llois ggnesthai tn

    eidn ouk lle tis eikasthnai autos]12

    Sempre presente tambm a meno ao ato de

    o artce olhar [blpein], contemplar, manter os

    olhos xos no paradigma. A ligao propriamente

    dita entre as duas instncias, a tal transerncia, dita com o verbo apodidnai, embora a ao

    como tal seja caracterizada simplesmente como

    produzir [poien], estabelecer [tithnai], operar

    [apergzesthai]. No Timeu, de acordo com a passa-

    gem supracitada do Parmnides, o produto, a obra

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    39/154

    39

    em questo, isto , o mundo, dito um eikna tins,

    imagem de algo. No entanto, h uma ocorrncia,

    sim, em que a obra do artce dita o resultado de

    uma imitao, um mimema. No nal do Crtilo,

    Scrates arma:

    O nome , ento, como parece, uma imitao pela

    voz daquilo que ele imita.

    [nomrestn, hos oike, mmema phon ekenou

    ho mimetai]13

    Que Plato tenha percebido imediatamente nessa

    expresso o perigo de equivocidade parece claro

    pelo ato de azer Scrates esclarecer de pronto

    que a imitao pela voz em questo se distingue

    daquela operada pela pintura e pela msica. Para

    reerir-se galinha, por exemplo, no o caso de

    imitar seu cacarejo, como azem as crianas. Trata-

    se de uma imitao da essncia [ousa] da coisa em

    questo: o nome diz aquilo que a coisa .

    Essa qualicao permite alinhavar mais um sen-

    tido de imitao, dierente 1. da repetio que as

    crianas realizam das circunstncias que lhes so

    proporcionadas e 2. da mera reproduo da apa-

    rncia desprovida de essncia que a arte realizados entes. Com esse terceiro sentido, de ordem me-

    tasica, ganha-se a possibilidade de repor o pro-

    blema da rejeio do segundo sentido, pelo qual se

    d a rejeio da arte ou pelo menos da maior parte

    da arte, que mimtica. Deve-se, porm, evitar

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    40/154

    40

    conuso intil nesse ponto, pois o prprio Plato

    nunca aprovou o apego demasiado s palavras em

    detrimento da preciso conceitual. A dierena en-

    tre o processo de produo originria das coisas

    e nomes do mundo, como imagens semelhantes

    aos paradigmas, e o processo de produo derivada

    de simulacros, pela imitao das coisas e nomes

    do mundo, parece assinalada com toda veemn-

    cia por Plato. Mas ele assinalou tambm que essa

    mxima dierena reside num deslocamento m-

    nimo como o animal mais dierente do co, o

    lobo, tambm o mais parecido. Alis, para car

    na oposio lsoo-sosta que vale, entretanto,

    tambm para a oposio lsoo-artista, pois que

    ambas se reduzem oposio lsoo-imitador

    diga-se de passagem que a dierena mxima entre

    o cone e o antasma, entre a cpia e o simu-

    lacro, ocorre no interior do universo da idolopoese,

    da produo de imagens, pois ambos so ima-

    gens, s que:

    E esta primeira parte da mimtica no deve

    chamar-se pelo nome que anteriormente lhe

    havamos dado, arte de copiar? [...]

    Mas que nome daremos ao que parece copiar o

    belo para espectadores desavoravelmente

    colocados, e que, entretanto, perderia esta

    pretendida delidade de cpia para os olhares

    capazes de alcanar, plenamente,

    propores to vastas?14

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    41/154

    41

    A meno a essa passagem do Sosta comea a

    indicar o ponto aonde se queria chegar. Ora, se o

    que distingue o produtor de cpias do produtor

    de simulacros no uma questo de contedo

    (ontologia, sica, poltica, tica, etc.), nem

    de mtodo (dialtica e por que no? retrica,

    com inteno erstica e catrtica), mas uma ques-

    to de perspectiva, de eeito-perspectiva, ento,

    ainda que tudo em Plato seja regrado, em ltima

    instncia, por um critrio metasico, adequao

    ou inadequao ideia, sua metasica ela mesma ,

    em ltima instncia, denida por critrios estticos,

    e o ulterior ao ltimo (ou o anterior ao primeiro)

    o verdadeiro primeiro-ltimo, o princpio.

    O remate

    Qual , anal, a ndole da teoria das idias, to

    atacada, de Aristteles a Quine, por proceder a uma

    multiplicao desnecessria de entes? Uma res-

    posta a essa pergunta comea a surgir quando se

    percebe que a rejeio desse ltimo ao que parece,

    a seus olhos, barroquismo ontolgico, deve-se na

    verdade a uma preerncia esttica: o gosto por

    paisagens desrticas. Fosse, entretanto, apenas ocaso de opor uma ontologia minimalista a uma

    rococ j se teria uma oposio de ordem est-

    tica. Mas a verdade que a teoria das ideias brota

    exatamente de uma reclamao de economia, de

    enxugamento, diante do turbilho pr-socrtico

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    42/154

    42

    em perptuo devir e do torpor que sua experincia

    proporciona. A ideia ruto de uma operao mi-

    nimizante: no se trata de car com dois mundos

    no lugar de um, no se trata de car com mais

    mundos, mas de car com menos, com um nico

    mundo e apenas com aquilo que dele se deixa re-

    ter nos traos que distinguem uma coisa de ou-

    tra. De cada classe povoada por innitos exem-

    plares, que que apenas um, que , em todos, o

    mesmo exemplo, que o universal dizvel, j que

    o absolutamente particular innito e indizvel.

    Que dizer, ento, do timo de ida/edos? H oxi-

    moro maior do que idia invisvel? No curioso

    que o conceito undamental da metasica plat-

    nica tenha sido tirado de uma experincia sensitiva,

    a viso? Na verdade, o desprestgio de uma viso

    esttica em avor de uma viso notica se deve

    no ao desprestgio da viso como tal, mas ao ato

    de a nesis, mais que a asthesis, realizar plena-

    mente aquilo que caracterstico da viso, a saber,

    conter cada coisa no seu limite distintivo, mostrar

    cada coisa em sua essncia prpria, nominvel por

    seu nome prprio.

    Que dizer, mais ainda, daquela ideia que est

    acima de todas as ideias, que sequer uma essn-cia [ousa], mas um poder de essencializao, que

    no mais uma orma iluminada no cu das or-

    mas, mas um poder de iluminao [katlampsis]?

    Se possvel denir o bem, to somente por esse

    poder. Como dizer, ento, que a arte em Plato

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    43/154

    43

    sempre avaliada a reboque de tica, se o bem, que

    undaria essa ltima, expressa to somente a re-

    clamao por conteno e nitidez, isto , uma exi-

    gncia de que cada ente realize as possibilidades

    de sua entidade at o limite que a determina como

    tal, sem negligenci-lo nem pretender ultrapass-

    lo? Melhor seria dizer que a tica platnica que

    determinada por uma esttica, diga-se, apolnea.

    A meno explcita a Apolo e a vitria de sua m-

    sica sobre do stiro Mrsias, bem como a reite-

    rada meno ao orculo de Delos como instncia

    decisria ltima da convenincia ou no de cada

    lei proposta na Repblica, so apenas sintomas de

    supercie. O desdobramento poltico desse impera-

    tivo esttico o preceito segundo o qual, naplis

    em questo, cadapoltes realiza uma nica obra,

    segundo a sua natureza e no tempo certo.

    Um pequeno parntese antes de prosseguir:

    claro que os indivduos doprincipium individu-

    ationis em questo, no caso da metasica, so as

    ormas, que a rigor no so indivduos em sen-

    tido estrito e sim universais. Mas as ormas entre

    si, em suas relaes horizontais, so os habitan-

    tes, unos e mpares, de um mundo plural em

    seu conjunto. Tambm na cidade o que importa a dierena do rgon, que em si j uma classe:

    o lavrador, o pedreiro, o tecelo... Suas die-

    renas, alis, tambm se amalgamam at que sur-

    jam os grandes traos dierenciais que importam:

    os clebres trs gne da Repblica, as trs gran-

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    44/154

    44

    des personagens dessa histria. De resto, mesmo

    o indivduo s pode ser reconhecido como tal se

    contiver um mnimo de universalidade, isto , se

    puder ser reconhecido como um e mesmo em pelo

    menos duas situaes dierentes. O indivduo que

    pode ser apontado e nomeado j a espcie nma.

    Note-se que essa ambivalncia resta guardada na

    amiliaridade etimolgica das palavras ida e idi-

    tes, orma e indivduo, espcie e aspecto que dis-

    tinguem e identicam Fulano e a sua classe, bem

    como na prpria condio do mito, peripcia de in-

    divduos que conta a saga universal dos prottipos.

    Retornando questo do carter esttico da on-

    tologia platnica e seus desdobramentos em todos

    os nveis, vale lembrar que no so poucas as ana-

    logias que Plato az de diversos assuntos com ai-

    nas diversas de diversos artistas. J se alou da pe-

    dagogia como gravura e escultura. J se alou do

    prprio princpio do mundo e da linguagem como

    demiurgia, comparvel arquitetura, carpintaria,

    olaria. No incio do Timeu, que apresenta um

    resumo da Repblica, esta caracterizada como

    um grande quadro, exuberante, mas imvel, com

    o que surge a reclamao por v-lo em movimento.

    A reclamao por esse kinematgraphos permitever at cinema em Plato. O Crtias seria o roteiro

    desse primeiro lme. Mas nenhuma passagem

    mais exemplar do esprito da obra platnica como

    esttica do limite do que a smile da cidade com

    uma esttua pintada:

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    45/154

    45

    Era como se estivssemos a pintar uma esttua e

    algum nos abordasse para nos censurar, dizendo

    que no aplicvamos as tintas mais belas nas partes

    mais ormosas do corpo (de ato, os olhos, sendo a

    coisa mais linda, no seriam sombreados com cor de

    prpura, mas a negro). Parece que nos deenderamos

    convenientemente replicando: Meu caro amigo, no

    julgues que devemos pintar os olhos to lindos que

    no paream olhos, nem as restantes partes, mas

    considera se, atribuindo a cada uma o que lhe

    pertence, ormamos um todo belo15.

    A arte propriamente dita que emerge do contexto

    em que vigora uma metasica aparentemente hi-

    perblica expressa por um talento alegrico como

    o do Fedro, , na verdade, to simples que preciso

    que se advirta que as multides ho de se entediar

    diante dela:

    Ora, o que contm material para muita e variada imita-

    o a parte irascvel; ao passo que o carter sensato e

    calmo, sempre igual a si mesmo, nem cil de imitar

    nem, quando se imita, cil de compreender, sobre-

    tudo num estival e perante homens de todas as prove-

    nincias, reunidos no teatro. Porquanto essa imitao

    seria de um sorimento que, para eles, estranho.16

    Enm, a navalha de Ockam, princpio to caro

    matemtica e cincia ocidental, matemtica por

    excelncia, incua a essa losoa que undou

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    46/154

    46

    a epistme e a hegemonia da epistme atravs do

    hipostasiar da matemtica. Dir-se-ia que hiposta-

    siar a matemtica j congura barba suciente

    para justicar a necessidade daquela navalha. Mas

    a vigncia dessa hipstase independe de posio

    terica explcita. A exuberncia alegrica do texto

    platnico, que, anal de contas, culmina no elogio

    sobriedade lacnica embalada pela simplicidade

    da ctara em escala drica, nesse domnio bem

    menos metasica que o imprio diuso da cincia

    e da tcnica modernas.

    A verdadeira separao que a doutrina da separa-

    o pe em jogo no a que separa o mundo sen-

    svel do mundo inteligvel, mas a que separa cada

    ente dos outros entes, sem o que no valem os princ-

    pios de identidade e de no-contradio. E porque

    h uma instncia em que tudo est misturado em

    tudo [memchtai pn en pant], e Plato sabe disso,

    que o lsoo postula uma outra instncia em que

    cada coisa est separada das demais. Ser verdadeiro

    ou ser also pode at ser questo de gnosiologia e l-

    gica, mas determinar o verdadeiro pela clareza e dis-

    tino, isso no mais lgico nem se inere de uma

    realidade em si: cria-se por uma deciso esttica,

    j que o ser no mais distino que indistino.Mas os que seguem inercialmente no rastro de

    uma deciso criadora tendem a perder de vista o

    carter de vir-a-ser de seu ser e a tom-lo por b-

    vio. Assim o Ocidente essa grande obra de arte

    que consiste na compreenso histrica que v e az

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    47/154

    47

    ver cada ente como idntico a si, como sendo o que

    e no sendo o que no , indivduo discreto con-

    tido nas ronteiras de sua determinao. Plato, por

    sua vez, o artista dessa obra, que trabalhou sobre

    a matria pr-socrtica, oriental, da compreen-

    so segundo a qual tudo o que , mas tambm,

    de alguma maneira, o que no , com o que cada

    coisa to idntica a si quanto dierente, por no

    ser mais indivduo discreto do que turbilho, fuxo,

    vrtice concreto.

    Este texto comeou com a sugesto de que est-

    tica platnica seria um oximoro e termina com a

    concluso de que, no s no nenhum oximoro,

    como, ao contrrio, o platonismo que seria esttico.

    Rebatize-se, ento, o texto: platonismo esttico.

    Introduo

    Estamos convidados a pensar e alar sobre a Arte,

    no pensamento de Aristteles. Com certeza, sabe-

    mos que a Arte variou ao longo das dierenas de

    pocas e de culturas, de modo que a Arte, pensadapor Aristteles, a Arte produzida pelos Gregos

    Antigos, e no poderia ser outra. Sabemos, tambm,

    que cada lsoo, ao pensar a questo da Arte, a

    pensou desde sua perspectiva prpria de organizar

    e compreender o mundo. Assim, mesmo pensando

    Artes poticas no pensamento de Aristteles1Fernando Santoro

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    48/154

    48

    o mesmo enmeno, nas mesmas circunstncias, o

    modo como Aristteles pensou dierente do de Pla-

    to. Ora, so essas dierenas e caractersticas o que

    nos interessa primeiro quando estamos discutindo

    a Arte, vista pelos grandes lsoos da Histria.

    Mas h algo que no espervamos e que nos sur-

    preende especialmente quando abordamos os textos

    de Aristteles que tratam de Arte. No se trata de

    vericar apenas que a Arte estudada por Aristteles

    a Arte de seu tempo. H uma dierena mais radi-

    cal ainda entre ns e o pensamento de Aristteles

    no tocante Arte. que sequer podemos dizer que

    as coisas que hoje ns chamamos de obras artsticas

    entre os gregos antigos, eram do mesmo modo con-

    sideradas obras de artistas por Aristteles e mesmo

    por seus contemporneos. Isto quer dizer, objetiva-

    mente, que para o que chamamos hoje de Arte se-

    quer havia um conceito equivalente entre os gregos.

    O conceito grego de arte

    O conceito grego de tchne, que costumamos tra-

    duzir por arte, no ala da realizao dos artistas,

    no tem o compromisso esttico nem o valor de

    genialidade que lhes atribumos hoje. A tchne uma atividade humana undada num saber azer.

    Aquele que tem uma arte detm um saber que o

    orienta em sua produo. A arquitetura e a medi-

    cina, a olaria e a orja so artes da mesma orma que

    a msica e a pintura. Ou melhor, no exatamente

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    49/154

    49

    da mesma orma, mas todas so artes: tchnai.

    No da mesma orma, porque h, entre as diversas

    artes, especialmente no pensamento de Aristte-

    les, uma srie de dierenciaes e hierarquias que

    vo separar modos dierentes de arte. Porm, e a

    que a dierena radical de pensamento aparece,

    nenhuma dessas valoraes e categorias enquadra

    pereitamente o que hoje chamamos de Arte, e

    isto, visto no prprio universo da produo artstica

    dos gregos antigos!

    O conceito que mais se aproxima do que entende-

    mos hoje por Arte o conceito com que Aristteles

    denomina o gnero potico, j no primeiro cap-

    tulo da seu tratado sobre aArte Potica: trata-se da

    arte mimtica que ele delimita do seguinte modo:

    A epopia e a poesia trgica, assim como a com-

    dia, a poesia ditirmbica, a maior parte da aultica

    e da citarstica, consideradas em geral, todas se

    enquadram nas artes de imitao.2

    O enquadramento da poesia entre as artes mim-

    ticas no uma inveno aristotlica. J Plato,

    no dilogo de losoa poltica Repblica, dene a

    poesia como imitao. Plato o az explicitamente

    para denegrir a poesia, para torn-la de mesmo

    valor que a pintura ou escultura, coisa de artesos(bnausoi), prosso de artces manuais, social-

    mente ineriores na hierarquia da cidade antiga. A

    perplexidade com que os cidados comuns rece-

    bem esta teoria demonstra o quanto, para os gregos

    em geral, o valor da arte potica era dierente do

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    50/154

    50

    valor das artes plsticas em geral, as quais sequer

    eram distintas das demais atividades produtivas,

    de modo que no h o pintor em abstrato mas o

    oleiro que pinta seus vasos, no h o escultor, mas

    uma equipe de mestres, pedreiros e carpinteiros

    que edica o templo, e assim por diante.

    Dizer que a poesia imitao, para Plato, dis-

    tanci-la duplamente da verdade, pois em primeiro

    lugar est a verdade na ideia em si mesma de algo;

    se um arteso vislumbra esta ideia e produz um ob-

    jeto, este gerado a uma certa distncia da verdade,

    e se um poeta canta nos seus versos este objeto, en-

    to ele est aastado em dobro da verdade. O poeta,

    sendo imitador, um artce de segunda categoria,

    o mais aastado da verdade, prximo aos prestidi-

    gitadores e ilusionistas. Isto quase uma aronta

    ao senso comum dos gregos, que cultuavam seus

    poetas como os mais sbios dentre os homens.

    Aristteles herda de Plato a categoria de arte

    mimtica, mas, ao menos no tocante ao que ns

    chamamos de artes literrias, ele est disposto a

    resgatar-lhes o valor arcaico tradicional de sabedo-

    ria e verdade. J no que diz respeito s outras artes

    mimticas, as no literrias, Aristteles, por omis-

    so, as deixa no mesmo patamar em que sempreestiveram: ocio de arteso, atividade socialmente

    inerior, servil. Quando muito, o Filsoo az uma

    distino entre os mestres arquitetos e os que sim-

    plesmente obram com as mos. Uma tal distino

    ainda salva do total desprestgio algum como Fdias,

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    51/154

    51

    o arquiteto e mestre escultor dos monumentos da

    Atenas de Pricles. Quer dizer: se Aristteles chegou

    a enquadrar num mesmo gnero mimtico as artes

    literrias e as artes plsticas, no era por lhes dar o

    mesmo valor artstico. A mmesis aristotlica um

    contraponto mmesis de Plato, no dene o valor

    artstico mas o valor de verdade: se, para Plato, a

    imitao era o distanciamento da verdade e o lugar

    da alsidade e da iluso, para Aristteles, a imita-

    o o lugar da semelhana e da verossimilhana,

    o lugar do reconhecimento e da representao. A

    uno mimtica, em Aristteles, nem uma exclu-

    sividade das artes poticas, ela apresenta-se tambm,

    por exemplo, na linguagem humana em sua uno

    de representar as coisas. Tal uno, a de adequar

    o nome ou signo em geral coisa signicada a

    uno mimtica ou representativa da linguagem,

    lugar em que pode acontecer o verdadeiro ou o also.

    At agora, vimos o quanto de anacrnico haveria

    numa exposio do pensamento de Aristteles so-

    bre a Arte, se quisssemos descobrir em suas obras

    uma teoria que abrangesse o mesmo domnio do

    que entendemos atualmente por Arte. Isto no im-

    pede, porm, que vejamos o que ele pensa, num

    domnio das artes que compreendido tambmdentro do que ns hoje entendemos por Arte. O do-

    mnio da Arte Potica, tratado no livro homnimo,

    obviamente, mas tambm no seu tratado sobre A

    Poltica, em que, como na Repblica de Plato, a

    educao da alma se az por via das msicas.

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    52/154

    52

    A recepo da Potica de Aristteles

    Para aumentar nossa perplexidade sobre o tema,

    cabe ainda uma inormao histrica, de muita im-

    portncia. A Potica de Aristteles, em que o l-

    soo analisou o modo de ser e proceder da epopeia

    e da tragdia, no primeiro livro, e da comdia, no

    segundo livro (o que oi perdido), , sem dvidas, a

    obra terica mais estudada, pela Esttica e Filoso-

    a da Arte, de todos os tempos. A obra teve grande

    infuncia na teoria literria e na oratria at a

    Antiguidade tardia, passou pelas tradies cultu-

    rais helenistas e rabes enquanto era posta de lado

    pela Europa medieval, at que, editada e impressa

    no nal do sc. xv e incio do sc. xvi (principal-

    mente a edio veneziana de Aldo Manuzzio), pas-

    sou a ser leitura obrigatria em todas as escolas de

    Arte europeias, principalmente as italianas. Acon-

    tece que, paralelamente, no Renascimento Italiano,

    pela primeira vez, a pintura e a escultura passaram

    a ser igualmente consideradas Belas Artes e a ter

    um status social equivalente ao das Artes Poticas.

    Neste momento, a recepo da Potica tratou de

    azer aquela operao que acabamos de chamar de

    anacrnica, i.e. de tomar o que Aristteles dizia so-bre as artes literrias, para aplicar refexo tam-

    bm das demais artes, inclusive as artes plsticas,

    que no estavam no escopo original do Filsoo.

    Portanto, ainda que Aristteles no tenha pen-

    sado sobre as Artes, tal como as entendemos hoje,

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    53/154

    53

    o que ele escreveu oi decisivo ao longo da his-

    tria das Artes ocidentais, especialmente aps o

    Renascimento. A Potica de Aristteles muitas

    vezes chegou a determinar os cnones de vrios

    estilos, principalmente, os de inspirao clssica:

    classicismos e neoclassicismos diversos. E mesmo

    quando se queria contestar alguma tradio ou

    escola artstica, a Potica serviu, quando no era

    o modelo a seguir, de modelo a contestar, como,

    por exemplo, ao se criticar o naturalismo, ou o

    gurativismo, ou as amosas prescries de uni-

    dade (de tempo, de espao, de ao). Assim, se

    Aristteles no pensou as Artes tal como as en-

    tendemos hoje, em contrapartida ele oi decisivo

    para o que entendemos hoje como Arte. Muitas

    das clivagens, dos valores, das categorias e dos

    princpios das teorias estticas modernas e con-

    temporneas tm origem nas especulaes de

    Aristteles sobre a poesia pica, sobre a msica e

    sobre a poesia dramtica.

    Vamos apresentar, de modo sucinto, alguns des-

    ses valores e categorias que tm sido to impor-

    tantes para o pensamento losco sobre as Artes

    e tambm para a constituio de tantos estilos e

    tantas ormas eetivas de se azer Arte, ao longo daHistria ocidental. Trataremos, primeiro, de uma

    distino que aparece na Poltica, entre atividades

    teis e atividades belas, depois veremos a dierena

    entre msicas didticas e catrticas e, a partir disso,

    discutiremos algumas questes relativas nali-

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    54/154

    54

    dade e ao sentido da Arte, quando usaremos os

    pensamentos aristotlicos acerca da educao, da

    catarse e do prazer, em algumas passagens antol-

    gicas do questionamento esttico.

    Artes teis e artes belas

    Chamamos as Artes por vezes de Belas Artes, para

    dierenci-las de outras atividades produtivas cujo

    produto tem em vista somente alguma utilidade.

    que entendemos que a nalidade da obra de

    arte est na sua prpria ruio e entendemos que

    belas so as coisas que desejamos por elas mes-

    mas, enquanto teis so aquelas que desejamos em

    vista de um outro bem. Esta dierena para marcar

    as Artes que visam o belo j recebeu tambm a

    qualicao de livre (artes liberais) e chegou a

    inspirar a determinao kantiana para a sua teoria

    do juzo de belo, como um juzo de valor desin-

    teressado. Esta clivagem tem origem na tica e

    na Poltica de Aristteles, ainda que no visasse

    exatamente a uma distino nas artes, mas an-

    tes s atividades humanas em geral. Vejamos esta

    passagem do stimo livro da Poltica:

    Toda a vida est dividida em negcio e cio, guerra e

    paz, e dentre as aes, umas so necessrias e teis, e

    outras, por outro lado, so belas. [...] A guerra existe

    em benecio da paz, o negcio em vista do cio e as

    coisas necessrias e teis tm por m as coisas belas.3

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    55/154

    55

    As coisas belas, para Aristteles, so menos os

    objetos produzidos pelas diversas artes do que as

    melhores e mais elizes aes humanas, principal-

    mente a ao teortica ou contemplativa. Mas, diz

    ele, as diversas msicas e a poesia devem educar-

    nos para os melhores valores, os valores do ho-

    mem livre e suas aes belas e nobres. De certo

    modo, Aristteles prope uma educao esttica,

    em que no apenas se vo aprender contedos

    ticos importantes, mas em que, por meio da arte,

    j se vai tomando gosto pela atividade mais nobre

    e mais divina no homem que a atividade con-

    templativa. Assim, mais do que produzir coisas

    belas, importante aprender a agir de modo belo

    e, portanto, a beleza est inserida na realizao

    das belas artes, mais na atividade contemplativa

    do espectador do que nas habilidades ou geniali-

    dades artsticas do autor, do produtor, do artista.

    Mais do que o deslocamento do valor da realiza-

    o artstica do artista para o espectador da obra,

    o que diere de nossa poca a ideia de que as

    atividades teis esto a servio das que no ser-

    vem a mais nada e so desejadas por si mesmo.

    O cio e as coisas eitas por si mesmas, as coisas

    belas, para Aristteles, no apenas valem mais,mas devem determinar e dominar as coisas teis

    e necessrias, pois no nal das contas elas devem

    servir a esta vida humana livre, ociosa, divina,

    cuja ao mais eliz a contemplao do real, da

    verdade, das coisas belas.

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    56/154

    56

    Msica didtica e msica catrtica

    Ainda na Poltica, enquanto trata da educao hu-

    mana na cidade, Aristteles az uma outra cliva-

    gem decisiva para o domnio das artes. Uma di-

    erena que o Filsoo colhe no domnio musical,

    quando separa a msica em didtica ou tica, de

    um lado, e orgistica ou catrtica, de outro. Con-

    vm lembrar que os gregos chamam de msicas

    todas as atividades propiciadas pelas musas: a epo-

    peia, a tragdia, a comdia, a poesia lrica, a ertica

    e assim por diante.

    Vejamos esta passagem, em que Aristteles clas-

    sica a arte da fauta, a aultica, entre as msicas

    orgisticas: Ademais, a fauta no da ordem dos

    costumes mas, sim, ela orgistica, de modo que

    se deve se servir dela naquelas circunstncias nas

    quais o espetculo tem o poder de purgar, no o

    de ensinar.4

    A msica didtica, ns a conhecemos desde as

    refexes platnicas sobre a educao na cidade

    e desde a armao exemplar de Herdoto sobre

    Homero ser o grande educador da Grcia. Aris-

    tteles tambm a chama de tica, pois o que se

    aprende com tais msicas e seus mitos antes detudo o thos herico, os valores que dignicam

    uma pessoa entre os gregos: a coragem de Aquiles,

    a astcia de Ulisses, a dignidade de Ignia, entre

    outros. Quando, na Potica, Aristteles or tratar

    do objeto de imitao na poesia, dir que aquilo

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    57/154

    57

    que se imita , sobretudo, o carter dos homens

    e suas aes. Imitaes de aes de carter nobre

    so as imitaes da epopeia e da tragdia, imita-

    es de caracteres mesquinhos so as imitaes da

    comdia. Todas tm uno didtica, seja de servir

    de mulo e meta no caso das personagens picas

    e trgicas, seja para servir de escrnio e provocar

    vergonha no caso das personagens cmicas. Assim,

    a comdia uma imitao mais verdadeira, en-

    quanto a tragdia mais comovente; isso porque

    esta exprime homens melhores e como gostara-

    mos de ser, ao passo que aquela, piores e como

    gostaramos de no ser; ora, o que gostaramos de

    ser ainda no somos e nos move mais do que o que

    gostaramos de no ser, mas j somos. Prova disto

    que da tragdia samos motivados para aes

    elevadas e da comdia samos envergonhados, e a

    vergonha um reconhecimento. Motivao e reco-

    nhecimento so unes didticas da msica.

    Mas Aristteles no apenas v o carter didtico

    das msicas na ormao do carter do indivduo.

    Ele tambm atribui ao poeta uma visada sobre o

    real que o aproxima da perspectiva universal de

    conhecimento, como o lsoo. que o poeta trata

    em seus enredos daquilo que possvel de acon-tecer, quando segue as regras da verossimilhana

    e da necessidade.

    O ocio do poeta no descrever coisas acontecidas,

    ou ocorrncia de atos. Mas isso quando acontece,

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    58/154

    58

    segundo as leis da verossimilhana e da necessidade.

    [...] A dierena entre historiador e poeta a de que o

    primeiro descreve atos acontecidos e o segundo atos

    que podem acontecer. Por isso que a poesia mais

    elevada e losca que a histria; a poesia tende mais

    a representar o universal, j a histria, o particular.

    A idia de universal ter um indivduo de

    determinada natureza, em correspondncia s

    leis da verossimilhana e da necessidade.5

    Alis, porque o poeta mostra o universal como

    possvel, na imitao de uma ao concretizada

    num indivduo, ele torna mais evidente o prprio

    universal, cria-lhe uma situao exemplar. Assim,

    o Filsoo, sobretudo o lsoo que pensa as ques-

    tes da ao humana, o lsoo da teorizao tica,

    nunca deixar de se servir destes modelos de ao

    que so as personagens das epopeias e das tragdias,

    para compreender a natureza humana e para extrair

    lies e sugestes que iluminem as diceis horas de

    deciso. Mas nem s didtica e losca a msica.

    A msica catrtica ou orgistica, a despeito da co-

    lossal bibliograa que se produziu sobre o tema da

    catarse em Aristteles, continua muito mais miste-

    riosa. O que sabemos resume-se a algumas passa-gens da Poltica, a qual, quando poderia aproundar

    a questo, simplesmente a remete (em 1341b 38) para

    o que j se tinha tratado na Potica. Na Potica, po-

    rm, sobrou-nos apenas a meno da purgao das

    aeces ligadas ao terror e compaixo, na deni-

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    59/154

    59

    o da tragdia. Meno das mais enigmticas e dis-

    cutidas de toda a Histria da Filosoa. Toda a grande

    teoria da catarse de Aristteles parece que se perdeu

    com o desaparecimento do segundo livro da Potica.

    Aristteles associa esta msica orgistica aos del-

    rios bacantes, e sabemos que muitas estas e rituais

    religiosos eram denominados de catrticos, puri-

    cadores ou purgadores.

    Pois a disposio est unida a algumas almas de modo

    intenso, embora ela subsista em todas, dierindo-se

    pela menor e pela maior intensidade e tendo como

    exemplos a piedade, o medo

    e o entusiasmo; pois alguns que so possudos por

    essas perturbaes, vemo-los por causa dos cantos

    sagrados, no momento em que se prestam aos cantos

    suas almas so lanadas em delrio, apresentando-se

    como os que se encontram sob tratamento e purgao;

    isto mesmo ento oroso que soram tanto os piedo-

    sos quanto os medrosos e os que em geral so sensveis,

    e os outros na medida

    em que o mesmo se lana sobre cada um deles;

    e a todos ocorre uma purgao e sentem alvio

    junto com prazer.6

    A ktharsis aparece requentemente no vocabu-

    lrio religioso e, posteriormente, no vocabulrio me-

    dicinal grego. Aristteles mesmo usa o termo menos

    na teoria da arte, contando apenas com as obras que

    nos restaram, e muito mais em contextos de descrio

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    60/154

    60

    de siologia biolgica, em que no apenas se reere

    a uma tcnica medicinal, mas tambm poda das vi-

    nhas, ao crescimento de cabelos e chires nos animais

    ou ao fuxo menstrual das mulheres, entre outros.

    O mais interessante, no que toca teoria da Arte,

    que a uno catrtica das msicas opera na trans-

    ormao das emoes humanas, tais como o terror, a

    compaixo a clera e outras. Aristteles percebe que a

    provocao e a transormao das emoes humanas

    nas obras poticas algo tanto ou at mais importante

    que a expresso de valores e contedos morais. No

    ora isto, e a catarse das emoes no seria conside-

    rada como a nalidade mesma da tragdia, pelo que

    lemos na amosa denio do captulovi da Potica:

    Portanto, a tragdia a imitao de uma ao

    sria e acabada, que possui grandeza, que compraz

    pela palavra, com separao de cada uma das espcies

    em partes, atravs da atuao e no de um relato,

    que por meio da piedade e do medo consuma a

    purgao dessas aeces.7

    O que quis dizer exatamente Aristteles ao escre-

    ver que a tragdia, mediante a piedade e o medo,

    produz uma catarse: uma "purgao", ou "puri-cao"? Trata-se de uma extirpao ou erradica-

    o, de uma moderao ou suavizao, ou de uma

    claricao das prprias emoes? As teorias sobre

    o tema so muitas, e no cabe descrev-las aqui,

    mas as repercusses do problema oram to impor-

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    61/154

    61

    tantes para a refexo ocidental sobre as paixes

    humanas, que vamos citar apenas um exemplo

    para dimensionar sua penetrao. O aspecto ca-

    trtico da clnica psicanaltica, na teoria de Freud,

    oi elaborado a partir de um dilogo intenso com

    um Fillogo Alemo, chamado Jacob Bernays, que

    renovara a interpretao da catarse na Potica de

    Aristteles num artigo de 1857, republicado em

    1880, Zwei Abhandlungen ber die aristotelische

    Theorie des Drama. Bernays8 ez aparecer com

    mais ora o carter corporal e patolgico das

    transormaes emocionais; ora da discusso mo-

    ral que considerava, platonicamente digamos, as

    paixes como vcios a serem corrigidos e transor-

    mados em virtudes, ou extirpados, com alvio de

    seu carter doloroso. Discusso que cara em voga

    no Romantismo alemo, alimentada sobretudo pe-

    las consideraes de Lessing sobre a dramaturgia.

    Finalidade da obra de arte mimtica

    Tendo revolvido algumas das questes suscitadas

    pelas refexes de Aristteles no tocante s artes

    poticas ou musicais, seria interessante refetir so-

    bre a nalidade ou nalidades das obras de arte,entendendo, um tanto moda aristotlica, que a

    nalidade consuma a plenitude de sentido daquilo

    que se est investigando.

    Se a realizao da obra de arte voltada para

    a beleza, podemos entender que a nalidade pri-

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    62/154

    62

    meira da obra de arte est, de certo modo, j na sua

    simples presena, ela deve ser autnoma e bastar-

    se a si mesma, de nada mais carecer. Na Potica, h

    uma nica meno sobre a beleza do mito potico:

    O belo, seja um ser animado, seja qualquer outro

    objeto, desde que igualmente constitudo de

    partes, no s deve apresentar nessas partes

    certa ordem prpria, mas tambm deve ter, e

    dentro de certos limites uma grandeza prpria;

    de ato, o belo consta de grandeza e de ordem;

    portanto, no pode ser belo um organismo

    excessivamente pequeno, porque nesse caso

    a vista conunde-se, atuando num momento

    de tempo quase imperceptvel; e tampouco

    um organismo excessivamente grande, como

    se se tratasse, por exemplo, de um ser de dez mil

    estdios, porque ento o olho no pode alcanar todo

    o objeto no seu conjunto, e ogem, a quem olha, a

    unidade e a sua orgnica totalidade [...] 9

    H uma precisa interpretao desta passagem, es-

    crita por Fernando Pessoa, nas suas Obras Estticas:

    O m da arte imitar pereitamente a Natureza. Este

    princpio elementar justo, se no esquecermos que

    imitar a Natureza no quer dizer copi-la, mas sim

    imitar os seus processos. Assim a obra de arte deve

    ter os caractersticos de um ser natural, de um animal;

    deve ser pereita, como so, e cada vez mais o vemos

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    63/154

    63

    quanto mais a cincia progride, os seres naturais; isto

    , deve conter quanto seja preciso expresso do que

    quer exprimir e mais nada, porque cada organismo

    considerado pereito, deve ter todos os rgos de que

    carece, e nenhum que lhe no seja til.10

    Mas a beleza da obra potica tambm acompa-

    nhada de um prazer prprio no reconhecimento

    do que est sendo expresso ou representado. Deste

    prazer no reconhecimento resulta a eccia da

    uno didtica e losca da obra de arte. Se a

    obra de arte educa e instrui, isto uma consequn-

    cia do prazer que o homem sente na imitao e na

    representao em geral, no propriamente uma

    nalidade mas uma utilidade adjacente ou coinci-

    dente. A prova disto que, se azemos a obra de

    arte pensando somente em instruir, corremos srio

    risco de no cuidar da expresso da beleza e, por

    isso mesmo, de nem agradar e nem tampouco ins-

    truir; mas se buscamos azer a obra realmente bela,

    na pereio do que quer exprimir, por si mesma

    ela gera prazer e tambm o saber no reconheci-

    mento. De modo que o homem se compraz na re-

    presentao e na expresso, das quais decorre como

    consequncia uma experincia de aprendizagem.Est na natureza do homem o carter mimtico,

    por isso ele representa o mundo e tem linguagem,

    por isso ele se compraz em conhecer e reconhecer,

    em experimentar e saborear as dierenas do real.

    O imitar congnito no homem (e nisso diere

  • 8/2/2019 issu.fildarte

    64/154

    64

    orientaesde estudo

    Destacar os principais conceitos de cada um dos textos da

    Unidade I, e escrever pequenos textos sobre cada um deles,

    especicando a acepo dos termos em cada um dos pensadores

    gregos abordados, de modo a construir um glossrio.