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Hirano, Luis Felipe o Imaginário Da Branquitude à Luz Da Trajetória de Grande Otelo Raça, Persona e Estereótipo Em Sua Perfomance Artística

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    O IMAGINRIO DA BRANQUITUDE LUZ DA TRAJETRIA DE GRANDE OTELO:

    RAA, PERSONA E ESTERETIPO EM SUAPERFOMANCE ARTSTICA*

    Luis Felipe Kojima Hirano**

    If there are forty million African Americans,then there are forty million ways to be black.

    Henry Louis Gates Jr.1

    m seus quase 70 anos de carreira, Grande Otelo atuou nos maisdiferentes projetos do cinema brasileiro. De Moleque Tio(1943) a Carnaval Atlntida (1953); de Amei um bicheiro (1953)

    a Rio Zona Norte (1957); de Macunama (1969) a Nem tudo verdade(1983). Otelo conseguiu ultrapassar as barreiras dos gneros e movi-mentos cinematogrficos, indo da comdia ao drama, das chanchadasao realismo carioca, do Cinema Novo ao Cinema Marginal.

    E

    * Este artigo produto de vrias verses que foram apresentadas em diversos congressos emque tive a oportunidade de dialogar com professores e pesquisadores a quem agradeo: Fabi-ano de Souza Gontijo, Laura Moutinho, Peter Fry, Helosa Pontes, Caroline Cotta de MelloFreitas, Helosa Buarque de Almeida, Ronaldo Almeida, Lilia Schwarcz, minha orientadora, eaos demais colegas dos ncleos Etnohistria e Numas. Tambm agradeo a Tatiana Lotierzopela interlocuo intensa e frutfera em diversos momentos da pesquisa e ao parecerista adhoc pelos comentrios e sugestes.

    ** Esse artigo se insere em minha pesquisa de Doutorado, no Programa de Ps-Graduao emAntropologia Social da USP, intitulada Cinema em negro e branco: brasilidade e imaginrioracial na cinematografia brasileira, financiada pela Fapesp. O artigo tambm se vale de umasrie de informaes pesquisadas durante o meu estgio de doutorado na Universidade deHarvard, nos Estados Unidos, financiando pela Capes, sob a orientao de Nicolau Sevcenkoe Clmence Jout-Pastr, a quem agradeo pelo apoio e interlocuo profcua. E-mail:[email protected]

    1 Se h quarenta milhes de afro-americanos, ento h quarenta milhes de modos de sernegro, traduo minha, de Henry Louis Gates Jr. e Jennifer Burton, Call and Response: KeyDebates African American Studies, Nova York: Norton, 2011.

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    Ator cujo talhe corporal, a fisionomia e a cor so, em tudo, opos-tos quilo que se convencionou como padro do heri, um dos poucosna histria do cinema no Brasil que participaram de diferentes projetoscinematogrficos, s vezes opostos, e em papis centrais nas tramas dosfilmes, cravando sua imagem na memria coletiva dos brasileiros queviveram no sculo XX. Como compreender essa trajetria singular numasociedade em que os espaos destinados aos intrpretes negros na tele-viso, teatro e cinema ainda esto muito aqum do destaque dado aosbrancos? Mais do que me contentar com a simples resposta de que Gran-de Otelo constitui uma exceo que confirma a regra, penso que o iti-nerrio do ator permite analisar, em certa medida, como marcadores raciaisso mobilizados no campo cinematogrfico. Busco dialogar com asmudanas na discusso sobre a representao e o lugar do negro nasociedade brasileira, tema este que se transformou ao longo da carreirado ator e com o qual ele teve de se debater em variados momentos.2

    Em linhas breves, seu percurso se inicia com personagens queincorporam o imaginrio da democracia racial, nas chanchadas dos anos1940 e 1950, passando em seguida ao realismo carioca e aos filmes deNelson Pereira dos Santos, diretor que ir problematizar o lugar do ne-gro e da populao mais pobre na sociedade brasileira. Otelo vive ummomento de ostracismo na primeira fase do Cinema Novo, que adotacomo prerrogativa uma forma distinta de retratar a populao afrodes-cendente. Na assim chamada terceira fase desse movimento, nos finaisda dcada de 1960, ele retorna como Macunama, de Joaquim Pedro deAndrade, e abre seu leque de representaes para distintos diretores,incluindo aqueles ligados ao assim chamado Cinema Marginal. Antes,entretanto, de me aprofundar nessa trajetria, discuto os conceitos queajudam a aquilat-la melhor, levando em conta a dinmica das relaesraciais e as convenes do campo cinematogrfico.

    2 Uma discusso mais aprofundada, procuro realizar na minha tese de doutorado, em andamen-to, em que analiso mais detidamente as questes aqui propostas levando em conta tambm aperformance de Grande Otelo nos filmes.

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    Persona, esteretipo, raa e corpo naperformance cinematogrfica

    Ao lidar com o itinerrio de Grande Otelo, necessrio elucidar asvariveis que conformam sua trajetria em termos raciais e a lgica dasconvenes do campo cinematogrfico, bem como a interseco entreeles. Nesse sentido, mobilizo ao menos trs conceitos: persona cinema-togrfica, persona memorialstica e esteretipo. Vejamos cada um de-les separadamente, para depois, analisarmos o conjunto.

    O conceito de persona cinematogrfica (ou artstica), conformedefinido por Sobral, diz respeito ao elo entre o intrprete e seus perso-nagens que, ao longo da carreira, irredutveis uns aos outros, so cola-dos a uma imagem atravs do aparato tcnico-cinematogrfico (leia-seroteirista, tcnico de som, diretor, editor), em distintas etapas do pro-cesso da produo distribuio e recepo de um filme. A personacinematogrfica constitui, assim

    uma individualidade artstica delineada pela performance na tela umavez que discriminada entre os filmes ao longo da carreira , a partir daqual descrita atravs de traos fsicos e gestos corporais [...]. A impli-cao que os personagens [de] dois [...] atores no so intercambiveis[...]. A noo de persona artstica, ento, diferencia um intrprete deoutro, ou seja, um mecanismo de distino, no apenas artstica, mastambm, e fundamentalmente social, uma vez que estabelece uma posi-o para se alojar na estrutura de produo cinematogrfica.3

    Tal conceito ganha maior clareza por meio da comparao entreo cinema e o teatro moderno: se neste, os louros so alcanados pelaversatilidade dos papis interpretados, naquele, a persona se constitui apartir da frmula em que, a cada repetio de um mesmo tipo, fazem-se

    3 Lus Felipe Sobral, Bogart duplo de Bogart: pistas da persona cinematogrfica de HumphreyBogart, 1941-1946 (Dissertao de Mestrado, Universidade de Estadual de Campinas, 2010),p. 62. interessante notar que embora os principais autores da histria de Hollywood utili-zem o conceito de persona cinematogrfica, no h nenhuma definio deles sobre tal con-ceito, compreensvel apenas atravs de suas economias explicativas nos textos. Ver ThomazSchatz, Hollywood Genres: Formulas, filmmaking, and the Studio System, Boston:McGrawHill, 1981; Tino Balio, History of the American Cinema: Grande Design (1930-1939), Los Angeles, University of California Press, 1995.

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    pequenas variaes. Por um lado, a estratgia evita um estranhamentomaior de parte do pblico, por outro, faz com que no se canse. Comodefine Barry King,4 no cinema h um processo de personificao entreo ator e seu papel, ao passo que no teatro, o processo de despersonifi-cao. O primeiro diz respeito ao uso de caractersticas corporais egestuais do ator para constituir um mesmo tipo idiossincrtico ao viverdiferentes personagens. Em contraposio, despersonificar se refere aomecanismo em que o intrprete se despoja de suas caractersticas maismarcantes para adentrar diversos papis, a ponto de no reconhecermoso ator por trs deles. Entretanto, trata-se mais de uma diferena de graudo que absoluta entre a atuao no teatro e no cinema. Em outras pala-vras, no cinema o intrprete representa a si mesmo, como em outrasocasies definiram Walter Benjamin5 e Paulo Emlio Salles Gomes.6

    Mas, isso no significa menor habilidade do ator de cinema.

    Como demonstra Paul Mcdonald,7 a atuao no filme diversados comportamentos cotidianos realizados por qualquer pessoa: nobasta colocar algum inexperiente para atuar numa fico ou um atorapenas com formao teatral em frente cmera, sem um treinamentoprvio. Noutras palavras, ao representar a si mesmo, o ator precisa se-guir determinados cdigos e convenes, o que requer aprendizado, poiso efeito de realidade da performance cinematogrfica se escora em atu-ar, sem parecer que se est interpretando.8 Como tal mecanismo exigepersonificar o personagem sua imagem e semelhana, talvez seja maisapropriado dizer que o ator no cinema representa geralmente sua persona.

    Nesse mtier, a descontinuidade do tempo e do espao entre ainterpretao e a exibio requer uma continuidade em outro plano, quese sustenta na semelhana entre o personagem e o ator na vida pblica,

    4 Barry King Articulating Stardom, Screen, v. 26, n. 5 (1985), pp. 27-50.5 Walter Benjamin. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica, in Obras escolhi-

    das: Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, 1987.6 Paulo Emlio Salles Gomes, A personagem cinematogrfica, in Antonio Candido (org.), A

    personagem de fico (So Paulo: Perspectiva, 1976).7 Paul Mcdonald, Film acting, in John Hill e Pamela Church Gibson (orgs.), The Oxford

    Guide to Film Studies (Oxford: Oxford University Press, 2008).8 Parte das principais crticas, na dcada de 1930 e 1940, no Brasil, considerava exagerada a

    atuao dos atores teatrais nos filmes e, logo, diferente do que seria prprio do cinema. Ver,nesse sentido, a crtica de cinema nas revistas Cena Muda (1921-1955) e Cinearte (1926-1942).

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    enquanto no teatro a continuidade temporal e espacial da interpretao,no instante do palco, exige do ator uma despersonificao para adentraro papel. Vale lembrar que tais diferenas entre performances (a do tea-tro e a do cinema) no so constantes, elas mudam com o decorrer dotempo e de acordo com o contexto.

    Vejamos, por meio de exemplos concretos, de que maneira atorescomo Grande Otelo, apesar de possurem caractersticas fsicas aparen-temente consideradas desfavorveis, conseguiram se destacar, seja nocinema, seja teatro, ou mudando de um campo a outro. Lembro as an-lises de Gilda Mello e Souza acerca de Fred Astaire; Beatriz Sarlo, so-bre Evita Pern; e Helosa Pontes, sobre as atrizes do moderno teatrobrasileiro, em especial Cacilda Becker.9 Tais autoras compreendem queos significados atribudos aos corpos das figuras pblicas so forjadosem meio a uma rede de relaes que se inserem nas convenes doteatro e do cinema e produzem hierarquias, situando o lugar de cadaartista. Mas, ao contrrio do que possa parecer, predicados corporaistidos como desfavorveis em determinado espao nem sempre signifi-cam menos trunfos, tudo depende das convenes e licenas poticasde cada campo e do grau de autonomia e conhecimento do intrpretepara poder agenci-las a seu favor e que, acrescento, implica emvivenciar conflitos que envolvem relaes de poder.

    Um exemplo pode ser buscado na concluso de Mello e Souza,para quem Fred Astaire, por no ser considerado belo como Gary Cooperou Gene Kelly, manteve-se gesto [...] libertando-se dos cacoetes damocidade para se tornar na dana um desenhista, um danarino grfi-co.10 Neste caso, a ausncia de um fsico tido como socialmente belono ofuscava seus gestos e dana, resultando contrariamente em proe-minncia para seu talento.

    No caso de Cacilda Becker, os atributos fsicos menos favor-

    9 Gilda de Mello e Souza, A ideia e o figurado, So Paulo: Duas Cidades e 34, 2005; BeatrizSarlo, Paixo e exceo: Borges, Eva Pern, montoneros, So Paulo / Belo Horizonte: Com-panhia das Letras e Editora UFMG, 2005; Helosa Pontes, Beleza roubada: gnero, esttica ecorporalidade no teatro brasileiro, Cadernos Pagu, n. 33 (2009) e idem, Intrpretes da me-trpole, So Paulo: Edusp, 2011.

    10 Mello e Sousa, A ideia e o figurado, p. 177, grifo da autora.

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    veis, somados s artimanhas das convenes teatrais,11 das quaissoube tirar proveito, lhe deram versatilidade para representar os maisdiversos papis capacidade e meio de consagrao que lhe renderamo ttulo de melhor atriz no assim chamado teatro moderno brasileiro,diferenciando-a de uma atriz de beleza clssica como Tnia Carrero,que por tal atributo pouco conseguiu despersonificar seus papis.

    De modo similar, como mostra Sarlo, a atriz Evita era diferente detodas as estrelas de auditrio. No se encaixava em nenhuma das categori-as em que se dividiam as atrizes: nem olhos grandes, nem boca na moda,nem um corpo nitidamente classificvel num tipo.12 Entretanto, ela ganha-ria destaque como primeira dama: sempre que Eva fotografada ao ladode mulheres de polticos e militares, ela a mais jovem e, alm disso, distinta. Nenhuma to magra como Eva, nenhuma to fotognica; quasetodas tm o semblante perturbado pela insegurana prpria de quem noest acostumada a ser vista em pblico, fora de seu crculo.13

    Assim como essas figuras, Grande Otelo tinha caractersticasfsicas convencionadas como desfavorveis. Mas diferentemente deFred Astaire, Cacilda Becker e Evita, sua cor da pele, tipo de cabelo eformato do nariz ganhavam tal conotao adversa em meio ao imagi-nrio racista, que mediavam os espaos dos possveis14 em diversoscampos da sociedade brasileira, em que o branco era eleito como opadro, ainda que existissem graus de separao entre os mais e osmenos belos, os magros e os gordos, os altos e os baixos, por exem-plo. nesse gradiente variado que a brancura se torna um paradigma,que as orelhas proeminentes de Fred Astaire, a magreza de CacildaBecker e o rosto inclassificvel de Evita representavam desvantagensno referidas diretamente ao signo racial branco e, por isso, com maiorprobabilidade de serem contornveis. J os intrpretes negros, paraangariar espao, tinham atenuados alguns significantes que, do pontode vista branco, ganhavam uma conotao explicitamente racial: oraescolhiam-se artistas com esses traos abrandados, como Lena Horne,

    11 Heloisa Pontes, Beleza roubada, p. 141.12 Sarlo, Paixo e exceo, p. 53.13 Sarlo, Paixo e exceo, p. 70.14 Pierre Bourdieu, As regras da arte, So Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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    ora se lhes demandava mudanas, como o alisamento dos cabelos emaquiagens que clareassem a pele.

    Do contrrio, as caractersticas tidas como signos raciais negros de-veriam ser exageradas para atingir a exata medida da estereotipia racial,como ocorreu com Louise Beavers que, para interpretar um dos nicospapis destinados a negras em Hollywood nos anos 30 o tipo Mammy ,teve que fazer uma dieta de engorda e aprender o sotaque sulista.15 GrandeOtelo, formado em So Paulo, teve que mudar tanto o sotaque vocal, quan-to o gestual para adentrar o personagem de moleque/malandro carioca, umdos poucos disponveis aos negros. A baixa estatura do ator, somada aossignificantes racializados, seria transformada na medida do lugar reservadopelo imaginrio racial ao negro, de modo que no ameaasse as hierarquiasdo patriarcalismo branco. Esses exemplos revelam que para analisar a tra-jetria de intrpretes negros, levando-se em conta as convenes do cine-ma, necessrio ter em mente que o processo de personalizao e constru-o da persona cinematogrfica vem acompanhado de uma equaoconflituosa com esteretipos raciais, que apresento a seguir.

    Como pontuam Stuart Hall e Avtar Brah, o processo lingusticono neutro e arbitrrio, mas sim um processo de negociao em quealguns detm maior poder de fixar determinados significados aos signi-ficantes do que outros.16 na distribuio desigual entre os significa-dos associados s populaes negra e branca que o conceito de estere-tipo ganha importncia, na medida que revela a recorrncia de determi-nados significados que se naturalizam de forma metonmica17 em rela-o populao afrodescendente, em oposies binrias ntidas e ex-tremadas: bom/mau, civilizado/primitivo, feio/excessivamente atra-tivo, repulsivo porque diferente/atrativo porque estranho e extico. Eso geralmente chamados a serem as duas coisas ao mesmo tempo.18

    15 Donald Bogle, Toms, Coons, Mulattoes, Mammies, e Bucks: An Interpretative History ofBlacks in American Films, Nova York: Continuum, 2009.

    16 Sobre a relao entre poder, linguagem e representao, ver Stuart Hall (org.), Representation:Cultural Representation and Signifying Practices (Londres: Sage, 2009); Avtar Brah, Dife-rena, diversidade, diferenciao, Cadernos Pagu, n. 26 (2006), pp. 329-65.

    17 A metonmia aqui entendida como um processo de reduo de um todo a uma frao menorde suas partes. Cf Hall, Representation.

    18 Traduo livre, feita pelo autor, de Stuart Hall, The Spectacle of the Other, in Hall (org.),Representation, p. 229.

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    Para alm do contedo dos significados dos esteretipos, ne-cessrio atentar tambm para a sua dinmica. Conforme Homi K.Bhabha, a crtica ao esteretipo no se deve basear na ideia de que, emalgum momento, haver um porto seguro de identificao entre o es-pectador negro e sua representao, uma vez que o processo de signifi-cao movedio, ambivalente e varivel, criando um hiato entre asnovas e infinitas formas de representao atribudas aos brancos emrelao aos grupos estigmatizados, quer racialmente ou por sua etnia.19

    Isso se torna mais compreensvel ao observarmos de que modo o estere-tipo funciona, na perspectiva dos brancos, dentro de uma estrutura desentimentos da branquitude, como explica Richard Dyer:

    O privilgio de ser branco dentro de uma cultura branca no ser objetode esteretipo em relao sua branquitude. Os brancos podem ser es-tereotipados em termos de gnero, nao, classe, sexualidade, habilida-de e assim por diante, mas o ponto aberto dessa tipificao gnero,nao e etc. A branquitude, de modo geral, coloniza as definies este-reotpicas de todas as categorias sociais, menos aquelas raciais. Sernormal, mesmo o normal desviante (queer, aleijado), ser branco. Aspessoas brancas em sua branquitude so, entretanto imaginadas comoindivduos e/ou infinitamente diversas, complexas e em mutao.20

    Como aponta o autor, h tambm gradaes de branco: algumaspessoas so mais brancas que as outras, e nessa variabilidade quereside a capacidade de negociao e potncia de sua representao. Aliberdade do branco, desse modo, poder ser a medida de todas as coi-sas, sem que isso se refira sua branquitude, mas a uma pretensa ideiade individualidade neutra. Como analisa Avtar Brah,

    h uma tendncia [...] de considerar o racismo como algo que tem a vercom a presena de pessoas negras. Mas importante salientar que tan-to negros como brancos experimentam seu gnero, classe e sexualidadeatravs da raa. [...] Tal desconstruo necessria se quisermos deci-frar como e por que os significados dessas palavras [homem e mulherbranca/homem e mulher negra] mudam de simples descries a catego-

    19 Homi Bhabha, O local da cultura, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.20 Traduo livre, feita pelo autor, de Richard Dyer, White, Londres: Routledge, 1997, pp. 11-2.

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    rias hierarquicamente organizadas em certas circunstncias econmi-cas, polticas e culturais. 21

    Ou seja, a estrutura de sentimentos da branquitude faz comque o racismo, ou os estudos de relaes raciais, sejam algo percebidocomo restrito ao universo negro, se assentando na pretensa concepodesse imaginrio de que o branco se constri destitudo de uma ideia deraa. Como demonstra Dyer, o imaginrio da branquitude (ou, nos ter-mos de Stam e Shohat, o eurocntrico), fruto de sculos de uma domi-nao que produziu uma infinita visibilidade do branco nas formas ex-pressivas cannicas do ocidente, como a literatura, as letras de msica,o cinema e o teatro.22 Paradoxalmente, isto o tornou um ente invisvel,como se fosse destitudo de raa. Em contraposio, a invisibilidadegeneralizada do negro e de outros grupos estigmatizados na economiadas representaes resulta numa visibilidade exagerada, pois suas apa-ries pontuais so decodificadas como imagens equivalentes a toda apopulao negra, ignorando-se o fato de que esta to complexa e di-versa como qualquer grupo humano.

    Tendo em mente as anlises de Bhabha, Hall, Brah e Dyer, citadasacima, defino esteretipo pela distribuio desigual do processo lingustico,que em sua dinmica estabelece uma relao centrfuga entre os significa-dos e os significantes dados ao signo branco, ao passo que os significadosligados ao signo negro tm um movimento centrpeto em relao aos signi-ficantes raciais (i.e. cor/fentipo/cultura). Noutras palavras, as representa-es do homem branco tm infinitos pontos de disperso; como pontuaDyer, elas colonizam qualquer categoria social, menos a de raa, ao passoque os significados das representaes do afrodescendente retornam aosignificante negro e, portanto, s categorias raciais, situando-o no como ouniversal per se, mas na maioria das vezes em posio relativa.

    21 Avtar Brah, Diferena, diversidade, diferenciao, p. 345.22 Ella Shohat e Robert Stam, Crtica da imagem eurocntrica, So Paulo: Cosac Naify, 2006.

    Diferentemente de Dyer, os autores usam a ideia de eurocentrismo ao invs de branquitude.Mas assim como o eurocentrismo no est reduzido aos europeus, a branquitude tambm no.Ela uma estrutura de sentimentos, um modo de ver e sentir o mundo sem estar restrita aum grupo racial, embora ela seja produto do poder de uma elite branca que domina os meioseconmicos e simblicos. Como aponta Dyer, esse conceito pode ser sim utilizado no Brasil,uma vez que o incentivo miscigenao e as polticas de branqueamento carregam consigouma ideal de branquitude e eurocentrismo.

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    Ao conceituar o esteretipo em termos de sua dinmica lingusti-ca, busco evitar certa forma de crtica ao esteretipo23 que tem sidocooptvel por aqueles que buscam minimizar a varivel racial nas de-sigualdades sociais.24 Refiro-me definio do esteretipo apenas comoreferncia a representaes corretas/incorretas ou positivas/negativas25

    e procuro mostrar, por meio da definio acima, que a liberdade repre-sentacional do branco se fundamenta justamente por sua variao e trans-formao infinita em imagens boas, ms, complexas, ambguas, carac-tersticas corporais diversas que contribuem para al-lo ao lugar dehomem universal.26

    verdade, como tm apontado alguns autores, que uma boa atu-ao poderia conferir maior complexidade a um personagem estereoti-pado.27 De fato, Grande Otelo seria aclamado tambm em papis dessetipo, e diversos atores negros se valeram dessa estratgia para dar no-vos sentidos a seus personagens. Entretanto, como possvel ver nascrticas da poca, por vezes o ator negro era aclamado justamente porinterpretar muito bem um esteretipo.28 Isto significa que uma boa atu-ao, com destaque inesperado de um personagem menor, no neces-sariamente uma forma de se contrapor reproduo de esteretipos,mas pelo contrrio, pode refor-los, mesmo contra a vontade do ator.

    23 Refiro-me ao livro de Joo Carlos Rodrigues O negro brasileiro e o cinema, Rio de Janeiro:Pallas, 2001.

    24 Basta ver as respostas das empresas que veiculam esses anncios e os comentrios de internautascontrrios s atuais denncias da SEPPIR e da CONAR quanto ao racismo nas propagandasda Duloren, Bombril, Devassa e Azeite Gallo. Em geral, as empresas e internautas argumen-tam que a imagem positiva ou que no passa de algo trivial, quando o que se procuramostrar com a definio de esteretipo acima que o problema mais profundo, pois serelaciona pela prpria distribuio desigual dos significados no processo lingustico.

    25 Como atenta Robert Stam, nem sempre as representaes realistas so aquelas que tm omaior potencial de crtica, pois a pica e mesmo a grotesca podem ser estratgiascontranarrativas muito mais poderosas. Robert Stam e Louise Spence. Colonialism, Racismand Representation, Screen, v. 24, n. 2 (1983), pp. 2-20; idem, Multiculturalismo tropical,So Paulo: EDUSP, 2008.

    26 Denunciar esteretipos negativos talvez seja o primeiro passo de uma estratgia que requeruma crtica profunda. Para estratgias contranarrativas, ver Stuart Hall (org.), Representation.

    27 Donald Bogle, Toms, Coons, Mulattoes, Mammies, e Bucks; e Noel dos Santos CarvalhoCinema e representao racial: o cinema negro de Zzimo Bulbul (Tese de Doutorado,Universidade de So Paulo, 2005).

    28 Conforme aparece na crtica de um leitor do filme Caminhos do cu (1943), da Cindia:Grande Otelo, o timo ator cuja cara j nos faz rir, esteve magnfico nas cenas em que tomouparte, principalmente naquela das bananas, in A Cena Muda, 7 de setembro de 1943, p. 22.

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    Desse modo, a habilidade de Grande Otelo possibilitou que, por umlado, ele encarnasse personagens nos conformes do imaginrio dabranquitude; por outro, que o ator se integrasse a projetos cinematogr-ficos que buscaram diversificar a representao do negro.

    Como lembra Avtar Brah, o racismo e outras formas de opressono incidem do mesmo modo sobre as trajetrias individuais, uma vezque tais formas de dominao so histricas, contextuais e lidas atravsde experincias e subjetividades que se diversificam de uma pessoa aoutra. nesse sentido que considero produtivo apresentar o conceito depersona memorialstica.

    Para alm de uma persona cinematogrfica, como nos ensina LuizCosta Lima, todos ns guiamos nossas vidas atravs de uma persona,espcie de armadura simblica ou janela que nos permite ver omundo e ser visto por ele. 29 A esse tipo de persona, acrescento o adje-tivo memorialstica para evitar confuses com a cinematogrfica, umavez que o seu discurso prprio o discurso memorialstico, comodefine Lima.30 Recuperando novamente as reflexes de Avtar Brah, se-ria possvel traduzir essa persona por aquilo que ela chama de identida-de, qual seja, o que enunciado como eu, ou o processo pelo qual, adespeito de seu carter mltiplo e instvel, a subjetividade significadacomo tendo coerncia [...] como tendo um ncleo.31

    Tanto a persona cinematogrfica, quanto a memorialstica soformadas pelos papis pelos quais determinado sujeito opta e/ou os quelhe so dados a escolher. Uma vez definido um papel ou papis, outrastantas alternativas so fechadas, conformando-se, no caso da personacinematogrfica, uma singularidade artstica que deve seguir uma regu-laridade no decorrer da carreira. No caso da memorialstica, medidaque o sujeito

    se convence que o que exibe mais do que um papel, passa ver o mundode acordo com as coordenadas deste e s de acordo com elas (tomar-me

    29 Luiz Costa Lima, Pensando nos trpicos (Dispersa demanda II), Rio de Janeiro: Rocco,1991.

    30 Lima, Persona e sujeito ficcional, p. 53.31 Avtar Brah, Diferena, diversidade, diferenciao, p. 371.

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    como tmido ou arrogante ou cnico ou revoltado etc., implica conside-rar os acontecimentos de uma certa maneira). A janela do papel criauma estrada de mo nica. Diante dela, deixa de trafegar o que noentra em seu ngulo de viso; [...] assim sendo, o mundo da persona antes um mundo sonhado do que visto; potencialmente, nele no hcontradio; no mximo, o desacordo, o surpreendente, o inesperado.32

    Embora sejam cunhadas em processos similares, a persona cine-matogrfica produto das convenes do campo do cinema, ao passoque a memorialstica, das prprias formas de rememorar, ambas poden-do ou no corresponder-se entre si em determinados momentos. No casoabordado neste artigo, possvel perceber como elas se distinguem atra-vs das fontes de que lano mo, a saber: os filmes que Grande Otelointerpreta e suas entrevistas, que tm o registro memorialstico varian-do conforme o momento e o pblico a que se dirige. a partir dessasduas formas discursivas que Otelo se move e se constri, ao mesmotempo em que movido e construdo por aqueles que o veem. Diante deGrande Otelo, esse conceito torna-se mais profcuo medida que o pr-prio ator modula seus nomes, conforme a persona utilizada: GrandeOtelo seria no mais das vezes a persona cinematogrfica, que se dife-rencia de Sebastio Bernardes de Souza Prata, a memorialstica, usadapelo ator para tomar distncia dos seus personagens, Tio, Azulo, Es-prito, Passarinho e Macunama, entre outros.

    No fundo, essa distino entre personas cinematogrfica e me-morialstica busca borrar as fronteiras impostas por uma pretensadualidade entre aparncia e essncia, como se houvesse um ser verda-deiro por trs dos papis, ou como se fosse possvel separar a nomeaodos prprios nomeadores. Afinal, o distanciamento s possvel, con-forme Lima, quando se muda da dico memorialstica para a ficcionalou ensastica, ou s parece praticvel quando um hiato se depe entreo memorialista e o tempo rememorado. Do contrrio, tal processo se-ria semelhante ao ato de quem arrancasse a prpria pele.33

    Dito isto, atino para hiptese de que, diferentemente do que ocorre

    32 Lima, Persona e sujeito ficcional, pp. 52-3.33 Lima, Persona e sujeito ficcional, p. 55.

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    com atores brancos, a persona cinematogrfica e a memorialstica deGrande Otelo so, durante todo o seu itinerrio, acossadas pelos estere-tipos raciais. Nesse sentido, seus papis flmicos e sociais so marca-dos por uma viso reducionista do negro, recaindo sob suas costas aqui-lo que Henry Louis Gates Jr.34 define como o fardo da representaoracial, na medida que suas aes a exemplo daquelas dos gruposestigmatizados so examinadas como atitudes que invariavelmente tra-em ou honram seu grupo.

    Se a persona protege qualquer ser, ao mesmo tempo em que oaprisiona, no caso de Grande Otelo, a persona cinematogrfica e me-morialstica por vezes corresponder ao esteretipo racial especial-mente ao de moleque malandro.35 Isto ocorre por conta da distribui-o desigual de personagens e papis sociais, fruto de uma repartiodesproporcional de bens materiais e simblicos baseada na raa. Poroutro lado, em certos momentos em que ele consegue distanciar-se emrelao ao tempo rememorado, eclodem conflitos entre a persona me-morialstica e os papis representados anteriormente, com seguidas ten-tativas de buscar apaziguamentos, procurando descarnar-se de umapersona a outra, num movimento colidente e doloroso.

    Mas, se h uma distribuio desigual dos significados no pro-cesso lingustico, que constrange a trajetria dos afrodescendentes, comoexplicar a singularidade do itinerrio de Grande Otelo em relao aoutros atores negros e brancos 36 no cinema brasileiro, que possibili-ta cruzar diferentes movimentos cinematogrficos desde 1930 a 1980?A partir dessa questo e do que foi exposto acima, possvel apresentarmelhor a hiptese deste artigo. Argumento que o itinerrio de Otelo no

    34 Henry Louis Gates Jr., Thirteen Ways of Looking at a Black Man, Nova York: Vintage Books,1997.

    35 Grande Otelo representativo da incorporao do esteretipo de moleque malandro, que lhe dado, e do qual faz uso, mas jamais sem conflitos. Atores como Abdias do Nascimento, ZzimoBulbul e Antnio Pitanga buscaram questionar e criar suas trajetrias contra esses estereti-pos. O que pontuo aqui que a distribuio desigual de significados na linguagem costumaproduzir esteretipos que acossam grupos estigmatizados, mas cada membro desse grupolidar com tais esteretipos de maneiras diversas.

    36 Poderamos citar Ruth de Souza, Jos Lewgoy e Wilson Grey que, de certo modo, percorremdiferentes perodos e movimentos do cinema brasileiro, mas no tm a mesma presena noimaginrio nacional que Grande Otelo.

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    cinema define-se por trs fatores complementares: em primeiro lugar,este ator e sua persona cinematogrfica tornam-se lugar de expressodas vicissitudes da atribulada formao do campo cinematogrfico noBrasil, encarnando diferentes projetos; segundo, sua persona cinema-togrfica e memorialstica varia conforme as representaes raciais setransformam no interior do campo cinematogrfico; por fim, ao adqui-rir uma habilidade artstica enorme, e por ter passado a maior parte desua vida entre os brancos, ele aprendeu estratgias para negociar comtal imaginrio, sem ferir os brios de uma sociedade racista que, comodefiniu Florestan Fernandes, tem preconceito de no de ter preconcei-to,37 angariando assim um espao mpar. Sua singularidade no campocinematogrfico est mais fortemente ligada, portanto, s vicissitudesdesse espao do que a uma mudana de mentalidade geral na sociedadebrasileira com relao ao imaginrio da branquitude, uma vez que osesteretipos que ele encenou nos anos 30 voltaro em seus papis nofinal de sua vida, mas agora na televiso.

    Reconhecendo os limites impostos neste artigo, que impossibili-tam fazer jus a uma trajetria to complexa, pretendo pontuar recorrn-cias na vida do ator e momentos que exemplificam mudanas, medidaque apresentem contribuies s questes acima mencionadas. Prossi-go, portanto, com dados biogrficos que esclarecem a entrada de Gran-de Otelo no campo do entretenimento, na dcada de 1920.

    37 Conforme define Fernandes, trata-se de uma caracterstica do preconceito brasileiro, em queo preconceito de cor condenado sem reservas, como se constitusse um mal em si mesmo,mais degradante para quem o pratique do que para quem seja vtima. A liberdade de preservaros antigos ajustamentos discriminatrios e preconceituosos, porm, tida como intocvel,desde que mantenha o decoro e suas manifestaes possam ser encobertas ou dissimuladas(mantendo-se como algo ntimo; que subsiste no recesso do lar; ou se associa a imposiesdecorrentes do modo de ser dos agentes ou do seu estilo de vida, pelos quais ele tm o deverde zelar). Embora o negro e o mulato faam contraponto [...], eles no so considerados demaneira explcita. Ao contrrio ficam no background, numa confortvel amnsia para osbrancos. [...] Do ponto de vista e em termos da posio scio-cultural do branco, o queganha o centro do palco no o preconceito de cor. Mas, uma realidade moral reativa, quebem poderia ser designada como o preconceito de no ter preconceito. Minando em suacapacidade de agir acima das normas e dos valores ideais da cultura, em vez de condenar aideologia racial dominante [...]. Em lugar de procurar entender como se manifesta o precon-ceito de cor e quais so seus efeitos reais, ele suscita o perigo da absoro do racismo, atacaas queixas dos negros ou dos mulatos como objetivao desse perigo e culpa os estrangei-ros por semelhante inovao estranha ao carter brasileiro. Florestan Fernandes, O negrono mundo dos brancos, So Paulo: Diefel, 1972, pp. 24-5, grifos do autor.

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    A infncia de Grande Otelo e aCompanhia Negra de Revistas

    Nascido em Uberlndia (MG), a 18 de outubro de 1917, Sebastio Ber-nardo Silva,38 como foi batizado, entrou cedo em contato com o mundoartstico. Filho de Maria Abadia de Souza e de Francisco Bernardo Costa,ambos agregados de famlias abastadas do tringulo mineiro, o meninoapelidado Tio preferia perambular pela cidade a ficar na escola onde erao nico aluno negro. Diante de uma professora que o repreendia, imagi-nando que o menino tinha dificuldades de aprendizagem, na sala de aulavivia em desconforto. J na rua, aprendeu a cantar com a proprietria doHotel do Comrcio, que se valia do menino para ajud-la a receber osviajantes que chegavam procura de uma noite bem dormida. Com ostrocados recebidos, aproveitava para assistir a filmes, comprar gulosei-mas e a revista Tico-Tico, que via nas mos dos filhos do patro de seuspais, mas que no tinha oportunidade de ganhar. Em suas cantorias pelacidade, no tardou para que o menino se tornasse atrao do Circo doSerrano, seja na pantomima O tesouro, ou em Os bandidos da serra mo-rena. nessa poca que a famlia branca Gonalves, dirigente da Compa-nhia de Comdias e Variedades Sarah Bernhardt, se hospeda no Hotel doComrcio e v Sebastio. Com os Gonalves ele se muda para So Paulo,como filho adotivo. Tambm com eles, aprende monlogos teatrais e can-es brasileiras. Entretanto, a relao que mantm com a famlia adotivaenvolve desempenhar um trabalho pesado para crianas, revelando a exis-tncia de um legado escravista ainda vivo.39 Ao acompanhar sua tutoranas aulas de canto, Sebastio recebe o apelido de Otelo do maestroitaliano Filipo Alessio, que tentava prever o futuro do tenorino: dizia quequando adulto, ele seria um intrprete da pera homnima de GiuseppeVerdi (1887). Ao relatar essa previso, Otelo recriava em sua personamemorialstica a ideia de um destino incontornvel, enquanto lamentava:mas no deu certo, nem cresci e nunca cantei pera.40

    38 Grande Otelo mudou o seu nome de batismo para Sebastio Bernardes de Souza Prata. Discu-to essa mudana de forma mais detalhada na minha tese, em andamento.

    39 Grande Otelo conta que levou surras quando deixou de passar as roupas dos artistas da com-panhia para brincar com outras crianas. Cf. Srgio Cabral, Grande Otelo: uma biografia,So Paulo: 34, 2007, pp.33-4.

    40 Ver Ana Karicia M. Dourado, Fazer rir, fazer chorar: a arte de Grande Otelo (Dissertao deMestrado, Universidade de So Paulo, 2005).

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    Em seus primeiros anos de carreira, as oportunidades abertas parao ator ficaram restritas aos lugares destinados aos artistas negros e aosatores mirins: o circo, a msica e os teatros de variedades. Vale lembrarque, nesse perodo, o ator negro Benjamin de Oliveira fazia sucesso noCirco Spinelli, no Rio de Janeiro.41 Joo Cndido da Silva, De Chocolat,montava sua Companhia Negra de Revistas, inspirado pela Revue Ngreparisiense, que ganhava destaque com Josephine Baker.42 As duas com-panhias de revista eram compostas apenas por artistas negros. Alm deDe Chocolat, ganharam destaque na Companhia Pixinguinha e Dongaque, a partir dessa poca, receberiam notoriedade no cancioneiro naci-onal. Com efeito, foi nesse perodo que se iniciou a voga do Negrismoem Paris, com influncias duradouras sobre o campo do entretenimentobrasileiro. Como explica Tiago Melo Gomes, no Brasil, em que grandeparcela da populao era de cor, diferentemente de Paris, o sucessodas novas atraes francesas ganhava contornos distintos, abrindo pos-sibilidades para uma maior aceitao dos artistas negros e dos elemen-tos de matrizes africanas nos palcos.43 Tal processo teria contribudopara integrar, com restries, o negro, alm do carnaval e do samba, naconstituio de uma identidade nacional brasileira.

    Grande Otelo, destarte, insere-se no campo do entretenimentonum momento de maior abertura para atores negros, apesar dos papis etipos restritos. Ainda sob a custdia da famlia Gonalves, ele contra-tado pela companhia dirigida por De Chocolat para a estreia em SoPaulo em outubro de 1926. Faz turn por vrias cidades, interpretandopeas sugestivamente intituladas Tudo Preto; Preto no branco; Caftorrado; Carvo nacional; e Revistas das revistas, recebendo inmeroselogios, que o destacavam como o melhor ator da Companhia. O cro-nista da Tribuna de Santos, por exemplo, guarda

    para o fim uma referncia especial ao Pequeno Otelo, artistazinho de seisanos de idade, vivo, esperto, como um azougue. o melhor ator da com-

    41 Ermnia Silva, Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil, SoPaulo: Altana, 2007.

    42 Nicolau Sevcenko, Orfeu exttico na metrpole, So Paulo: Companhia das Letras, 1992;Thiago Gomes, Um espelho no palco, Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.

    43 Gomes, Um espelho.

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    Otelo na Companhia Negra de Revistas em 1926

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    panhia [...] diz com naturalidade admirvel poesias e monlogos em es-panhol, italiano, portugus etc. [...]. Em suma, a novidade que a Compa-nhia Negra de Revistas representa no teatro nacional deve ser encorajadacomo uma louvvel iniciativa para o levantamento moral da raa.44

    O aspecto mais destacado por este e outros cronistas era o fato deuma criana declamar de memria poesias e monlogos em vrias ln-guas. O virtuosismo e a atuao como de um adulto era o elemento queo campo de entretenimento mais buscava enfatizar em artistas mirins,como os brancos Jack Coogan e Shirley Temple e o negro Allen ClaytonHoskins, o Farina. No caso de Otelo, sua baixa estatura dava a impres-so dele ser mais novo do que era, impressionando ainda mais a plateiae os cronistas.45 Alm disso, a cor seria enfatizada pelos crticos, queatribuam Companhia Negra de Revista o papel de levantamento moralda raa, construindo sua crtica sem levar em conta suas inovaesformais dentro do gnero.

    Mas o sucesso do pequeno Otelo duraria pouco. Em fins de abrilde 1927, seus tutores o buscam em meio turn no Esprito Santo, paravoltar a So Paulo. Aps o retorno, ele foge, mora na rua e num abrigode menores, at ser adotado pela famlia do advogado Antnio deQueiroz, que se teria encantado com os dotes artsticos do menino. Otelopassa a viver no bairro de Higienpolis e estudar no Liceu Corao deJesus lugares frequentados pela elite paulista. momento de umasocializao intensa com brancos, que lhe daria um traquejo para lidarcom eles sem ferir os brios e as hierarquias tcitas e, por vezes explci-tas, existentes nas relaes raciais em uma cidade bastante segregadacomo So Paulo.

    Em 1932, ele canta hinos na Rdio Educadora em apoio campa-nha constitucionalista de So Paulo contra a Ditadura Vargas. Com can-tores dessa emissora, aprende a entoar jazz. Sob a custdia da famliaQueiroz, ele fica at 1933, quando decide seguir a carreira artstica. Em

    44 Tribuna de Santos, 12 de janeiro de 1927, apud Cabral, Grande Otelo, p. 37.45 Nas crticas, os cronistas erram a idade de Otelo, atribuindo cinco, seis e sete anos quando na

    verdade ele tinha nove. Ver Srgio Cabral, Grande Otelo; e Orlando Barros, Coraes dechocolate: a histria da Companhia Negra de Revistas (1926-1927), Rio de Janeiro: LivreExpresso, 2005.

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    1934, contratado pela Companhia de Revistas de Jardel Jrcolis, quefazia turn pelas cidades paulistas. Entretanto, os monlogos, canese nmeros aprendidos na infncia e na Rdio Educadora no arranca-ram aplausos do pblico carioca. J crescido, a estatura baixa, mediapor volta de um metro e meio, no mais contribua para que os longostextos recitados em diferentes lnguas impressionassem a plateia, queantes o aclamara como criana prodgio. Acrescente-se, como revelamas resenhas teatrais da poca46 e o prprio ator lembraria mais tarde,que pblico carioca acharia seu sotaque paulista acentuado em demasiapara interpretar os dois nicos papis disponveis aos artistas negros: ode sambista malandro e o de jazzista americano.47 A reinsero de Otelona carreira artstica enfrenta uma indefinio durante dois anos, tempoem que canta jazz e faz papis de negro americano e pequenas pontasde malandro sem sucesso, enquanto se dedica a conhecer a boemia, osamba e o sotaque carioca. 48

    A volta do sucesso: o teatro de revista, o Cassino da Urcae as chanchadas

    No final de 1936, Grande Otelo finalmente aclamado pelo pblico napea Maravilhosa, com o nmero Tabuleiro da Baiana, em parceriacom a mulata Do Maia.49 O teatro de revistas e o prprio ator pas-sam a incorporar cada vez mais em seus esquetes e atraes aquilo queestava sendo construdo como o folclore nacional, com grande desta-que para a Bahia, as baianas, samba, frevo e uma esttica estilizada das

    46 Ver as crticas teatrais dirias do Jornal do Brasil, de 31 de maio de 1935 a 4 de julho de1935; e Deise Santos de Brito, Um ator de fronteira: um anlise da trajetria do ator GrandeOtelo no teatro de revista brasileiro entre as dcadas de 20 e 40 (Dissertao de mestrado,Universidade de So Paulo, 2011).

    47 Outros intrpretes, inclusive brancos, enfrentariam o problema do sotaque italianado de SoPaulo no Rio de Janeiro, como Cacilda Becker. Mas, neste caso, ela ao menos tinha umagama mais varivel de papis, podendo at interpretar uma paulista, italiana ou estrangeira,sem que seus personagens estivessem limitados por uma viso de estereotipia racial.

    48 Ver Depoimento para Posteridade no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em1967.

    49 Essa era a definio que a artista recebia nos anncios do Jornal do Brasil da poca. Ver JosCarlos Burle, Msica popular brasileira, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 de novembrode 1936, p. 18.

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    religies afro-brasileiras.50 Com efeito, nessa poca que diversos ele-mentos de matrizes africanas so transformados em marcos da identida-de oficial, passando por um processo de supresso de qualquer arestaque pudesse desbancar o imaginrio branco. Feijoada, carnaval, sambae capoeira convertem-se em smbolos oficiais da identidade brasileira;51

    no futebol, d-se a profissionalizao dos jogadores negros. Igualmen-te, os palcos dos cassinos, emissoras de rdio e produtoras de cinemacomo a Cindia e, posteriormente, a Atlntida passam a incorporar taiselementos que encontravam a simpatia do pblico.52 Tal fenmeno re-sulta em imperativos especficos para os atores e atrizes negros casode Grande Otelo; e produz novas expectativas, com as quais tero dedialogar, na condio de quererem permanecer no campo.

    Grande Otelo e Do Maia fazem turn pelo Estado de So Paulo e,logo depois, so contratados pelo mais conhecido cassino da poca o daUrca, onde encenam diversos nmeros carnavalescos. Tambm remontama esse perodo as incurses cmicas que lhe renderam loas, especialmentequando se travestia de mulher loira, ou quando parodiava o cantor argenti-no Carlos Gardel. J no filme Onde est a felicidade? (1938), Otelo inter-preta o papel de moleque preguioso e malandro que alm de consistir numdos esteretipos que, poca, estavam mais associados populao negra,se tornaria sua persona cinematogrfica, percorrendo toda a sua carreira.53

    50 Ver, nesse sentido, o artigo de Rita do Amaral e Vagner Gonalves da Silva, Foi conta para todocanto: as religies afro-brasileiras nas letras do repertrio musical popular brasileiro, Afro-sia,n. 34 (2006), pp. 189-235. Nele os autores analisam como a Bahia, a baiana e as filhas de santo doCandombl ganharam estilizaes nas letras de samba, cassinos, emissoras de rdio e casas deespetculo do Rio de Janeiro, projetando-se nacionalmente. Tais elementos foram sintetizados porCarmen Miranda que, em seu vesturio e gestos, usou mltiplos signos sados do universo sim-blico dos terreiros e cantados por ela nos versos de O que que a baiana tem?, de 1939".

    51 Lilia Schwarcz, Nem preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa na intimidade, inLilia Schwarcz (org.), Histria da vida privada IV (So Paulo: Companhia das Letras, 1993);Peter Fry, A persistncia da raa, Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005; HermanoVianna, O mistrio do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

    52 Vale lembrar que Jos Carlos Burle, fundador e um dos principais diretores da Atlntida, em seusartigos no Jornal do Brasil, entre 1936 e 1937, defenderia a msica, teatro e cinema genuinamentebrasileiros, citando Mrio de Andrade e Gilberto Freyre. O cineasta tecer loas a Grande Otelo porconta da pea Maravilhosa. Ver Lus Alberto Rocha Melo, Argumento e roteiro: o escritor decinema Alinor Azevedo (Dissertao de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 2006).

    53 Em estudo realizado por Thales de Azevedo sobre os esteretipos raciais na Bahia, em 1951 omesmo perodo de sucesso das chanchadas , os esteretipos da indolncia e da feiura dosnegros so recorrentes. Thales de Azevedo, Cultura e situao racial no Brasil, Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 1966.

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    Oscarito e Grande Otelo em Aviso aos Navegantes (1950)Grande Otelo e Eliana Macedo no nmero No tabuleiro da baianade Carnaval Atlntida (1952)

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    Redesenham-se, portanto, os lugares de Grande Otelo no campodo entretenimento: nos cassinos, teatros de revistas e cinema, ele fazesquetes cmicos no papel de moleque, alm de nmeros folclricoscom samba e carnaval. Tambm marca presena nos filmes do gnerocinematogrfico de maior sucesso, nos idos de 1940 e 1950, a chancha-da, que uniu, em suas tramas de inteno cmica, esquetes e nmeroscarnavalescos do teatro de revistas e dos cassinos. Grande Otelo des-ponta ao fazer par com Oscarito e, posteriormente, com Ankito, amboscomediantes brancos. A dupla formada por um branco e um negro refor-a justamente os marcadores raciais e a estatura de cada comediante,buscando obter efeito humorstico em tramas que abordam: 1) a trans-formao de um sujeito inbil em heri; 2) a inverso de hierarquiassociais; 3) trocas de papis; 4) nomes que frequentemente remetem cor; e 5) relacionamentos afetivo-sexuais entre brancos e negros.

    Em filmes como Aviso aos navegantes (1950), Carnaval Atlntida(1952), Dupla do barulho (1953), Matar ou correr (1954), Grande Otelointerpreta personagens de classe baixa que, no decorrer do enredo, ga-nham destaque. De ajudante de cozinha de um transatlntico a heri datripulao, de faxineiro de estdio cinematogrfico a colaborador dofilme, de ajudante de circo grande atrao do picadeiro, de vagabundoa heri de uma cidade. A escalada de tais figuras inesperada, ocorren-do por um golpe de sorte. Nesse tipo de enredo, calcula-se o efeitocmico com base no processo de transformao de um personagem apa-rentemente inbil em heri,54 mas tambm no se busca ultrapassar cer-tos limites, bem expressos pelo fato de Grande Otelo estar na maiorparte das vezes num patamar abaixo do de Oscarito.

    Em meio a tal projeto, a cor, a proporo corporal e a fisionomiaarredondada de criana de Grande Otelo serviram de suportes ao hu-mor, medida que sintetizavam tudo aquilo que diferia do heri cine-matograficamente construdo, branco, alto e de rosto anguloso caso,

    54 Utilizo a definio de humor de Mary Douglas, que, segundo a autora, nasce da justaposioentre elementos considerados disparatados. Mary Douglas, Implicit Meanings, Londres:Routledge, 1999. Cf. tambm, sobre o mesmo tema, Sigmund Freud, The Jokes and its Relationto the Unconscious, Nova York: Penguin Books, 2003. Henri Bergson, O riso, So Paulo:Martins Fontes, 2007.

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    por exemplo, de Bing Crosby, em Hollywood; e Anselmo Duarte, nocinema brasileiro. As prprias convenes da comdia permitiam taislicenas, vez que esse gnero construa seu humor atravs da rigidez enormatividade existentes nas relaes sociais e representadas em ou-tros gneros cinematogrficos, como o drama. Alm disso, os mesmosatributos que o habilitavam para o papel de moleque nesse tipo de pro-duo tambm contribuam para que sua transformao em heri ja-mais suplantasse o mocinho e o comediante brancos.

    Mais especificamente, a manipulao de uma gama de significa-dos sociais indexados cor e de outros atributos fsicos do intrpreteera feita por meio de associaes entre a posio social do personagemnegro, suas caractersticas corporais e seus nomes, no raro alusivos sua cor caso de Azulo, Rapadura, Milk Shake e Xis Cocada. No casode Azulo, procurava-se encontrar efeito cmico na sobreposio entreo nome no aumentativo e a baixa estatura do ator. Outras justaposiesreforam, por contraste, a cor de Otelo, por exemplo, quando ele paro-dia o tipo de palhao conhecido como branco o clown , a Julieta deRomeu e o cantor branco argentino Carlos Gardel. Referncias entrepersonagem e a origem racial, inexistentes nos papis de Oscarito, JosLewgoy e Anselmo Duarte, visto que estes encarnavam outras e diver-sas categorias sociais, sem nunca estarem restritos por sua brancura.

    Outro ponto que chama a ateno para a fabricao da personacinematogrfica atravs do corpo de Grande Otelo que na maioria des-ses filmes, seus personagens do vazo ideia expressa pelas interpreta-es que se tornaram clssicas sobre o Brasil, de que o homem negro estfora do mundo dos afetos e dos prazeres, como observa Laura Moutinho.55

    Apenas em Tambm somos irmos (1949) e Dupla do Barulho (1954), otema das relaes afetivo-sexuais entre brancos e negros abordado, mas

    55 De acordo com a autora, nas obras de Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Paulo Prado, GilbertoFreyre e Srgio Buarque de Holanda, o homem negro e o mestio no aparecem jamais nomundo dos afetos e prazeres, somente no mundo do trabalho. Isso pode indicar que, naviso dos autores, apenas o branco foi elemento ativo no processo de miscigenao sendo osdemais destitudos, portanto, de sexualidade. Laura Moutinho, Razo, cor e desejo, SoPaulo: Editora Unesp, 2003. Vale lembrar que os livros de Paulo Prado, Gilberto Freyre eSrgio Buarque de Holanda, analisados pela autora, foram escritos na dcada de 1930, quan-do Otelo despontava como astro das chanchadas. A proximidade temporal indica que tal ima-ginrio estava vivo no perodo de maior xito desse gnero cinematogrfico.

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    enquanto tabu. Nestes filmes, os personagens negros so castigados aolongo da trama por nutrirem o desejo de se casar com mulheres brancas.Somente na comdia Aviso aos navegantes, esse tema abordado visan-do explorar elementos que poderiam ser percebidos, em seu tempo, comodisparatados: no incio, o personagem de Grande Otelo est acompanha-do de uma mulher branca argentina; no final, de duas loiras altas.

    Os casos so representativos dos usos da chave humorstica paraexpor constrangimentos e interditos sociais, procurando extrair efeitocmico da contradio entre a aparncia de Otelo e sua desejabilidade noterreno sexual. Mais alm, so exemplos que revelam justamente os limi-tes de sua persona cinematogrfica, encerrada na corporalidade do este-retipo de um negro infantilizado por sua estatura e trejeitos cnicos.Vale reforar a consonncia entre tal modelo de comicidade e o patriarca-lismo branco que adere conveno cinematogrfica de cariz hollywoo-diano e isso a despeito de se colocar em cena, no Brasil, o tema damiscigenao racial.56 Na mesma poca das chanchadas, o prprio Otelo,a partir de um relato memorialstico em que contrapunha momentos dife-rentes de seu percurso, nos d os elementos para pensar em quoconflituosa era sua relao com a persona cinematogrfica qual estavaligado aquela esperada pelo pblico, persona que ele prprio ajudara afabricar, mas que fugia ao seu controle. Apresentando o projeto deprotagonizar a lenda gacha do Negrinho do pastoreio,57 o ator falava decomo, apesar de toda a sua habilidade para viver diversos papis, as ex-pectativas estavam continuamente a recoloc-lo em lugar fixo:

    56 importante lembrar que a representao de uma masculinidade negra assexuada seria con-veno em Hollywood aps as vrias rebelies e proibies do filme O nascimento da nao(1915), que mostrou tentativas de estupro de uma mulher branca por um homem negro, fazen-do apologia da Ku Klux Klan. Essa conveno se transformaria em lei para todos os filmes,com o Production Code de 1934, que proibia cenas de relaes interraciais ou sugesto delasnos filmes de Hollywood, bem como cenas em que o espectador branco/branca pudesse sentiratrao por artistas negros(as). Ver, nesse sentido, Thomas Cripps, Slow Fade to Black, NovaYork: Oxford University Press, 1993; Barry Langford, Film Genre: Hollywood and Beyond,Edinburgh: Edinburgh University Press, 2005. Sem estar restrito a esse tipo de lei, mas influ-enciado por tais convenes, o cinema brasileiro apresentaria, na maior parte dos filmes, umamasculinidade negra assexuada, mas tambm no eliminaria sugestes de relaes interraciais.

    57 Este o drama de um menino escravo que, suspeito de ter perdido um cavalo, castigado peloseu fazendeiro at a morte, tornando-se, no fim da histria, um anjo. O projeto s se concre-tizou mais de 20 anos depois, em 1973.

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    Grande Otelo e Oscarito em Dupla do barulho (1954)

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    Eu estava acostumado a srio, declamando, no estilo que mais meagradava, poesias e trechos dramticos. No Rio, porm um dia, fui can-tar no No Tabuleiro da Baiana em dupla com Do Maia, e me lembreide fazer o que sempre me aconselhavam: pr os beios para fora, balan-ar o corpo, fazer palhaadas. Foi um chu! De l para c, com grandetristeza minha, venho fazendo s isso. Nada de arte, e sim uma comici-dade fcil, baseada apenas na explorao do meu tipo humano, mirradi-nho, e na minha cor.58

    A partir desses exemplos, possvel observar que a insero doator no campo de entretenimento foi consoante com as representaesraciais veiculadas pelo que se constituiu como o conjunto das interpre-taes clssicas sobre o Brasil, especialmente no caso dos personagensassexuados; foi, ao mesmo tempo, coetnea ao processo de conversodos smbolos de matrizes negras em emblemas nacionais, mantendointocadas as posies favorveis elite branca. Os filmes do perododivulgavam certa verso edulcorada da chamada democracia racial,que parecia se cristalizar na dupla formada por Grande Otelo e Oscarito que ora se ajudavam mutuamente, ora zombavam-se entre si, para nofim terminarem como velhos e bons amigos. Tudo se passava, portanto,como se no houvesse preconceito racial. As personagens de GrandeOtelo na chanchada cairiam como luva para a construo de uma ima-gem cinematogrfica do negro engraado, malandro, mas tambm obe-diente, diversa da ideia de revolta com que aparece em Tambm somosirmos, do chamado Realismo Carioca, ou de maldade, como acontecianos filmes da dcada de 1920, interpretados por outros artistas negros.59

    O realismo carioca e as posies polticas de Grande Otelo

    Apesar de suas tenses com os papis cmicos, Grande Otelo seria umdos poucos atores da poca a incorporar sua persona cinematogrficapersonagens dramticos, como nos longas Amei um bicheiro (1952) eMoleque Tio (1941), este ltimo baseado em sua prpria biografia.

    58 Entrevista de Grande Otelo ao Semanrio Radar, 20 de abril de 1951.59 Ver Noel dos Santos Carvalho, O negro no cinema brasileiro: o perodo silencioso, Plural

    (Revista de ps-graduao em Sociologia da FFLCH/USP), n. 10 (2003), pp. 155-79.

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    Tratava-se de uma faanha para poucos no campo cinematogrfico dapoca, visto que nem o eterno cmico Oscarito, ator que ganhava oprimeiro crdito nas chanchadas, nem o vilo Jos Lewgoy, formadoem artes dramticas em Yale nos EUA, conseguiram readaptar suaspersonas cinematogrficas com tanta propriedade quanto Otelo.

    No terreno dos dramas, o papel de Grande Otelo no filme Tambmsomos irmos (1949) traz outra dimenso sua persona: o de revoltado.Realizado no final da dcada de 40, o longa coloca em cena esse ator aolado de Agnaldo Camargo e Ruth de Souza, ambos do Teatro Experimen-tal do Negro (TEN). Fundado no Rio de Janeiro em 1944, por Abdias doNascimento, o TEN buscou problematizar a representao [...] e os pa-pis que [...] eram reservados61 aos afrodescendentes, ao mesmo tempoem que no deixou de inserir suas reivindicaes no panorama naciona-

    60 No encontrei nenhuma informao sobre a atriz que contracenava com Grande Otelo.61 Mrcio Macedo, Abdias do Nascimento: a trajetria de um negro revoltado (1914 1968)

    (Dissertao de Mestrado, Universidade de So Paulo 2006), p. 110.

    Grande Otelo em Moleque Tio, longa-metragem inaugural da Atlntida (1943)60

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    lista, reafirmando at certo ponto um ideal de democracia racial62 culti-vado pelo Estado Novo. Assim, o TEN produzia peas de autores comoONeill, trazendo uma representao diferente do negro,63 mas, simultane-amente, chamava pessoas que divulgavam certos esteretipos associadosao negro, como Grande Otelo e Ary Barroso, para participarem de seuseventos. Alm disso, o Teatro realizava outras atividades, como cursos dealfabetizao, seminrios, sesses de terapia e um concurso de beleza.64

    Devido a esse contato com o TEN, o filme Tambm somos irmostraz novas perspectivas para a representao do negro, elegendo comotema o preconceito racial. Grande Otelo (Miro) e Agnaldo Camargo (Re-nato) interpretam dois irmos que, durante a infncia, foram criados poruma famlia branca, discordando um do outro na vida adulta sobre oscaminhos que se deve tomar para enfrentar o preconceito racial. Miro um sambista malandro que vive de expedientes escusos e expressa umaatitude radical: defende que o negro deve ficar na favela junto a seuspares, rejeitando sua famlia de criao e valorizando as prprias razes leia-se samba e carnaval, na viso do filme. J Renato interpreta um estu-dante de Direito que sonha em ascender socialmente e casar com suairm de criao branca. nesse filme que o personagem de Grande Oteloafirma para o irmo: A minha alma mais preta do que essa mo quevoc est vendo [...] preto com alma branca fantasma!.

    Ao interpretar Miro, Grande Otelo dialogava com os outros pa-pis cmicos de sambista e malandro, a diferena ficando justamentena raiva presente neste personagem de Tambm somos irmos. Mas

    62 De acordo com Carvalho, as reivindicaes do documento preparado na Conveno Nacio-nal do Negro, encontro organizado pelo TEN em So Paulo, mantm um tom conciliador,reafirmando o mito das trs raas fundamentais do povo brasileiro, alm de exigir que opreconceito racial se torne crime. Noel dos Santos Carvalho, Cinema e representao racial:o cinema negro de Zzimo Bulbul (Tese de Doutorado, Universidade de So Paulo, 2006), p.34. Ver tambm Srgio Costa, Dois Atlnticos, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006;Antnio Srgio Guimares e Mrcio Macedo, Dirio trabalhista e a democracia racial negranos anos 1940, Dados, v. 51, n. 1 (2008), pp. 143-82.

    63 Posteriormente, em depoimento, Abdias do Nascimento diria: Precisvamos pegar um autorcomo ONeill que, alis, nunca tinha sido encenado no Brasil e calar a boca dessa gente!Ningum acreditava que negro pudesse fazer teatro: o que se esperava dos negros eram asmacacadas do Grande Otelo ou as reboladas da Prola Negra. Abdias do Nascimento apudMrcio Macedo, Abdias do Nascimento: a trajetria de um negro revoltado, 2006.

    64 Carvalho, Cinema e representao racial.

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    agora, seu tipo corporal e seus papis passados, mais do que atrapalhar,tornavam-se meios para que o contedo radical de suas falas no ame-drontassem e violassem a ufania do espectador. Alm disso, no eplogodo filme, a tentativa de vingana de Miro contra seu pai de criaoacaba prejudicando a si mesmo e ao seu irmo, o que suscita julgar suaatitude como infantil. Seu tipo e persona cinematogrfica, entretanto, oafastavam do papel do estudante de Direito vivido por Agnaldo Camar-go (alto, magro e com rosto afilado) e que representava o ideal de in-tegrao entre brancos e negros.

    O parco sucesso de pblico, tambm devido ao perodo em que ofilme foi exibido,65 sugere que a associao entre a ideia de revolta e apersona cinematogrfica de Grande Otelo, assim como o tema do pre-conceito racial foram menos atrativos ao espectador do que os papisinterpretados pelo ator na chanchada e os enredos destes filmes. O lon-ga-metragem, entretanto, foi aclamado pela crtica, que via com mausolhos os musicais carnavalescos. Ganhou o prmio de melhor filme doano (1949) e Grande Otelo, o de melhor ator pela Associao Brasileirade Crticos Cinematogrficos.

    Poucos meses depois da estreia de Tambm somos irmos, ocor-reria a maior tragdia da vida do ator, que ganhou manchetes nos jor-nais: a esposa de Otelo, Lcia Maria, matou seu filho Chuvisco e, emseguida, suicidou-se. O episdio, de difcil recuperao para o ator,voltaria em vrias entrevistas ao longo da carreira, bem como a caracte-rstica visceral que agregaria elementos de verossimilhana a seus per-sonagens, tanto trgicos, quanto cmicos, mesmo contra a sua vonta-de.66 Na semana da tragdia, Jos Lins do Rgo, colaborador do jornal

    65 Conforme a crtica de Moniz Vianna, publicada pelo Correio da Manh de 14 de setembro de1949, Tambm somos irmos foi lanado justo na semana de Os trs mosqueteiros e Os sapatinhosvermelhos, com os quais no pde concorrer. Grande Otelo e Agnaldo Camargo recebem algumreconhecimento do crtico, em comparao com o restante do elenco: No comportamentodos atores, no h surpresas, salvo a de Agnaldo Camargo, cujo desempenho quase correto no lhe falta sobriedade e at certa firmeza no falar. Os demais [com exceo de GrandeOtelo] declamam os seus papis, no sabem andar em cena, tm medo de olhar para a objetivae se vestem muito mal.

    66 Em depoimento concedido ao MIS, Otelo negou que as tragdias na sua vida teriam influen-ciado seus papis dramticos. Grande Otelo em Depoimentos para Posteridade, Museu daImagem e do Som, Rio de Janeiro, 26 de maio de 1967. Nmero do CD: 440-1.

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    do O Globo, escrevia um artigo em apoio ao artista, no qual descreveter visto a persona do ator se rasgar. Naquela noite

    via a cara que uma fonte de riso transformada em uma cara de sofri-mento, de amargura, de desespero. E li o noticirio impiedoso e quasechorei, e uma repulsa geral pelos homens atiou-me na alma a vergonhade ser de uma sociedade de sdicos, de doentes de esprito. Caro Otelo,estou contigo. [...] Ontem noite, a fora de um contrato te levou aopalco para fazerem os outros rirem. E dizem que no suportaste a dor. Ea tua mscara se rasgou em pblico. E o pblico que queria gozar ocmico arrasado pela dor, muito ter sofrido, apesar do sadismo mons-truoso. O pranto de Otelo abafou a sala, encheu o teatro, rompeu a rua,correu para o apartamento vazio, onde o seu Chuvisco, coitado, era umasombra de menino morto.67

    Esse instante do palco no passou para a cena cmica da fitaCarnaval no fogo, que Grande Otelo filmou logo aps o enterro. Comolembraria anos depois o diretor branco do filme, Watson Macedo, acena emblemtica do Otelo vestido de Julieta, com Oscarito de Romeu,fora filmada nessa ocasio. Nos intervalos das tomadas, Otelo caa aosprantos, mas em frente cmera encenava uma de suas sequncias c-micas mais aclamadas. A vida, o corpo e a prpria tragdia do ator vira-vam matria-prima de sua persona cinematogrfica, e posteriormentememorialstica, que ganhava agncia prpria atravs dos filmes, notci-as de jornais e nas lembranas de cada espectador.

    Em 1953, ele voltaria ao papel dramtico em Amei um bicheiro.Em uma cena memorvel, para salvar seu amigo mafioso, o persona-gem de Otelo morre sufocado. Em 1957, paralelamente s comdias,Grande Otelo o ator principal do filme Rio Zona Norte, de NelsonPereira dos Santos diretor que inova ao representar o negro comosmbolo da classe explorada e possvel devir histrico. Otelo encarna otalentoso sambista Esprito que, ludibriado pelos empresrios da inds-tria fonogrfica, tem suas composies roubadas. O ator seria a corpo-rificao desse personagem que representa o povo bom, generoso, po-rm ingnuo e alienado, cuja pequenez do corpo e fisionomia infantil

    67 Jos Lins do Rgo, apud Cabral, Grande Otelo, p. 135.

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    Grande Otelo interpretando Passarinho minutos antes de morrer emAmei um bicheiro (1953)

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    contrastava com as atrizes e os atores brancos, altos e esbeltos que vivi-am a burguesia. Se, no registro cmico, suas caractersticas corporaispotencializam justamente o inverso, ou seja, de anti-heri a heri, noregistro dramtico o mesmo corpo refora o sentimento de pena diantede uma figura vulnervel, tornando-se foco de uma identificao imedi-ata com o espectador. No decorrer da trama, Esprito perde o filho e, aofinal, ao tomar conscincia da explorao, morre ao cair do vago deum trem.

    Os papis em dramas, como Moleque Tio, Tambm somos ir-mos e Rio Zona Norte, e as notcias trgicas em sua carreira diversifi-cavam a gama de personagens negros no cinema e na mdia. Mas apesardo papel importante desses filmes na construo de narrativas contra-hegemnicas, eles estavam longe de desconstruir esteretipos. Comonos lembram Stuart Hall e Homi Bhabha, os esteretipos so ambiva-lentes ao se movimentarem entre plos extremos. Isto se deve, segundotais autores, prpria formao do discurso colonial que constitui aorigem primeira desse tipo de representao, pois ele mobiliza continua-mente sentimentos contraditrios, entre o desejo e o terror. Na medidaque Otelo reconhecido ator de comdias se torna visvel nesses dra-mas, sua persona cinematogrfica passa a referir-se aos extremos deoutro par de oposies estereotpicas: ele ora extremamente alegre,ora intensamente triste porquanto, est sempre nos extremos. Isto sig-nifica que esses filmes, ainda que criassem representaes antirracis-tas, eram insuficientes para escapar da dinmica prpria reproduode esteretipos.

    Entre as poucas fontes desse perodo em que possvel observaras opinies e percepes de Grande Otelo sobre as relaes raciais, esto anncio de sua candidatura a vereador pelo PTB em 1958. Nele, Oteloaposta no lado cmico de sua persona cinematogrfica, exprimindo umaperspectiva diversa daquela nutrida pelo TEN e da mensagem veicula-da pelos personagens trgicos que interpretara sobre as relaes raciais.Seu slogan anunciava: No vote em branco; vote em Grande Otelo. Odstico um jogo entre termos, que potencializa a ambiguidade da pala-vra branco nesse contexto, ou seja, a dupla referncia cor da pele docandidato e a uma das opes de voto. No cartaz da campanha, fica mais

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    clara uma opinio sobre as relaes raciais no Brasil. Nesta pea publici-tria, Otelo aparece dizendo o negro que est criando o problema donegro no Brasil, o que vem seguido por frase do dr. Lyrio Coelho eus me lembro que sou negro quando vou ao espelho.68 O cartaz parecesugerir que, na opinio de Grande Otelo, a populao negra agenciariaum discurso racial em torno de um problema inexistente. A ideia pare-cia reforada pela frase do dr. Coelho, apresentado como um homem ne-gro que no se sentia vtima de preconceito e, portanto, s se lembra desua cor quando ia ao espelho. Otelo no conseguiu se eleger, pois oPTB retirou sua candidatura antes do pleito.69

    Cinema Novo e Macunama: outra viso sobre o negro

    Apesar de ter interpretado papis dramticos com profundidade emMoleque Tio, Tambm somos irmos, Amei um bicheiro e Rio ZonaNorte filmes em cuja atuao foi elogiado por Glauber Rocha70 naReviso crtica do cinema brasileiro , Grande Otelo no faria parte doelenco de atores centrais da primeira fase do Cinema Novo. A dcadade 1960 um perodo de pouco sucesso para o artista no cinema, quan-do ele continuaria trabalhando em espetculos de boates, no teatro e nateleviso. As chanchadas no rendiam a mesma bilheteria das dcadasde 1940 e 1950, migrando do cinema para a televiso e mantendo-seviva atravs de programas de auditrios, como o de Chacrinha, e nastelenovelas. J os diretores do movimento esttico que entrava em vogano momento no o chamariam para seus filmes. Consagrada nas chan-chadas, a persona cinematogrfica de Grande Otelo j no convinha.

    O Cinema Novo pode ser visto como produto de uma estruturade sentimentos que Marcelo Ridenti chamou de brasilidade revoluci-onria. Segundo o autor, trata-se de uma aposta nas possibilidades darevoluo brasileira, nacional-democrtica ou socialista, que permitiria

    68 Cabral, Grande Otelo, p. 181.69 Srgio Cabral considera que os votos recebidos por Otelo foram irrisrios, porque o eleitora-

    do no votou em Sebastio Bernardes de Souza Prata, seu nome de batismo, sob o qual secandidatou. Entretanto, na entrevista de Grande Otelo revista Veja, em 14 de fevereiro de1973, ele conta outra verso: diz que seu nome foi vetado pelo o PTB.

    70 Glauber Rocha, Reviso crtica do cinema brasileiro, So Paulo: Cosac Naify, 2003.

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    realizar as potencialidades de um povo e de uma nao.71 Este imagi-nrio, por sua vez, remonta s mudanas que comeam aps o fim daSegunda Guerra Mundial, abertura democrtica no Brasil em 1945 es revolues comunistas na China, em 1949, e em Cuba, em 1959. Omovimento cinemanovista tambm guarda uma relao prxima com orenascimento do cinema europeu, atravs do Neorealismo italiano e daNouvelle Vague francesa, e com o espraiamento dos cineclubes no Bra-sil, organizados por membros do Partido Comunista, que passam a exi-bir filmes outrora censurados, oferecendo alternativas ao cinema co-mercial. Tais transformaes possibilitaram uma educao cinemato-grfica distinta do perodo anterior e frutificaram novos sentidos para ocinema, que deixou de ser visto como um tipo de entretenimento volta-do difuso de ideologias nacionalistas e crtica reformista, para tor-nar-se uma arma de conscientizao revolucionria. Disto resultou umadiversificao nas formas de representar a populao negra que em al-guns filmes se transformaria em sujeito histrico capaz de promover arevoluo. Nelson Pereira dos Santos, em Rio 40 graus e Rio Zona Nor-te, citados acima, foi um dos impulsionadores desse novo sentido decinema. Como argumentou David Neves na V Resenha do Cinema Lati-no-Americano, realizada em 1965, em Gnova, Itlia, a chanchada, porseu carter comercial, retratava o negro atravs das possibilidades deum exotismo imanentes.72 J o Cinema Novo, de acordo com Neves,vinha produzindo filmes antirracistas, como Barravento, Ganga Zum-ba e Aruanda, que no representariam o negro como fizeram os filmesat aquele momento. Alm disso, o diretor explicava que essas pelcu-las eram frutos de uma identificao entre o realizador (branco) e ospersonagens negros, sem que a cor fizesse qualquer diferena.73 Toda-via, possvel relativizar a interpretao de David Neves ele prprioum expoente do Cinema Novo. Renato Silveira, por exemplo, encontraum certo olhar etnocntrico em Barravento.74

    71 Marcelo Ridenti, Brasilidade revolucionria, So Paulo: Editora da Unesp, 2010, p. 10.72 David Neves apud Carvalho, Cinema e representao racial, p. 112.73 David Neves apud Carvalho, Cinema e representao racial, p. 115.74 Renato Silveira, O jovem Glauber Rocha e a ira do Orix, Revista da USP, n.39 (1998), pp.

    88-115. O autor se contrape interpretao cannica de Ismail Xavier, para quem Barraventorevela um duplo ponto de vista de Glauber Rocha: a um s tempo, o filme criticaria a religio afro-

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    Neste filme, Firmino, interpretado por Antnio Pitanga, o alterego de Glauber Rocha, que professa a necessidade de uma transforma-o social. Como argumenta Renato Silveira, o problema central deBarravento est no fato de este personagem se contrapor religio afro-brasileira, pois a v como o pio do povo, meio pela qual se justificaa explorao da comunidade da praia de Buraquinho. Na opinio deSilveira, Glauber no apenas fez um retrato que remonta aos estereti-pos coloniais sobre o candombl,75 mas foi impermevel cultura ne-gra antes, durante e depois das filmagens em Buraquinho.76

    Mas, ainda que Glauber no consiga se despojar de seu olhar bran-co em Barravento, se compararmos este filme com a produo dos anosde 1940 e 1950, inegvel que ele opera uma diversificao na construode personagens negros. Este seria um trao constitutivo do Cinema Novo.Na pelcula mencionada, a maioria dos atores e atrizes so negros algoraro na cinematografia brasileira e, alm disso, eles revelam diferentescorporalidades e vivem personagens distintos. Ainda que dentro da visoesquemtica de um certo marxismo da poca, a comunidade no retratadaapenas como alienada; as divergncias internas do o tom da narrativa:Firmino, retornado da cidade, faz o papel de figura consciente, ativa, deso-bediente. Aruan (Aldo Teixeira) vive o ingnuo, conformado, mas capaz detomar conscincia. J o Mestre (Ldio Silva) autoritrio. H ainda Joo,que ajuda Aruan a questionar os preceitos do Mestre, e Cota (Luiza Mara-nho), uma mulher independente. Logo, em comparao com as chancha-das, em que Grande Otelo era praticamente o nico personagem negro,Barravento contribui at certo ponto para desconstruir alguns esteretipos.Evidentemente, seria o caso de discutir tambm a construo de outros

    brasileira como fator de alienao e aderiria a ela em termos de linguagem cinematogrfica.O argumento de Silveira de que no h um duplo ponto de vista, mas sim um olhar etnocn-trico de Glauber se constri tanto a partir de dados histricos sobre o contexto das filma-gens, quanto por meio da anlise interna do filme. Ver tambm: Ismail Xavier, Serto Mar,So Paulo, Cosac Naify, 2007.

    75 Refiro-me seguinte anlise de Silveira: Na pgina 17 do livro de Gatti temos uma foto deFirmino ao lado de Cota. Cabelo desgrenhado, olhar de soslaio, expresso rancorosa, a pr-pria cara do maluco encrenqueiro. Temos a uma tima ilustrao da imagem de Exu propa-gada pelo imaginrio colonialista: a do negro rebelde, medonho, demente e sanguinrio.Silveira, O jovem Glauber, p.107.

    76 Silveira, O jovem Glauber, p.100.

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    esteretipos pelo filme e o argumento de Silveira sobre o candomblajuda a perceber sua incidncia sobre a produo de Glauber.

    Alm de Barravento, vale mencionar Ganga Zumba, dirigido porCac Diegues, que narra a histria do primeiro lder do Quilombo dosPalmares, tambm vivido por Pitanga. Este ator se consolida como oprincipal intrprete negro do Cinema Novo e vira uma espcie de cris-talizao do negro ativo e consciente de sua luta contra a opresso declasse e racial no Brasil. Tal imagem oposta de Grande Otelo, que,conforme os cinemanovistas, teria reforado uma representao exoti-zante e estereotipada, e se faz perceber no corpo dos artistas: em termosde marcadores raciais e de dimenses corporais, Antnio Pitanga altoe tem o rosto anguloso, aspectos considerados socialmente belos, quereforam o peso de uma expresso facial decidida e sria.

    A mudana no modo de representar o negro repercutiria na pri-meira entrevista de Grande Otelo ao projeto Depoimentos para a pos-teridade, do Museu da Imagem e do Som, em 1967. Entrevistado porAlex Viany, historiador do cinema brasileiro ligado ao Cinema Novo, eAlinor Azevedo, principal roteirista da Atlntida, o ator seria cobrado adar resposta sobre os seus papis nas chanchadas:

    Alex Viany: Grande Otelo [...] voc foi acusado vrias vezes de quevoc teria prejudicado a sua raa aparecendo s vezes em papis ridcu-los, principalmente nas chanchadas, que voc fazia travestis e outra coisadessa natureza, voc lembra dessa acusao?Grande Otelo: Oscarito prejudicou a raa dele alguma vez? Quandoapareceu de Rita Hayworth? [...] eu apareci de Julieta, ele apareceu deRita Hayworth. E ele prejudicou a raa dele por isso?77

    A pergunta de Alex Viany lidava com o fardo da representaoracial,78 que recaa sobre as costas de Otelo. De fato, muitos de seuspersonagens, como vimos acima, carregam esteretipos correntes nasociedade brasileira. Entretanto, necessrio compreender melhor ocontexto em que isto ocorria antes de julgar o ator por tais papis. O

    77 Depoimento de Grande Otelo ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, Srie Depo-imentos para posteridade.

    78 Henry Louis Gates Jr., Thirteen ways, p. xvii.

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    fato de Grande Otelo ser um dos poucos atores negros que conseguiu seinserir no mercado cinematogrfico do perodo fez com que recasse so-bre ele esse fardo o que, como bem notou, no ocorrera com Oscarito,ator cuja liberdade residia justamente em poder atuar de modo desvincu-lado das expectativas para sua raa. Dada a gama extremamente limitadade atores negros que conseguiam acesso ao mundo artstico, Grande Oteloenredou-se num campo em que, fizesse papis cmicos ou dramticos,personagens unidimensionais ou multidimensionais, recairia na ambiva-lncia prpria ao ato de estereotipar.79 Movimento incessante, em que ospontos seguros de identificao entre espectador, ator negro e os persona-gens negros so fugidios e se encontram em constante mutao.80 Razopela qual, durante toda a sua trajetria, Grande Otelo identificou-se comseus personagens, para logo depois estranh-los.

    Alm de no se identificar com o personagem, agora Otelo viasua persona cinematogrfica colada a um movimento que no fazia maissentido frente representao valorizada pelo Cinema Novo e aos no-vos debates sobre raa. No mesmo depoimento ao MIS, ele reclamava:

    Grande Otelo: Formou-se no Brasil, na minha opinio, assim uma es-pcie de crculo fechado com relao ao cinema brasileiro. E esse cr-culo fechado da opinio que s eles sabem fazer cinema [...] eles im-pem ao povo brasileiro o cinema que eles querem.Alex Viany: Mas, voc no tem lugar nesse cinema?Grande Otelo: Pelo menos at hoje, eu nunca fui chamado por essecinema. Porque eu sou caro, porque eu falto, porque eu no apareo,porque eu no quero. [...] primeiro caro eu no sou. No sou caro.

    As razes que a persona memorialstica de Otelo atribua ao seuofuscamento cinematogrfico eram os boatos de que o ator era irrespon-svel e de ndole difcil, que se colaram sua imagem pblica da mesmaforma que algumas caractersticas de seus personagens. Mas os rumoresde que se confundia com seus papis, que o afastavam dessas produes,tambm foram decisivos para que Otelo fosse escalado para seu primeirofilme do Cinema Novo, Macunama. Lanado em 1969 dois anos de-

    79 Ver Stuart Hall (org.), Representation, p.229.80 Homi Bhabha, O local da cultura, p.110.

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    pois da entrevista ao MIS , o longa-metragem de Joaquim Pedro deAndrade se anunciava pelo seguinte slogan: Grande Otelo Macuna-ma. A escolha do ator superava os boatos sobre uma ndole difcil. Entrefins da dcada de 1950 e o lanamento de Macunama, os ideais revo-lucionrios do Cinema Novo entrariam num impasse, para o qual contri-buiriam uma ampliao dos bens de consumo e a institucionalizao doplo de produo cultural no Brasil,81 mas tambm o golpe de 1964 e orecrudescimento da ditadura militar com o AI-5, em 1968. O filme deAndrade buscava fazer frente a tais impasses por meio da articulaoentre o Cinema Novo e o gnero que conseguira maior sucesso comercialno cinema brasileiro: a chanchada.82 Segundo o diretor, o filme procura

    uma comunicao popular to espontnea, to imediata, como a da chan-chada, sem ser nunca subserviente ao pblico. Apesar de no ser sub-serviente, o filme no paternalista, no sentido em que talvez fossempaternalistas os primeiros filmes do Cinema Novo: dando uma lio.Ele procura ser feito do povo para o povo, a orquestrao mais sim-ples possvel, mais direta de motivos populares, atendendo definiode rapsdia, que foi como Mrio de Andrade qualificou o livro.83

    Grande Otelo justamente esse elo que propicia uma comunica-o espontnea entre o diretor e o pblico. Ponte que faz uso da personacinematogrfica de moleque e malandro que o consagrou para, em se-guida, servir de piv s crticas que o ator recebeu. Noutras palavras,Joaquim Pedro de Andrade no buscava um casamento feliz entre Chan-chada e Cinema Novo, mas uma sntese que objetivava superar osimpasses e fazer uso das potencialidades desses dois projetos cinema-togrficos no Brasil. Nesse contexto, Macunama interpretado por Otelono representante de classe baixa pueril, como em Rio Zona Norte,

    81 Como mostra Marcelo Ridenti, em Brasilidade revolucionria, nos anos 1970, a ditaduramilitar, por um lado, reprimia os opositores; por outro, abria espao dentro da ordem, coma criao da Embrafilme, do Servio Nacional de Teatro, da Funarte, do Instituto Nacional doLivro e do Conselho Federal de Cultura.

    82 Vale lembrar, que a chanchada foi retomada j em meados da dcada de 1960 e teria seu valorhistrico reconhecido por Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos e at Glauber Rocha.

    83 Joaquim Pedro de Andrade, Macunama: o cinema do heri vital, entrevista a OswaldoCaldeira de O Cruzeiro, 21 de agosto de 1969, grifos do autor. Acessado no site oficial docineasta: http://www.filmesdoserro.com.br/jpa.asp. Data do acesso: 25/09/2012.

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    pois malandro e arrivista. Tampouco se trata de uma exaltao domalandro das chanchadas, uma vez que Macunama um personagemsem um projeto prprio, e cuja busca pelo muiraquit no lhe rendematuridade. Igualmente, no constitui uma apologia democracia raci-al, pois quando Macunama se torna branco (agora interpretado peloator branco Paulo Jos), ele tambm vira racista, maltratando seus ir-mos entre eles Maanape, interpretado pelo ator negro Milton Gon-alves. Por fim, o heri de nossa gente desdenha seu prprio filho,negro no filme e interpretado novamente por Grande Otelo. So os re-gistros alegrico e grotesco e o tropicalismo do longa metragem quepermitem a presena de um ator como Otelo, cujas marcas corporaistraziam sentidos moldados por filmes anteriores. Elo espontneo e re-flexivo que permite a Joaquim Pedro de Andrade pensar sobre osimpasses do cinema brasileiro no ps-AI-5.84

    Macunama lhe rendeu trs prmios de melhor ator: no Festivalde Braslia; Coruja de Ouro; e Prmio Air France, alm da aclamaono Festival de Veneza. A partir desse filme, Grande Otelo no apenas selegitima como ator em meio ao crculo dos cinemanovistas, mas agrega sua persona cinematogrfica um signo reflexivo, tornando-se capazde sintetizar projetos e impasses do cinema brasileiro por meio de suapresena. Abre-se, nesse momento, espao para a insero do ator emoutras produes, como O homem do Pau Brasil, de Joaquim Pedro deAndrade; Quilombo, de Cac Diegues, e filmes de Lus Srgio Person,Rogrio Sganzerla, Hector Babenco, Jlio Bressane e no Fitzcarraldo,de Werner Herzog. Os personagens cmicos e dramticos, realistas egrotescos ganham novos sentidos medida que aderem ao projeto decada diretor, variando a gama de representaes do negro, sem, contu-do, ultrapassar a predominncia de um imaginrio da branquitude. Suafisionomia tambm mudava medida que o ator avanava na casa dos60 anos, os sulcos no rosto e os fios grisalhos no cabelo e barba, bemcomo a voz rouca de cordas vocais desgastadas, abrem portas para in-terpretar outros personagens, como o av e curandeiro de Quilombo de

    84 Para uma anlise mais detalhada do filme, ver Ismail Xavier, As alegorias do subdesenvolvi-mento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal, So Paulo: Brasiliense, 1993.

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    85 Como afirma no Programa Roda Viva, no dia 15 de junho de 1987.86 Entrevista ao Jornal da Pitumba, 27 de fevereiro de 1986.

    Cac Diegues, que incorporava uma agenda antirracista em seus filmes,em certa consonncia com o nascente movimento negro da dcada de1970.

    Os lapsos do tempo: repensando a persona cinematogrficaa partir da memorialstica

    Quase dez anos depois, e ainda colhendo os frutos do sucesso recupera-do, Grande Otelo oscilava entre momentos de forte identificao comMacunama e momentos de crise diante de tal figura. Por um lado, nutriaa vontade de pesquisar o acervo de Mrio de Andrade para ver se o escri-tor havia feito comentrios a seu respeito, pois acreditava que Mrio teriavisto a Companhia Negra de Revistas pouco antes de escrever Macuna-ma.85 Por outro, estava cansado de ser associado a tal personagem.

    Otelo: Agora, o maior atraso da minha carreira foi Macunama...Nelson Pereira dos Santos (NPS): Atraso? Por qu?Otelo: Porque parou, porque vocs todos, diretores, acharam que ti-nham que fazer alguma coisa comigo que fosse superior a Macunama[...]. Da eu fiquei ao sabor do vento [...] Foi bom do ponto de vistaintelectual, do ponto de vista da crtica, fama, mas no adiantou parapagar supermercado.NPS: Vou dizer uma coisa que eu j lhe disse [...] a tua personalidade to forte e to histrica que muito difcil encontrar um personagemdentro do qual voc seja um ator e no o Grande Otelo, t entendendo oque eu t querendo dizer? Voc sempre voc mesmo, voc muitomais forte do que qualquer personagem. Ento, quando a gente tem quepropor [...] um personagem [...] muito rico, bem estruturado, com mui-tos valores, seno vai ser sempre o Grande Otelo que vai estar na tela,no vai ser o personagem que a histria est colocando...Otelo: Mas, dentro da Atlntida [...] eu era personagem. Eu fui MolequeTio, eu fui Benevides, eu fui Natalino, eu fui vrios personagens...86

    Conforme Nelson Pereira dos Santos, a persona cinematogrficade Otelo era to forte que superava qualquer personagem. Ao contrrio

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    Grande Otelo em Quilombo (1984)

    do mecanismo do teatro moderno, em que atrizes como Cacilda Beckerse despersonificavam para dar vida ao seu papel, no caso