Infarto Do Miocardio e Ponte Miocardica

4
einstein. 2004; 2(3):208-11 RELATO DE CASO Infarto agudo do miocárdio em adulto jovem, portador de ponte miocárdica e artérias coronárias normais Acute myocardial infarction in a young adult with myocardial bridging and normal coronary arteries Moris Chansky 1 , Adriana Regina Perez 2 , Nilo Lima 3 ABSTRACT The authors present a case of a young adult with acute myocardial infarction, attended at the Emergency Department of Hospital Israelita Albert Einstein. Acute myocardial infarction caused by myocardial bridge (intramyocardial tunneled coronary artery) is a rare clinical entity. The finding of this condition in patients with normal arteries (non-obstructed vessels) is uncommon; it is usually associated with extracardiac triggering factors. The case reported presented an acute myocardial infarction caused by a myocardial bridge as demonstrated in the clinical picture, ECG progression, enzyme pattern (troponin, CKMB, TGO and LD) and ventriculography. Keywords: Myocardial infarction; Heart/anatomy & histology; Heart ventricles/radiography; Ventriculography RESUMO Os autores apresentam um caso de adulto jovem com quadro de infarto agudo do miocardio, atendido na emergência do Hospital Israelita Albert Einstein. A ocorrência de infarto agudo causado por “ponte miocárdica” (trajeto intramiocárdico da artéria coronária) se constitui em raridade clínica. O achado de infarto agudo em portadores de artérias coronárias “normais” (não obstruídas) é incomum e quase sempre se associa a fatores desencadeantes extracardíacos. O caso em relato apresentou quadro de infarto agudo do miocárdio, causado pela presença de ponte miocárdica, conforme ficou demonstrado pelo quadro clínico, evolução eletrocardiográfica, dos enzimas (tropinas, CKMB, TGO e DHL) e ventriculografia mensurada. Descritores: Infarto do miocárdio; Coração/anatomia & histologia; Ventrículos cardíacos/radiografia; Ventriculografia INTRODUCTION A ponte miocárdica é uma variante anatômica pouco comum no ser humano, embora não seja raridade. Caracteriza-se pela presença de um ou mais feixes de miocárdio que cruzam ou abraçam um segmento de artéria coronária. Na sístole causam um estrangulamento ou constrição do vaso, com subseqüente normalização na diástole (1-2) . A ocorrência de infarto agudo do miocárdio em portadores de ponte miocárdica com artérias coronárias normais é um achado clínico muito raro (1,3) . Espasmos arteriais com isquemia transitória, angina pectoris e morte súbita são mais encontrados, embora também raros (3). Em pacientes com pontes miocárdicas e artérias coronárias normais ao exame cinecoronariográfico, com compressão das artérias coronárias durante a sístole e descompressão com normalização na diástole, o diagnóstico de infarto agudo do miocárdio precisa estar firmemente baseado em outros dados associados. As características da dor, as alterações eletrocardiográficas do segmento ST e T, o aumento precoce de CKMB, troponina e miosina deverão ser avaliados e valorizados. Apresentamos a seguir um caso documentado com todas estas características. 1 Médico do Hospital Israelita Albert Einstein. Professor Adjunto da Escola Paulista de Medicina - UNIFESP. 2 Médica da CTI/UCO do Hospital Israelita Albert Einstein. 3 Médico da CTI/UCO do Hospital Israelita Albert Einstein. Endereço para correspondência: Moris Chansky - Rua Frei Caneca, 1212 - 10º andar - conj. 105 - Consolação - São Paulo (SP), Brasil - CEP 01307-003 - e-mail [email protected] Recebido em 2 de fevereiro de 2004 - Aceito em 10 de julho de 2004

Transcript of Infarto Do Miocardio e Ponte Miocardica

Page 1: Infarto Do Miocardio e Ponte Miocardica

einstein. 2004; 2(3):208-11

212 Chansky M, Perez AR, Lima N

RELATO DE CASO

Infarto agudo do miocárdio em adulto jovem, portador de ponte

miocárdica e artérias coronárias normaisAcute myocardial infarction in a young adult with myocardial bridging and normal coronary arteries

Moris Chansky1, Adriana Regina Perez2, Nilo Lima3

ABSTRACTThe authors present a case of a young adult with acute myocardialinfarction, attended at the Emergency Department of HospitalIsraelita Albert Einstein. Acute myocardial infarction caused bymyocardial bridge (intramyocardial tunneled coronary artery) is arare clinical entity. The finding of this condition in patients withnormal arteries (non-obstructed vessels) is uncommon; it isusually associated with extracardiac triggering factors. The casereported presented an acute myocardial infarction caused by amyocardial bridge as demonstrated in the clinical picture, ECGprogression, enzyme pattern (troponin, CKMB, TGO and LD) andventriculography.

Keywords: Myocardial infarction; Heart/anatomy & histology; Heartventricles/radiography; Ventriculography

RESUMOOs autores apresentam um caso de adulto jovem com quadro deinfarto agudo do miocardio, atendido na emergência do HospitalIsraelita Albert Einstein. A ocorrência de infarto agudo causadopor “ponte miocárdica” (trajeto intramiocárdico da artériacoronária) se constitui em raridade clínica. O achado de infartoagudo em portadores de artérias coronárias “normais” (nãoobstruídas) é incomum e quase sempre se associa a fatoresdesencadeantes extracardíacos. O caso em relato apresentouquadro de infarto agudo do miocárdio, causado pela presença deponte miocárdica, conforme ficou demonstrado pelo quadro clínico,evolução eletrocardiográfica, dos enzimas (tropinas, CKMB, TGO eDHL) e ventriculografia mensurada.

Descritores: Infarto do miocárdio; Coração/anatomia & histologia;Ventrículos cardíacos/radiografia; Ventriculografia

INTRODUCTION

A ponte miocárdica é uma variante anatômica poucocomum no ser humano, embora não seja raridade.Caracteriza-se pela presença de um ou mais feixes demiocárdio que cruzam ou abraçam um segmento deartéria coronária.

Na sístole causam um estrangulamento ouconstrição do vaso, com subseqüente normalização nadiástole(1-2).

A ocorrência de infarto agudo do miocárdio emportadores de ponte miocárdica com artérias coronáriasnormais é um achado clínico muito raro(1,3). Espasmosarteriais com isquemia transitória, angina pectoris emorte súbita são mais encontrados, embora tambémraros(3).

Em pacientes com pontes miocárdicas e artériascoronárias normais ao exame cinecoronariográfico, comcompressão das artérias coronárias durante a sístole edescompressão com normalização na diástole, odiagnóstico de infarto agudo do miocárdio precisa estarfirmemente baseado em outros dados associados. Ascaracterísticas da dor, as alterações eletrocardiográficasdo segmento ST e T, o aumento precoce de CKMB,troponina e miosina deverão ser avaliados e valorizados.

Apresentamos a seguir um caso documentado comtodas estas características.

1 Médico do Hospital Israelita Albert Einstein. Professor Adjunto da Escola Paulista de Medicina - UNIFESP.2 Médica da CTI/UCO do Hospital Israelita Albert Einstein.3 Médico da CTI/UCO do Hospital Israelita Albert Einstein.

Endereço para correspondência: Moris Chansky - Rua Frei Caneca, 1212 - 10º andar - conj. 105 - Consolação - São Paulo (SP), Brasil - CEP 01307-003 - e-mail [email protected]

Recebido em 2 de fevereiro de 2004 - Aceito em 10 de julho de 2004

Page 2: Infarto Do Miocardio e Ponte Miocardica

einstein. 2004; 2(3):208-11

213Infarto agudo do miocárdio em adulto jovem, portador de ponte miocárdica e artérias coronárias normais

RELATO DE CASO

Identificação: SM, 41 anos, sexo masculino, branco,casado, engenheiro.Queixa Principal: “Dor no peito”HPMA: Paciente deu entrada no Primeiro Atendimentoreferindo dor precordial, constritiva, iniciada há seishoras. A dor era de moderada intensidade, precipitadadurante o repouso, sem irradiação, não acompanhadade náusea ou sudorese. Dois dias antes apresentaraquadro clínico semelhante, acompanhado de congestãode vias aéreas superiores. Na noite anterior aoatendimento também referiu dor semelhante,acompanhado de sudorese e com remissão espontânea.Antecedentes Pessoais: HipertrigliceridemiaFacilidade em ter resfriados e gripes – sic.Antecedentes Familiares: Pai falecido por problemascardíacos não definidos aos 60 anos. Tios paternos ematernos com doença arterial coronária comprovada.Nega diabetes mellitus e hipertensão arterial sistêmica.Exame físico: BEG, corado, hidratado, eupnéico,acianótico, anictérico e afebril. Encontrava-sediscretamente ansioso. Pressão arterial de 140 x 75 mmHg e FC de 70 batimentos por minuto, rítmica. Nãomostrava alterações no restante do exame.O ECG inicial revelava um ritmo sinusal, discretosupradesnivelamento de ST em D1, V3, V4, V5 e V6(figura 1). O ecocardiograma mostrou ausência de áreasacinéticas e de alterações pericárdicas. Demais índicesnormais.Exames laboratoriais mostraram com CKMB etroponina elevados e consistentes, conforme a tabela 1.

Tabela 1. Valores de CKMB e troponina do dia da admissão

Marcadores Dia da Admissão Valores danecrose miocárdica 2:36 pm 4:24 pm referência

CKMB (ng/ml) 55 47,5 0.4 - 4.0Treponina (ng/ml) 23.1 18.4 <1.0

A radiografia de tórax foi normal.

Diagnóstico Clínico de Admissão: SíndromeCoronariana Aguda com supradesnível de ST - Provávelinfarto agudo do miocárdio com pródromos há doisdias. Deve ser considerado diagnóstico diferencial compericardite viral.Optou-se então pela realização decineangiocoronariografia imediata baseando-se nasevidências de:a. Dor precordial de início recente e recidivanteb. Elevação dos marcadores de necrose miocárdicarepetidos e consistentesc. Desnivelamento de ST ao ECGd. História familiar consistentee. TIMI Risk Score Intermediário – 4

Cineangiocoronariografia e ventriculografia:

Observou-se (figura 2):a. Artéria Descendente Anterior longa, apresentando

significativa constrição sistólica em seu terço médiopor ponte miocárdica. Normalização durante adiástole. Demais segmentos sem lesões obstrutivas.

b. Ventriculografia revelou área acinética de moderadaextensão na face ântero-lateral do ventrículoesquerdo.

Figura 1. Eletrocardiograma no dia da internação. Observa-se supra-desnivelamento discreto do segmento ST nas derivações D1, V4, V5 e V6.

O paciente foi internado na Unidade Coronarianacom diagnóstico de infarto agudo do miocárdio deparede ântero-lateral do ventrículo esquerdo e comsupradesnivelamento do segmento ST.

A evolução clínica e eletrocardiográfica mostrou-se benigna, com surgimento de ondas T “plus-minus”nas precordiais esquerdas e com normalizaçãoprogressiva em 48 horas. As ondas T permaneceramnegativas em D1 e aVL, bem como o padrão derepolarização precoce até a alta, no sétimo dia (figura 3).

Foram feitos estudos de anticorpos virais, todosnegativos. Os valores de TGO e DHL subiram nosegundo e terceiro dias, respectivamente,normalizando-se na ocasião da alta.

Figura 2. Cinecoronariograf ia mostrando estreitamento da artér iadescendente anterior durante a sístole, e normalização na diástole. Aventriculografia mostra área hipocinética na região ântero-lateral, comredução de contratilidade 50% menor do que a outras áreas do miocárdio.

Page 3: Infarto Do Miocardio e Ponte Miocardica

einstein. 2004; 2(3):208-11

214 Chansky M, Perez AR, Lima N

O paciente foi tratado com beta-bloqueadores easpirina e, ocasionalmente, diazepínicos, tendo tidoalta hospitalar no 7º dia.

DISCUSSÃO

O achado incidental de ponte miocárdica emprocedimentos angiográficos varia entre 0,5% a 5%,sendo mais comum em porção média do trajeto daartéria descendente anterior, geralmente na ausênciade lesões coronárias obstrutivas associadas(1).

A literatura ainda é controversa em afirmar aassociação de ponte miocárdica e eventos isquêmicossérios, apesar da constrição da artéria durante a sístole.Citam-se casos de angina estável e instável, rarosinfartos e até morte súbita(4), salientando-seprognóstico favorável nos que sobreviveram.

As bases fisiopatológicas desta relação residem nofato de já se ter documentado elevação de lactato emseio coronário, alterações perfusionais e mesmo decontração segmentar em indivíduos cujo único achadoangiográfico era o de ponte miocárdica quandosubmetidos a testes de esforço para detecção deisquemia miocárdica(1,3).

Entretanto, como explicar tais achadosconsiderando que a irrigação miocárdica acontecepredominantemente na diástole e a constrição édurante a sístole?

Várias são as tentativas de explicação para estes raroseventos. Postula-se que há alterações da musculaturalisa do segmento intramiocárdico que retardariam seurelaxamento, criando assim um estreitamento arterialque se prolongaria ainda durante a diástole,propiciando um déficit de fluxo coronariano que seria

tanto maior quanto mais duradoura e intensa fosse aconstrição sistólica(1).

Além disso, componentes de vasoespasmo seriamgerados em virtude de estímulos vasoativos e pró-inflamatórios presentes nas áreas de transição entre otrajeto epicárdico e o intramiocárdico(1,3).

Tais alterações, agindo de maneira combinada e deforma repetitiva gerariam redução da reserva de fluxocoronário e menor capacidade de resistir a condiçõesde aumento da demanda miocárdica de oxigênio,terminando por expressar isquemia(1-2,5-6).

Casos de morte súbita em portadores de hipertrofiaseptal ou cardiomiopatia hipertrófica associados à pontemiocárdica se enquadram nas postulações acima(2,6).

Estudos fisiopatológicos desta condição clínicamostram elevação da concentração de lactatos no seiocoronário em condições de “provas de esforço”,também corroboram as postulações. A possibilidade deação de mediadores gerados no endotélio também éplausível.

Em casos selecionados em que há angina refratáriaao tratamento clínico, a implantação de “stent” nosegmento intramiocárdico mostrou-se eficaz, emboraa casuística seja ainda muito limitada e complicaçõescomo reestenose, formação de pseudo-aneurismascoronários e até rotura coronariana sejam maisfreqüentes que nos segmentos epicárdicos(1).

Outra alternativa nesses casos especiais é amiectomia cirúrgica, destunelizando o segmentointramiocárdico ao desfazer a ponte muscular que oenvolve(1).

Com o surgimento e aperfeiçoamento de técnicasde Doppler intracoronário e fluxometria intracoronáriaestes casos serão melhor interpretados(2,6).

Figura 3. a. ECG no 2º dia de internação mostra alterações evolutivas em relação ao 1º dia (fig. 1); as ondas T negativaram em D1, aVL, V1 e V6 compersistência do supradesnivelamento de ST (infarto sem Q). b. Alterações seqüenciais no dia subseqüente.

a b

Page 4: Infarto Do Miocardio e Ponte Miocardica

einstein. 2004; 2(3):208-11

215Infarto agudo do miocárdio em adulto jovem, portador de ponte miocárdica e artérias coronárias normais

No caso presente, estas técnicas não foramutilizadas. Também utilizamos exame de ressonânciamagnética, uma vez que o diagnóstico de infarto agudodo miocárdio estava bem embasado no quadro clínico,evolução precoce em curva de CKMB e troponina,aparecimento e desaparecimento tardio de elevaçãode TGO e DHL e evolução do ECG.

CONCLUSÃO

Os autores apresentam um caso de IAM com artériascoronárias normais e ponte miocárdica (artériadescendente anterior de trajeto tunelizado). Dois anosapós o evento, o paciente continua assintomático, fazcaminhadas diárias, joga tênis duas vezes por semanae com função cardíaca normal. Segue tomando beta-bloqueador e aspirina.

REFERÊNCIAS1. Mohlenkamp S, Hort W, Ge J, Erbel L. Update On Myocardial Bridging.

Circulation. 2002;106(20): 2616-22.

2. Gow Rm. Myocardial Bridging: Does It Cause Sudden Death? CardElectrophysiol Rev. 2002; 6(1-2): 112-4.

3. Teragawa H, Fukuda Y, Matsuda K, Hisao H, Higashi Y, Yamaguta T, Et Al.Myocardial Bridging Increases The Risk Of Coronary Spasm. Clin Cardiol.2003; 26(8): 377-83.

4. Rosas Peralta M, Kuri Alfaro J, Gomez A, Trevethan Cravioto S, ChavezNegrete A, Cossio Aranda J, Et Al. Myocardial Bridging. The Role OfMicrocirculation, Coronary Reserve And Systolic Endothelial Injury]. Arch InstCardiol Mex. 1998; 68(6): 506-14.

5. Erbel R, Ruppecht Hj, Ge J, Gerber T, Meyer J. Coronary Artery Shape AndFlow Changes By Myocardial Bridging. Echocardiography. 1993;10(1):71-7.

6. Ge J, Erbel R, Rupprecht Hj, Koch L, Kearney P, George G, Mude M, Et Al.Comparison Of Intravascular Of Myocardial – Graphy In The Assessment OfMyocardial Bridging. Circulation. 1994; 89(4):1725-32.