Henry James - A Outra Volta Do Parafuso

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  • 3HENRY JAMES

    OUTRA VOLTADO PARAFUSO

    Traduo deBrenno Silveira

    CIVILIZAO BRASILEIRA

  • 4Do original ingls:

    THE TURN OF THE SCREW

  • 5OUTRA VOLTA DO PARAFUSO

    A histria nos mantivera em suspenso, em torno do fogo, mas, parte a bvia reflexo de que era horrvel, como essencialmente deve ser toda histria estranha contada, numa vspera de Natal, em uma velha casa, no me lembro que sobre ela se fizesse qualquer comentrio, at que algum se aventurou a dizer que era o nico caso em que tal coisa acontecia a uma criana. Tratava-se, posso diz-lo, de uma apario ocor-rida numa casa to velha como aquela em que nos achvamos reunidos apario, de horrvel espcie, a um menino de pouca idade que dormia no aposento de sua me. Aterrorizado, o pequeno despertou, e a me, antes de ter-lhe dissipado o terror, fazendo com que o filho dormisse no-vamente, tambm se viu, de repente, diante do mesmo espetculo que o havia transtornado. Esta observao despertou em Douglas no ime-diatamente, mas um pouco mais tarde, naquela mesma noite uma r-plica que teve a interessante consequncia para a qual chamo a ateno do leitor. Outra pessoa contou uma histria sem qualquer interesse par-ticular, e eu notei que Douglas no a escutava. Interpretei tal fato como sinal de que ele tinha algo a dizer-nos, e de que tnhamos apenas de espe-rar. Na verdade, tivemos de esperar dois dias; mas, naquela mesma noite, antes que nos recolhssemos, revelou-nos aquilo que o preocupava.

    Concordo inteiramente, quanto ao que diz respeito ao fantasma de Griffin, ou o que quer que seja, que o fato de haver aparecido, em primeiro lugar, a um menino de to tenra idade, lhe confere uma carac-terstica particular. Mas no a primeira ocorrncia de to encantadora

  • 6espcie a acontecer a um menino, segundo sei. Se uma nica criana au-menta a emoo da histria e d outra volta ao parafuso, que diriam os senhores de duas crianas?

    Diramos, por certo exclamou algum que dariam duas vol-tas! E, tambm, que gostaramos de saber o que aconteceu.

    Posso ainda ver Douglas diante do fogo, ao qual j agora dera as costas, para encarar, de alto a baixo, com as mos metidas nos bolsos, o seu interlocutor.

    At hoje ningum, exceto eu, ouviu falar de coisa semelhante. por demais horrvel!

    Muitas vozes se ergueram, naturalmente, para declarar que isso dava histria um valor supremo. Nosso amigo, preparando o seu triunfo com tranquila arte, fitou-nos a todos e prosseguiu:

    Ultrapassa tudo o que se possa imaginar. No sei de nada que se lhe compare.

    Como terror absoluto? lembro-me de haver perguntado.Pareceu dizer-me que o caso no era to simples assim que no

    sabia, realmente, como qualific-lo. Passou a mo pelos olhos e contraiu o rosto:

    Como coisa horrorosa. . . Espantosa! Oh, que maravilha! exclamou uma das senhoras.Ele no lhe deu ateno. Olhou-me, mas como se, em lugar de mi-

    nha pessoa, visse aquilo de que estava falando: Como um misto pavoroso de fealdade, horror e dor. Ento disse-lhe eu sente-se e comece logo a sua histria.Douglas voltou-se para o fogo, empurrou com o p um pedao de

    lenha e ficou a fit-la um instante. Depois, encarou-nos novamente: No posso. Preciso antes enviar um recado cidade.Estas palavras motivaram uma exclamao unnime de protesto,

    acompanhada de muitas censuras, aps o que ele, com o seu ar preocu-pado, explicou:

    A histria j foi escrita. Acha-se fechada numa gaveta. . . de onde no sai h muitos anos. Poderia escrever ao meu criado, enviando-lhe a chave; e ele me remeteria o pacote incontinenti.

    Era a mim, em particular, que ele parecia fazer aquela proposta; parecia mesmo implorar a minha ajuda, para acabar com as suas hesi-taes. Havia quebrado, assim, uma camada de gelo que se formara du-rante muitos anos; naturalmente, tivera l suas razes para aquele longo silncio. Aos outros no agradou o adiamento, mas foram justamente os

  • 7seus escrpulos que me encantaram. Instei para que escrevesse pelo pri-meiro correio e combinasse conosco uma reunio para uma pronta leitu-ra; depois, perguntei-lhe se fora ele que passara por tal experincia. Sua resposta no se fez esperar:

    No, graas a Deus! E o relato seu? Foi voc quem o anotou? Anotei apenas a impresso que me causou. O resto guardo aqui

    acrescentou, tocando o corao. Jamais o perdi. E o seu manuscrito, ento? Est escrito com uma tinta antiga, quase delida, numa letra be-

    lssima. Vacilou ainda um instante. Uma letra de mulher. De uma mulher que morreu h vinte anos. Antes de morrer, enviou-me as pginas em questo.

    Todos estavam agora a escut-lo e, naturalmente, no faltou quem dissesse algo malicioso ou, ao menos, quem no fizesse a inevitvel infe-rncia. Mas se Douglas ps de lado a inferncia sem um sorriso, tambm o fez sem nenhuma irritao.

    Era uma criatura sumamente encantadora, mas dez anos mais velha do que eu. Era a preceptora de minha irm disse suavemente. Em sua posio, foi a mulher mais agradvel que conheci; era digna de qualquer ocupao infinitamente superior. Isso aconteceu h muito tem-po, e o episdio havia ocorrido muito tempo antes. Eu estava em Trinity e, a encontrei. Esse ano, passei em casa muito tempo. Foi um ano magnfico. Durante as horas em que ela estava de folga, passevamos pelo jardim e conversvamos e, ao ouvi-la falar, causou-me surpresa notar que ela era extraordinariamente inteligente e agradvel. Sim, no riam: eu gosta-va muitssimo dela e, ainda hoje, me alegra pensar que ela tambm gosta-va de mim. Se no gostasse, no me teria contado a histria. No a havia contado nunca a ningum. No que ela me houvesse dito isso; que eu sabia que ela no a havia contado. Tinha certeza. Sentia-o. Os senhores facilmente compreendero porque, depois de ouvir a histria.

    Por que a histria tinha sido por demais alarmante? Ele continuou a fitar-me. Voc logo compreender repetiu. Voc compreender.Eu tambm o fitei. Percebo. Estava apaixonada. Riu, pela primeira vez. Voc perspicaz. Sim, estava apaixonada. Isto , tinha estado.

    Isso se tornou claro no decorrer de sua histria. . . Ela no poderia t -

  • 8la contado sem que tal fato transparecesse. Eu o percebi, e ela compre-endeu que eu o percebera. Mas nenhum de ns disse nada a respeito. Lembro-me do momento e do lugar o canto do gramado, a sombra das grandes faias e a longa, quente tarde de vero. No era um cenrio sinis-tro, que causasse arrepios e, no obstante. . .

    Afastou-se do fogo e deixou-se cair de novo em sua poltrona. Voc receber o pacote quinta-feira pela manh? perguntei. Talvez no o receba antes do segundo correio. Ento, depois do jantar. . . Estaremos todos aqui reunidos? inquiriu ele, detendo o olhar

    em cada um de ns. Ningum partir?Proferiu estas palavras num tom quase de esperana. Ficaremos todos aqui! Eu ficarei! Eu ficarei! exclamaram as senhoras, que estavam

    de partida marcada. A Senhora Griffin, porm, afirmou que precisava de alguns esclarecimentos:

    De quem estava ela apaixonada? A histria o dir ousei responder. Oh, mas eu no posso esperar a histria! A histria no o dir disse Douglas. Pelo menos no o far

    de uma maneira literal, vulgar. Tanto pior, ento. a nica maneira que sou capaz de entender. Mas voc, Douglas, no nos dir? inquiriu algum. Douglas ergueu-se de novo: Sim, direi amanh. Agora, preciso recolher-me. Boa noite.Tomou rapidamente de um castial e se foi, deixando-nos ligeira-

    mente perplexos. Da extremidade do salo, revestido de lambris escuros, em que nos achvamos, ouvimos os seus passos na escada. Ento, a Se-nhora Griffin falou:

    Bem, se no sei de quem estava ela apaixonada, sei pelo menos de quem ele estava apaixonado.

    Ela era dez anos mais velha observou o marido. Raison de plus... naquela idade! Mas um to longo silncio

    deveras encantador. Quarenta anos! ajuntou Griffin. Com esta exploso final! A exploso tornei far da noite de sexta-feira uma ocasio

    memorvel.E todos concordaram to decididamente comigo que, diante do

  • 9que havia sido dito, perdemos todo interesse por qualquer outra coisa. A ltima histria, embora incompleta e como um mero prlogo de uma narrao em srie, havia sido contada. Despedimo-nos com apertos de mo e apertos de castiais, como algum disse, e fomos dormir.

    No dia seguinte, eu soube que uma carta, contendo a chave, segui-ra pelo primeiro correio, para o seu apartamento de Londres; mas ape-sar ou, talvez por causa da eventual dificuldade desse fato, deixa-mos Douglas completamente tranquilo at depois do jantar at uma hora da noite, com efeito, que pudesse melhor condizer com a espcie de emoo que espervamos. Douglas, ento, tornou-se to comunicativo quanto poderamos desejar, chegando, mesmo, a dar-nos as suas razes para isso. Escutamo-lo novamente no salo do hall, ali onde, na noite an-terior, havia despertado o nosso moderado assombro. Parecia que a nar-rativa que ele nos prometera ler requeria, realmente, algumas palavras de introduo, para que pudesse ser compreendida. Permitam-me dizer aqui, de uma vez por todas, que o seu relato, segundo uma transcrio fiel eu prprio fiz muito tempo depois, o que se ler neste livro. O pobre Douglas, antes de morrer, e j em seus ltimos momentos, me entregou o manuscrito que lhe chegara s mos trs dias depois e que imediatamen-te comeou a ler, na noite do quarto dia, com grande efeito e no mesmo lugar, ante o nosso pequeno e silencioso grupo de amigos. As senhoras que estavam de partida e que haviam dito que ficariam para a leitura na-turalmente graas a Deus! no ficaram. Partiram, devido a arranjos que j haviam feito, morrendo de curiosidade curiosidade motivada, segundo confessaram, pela habilidade com que Douglas nos preparara o esprito. Mas isso apenas contribuiu para tornar o seu pequeno auditrio final mais ntimo e seleto, mantendo-o, em torno da lareira, sujeito a uma profunda emoo comum.

    O primeiro pormenor nos dava a entender que a declarao escrita tomava a histria num ponto em que ela, de certo modo, havia comea-do. O fato que se devia ter em mente era, por conseguinte, o de que a sua velha amiga, a mais moa de vrias filhas de um pobre proco rural, havia, aos vinte anos de idade, iniciado a sua carreira de preceptora, quando resolveu, apressadamente, seguir para Londres, a fim de responder pes-soalmente a um anncio que j a havia posto em breve contato epistolar com o anunciante. Este, tal como se apresentou aos olhos da candidata, numa vasta e imponente manso de Harley Street, lhe pareceu um per-feito cavalheiro, um homem solteiro ainda no vigor dos anos, uma figura, enfim, como jamais surgiu, salvo em sonhos ou numa velha novela, diante

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    de uma trmula e ansiosa jovem recm-chegada de uma pequena locali-dade de Hampshire. Pode-se facilmente fixar o seu tipo, j que, por sorte, ele jamais se extingue. Era elegante, ousado, sedutor, cheio de entusias-mo, alegria e bondade. Como bem se pode imaginar ele a impressionou pela elegncia de suas maneiras e pelo seu aspecto fsico, mas o que nele mais a seduziu, inspirando-lhe a coragem que revelou mais tarde, foi a sua maneira de referir-se ao trabalho que ela iria executar, como se fosse uma espcie de favor que ela lhe faria, uma coisa que ele lhe agradeceria sempre com reconhecimento. Ela o imaginou rico, mas tremendamente prdigo: via-o cercado por uma aurola de mundanismo, de beleza fsi-ca, de hbitos dispendiosos, de maneiras encantadoras com as mulheres. Sua manso de Londres estava repleta de lembranas de viagem e trofus de caa; mas era para a sua residncia rural, uma antiga casa em Essex, que desejava que ela seguisse imediatamente.

    Era tutor de dois sobrinhos, um menino e uma menina, filhos de seu irmo mais moo, militar, depois que os pais das crianas morreram na ndia, dois anos antes. Essas crianas, pela mais estranha das casua-lidades que poderiam ocorrer a um homem em sua situao homem sozinho, sem experincia do assunto e sem a mnima dose de pacincia eram uma carga muito pesada em suas mos. Haviam-lhe causado muitas preocupaes e, sem dvida, dado lugar, quanto ao que dizia respeito sua pessoa, a uma srie de erros, mas inspiravam-lhe imensa piedade, e ele fazia por elas tudo o que estava ao seu alcance. Em particular, tinha-as enviado para a sua outra casa, convencido de que o lugar mais apropriado para elas era, naturalmente, o campo. Confiou-as, desde o princpio, ao pessoal mais qualificado que pudera encontrar, privando-se, mesmo, em parte, de seus prprios servidores, para que cuidassem delas. Ele prprio, sempre que podia, ia em pessoa ver como estavam passando. O pior de tudo era que, praticamente, essas crianas no tinham outro parente se-no ele e ele tinha todo o tempo tomado pelos seus assuntos particulares. Havia instalado as crianas em BIy, lugar seguro e saudvel, colocando testa da casa mas apenas para cuidar dos afazeres domsticos uma excelente mulher, Mrs. Grose, antiga criada de sua me, com que, sem dvida alguma, a sua visitante simpatizaria. Mrs. Grose, alm de gover-nanta, estava encarregada de tratar da menina, de que, no tendo filhos, gostava, felizmente, muitssimo. A criadagem era numerosa, mas, natu-ralmente a pessoa que desempenhasse as funes de preceptora teria autoridade suprema sobre os demais servidores. Durante as frias, parte de seu trabalho consistia tambm em vigiar o menino, que, apesar de sua

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    pouca idade pois quem poderia cuidar dele? estava num colgio havia j meio ano. Findo o perodo letivo, o menino deveria, agora, voltar para casa a qualquer momento. A princpio, uma outra jovem, que tive-ram o infortnio de perder, havia se ocupado das crianas. Desempenhou admiravelmente suas funes at o dia de sua morte, grave contratempo que, justamente, no deixara para o pequeno Miles outra alternativa se-no ir para o colgio. Desde ento, Mrs. Grose tratava o melhor que podia de Flora. Havia, ainda, na casa, uma cozinheira, uma criada, uma mulher que se ocupava da granja, um velho pnei, um velho empregado de estre-baria e um velho jardineiro, todos eles absolutamente respeitveis.

    Douglas havia chegado a esta altura de seu relato, quando algum perguntou:

    De que morreu a antiga preceptora? De tanta respeitabilidade?Nosso amigo respondeu prontamente: Vocs sabero. No quero antecipar nada. Peo-lhe que me perdoe. . . Julguei que era isso, justamente, o

    que voc est fazendo. Em lugar de sua sucessora comentei eu teria desejado sa-

    ber se as funes implicavam. . . Perigo de morte? completou Douglas a minha frase. Ela

    quis saber, e o soube. Vocs ouviro amanh o que foi que ela soube. En-trementes, verdade, tal perspectiva lhe pareceu ligeiramente sombria. Era jovem, inexperiente, nervosa: era uma perspectiva de deveres srios e de pouca companhia. . . de uma solido realmente grande. Hesitou. Pediu dois dias de prazo para refletir e dar uma resposta. Mas o salrio oferecido superava em muito aquilo que modestamente esperava e, na segunda entrevista, enfrentou a situao e aceitou o emprego.

    Douglas, nessa altura, fez uma pausa, que aproveitei para fazer um comentrio, recebido com agrado pelos presentes:

    Moral da histria: o formoso jovem exerceu, naturalmente, os seus dons de seduo. E ela sucumbiu.

    Douglas levantou-se e, como na noite anterior, aproximou-se do fogo e empurrou com o p um toro de lenha, permanecendo um momen-to de costas voltadas para ns.

    Vira-o apenas duas vezes. Sim, mas nisso que consiste, precisamente, a beleza da sua

    paixo.Ao ouvir isto, Douglas voltou-se para mim, surpreendendo-me um

    pouco:

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    Sim. Nisso consistia a beleza de sua paixo. Outras no teriam sucumbido. Ele lhe contou francamente todas as suas dificuldades. . . Disse-lhe que vrias outras candidatas haviam considerado as condies proibitivas. Mostravam-se, de certo modo, assustadas. Aquilo lhes pare-cia no s montono, como estranho. Principalmente devido condio principal.

    Que era.. . ? Que a preceptora jamais deveria incomod-lo. . . nunca, em caso

    algum. No deveria cham-lo, queixar-se, nem escrever-lhe sobre coisa alguma. Devia resolver por si mesma as dificuldades com que deparasse, receber todo o dinheiro de que precisasse das mos de seu procurador, encarregar-se de tudo e deix-lo em paz. Ela prometeu que assim o faria, e confessou-me que, quando ele, por um momento, reteve a sua mo, aliviado, encantado, agradecendo-lhe aquele sacrifcio, ela j se sentira recompensada.

    Mas essa foi toda a sua recompensa? perguntou uma senho-ra.

    Ela jamais o viu novamente. Oh! exclamou a senhora.E foi essa a ltima palavra que se ouviu sobre o assunto, pois o

    nosso amigo nos deixou at a noite seguinte, em que, sentado, junto lareira, em sua melhor poltrona, aluiu um lbum vermelho e fino, de capa desbotada, com os cantos dourados, moda antiga. A leitura tomou mais do que uma noite, mas, naquela primeira ocasio, a mesma senhora fez uma outra pergunta:

    Que ttulo escolheu? Ainda no tenho ttulo. Oh, mas eu tenho! exclamei.Mas Douglas, sem dar-me ateno, j havia comeado a ler, com

    uma dico to ntida que era como se estivesse levando aos nossos ouvi-dos a elegncia da letra do autor.

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    Lembro-me de todo esse princpio como uma sucesso de altos e baixos, uma gangorra de emoes diversas, umas naturais, outras injusti-ficadas. Depois do meu entusiasmo, na cidade, para atender ao seu apelo, passei dois dias, sob todos os aspectos, muito maus: senti-me de novo hesitante, certa de que cometera um erro. Nesse estado de esprito, pas-sei as longas horas da viagem, sofrendo os solavancos e o desconforto de uma velha diligncia que me conduziu ao lugar em que deveria encontrar um veculo da casa. Com efeito, ao entardecer de um dia de junho, encon-trei minha espera um confortvel carro. Viajando a essa hora, num dia belssimo, por uma regio cuja doura estival parecia oferecer -me uma recepo cordial, senti-me de novo reanimada e, ao entrarmos numa alameda, se apoderou de mim um bem-estar que talvez no fosse uma reao do desalento em que eu mergulhara. Creio que eu esperava ou temia algo to melanclico, que o espetculo com que deparei constituiu agradvel surpresa. Recordo a excelente impresso que me causou a fa-chada ampla e clara, com sua janelas abertas, suas claras cortinas e duas criadas que observavam a minha chegada; recordo o verde relvado e as flores brilhantes, o rudo das rodas do carro sobre o caminho de cascalho e as rvores copadas cujas ramagens se uniam no alto, e sobre as quais revoluteavam, ruidosas, as gralhas, no cu dourado. O cenrio tinha uma grandeza que contrastava grandemente com a modesta casa onde eu at ento vivera e, mal se deteve o carro, surgiu entrada da casa, dando a mo a uma menininha, uma pessoa de aspecto corts, que fez uma reve-

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    rncia to cerimoniosa como se eu fosse a dona da casa ou uma visitante ilustre. Em Harley Street, eu ouvira uma descrio pouco favorvel do lu-gar, e ao relembr-la, no pude deixar de julgar o proprietrio ainda mais cavalheiresco, o que me levou a pensar que o prazer que me assegurava talvez estivesse muito alm de suas palavras.

    No tive nenhuma decepo at o dia seguinte, pois as horas que se seguiram eu as empreguei, com xito, em estreitar relaes com a mi-nha aluna mais jovem. A garotinha que acompanhava Mrs. Grose me pa-receu, desde o primeiro momento, uma criatura to encantadora, que considerei uma grande sorte t-la sob os meus cuidados. Era a criana mais bela que eu encontrara em minha vida e, depois, perguntei a mim mesma porque seria que meu patro no me falara mais a respeito dela. Dormi pouco aquela noite, pois que estava por demais excitada; e isso tambm me surpreendeu lembro-me agora chegando a preocupar -me, ao pensar na generosidade com que fora recebida. O aposento gran-de e imponente que me destinaram, um dos melhores da casa, a ampla cama de cerimnia pelo menos assim a considerei as ricas cortinas floridas, os altos espelhos nos quais, pela primeira vez, eu podia ver-me da cabea aos ps, e, ainda, o extraordinrio encanto de minha pequena discpula tudo isso me impressionou, parecendo-me excessivo. Tam-bm me pareceu, desde o primeiro momento, que as minhas relaes com Mrs. Grose seriam satisfatrias, ao contrrio do que eu pensava, um tanto atemorizada, durante a viagem. A nica coisa, com efeito, que, na-quele primeiro encontro, poderia ter feito renascer os meus receios, foi o fato de ela ter-se mostrado excessivamente alegre ao ver-me. Percebi, dentro de meia hora, que ela mulher corpulenta, simples, franca, asse-ada, saudvel estava to contente, que tinha, positivamente, de esfor-ar-se por no o demonstrar demasiado. Chegou mesmo a causar-me um pouco de estranheza que ela procurasse ocult-lo e isso, com um pouco de reflexo e suspeita, poderia ter feito com que me sentisse inquieta.

    Mas era um conforto para mim pensar que no poderia haver qualquer inquietude quanto imagem radiante da pequena confiada aos meus cuidados, cuja anglica beleza influiu, provavelmente, mais do que qualquer outra coisa na inquietude que, antes do amanhecer, me fez le-vantar vrias vezes do leito e andar pelo quarto, para compenetrar-me mais do ambiente, observar, da janela, a plida aurora estival, examinar as outras partes da casa que os meus olhos podiam distinguir, e escu-tar, enquanto as ltimas sombras da noite se desvaneciam, os primeiros trinados dos pssaros, a possvel repetio de um ou dois sons menos

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    naturais que vinham no de fora, mas de dentro, e que eu supunha ter ouvido. Houve um momento em que julguei reconhecer, fraco e distante, um grito de criana; outro em que estremeci, quase conscientemente, ante o que me pareceu um rudo de passos leves atrs da porta. Mas tais imaginaes no eram bastante ntidas para que eu no pudesse afast -las e foi somente luz, ou, talvez o dissesse melhor, somente devido obscuridade dos acontecimentos subsequentes, que isso agora me acode memria. Vigiar, ensinar, formar a pequena Flora, seria, evidentemen-te, um motivo para uma vida feliz e til. Ficava combinado que, depois daquela primeira noite, ela passaria a dormir em meu quarto e, para isso, a sua caminha branca j havia sido colocada junto minha. Competia-me cuidar inteiramente dela, e se havia ficado aquela noite, pela ltima vez, em companhia de Mrs. Grose, aquilo se devia apenas a uma deferncia em vista a minha estranheza inevitvel e a natural timidez de Flora. Ape-sar de sua timidez a que a prpria criana, de maneira mais estranha possvel, se referira com a mais perfeita franqueza e coragem, permitindo, sem nenhum sinal de acanhamento e com a profunda e doce serenidade de um anjo de Rafael, que o assunto fosse discutido, comentado e que nos submetessemos a ele eu tinha a certeza de que ela, dentro de pouco tempo, gostaria de mim. Em parte, a simpatia que eu j sentia por Mrs. Grose provinha do prazer que eu via que ela experimentava ante minha admirao e deslumbramento, quando eu me sentava mesa de quatro altos candelabros e de minha pequena discpula, instalada, com um guardanapo em torno do pescoo, numa cadeira alta, a observar-me, atentamente, por cima do leite e do po. Havia, naturalmente, muita coi-sa que, em presena de Flora, s podamos comunicar uma outra por meio de olhares significativos e surpresos ou aluses indiretas e obscuras.

    E o menino, parece-se com ela? tambm assim extraordinrio?No se devia elogiar uma criana, em presena da mesma. Oh, senhorita, bastante extraordinrio! Se que esta lhe parece

    tal!E Mrs. Grose continuava de p, com um prato na mo, a olhar, ra-

    diante, a nossa pequena companheira, cujos olhos ora fitavam uma, ora outra de ns, sem que nada houvesse, em sua placidez celestial, que nos levasse a conter as nossas palavras.

    Sim, e ento? A senhorita se sentir arrebatada pelo jovenzinho! Bem, creio que foi para isso que vim para c. . . Para deixar-me

    arrebatar. Mas receio senti, lembro-me, necessidade de acrescentar

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    ser uma pessoa que se deixa arrebatar facilmente. Em Londres tambm me senti arrebatada!

    Posso ainda ver o amplo rosto de Mrs. Grose, ao interpretar o sen-tido dessas minhas palavras.

    Em Harley Street? Em Harley Street. Bem, a senhorita no foi a primeira. . . e no ser a ltima. Oh, no tenho a pretenso de ser a nica consegui dizer, rin-

    do. De qualquer modo, segundo entendo, o meu outro discpulo che-gar amanh, no verdade?

    Amanh no, senhorita: sexta-feira. Chegar, como a senhorita, pela diligncia, sob a vigilncia do condutor. Depois, o carro estar sua espera. O mesmo em que a senhorita veio.

    Manifestei logo a opinio de que seria no s conveniente, mas, tambm, cordial e amistoso, que eu fosse esperar, em companhia de sua irmzinha, a chegada da diligncia idia que Mrs. Grose acolheu de to bom grado que eu, de certo modo, encarei a sua atitude como uma promessa confortante jamais desmentida, graas a Deus! de que esta-ramos sempre, em todas as questes, inteiramente de acordo. Oh, ela estava contente por eu me encontrar l!

    O que senti no dia seguinte no pode, creio eu, ser interpretado como uma reao ao jbilo que experimentei chegada; era, provavel-mente, no mximo, uma ligeira opresso produzida pelo exame mais completo e preciso das novas circunstncias, quando as contemplei em conjunto, analisando-as, depois, uma por uma. Eram, por assim dizer, de uma extenso e volume para os quais eu no estava preparada, e em presena dos quais me senti, de novo, no s um pouco assustada, como, tambm, um tanto orgulhosa. As lies, dada a minha agitao, sofreram alguma demora. Refleti que o meu dever era, antes de mais nada, con-quistar a confiana da pequena, lanando mo de toda a habilidade que me fosse possvel. Passei o dia, em sua companhia, ao ar livre; combinei com ela, para sua grande satisfao, que seria ela, somente ela, quem deveria mostrar-me a casa. Ela o fez passo a passo, aposento por aposen-to, segredo por segredo, entretendo-me com a sua deliciosa loquacidade infantil, o que teve como resultado fazer com que, dentro de meia hora, nos tornssemos amigas ntimas. Pequena como era, impressionou-me, durante a nossa volta pela casa, pela confiana e coragem que revelou nos aposentos vazios e nos sombrios corredores, nas escadas em caracol, que me obrigavam, s vezes, a deter-me, e, mesmo no alto de uma torre

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    quadrada provida de balestreiros, que me causava tonturas. Aquela sua loquacidade matinal, aquela sua disposio para dizer-me muito mais coi-sas do que as que me perguntava, me aturdiam e arrastavam. No voltei mais a Bly desde o dia em que de l sa, e ousaria dizer que agora, para os meus olhos mais velhos e experientes, o lugar teria uma importncia muito reduzida. Mas, enquanto a minha pequena cicerone, com os seus cabelos de ouro e o seu vestido azul, pulava diante de mim nos cantos dos velhos muros e ao longo dos corredores, eu tinha a impresso de estar num castelo de romance, habitado por um duende de faces rosadas, num lugar que, de certo modo, fazia empalidecer os livros de histrias infan-tis e os contos de fadas. Acaso no seria tudo aquilo um conto que me fizera adormecer e sonhar? No. Era uma casa grande, feia, antiga, mas confortvel, que conservava restos de uma construo ainda mais antiga, em parte substitudos, em parte utilizados, na qual eu tinha a impresso de que estvamos quase to perdidos como um punhado de passageiros num grande navio navegando deriva. Um navio em que eu estivesse, estranhamente, manejando o leme!

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    Essa idia me assaltou quando, dois dias depois, fomos, Flora e eu, esperar, como dizia Mrs. Grose, o pequeno gentleman, tanto mais que, na segunda noite, ocorreu um incidente que me desconcertou profun-damente. O primeiro dia havia sido, de um modo geral, como afirmei, tranquilizador, mas eu o veria transformar-se e dar lugar a uma viva apre-enso. O correio que chegou com atraso trouxe-me uma carta de meu patro. Continha poucas palavras e encerrava outra carta, que no fora aberta, embora lhe houvesse sido endereada. Reconheo a letra do diretor do colgio dizia-me o meu patro e ele uma pessoa en-fadonha. Leia-a, por favor, e entenda-se com ele. Mas no me diga nada. Nem uma palavra. Estou de viagem! Abri com dificuldade o envelope lacrado, to grande era ele, no me decidindo a ler imediatamente o seu contedo; levei, por fim, a missiva ainda fechada para o meu quarto e s a li pouco antes de ir para a cama. Teria sido melhor se a houvesse deixa-do para a manh seguinte, pois sua leitura fez com que eu passasse uma segunda noite em claro. No tendo ningum que pudesse me aconselhar, o dia seguinte foi, para mim, cheio de ansiedade ansiedade que chegou a tal ponto que resolvi, finalmente, abrir-me com Mrs. Grose.

    Que significa isto? O pequeno foi expulso da escola.Lanou-me um olhar que me intrigou, no momento; depois, rapi-

    damente, procurando parecer casual, tentou conter-se: Mas ento eles todos no voltam?. . . s suas casas? Voltam. Mas apenas durante as frias. E Miles

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    talvez no possa voltar nunca mais ao colgio.Diante do meu olhar, Mrs. Grose enrubesceu: No o querem de volta? . Negam-se de forma absoluta.Mrs. Grose, que havia desviado o olhar, ergueu de novo os olhos

    para mim e vi que se inundavam de bondosas lgrimas. Mas o que foi que ele fez?Hesitei. Depois, pensei que o melhor seria simplesmente estender -

    lhe a carta, o que fez com que ela, sem apanh-la, pusesse as mos atrs das costas. Abanou tristemente a cabea:

    Essas coisas no so para mim, senhorita.Minha conselheira no sabia ler! Surpresa, tratei de atenuar o meu

    erro o melhor que pude e, abrindo de novo a carta, ia l-la para ela; de-pois, arrependida, tornei a dobr-la e guardei-a no bolso.

    Ele realmente mau?Ainda havia lgrimas em seus olhos: Esses senhores dizem isso? No entram em pormenores. Expressam apenas o seu pesar por

    no lhes ser possvel conserv-lo no colgio. Isso s pode significar uma coisa. . .

    Mrs. Grose escutava-me, tomada de muda emoo. Absteve-se de perguntar-me o que aquilo poderia significar, de modo que prossegui, ajudada apenas pela sua presena, procurando formular mentalmente a coisa de maneira coerente:

    Significa que ele prejudicaria os colegas.Diante de minhas palavras, inflamou-se subitamente, com um des-

    ses sobressaltos comuns nas criaturas simples: O pequeno Miles! Ele, prejudicar algum?Havia tal boa-f em suas palavras, que eu embora ainda no

    houvesse visto o menino fui levada, imediatamente, a considerar ab-surda aquela minha idia. Vi-me, para concordar com a minha amiga, acrescentando sarcasticamente:

    Os meus pobres e inocentes companheiros! demasiado horrvel exclamou Mrs. Grose dizer semelhan-

    te crueldade! Se ele no tem ainda nem dez anos! Tem razo. incrvel.Ela, evidentemente, sentiu-se grata ante tal declarao: Veja-o primeiro, senhorita; depois acredite.Senti-me, novamente, impaciente por v-lo. Era o comeo de uma

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    curiosidade que, nas horas seguintes, deveria aumentar quase a ponto de me fazer sofrer. Mrs. Grose percebeu, tenho a certeza, a impresso que me causara, pois insistiu, com segurana :

    Poder-se-ia dizer o mesmo da menininha que Deus a aben-oe! Olhe para ela!

    Voltei-me e vi Flora, que nos observava pela porta aberta; dez mi-nutos antes, eu a havia deixado instalada na sala de estudos, com uma folha de papel branco, um lpis e uma poro de O bem redondos para copiar. Demonstrava, sua maneira, um desapego extraordinrio s obri-gaes desagradveis; olhava-me, no entanto, com essa grande irradiao luminosa da infncia, como se quisesse explicar a sua conduta como sen-do um simples resultado do afeto que eu lhe inspirara, e que a obrigava a seguir-me. No precisei de outra coisa para sentir, em toda a sua fora, a comparao de Mrs. Grose e, tomando nos braos a minha discpula, cobri-a de beijos, nos quais havia um soluo de arrependimento.

    No obstante, durante o resto do dia, procurei uma nova oportuni-dade para me aproximar de Mrs. Grose, principalmente quando, ao entar-decer, me pareceu que ela evitava a minha presena. Alcancei-a, lembro -me, na escada; descemos juntas e, embaixo, eu a detive, pousando a mo em seu brao.

    Pelo que me disse esta manh, entendo que a senhora no o viu nunca conduzir-se mal.

    Lanou a cabea para trs; no havia dvida de que, quela altura, j havia, muito honestamente, tomado uma atitude:

    Oh, no vi?... . No pretendo dizer isso!Senti-me de novo perturbada. Ento a senhora viu? Claro, senhorita. Graas a Deus!Depois de um momento de reflexo, aceitei suas palavras. A senhora quer dizer que um menino que nunca. . . Para mim, ele no um menino! Gosta de meninos peraltas, travessos?E, antecipando sua resposta, afirmei, com nfase: Eu tambm! Mas no a ponto que possam contaminar. . . Contaminar? perguntou ela, sem entender a palavra.E eu expliquei: Corromper.Fitou-me, compreendendo, por fim, o que eu queria dizer. Mas

    aquilo lhe causou um estranho riso:

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    Tem medo de que ele corrompa a senhorita?Fez a pergunta com um bom humor to ousado, que eu, para

    acompanh-la, tambm me pus a rir um tanto tolamente, mas com um certo receio de cair no ridculo.

    No dia seguinte, porm, ao aproximar-se a hora em que devamos tomar o carro, apanhei-a em outro canto da casa:

    Quem era a senhora que esteve aqui antes? A outra preceptora? Era tambm jovem e bonita... quase to

    jovem e bonita como a senhorita. Espero que a sua juventude e a sua beleza lhe tenham servido

    para alguma coisa! lembro-me de que deixei escapar. Parece que ele prefere preceptoras jovens e bonitas!

    Oh, preferia! assentiu Mrs. Grose. Era assim que gostava de todas as pessoas.

    Mal proferiu essas palavras, procurou emendar-se: Quero dizer, ele assim... o patro.Fiquei perplexa: Mas de quem falava a senhora primeiro? Ora essa! Falava dele. Do patro? De quem mais podia ser?Era to bvio que no existia outra pessoa, que, decorrido um mo-

    mento, se dissipou em mim a impresso de que ela, acidentalmente, dis-sera mais do que pretendera. E perguntei simplesmente o que desejava saber:

    Ela viu alguma coisa no menino? Alguma coisa que no estivesse certo? Nunca me disse nada.Dominei um certo escrpulo e prossegui: Era particularmente cuidadosa?Tive a impresso de que Mrs. Grose procurou responder conscien-

    ciosamente: Em algumas coisas, sim. . . Mas no em tudo? Refletiu novamente: Bem, senhorita. . . ela morreu. No me agrada contar histrias. Compreendo perfeitamente os seus sentimentos apressei-me

    em responder. Mas, logo depois, no pensei que desmentia essa conces-so, ao perguntar-lhe: Ela morreu aqui?

    No. J tinha ido embora.

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    No sei por que razo me pareceu que havia algo de ambguo na maneira lacnica de Mrs. Grose.

    Saiu daqui para morrer?Mrs. Grose olhou para alm da janela, mas achei que eu tinha o

    direito de saber o que se esperava que as jovens preceptoras de Bly fi-zessem.

    A senhora quer dizer que ela ficou doente e voltou para casa? Que eu saiba, ela no ficou doente nesta casa. Saiu daqui, no fim

    do ano, para passar, segundo me disse, um breve perodo de frias em sua casa, coisa a que, alis, tinha todo o direito, depois do tempo que aqui permaneceu. Tnhamos, naquela ocasio, uma empregada ainda moa, boa e inteligente, que se encarregou das crianas no intervalo. Mas a nos-sa jovem preceptora jamais voltou: no momento em que eu a esperava, o patro me comunicou que ela havia morrido.

    Pus-me a pensar naquilo. Mas de que morreu? Ele nunca me disse. Mas, por favor, senhorita ajuntou Mrs.

    Grose. Preciso continuar o meu trabalho.

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    Sua descortesia, ao voltar-me as costas, no impediu, felizmente, apesar de minhas justas preocupaes, que a nossa estima recproca con-tinuasse a aumentar. Encontramo-nos, depois que eu trouxe para casa o pequeno Miles, numa atmosfera de maior intimidade do que nunca, devido minha estupefao e emoo pois no vacilei em declarar que era uma monstruosidade expulsar-se de um colgio uma criana como aquela. Cheguei um pouco atrasada ao lugar do encontro e senti imedia-tamente, ao v-lo pensativamente minha espera, junto porta da esta-lagem em que a diligncia o deixara, que o envolvia e penetrava a mesma frescura deslumbrante, a mesma indiscutvel fragrncia de pureza que eu encontrara, desde o primeiro momento, em sua irm. Era incrivelmente belo, e Mrs. Grose tinha razo: em sua presena, todos os outros senti-mentos se dissipavam, para dar lugar apenas a uma espcie de profunda ternura. O que, em certas ocasies, o aproximava de meu corao, era algo de divino que havia nele e que jamais encontrei, no mesmo grau, em qualquer outra criana: seu ar, indescritvel, de no conhecer nada no mundo que no fosse amor. Teria sido impossvel a algum carregar uma m reputao com mais doce inocncia e, quando cheguei a Bly em sua companhia, sentia-me inteiramente perplexa para no dizer indignada ao pensar na horrvel carta que eu tinha fechada numa gaveta, em meu quarto. Logo que pude trocar uma palavra com Mrs. Grose, disse-lhe que tudo aquilo era grotesco.

    Compreendeu-me prontamente:

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    A senhorita se refere a essa acusao cruel? No resiste ao mais leve exame! Olhe, minha amiga, essa crian-

    a!Sorriu ante a minha pretenso de haver descoberto o encanto de

    Miles. Asseguro-lhe, senhorita, que no fao outra coisa! Que que ir

    dizer-lhes, ento? Em resposta carta?Eu j tinha tomado uma deciso: Nada. E ao tio dele? Nada respondi, incisiva. E ao prprio menino? Fui estupenda: Nada.Passou o avental pela cara, enxugando os lbios. Ento, ficarei do seu lado. Veremos o que acontecer. Veremos! repeti, com ardor, estendendo-lhe a mo, para selar

    o nosso pacto.Deteve-se um momento; depois ergueu de novo a ponta do aven-

    tal, com a mo que estava livre: A senhorita se importaria, se eu tomasse a liberdade. . . De beijar-me? No, certamente!Tomei a boa criatura em meus braos e, depois que nos abraamos,

    como irms, me senti mais encorajada e indignada.Assim permaneceram as coisas durante algum tempo um tempo

    to cheio de acontecimentos que, ao lembrar-me do que ocorreu, ne-cessito recorrer a toda a minha habilidade para descrever as coisas com certa clareza. O que agora me causa espanto ter aceito uma tal situao. Havia decidido, com minha companheira, fazer frente situao, e estava sob o influxo de uma espcie de encantamento, que me parecia aplai-nar o caminho e impedir-me de ver as dificuldades e as consequncias distantes de um tal esforo. Deixava-me empolgar por uma imensa onda de piedade e emoo. Parecia-me fcil, em minha ignorncia, em minha cegueira e, talvez, em minha presuno, dirigir a educao de um menino que apenas comeava a viver. No consigo lembrar-me, hoje, de qual o plano que elaborei para o fim de suas frias e o reinicio de seus estudos. Teoricamente, todos estavam de acordo em que eu, durante aquele ve-ro encantador, deveria ministrar-lhe lies; mas, hoje, sinto que, durante

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    todas aquelas semanas, quem recebeu lies fui eu. Aprendi algo pela primeira vez, sem dvida que a minha vida modesta e apagada no me havia ensinado: aprendi a divertir-me e, at mesmo, a ser divertida e no pensar no dia de amanh. De certo modo, era aquela a primeira vez que eu gozava de espao, de ar livre e de liberdade, de toda a msica do vero e de todo o mistrio da natureza. Ademais, gozava de considerao e aquela considerao me era doce e agradvel. Oh, aquilo era uma armadilha no intencional, mas profunda minha imaginao, minha delicadeza e, talvez, minha vaidade: a tudo o que havia em mim de mais sugestionvel. A melhor maneira de descrever o que me ocor-reu, dizer que me deixei apanhar desprevenida. As crianas me davam to pouco trabalho!... Eram de uma doura extraordinria! Eu costumava pensar mas mesmo isso de uma maneira um tanto vaga e incoerente de que forma o futuro spero (pois todos os futuros so speros) iria tratar aquelas criaturas. . . Talvez, mesmo, as ferisse. Irradiavam, ambos, sade e felicidade; no entanto, como se tivesse a meu cargo dois gran-des do Reino, dois pequenos prncipes de sangue real, que devessem ser protegidos e tratados de modo excepcional, a nica forma de vida que, a meu ver, os anos futuros poderiam ter para eles seria uma prolongao romntica e verdadeiramente regia de seus jardins e de seu parque. Pode ser, sem dvida, que o encanto e a tranquilidade com que agora encaro aquele primeiro perodo sejam devidos sbita transformao que os rompeu. . . Aquela quietude de algo que se contrai e espera. . . A mudana que se operou foi, realmente, como o salto de uma fera.

    Nas primeiras semanas os dias eram longos; a mido, em seus me-lhores momentos, proporcionavam-me o que eu chamava a minha hora a hora em que, depois de tomar o ch, os meus discpulos iam para a cama, e em que eu podia dispor, antes de recolher-me, de alguns mo-mentos para ficar a ss comigo mesma. Por muito que amasse os meus companheiros, aquela era a hora do dia de que eu mais gostava e gos-tava, sobretudo, do momento em que, enquanto a luz se dissipava ou, melhor dito, enquanto a luz do dia ainda permanecia e o derradeiro canto dos ltimos pssaros, sob um cu avermelhado, chegava at mim, vindo das velhas rvores eu podia dar uma volta pelos jardins e desfrutar, quase com um sentimento de propriedade, que me divertia e lisonjea-va, da beleza e da dignidade daqueles lugares. Era um prazer, naqueles momentos, sentir-me tranquila e justificada; era um prazer, sem dvida, pensar que minha discrio, meu tranquilo bom senso e, de um modo geral, as qualidades de meu carter, estavam causando prazer se que

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    alguma vez ele pensou nisso! pessoa cujo apelo eu atendera. Estava fazendo o que ele desejara ardentemente e me pedira fizesse, e o fato de que eu, afinal de contas, pudesse faz-lo, me causava um prazer ainda maior do que havia esperado. Ouso dizer, em suma, que me via como uma jovem notvel, e encontrava conforto em pensar que isso acabaria por se tornar evidente. Bem, era preciso que eu fosse notvel para en-frentar os notveis acontecimentos que logo se manifestaram.

    Ocorreram abruptamente, uma tarde, em meio da minha hora: as crianas tinham-se recolhido e eu sara para o meu passeio habitual. Um dos pensamentos que me acompanhavam nessas caminhadas e que no me abstenho, agora, de anotar era que seria to encantador como um conto encantador se eu me encontrasse subitamente com algum. Algum aparecia, de repente, na volta do caminho e ficaria parado a fitar--me, sorrindo, com ar de aprovao. No pedia mais do que isso: pedia apenas que ele soubesse, e a nica maneira de estar certa de que ele o sabia, teria sido l-lo na bondosa expresso de seu belo rosto. Isso estava claramente presente em minha imaginao isto , o rosto quando, na primeira dessas ocasies, no fim de um longo dia de junho, me deti-ve subitamente, ao sair de trs de uns arbustos e deparar com a casa minha frente. O que me pregou no cho chocando-me muito mais do que qualquer outra viso o poderia ter feito foi a sensao de que a minha fantasia, num abrir e fechar de olhos, se tornara real. L estava ele!. . . mas muito alto, alm do relvado, no prprio topo da torre a que a pequena Flora me conduzira na manh em que cheguei. Essa torre forma-va par com outra semelhante duas construes quadradas, ameadas, sem nenhuma relao com o resto do edifcio; por alguma razo que eu no conseguia apreender, pois quase no havia diferena entre elas, eram chamadas, respectivamente, a velha e a nova. Estavam situadas em flan-cos opostos da casa e constituam, provavelmente, absurdos arquitetni-cos, apenas redimidos, de certo modo, por no se acharem, inteiramente isoladas nem serem de uma altura demasiado pretensiosa, datando, em sua falsa antiguidade, de uma poca romntica que j se havia transfor-mado num passado respeitvel. Eu as admirava, entregando-me a certas fantasias, pois no deixavam de impressionar, sobretudo quando surgiam em meio da obscuridade, pela imponncia de suas ameias. Contudo, em tal altura, a figura que tantas vezes invoquei no me parecia estar num lugar adequado.

    Lembro-me de que essa figura produziu em mim, no claro creps-culo, dois assomos distintos de emoo, que foram nitidamente, o sobres-

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    salto da minha primeira e, depois, da minha segunda surpresa. A segunda foi a violenta percepo do erro da primeira: o homem que surgia ante os meus olhos no era a pessoa que eu, precipitadamente, supusera. Isso me deixou to perplexa e confusa que ainda hoje, depois de todos estes anos, no posso encontrar uma surpresa que se lhe compare. Um homem desconhecido, num lugar solitrio, coisa que, facilmente se admitir, pode assustar uma jovem tmida que at ento no se afastara jamais do seio de sua famlia, e a figura que se erguia diante de mim (bastaram poucos segundos para convencer-me disso) era to diferente de qualquer pessoa minha conhecida como da imagem que eu tinha em mente. No a vira em Harley Street; no a vira em parte alguma. Alm disso, o prprio lugar, da maneira mais estranha do mundo, se transformara, no mes-mo instante, devido sua apario, numa profunda solido. Ao menos para mim, que me esforo por narrar este episdio com a mxima deter-minao, como jamais o fiz, a sensao que ento experimentei torna a apoderar-se, vivamente, de meus sentidos. Enquanto penetrava em mim tudo o que os meus nervos podiam apreender, era como se o resto do cenrio houvesse sido ferido de morte. Posso ouvir de novo, enquanto es-crevo, a intensa quietude em que mergulharam todos os rudos da tarde. As gralhas calaram-se no cu de ouro e, durante um minuto, a hora suave perdeu a sua voz. Mas no houve qualquer outra mudana na natureza, a no ser, com efeito, que fosse uma mudana que eu via com estranha nitidez. O ouro permanecia ainda no cu, a transparncia na atmosfera, e o homem que me fitava do alto das ameias podia ser visto to claramente como um retrato numa moldura. Foi ento que pensei, com extraordin-ria rapidez, em cada uma das pessoas que podia ser e que no era. Atra-vs da distncia, defrontamo-nos durante um espao de tempo bastante longo para que eu me perguntasse, com intensa lucidez, quem podia ser, e para que sentisse, ante a incapacidade de encontrar uma resposta, um assombro cada vez maior.

    O grande problema ou, ao menos, um dos problemas que tive de enfrentar depois, com respeito a certos fatos, foi saber quanto tempo tais fatos haviam durado. Bem, o fato em questo, pensem os senhores o que quiserem, durou o bastante para que eu fizesse uma dzia de suposies, nenhuma delas, a meu juzo, mais sensata que as outras, concernentes existncia na casa e, sobretudo, desde quando? de uma pessoa cuja presena eu ignorava. Durou o bastante para que eu me irritasse um pouco, ao pensar que, em minha situao, tal ignorncia, assim como tal presena, eram inadmissveis. Durou o bastante, em todo caso, para

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    que o visitante, que no usava chapu estranho sinal de familiaridade pudesse observar-me, de onde se achava, exatamente com o ar inqui-ridor, perscrutador, que a sua prpria presena ali, hora do crepsculo, sugeria. Estvamos demasiado apartados para que pudssemos falar-nos, mas houve um momento em que, se estivssemos mais perto, uma in-terpelao qualquer, rompendo o silncio, teria sido o resultado lgico da maneira direta pela qual nos fitvamos. Ele se encontrava num dos ngulos mais afastados da casa, muito ereto, pormenor que me chamou a ateno, e tinha as mos apoiadas no parapeito. Foi assim que eu o vi, como vejo as palavras que trao nesta pgina; depois, exatamente aps um minuto, como para aumentar o efeito da cena, mudou lentamente de lugar, passando, sem deixar de olhar-me fixamente durante todo tempo, para o lado oposto da plataforma. Sim, tive a mais viva impresso de que, durante aquela mudana de lugar, no tirou jamais os olhos de mim e, ainda agora, neste momento em que escrevo, posso ver o movimento de sua mo, pousando, sucessivamente, nas ameias. Deteve-se na outra extremidade, mas o fez durante menos tempo, continuando a fitar-me com insistncia at desaparecer. E desapareceu. Isso foi tudo que percebi.

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    No esperava naquela ocasio, que as coisas ficassem assim, pois que me sentia to abalada quanto resoluta. Havia em Bly um segredo um mistrio de Udolfo ou algum insano, um parente a que ningum se re-feria e que era mantido em insuspeitado confinamento? No posso dizer quanto tempo fiquei a pensar sobre isso, ou quanto tempo estive imvel, num estado de confusa curiosidade e temor, no lugar em que recebi tal impacto. Posso apenas lembrar-me de que, quando entrei na casa, a noite j a havia envolvido por completo. No intervalo, fui presa de uma agitao que, certamente, deve ter-me arrastado, pois devo ter caminhado, dando voltas pelo parque, umas trs milhas; mais tarde, porm, eu haveria de conhecer angstias to mais vivas, que aquele simples raiar de alarme era, comparativamente, um estremecido de emoo humano. A parte mais estranha do fato estranha como havia sido tudo o mais me foi revelada quando entrei no hall e encontrei Mrs. Grose. Esse quadro me acode ao esprito em meio de todas as outras emoes: a impresso que me causou, minha volta, o amplo espao iluminado, com os seus bran-cos lambris, o seu candelabro, os seus retratos e o seu tapete vermelho, bem como o olhar bondoso e surpreso de minha amiga, que me disse, imediatamente, haver sentido a minha ausncia. Percebi incontinenti, em presena de Mrs. Grose, que ela ficara, muito naturalmente preocupada, mas que sua inquietude se dissipara com a minha chegada e que ela no sabia absolutamente nada que tivesse relao com o incidente que eu estava pronta a contar-lhe. Eu no supusera que seu rosto bondoso

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    me animaria e, ao hesitar em referir-lhe o que vira, pude, de certo modo, medir a gravidade do que havia presenciado. Poucas coisas, em toda a histria, me parecem to estranhas como o fato de o comeo do meu ver-dadeiro temor estar ligado, por assim dizer, ao instinto de poupar a minha companheira. Assim, ali naquele agradvel hall, enquanto ela me fitava, eu, por uma razo que no poderia ter convertido em palavras, passei por uma revoluo interior: arranjei um vago pretexto para explicar a minha demora e, invocando a beleza da noite, o orvalho abundante e os meus ps molhados, retirei-me, logo que pude, para o meu quarto.

    L, a coisa mudou de aspecto; l, durante muitos dias, aconteceu algo bastante singular. Havia horas, todos os dias ou, pelo menos, al-guns momentos, roubados aos meus deveres mais elementares em que eu precisava isolar-me para pensar. No que eu estivesse mais nervo-sa do que poderia suportar, mas sim porque me assustava terrivelmente pensar que poderia chegar a tal ponto pois a verdade que eu tinha agora de enfrentar era, clara e simplesmente, a de que, de forma alguma, eu poderia identificar o visitante com quem havia entrado em contato de modo to inexplicvel e, no entanto, parecia-me, to ntimo. No tardei em perceber que no seria difcil descobrir alguma trama domstica, sem necessidade de despertar suspeitas ou causar complicaes. O choque pelo qual passei deve ter aguado todos os meus sentidos: ao cabo de trs dias, depois de observar as coisas mais atentamente, convenci-me de que a criadagem no me havia enganado nem me feito algo de qualquer aposta. Fosse o que fosse que estivesse acontecendo, ningum sabia nada a respeito. No restava seno uma nica inferncia razovel: algum havia tomado uma liberdade um tanto abusiva. Era o que eu dizia a mim mesma, repetidamente, quando entrava em meu quarto e me fechava a chave. Tnhamos sofrido, todos, a invaso de um intruso. Algum viajante inescrupuloso, interessado em velhas casas, subira, sem que ningum o pressentisse, ao ponto mais cmodo, para observar a paisagem, afastan-do-se depois furtivamente, tal qual chegara. Se me havia fitado de ma-neira to ousada, que isso fazia parte, sem dvida, da sua indiscrio. O que havia de bom em tudo isso, afinal de contas, era que no tornaramos a v-lo.

    Mas isso no era suficiente bom, sem dvida, para impedir-me de refletir que o que, no fundo, fazia com que tudo o mais no tivesse grande importncia, era a minha encantadora tarefa. Minha encantadora tarefa consistia em viver com Flora e Miles, e nada me consolava mais do que pensar que encontraria nela um refgio para as minhas preocupaes. O

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    atrativo de meus pequenos discpulos era uma alegria constante, e des-pertava em mim uma surpresa sempre nova recordar os vos temores que me haviam assaltado, o desagrado que experimentara a princpio, ante a perspectiva de um trabalho prosaico e inspido. Mas no haveria nele, ao que tudo indicava, nada de prosaico ou montono. Como pode-ria deixar de ser encantador um trabalho que se apresentava como uma obra de cotidiana beleza? Tinha tudo o que h de novelesco nos quartos onde as crianas brincam, tudo o que h de potico nas salas onde es-tudam. No quero dizer com isso, por certo, que estudssemos apenas fico e poesia; quero dizer que no encontro outra maneira de exprimir a espcie de interesse que os meus companheiros me inspiravam. Como descrev-lo, seno dizendo que, em lugar de cair na monotonia do hbito (invoco aqui o testemunho de minhas colegas, pois que isto uma ma-ravilha para uma preceptora!) eu fazia novas e constantes descobertas? Havia uma direo, contudo, em que tais descobertas se detinham: uma profunda obscuridade continuava a envolver a conduta do menino na es-cola. Fora-me concedida prontamente, desde o princpio, a graa de con-templar esse mistrio sem que me causasse angstia. Talvez seja mesmo mais exato dizer que, sem proferir uma palavra, o prprio Miles esclarece-ra tudo. Tornara absurda aquela acusao. Minha concluso florescia com o rubor da sua inocncia: era demasiado delicado e justo para o mesqui-nho e srdido mundo estudantil e tivera de pagar por isso. Refleti, com amargura, que sempre, por parte da maioria que pode mesmo incluir diretores estpidos e srdidos a percepo de tais diferenas, de tais superioridades, redunda infalivelmente em vingana.

    Tanto Miles como Flora possuam uma doura (era o seu nico de-feito, mas isso jamais tornou Miles apoucado) que os tornava como poderei diz-lo? quase impessoais e, certamente, criaturas que a gente no podia castigar. Eram como os querubins da anedota, que no tinham pelo menos moralmente lugar algum em que pudessem receber umas palmadas! Lembro-me de que Miles, particularmente, me dava a impresso de no haver tido histria. Neste sentido, pouco se pode es-perar de um menino, mas havia, naquele lindo rapazinho, algo extraordi-nariamente sensvel e, no obstante, extraordinariamente feliz, que me assombrava mais do que em qualquer outra criatura de sua idade que eu haja visto como se ele renascesse todos os dias. No sofrera jamais um segundo que fosse. Encarei tal fato como uma prova flagrante de que ele no havia sido realmente castigado. Se houvesse procedido mal, eles o teriam apanhado e eu, de minha parte, teria recebido sinais disso.

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    Mas no descobri absolutamente nada; era, pois, um anjo. Jamais falava de seu colgio, nem se referia a qualquer colega ou professor, e eu estava muito desgostosa com o que acontecera para aludir a isso. Achava-me, est claro, debaixo de seu fascnio, e o mais maravilhoso que, mesmo ento, eu o sabia. Mas abandonava-me quele encantamento; era um antdoto para o sofrimento, e mais de um sofrimento me afligia. Naque-les dias, eu vinha recebendo cartas inquietantes de minha famlia, cujos assuntos no andavam bem. Em companhia, porm, das minhas crianas, que importncia podia ter o que acontecia no mundo? Eis como se me apresentava a questo, em meus breves momentos de recolhimento. Eu estava aturdida pela sua beleza.

    Um domingo devo prosseguir choveu tanto e to ininterrup-tamente que no pudemos ir igreja. Em vista disso, como as horas iam passando, combinei com Mrs. Grose que, se o tempo melhorasse, iramos juntas ao ofcio da tarde. Felizmente a chuva cessou e preparei-me para a nossa caminhada, que, atravs do parque e, depois, seguindo-se pela estrada, seria questo de uns vinte minutos. Ao descer para encontrar minha amiga no hall, lembrei-me de um par de luvas que tivera necessi-dade de alguns pontos e que as recebera com uma publicidade pouco edificante, talvez enquanto fazia companhia s crianas, que tomavam ch, servido, aos domingos, por exceo, naquele frio e claro templo de mogno e bronze a sala de jantar das pessoas grandes. Havia deixado l as minhas luvas, e desci para apanh-las. O dia estava bastante cinzen-to, mas ainda no havia cessado a luz da tarde, o que me permitiu, ao transpor a porta, no apenas reconhecer as minhas luvas, que estavam sobre uma cadeira, junto a uma grande janela, como, tambm, notar a presena de uma pessoa do outro lado da janela, a olhar para dentro atravs da vidraa. Bastou que eu desse apenas um passo na sala: a viso foi clara e instantnea. A pessoa que olhava, fixamente, para dentro, era a pessoa que j me havia aparecido. Surgiu, assim, de novo, no digo com maior nitidez, pois isso seria impossvel, mas com uma proximidade que revelava um progresso em nossas relaes e que me fez, logo que a vi, perder o flego e ficar gelada da cabea aos ps. Era o mesmo, era o mes-mo, e eu podia v-lo, essa vez, como o vira antes, da cintura para cima, pois, embora a sala de jantar estivesse situada no andar trreo, a janela no descia at o terrao em que ele estava de p. Tinha o rosto muito per-to da vidraa, mas essa segunda e mais prxima viso teve sobre mim, por estranho que parea, o nico efeito de mostrar-me quo intensa havia sido a primeira. No permaneceu ali seno alguns segundos mas o bas-

  • 35

    tante para convencer-me de que tambm me havia visto e reconhecido. Quanto a mim, era como se eu o houvesse estado olhando durante anos e o houvesse conhecido sempre. Essa vez, no entanto, aconteceu algo que no havia acontecido antes. Seu olhar, fixo em mim atravs da vidraa e ao longo do aposento, era profundo e duro como da primeira vez, mas afastou-se de minha pessoa por um momento, durante o qual pude segui -lo e ver que se fixava, sucessivamente, em vrios objetos. Incontinenti, tive um duplo e instantneo choque: a certeza de que ele no viera por minha causa. Viera em busca de outra pessoa.

    Tal certeza sbita pois que era uma certeza em meio do terror produziu em mim uma reao extraordinria. Despertou, enquanto eu me mantinha ali de p, uma sbita vibrao de coragem e dever. Digo coragem porque estava, sem dvida, completamente fora de mim. Sa precipitadamente da sala, alcancei a porta de casa, corri pelo terrao com a maior velocidade possvel e, dando a volta, observei o lugar junto ja-nela. Mas nada pude ver: o visitante desaparecera. Detive-me, e quase ca diante do alvio que isso me causou. Contudo, dei-lhe tempo para que reaparecesse. Digo tempo mas quanto tempo? No possvel dizer, hoje, quanto tempo duraram essas coisas. Sem dvida, perdera a noo de sua medida: no podiam ter durado tanto quanto me pareceu. O ter-rao, o espao em torno, o relvado e o jardim que havia alm dele, bem como a parte que eu podia ver do parque, estavam vazios, imensamente vazios. Havia arbustos e grandes rvores, mas lembro-me de que eu ti-nha plena certeza de que ele no se ocultara atrs deles. Estava ou no estava ali: no estava, se no podia v-lo. Aferrei-me a esta idia; depois, instintivamente, ao invs de voltar como havia chegado, aproximei-me da janela. Sentia, confusamente, que deveria colocar-me no lugar em que ele estivera. Assim o fiz e, colocando o rosto vidraa, olhei, como ele, o aposento. Naquele mesmo instante, como se quisesse mostrar-me exata-mente o alcance do olhar do visitante, Mrs. Grose, como eu prpria o fi-zera pouco antes, entrou na sala. Desse modo, tive a plena imagem, repe-tida, do que j havia ocorrido. Viu-me como eu vira o estranho visitante; deteve-se sbito, como eu havia feito: eu lhe transmitira algo do choque que experimentara. Empalideceu, o que fez com que eu me perguntasse se tambm havia empalidecido tanto. Em suma: fitou-me fixamente e se retirou, exatamente como eu o fizera; e eu sabia que ela sairia da casa, daria a volta pelo terrao e viria ao meu encontro. Permaneci no mesmo lugar e, enquanto a esperava, muita coisa me passou pela mente. Mas desejo citar apenas uma. Perguntei a mim mesma por que razo tambm ela se assustara.

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    Oh, fez-me saber logo que, dando a volta ao terrao, surgiu minha frente:

    Em nome do cu, o que foi que aconteceu? Estava afogueada e sem flego.Nada respondi, at que se aproximou bastante de mim. Comigo?Minha cara devia estar muito esquisita. Demonstro alguma coisa? perguntei. Est branca como um lenol! D medo v-la.Refleti um instante. Diante do que sucedera, podia enfrentar, sem

    qualquer escrpulo, a inocncia que fosse. Minha necessidade de respei-tar a inocncia em flor de Mrs. Grose deslizara como um manto de meus ombros e, se vacilei um momento, no foi com a inteno de ocultar-lhe o que sabia. Estendi-lhe a mo e ela a tomou; apertei-a com fora, satisfeita de t-la junto a mim. Havia uma espcie de apoio no tmido arfar de sua surpresa.

    A senhora veio procurar-me para irmos igreja, mas eu, positi-vamente, no poderei ir.

    Aconteceu alguma coisa? Sim. E a senhora, agora, deve sab-lo. Eu estava com um ar mui-

    to estranho? Atravs da janela? Espantoso! Bem respondi. Eu estava assustada.

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    Os olhos de Mrs. Grose exprimiram, claramente, que ela no queria assustar-se, mas que conhecia muito bem as suas obrigaes para deixar de compartilhar comigo de qualquer desgosto acentuado. Oh, no havia a menor dvida de que ela devia compartilhar!

    O que a senhora viu na sala-de-jantar, h um minuto, foi resulta-do do que eu senti. O que eu vi. . . pouco antes. . . foi muito pior.

    Sua mo apertou a minha com mais fora: O que foi que viu? Um homem extraordinrio. Olhando para dentro. Que homem extraordinrio? No tenho a mnima idia. Mrs. Grose olhou em torno, em vo. Para onde ele foi, ento? Sei ainda menos. A senhorita o viu antes? Sim. . . uma vez. Na torre velha.Ela pde apenas olhar-me mais fixamente. A senhorita quer dizer que era um desconhecido? Inteiramente. E, apesar de tudo, no me disse nada? No. Tinha minhas razes para calar-me. Mas agora, que a se-

    nhora j pode adivinhar. . .Os olhos redondos de Mrs. Grose enfrentaram essas palavras. Ah, eu no adivinhei nada! disse ela, simplesmente. Como

    poderia imaginar, se nem a senhorita sabe de que se trata? No tenho a mnima idia, A senhorita o viu em outro lugar, alm da torre? E aqui, ainda h pouco.Mrs. Grose parecia de novo espantada. Que fazia ele na torre? Olhava-me, de p, l de cima. Refletiu um momento. Era, acaso, um cavalheiro?Achei que, para responder, eu no precisava pensar: No.Olhou-me ainda mais assombrada. Repeti: No. No era ningum da casa? Ningum da aldeia? Ningum. . . ningum. . . Eu nada disse senhora, mas procurei

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    averiguar.Respirou com vago alvio, como se isso, de certo modo, melhorasse

    a situao mas melhorasse apenas um pouco. Se no um cavalheiro. . . O que , ento? Um horror! Um horror? . . . Deus me ajude, se sei o que ele !Mrs. Grose tornou a olhar em volta; fixou os olhos na escura dis-

    tncia e, depois, voltando-se para mim, exclamou, com abrupta inconse-qncia:

    J hora de irmos igreja. Oh, no tenho vontade alguma de ir igreja! Isso no faria bem senhorita? No faria bem a eles! respondi.E indiquei a casa com um movimento de cabea. s crianas? No posso deix-las sozinhas, agora. A senhorita receia?. . . Respondi com audcia: Receio que ele torne a aparecer.O rosto grande de Mrs. Grose revelou, pela primeira vez, o ligeiro e

    distante brilho de uma inteligncia mais aguda: descobri, de certo modo, em sua expresso, o nascer atrasado de uma idia que no partia de mim e que, para mim, era ainda completamente obscura. Lembro-me, agora, de que pensei naquilo como em algo que ela poderia me revelar algo que estava ligado ao desejo por ela demonstrado de saber ainda mais acerca do sucedido.

    Quando foi que o viu. . . na torre? Em meados deste ms. A esta mesma hora. J estava escuro? De modo algum. Vi-o como estou vendo a senhora. Ento, como foi que ele pde entrar? E como conseguiu sair? respondi, rindo. No tive oportuni-

    dade de perguntar-lhe! Esta tarde, como a senhora sabe, no conseguiu entrar.

    Ele apenas espia? Espero que se limite a isso!Largou-me a mo e afastou-se uns passos. Aguardei um instante;

    depois, exclamei: V igreja. Adeus. Eu preciso vigiar.

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    Voltou-se de novo para mim, lentamente: Receia pelas crianas? Fitamo-nos, de novo, demoradamente. E a senhora, no receia?Ao invs de responder, aproximou-se mais da janela e, durante um

    minuto, colou o rosto vidraa. J v a senhora como ele podia ver. Continuou imvel. Durante quanto tempo ele esteve aqui? At o momento em que eu sa. Vim ao seu encontro.Mrs. Grose voltou-se, afinal, para mim. Seu rosto revelava maior

    interesse. Eu no teria podido sair. Eu tampouco respondi, rindo de novo. Mas sa. Tenho de

    cumprir o meu dever. Eu tambm tenho os meus deveres replicou, acrescentando

    logo: Como o homem? Estou morrendo de vontade de descrev-lo. Mas ele no se pa-

    rece com ningum. Com ningum? repetiu. No usa chapu.Ao perceber, pela expresso de seu rosto, que esse pormenor j lhe

    permitia, com um pesar mais profundo, reconhecer algum, acrescentei, rapidamente, outros traos ao retrato:

    Tinha cabelos ruivos, muito ruivos, e crespos, rosto plido, alon-gado, de traos regulares, e suas bastante esquisitas, to ruivas quanto o cabelo. Sobrancelhas um pouco mais escuras, acentuadamente arque-adas, como se pudessem mover-se com facilidade. Olhos penetrantes, estranhos. . . terrveis! Mas s posso dizer com exatido que so bastante pequenos e de olhar muito fixo. Boca larga, de lbios finos e, exceto as suas, pareceu-me muito bem barbeado. Deu-me a impresso de que eu estava diante de um ator.

    Um ator!Nada poderia assemelhar-se menos a um ator, pelo menos naquele

    momento, do que Mrs. Grose. Nunca vi nenhum, mas suponho que so assim. alto, esguio,

    ereto prossegui mas no se trata, de modo algum, de um cavalheiro!Enquanto eu falava, o rosto de minha amiga empalideceu; seus

    olhos redondos comearam a piscar nervosamente e abriu a boca.

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    Um cavalheiro? balbuciou, perplexa, atnita. Um cavalhei-ro, ele?

    Ento a senhora o conhece?Procurou, visivelmente, conter-se. Mas... bonito?Descobri um meio de ajud-la: Muito bonito. E as roupas? Roupas de uma outra pessoa. Elegantes, mas no so dele.Sem flego, deixou escapar um gemido afirmativo: So do patro!Aproveitei o momento: Ento o conhece?Hesitou um instante; depois, exclamou: Quint! Quint? Peter Quint. . . seu prprio criado de quarto, quando ele estava

    aqui. Quando o patro estava aqui?Ainda sem flego, mas disposta a ajudar-me, acumulava pormeno-

    res: Nunca usou chapu, mas usava. . . bem, desapareceram vrios

    coletes. Ambos estiveram aqui. . . o ano passado. Depois o patro se foi e Quint ficou sozinho.

    Eu seguia-lhe as palavras, um tanto ansiosa. Sozinho? Sozinho conosco respondeu, ajuntando logo, como se tirasse

    as palavras do fundo da alma: Como mordomo. E que fim levou ele?Hesitou tanto, que fiquei ainda mas intrigada. Por fim, disse: Ele tambm se foi. Foi para onde?Diante de minha pergunta, sua fisionomia revelou grande espanto: S Deus sabe para onde! Morreu. Quase lancei um grito: Morreu?Ela pareceu firmar-se em sua resoluo, apoiar mais os ps no

    cho, para revelar o fato espantoso: Sim. Mr. Quint morreu.

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    6

    Houve necessidade, naturalmente, de mais de uma conversa como essa para que fizssemos uma idia que teramos de enfrentar, da me-lhor maneira possvel, a partir de ento: minha espantosa receptividade para as impresses de um gnero de que tivera to vvido exemplo, e o conhecimento que agora havia adquirido a minha companheira um conhecimento entre consternado e compassivo dessa minha recepti-vidade. Essa tarde, depois que tal revelao me deixou, por espao de uma hora, inteiramente prostrada, no comparecemos a nenhum ofcio religioso, salvo um pequeno ofcio de lgrimas e votos, de preces e pro-messas, clmax de uma srie de juramentos e compromissos recprocos a que nos entregamos ao recolhermo-nos juntas sala de estudos, onde nos fechamos para discutir claramente o caso. O resultado dessa nossa discusso contribuiu simplesmente para reduzir a nossa situao aos seus elementos mais preciosos. Mrs. Grose no vira nada, nem sequer a sombra de uma sombra, e ningum na casa, salvo a preceptora, se via metida em seus apuros de preceptora. No obstante, Mrs. Grose aceitou a verdade de minhas afirmaes sem pr em dvida a minha sanidade mental, terminando por demonstrar-me uma ternura em que havia algo de respeitoso temor por aquele meu privilgio privilgio mais do que duvidoso ternura essa que ainda hoje guardo em minha lembrana como a mais doce das caridades humanas.

    Assim, admitimos francamente entre ns, aquela noite, que poder-amos suportar juntas os acontecimentos e eu no estava sequer segura

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    de que ela, apesar de no possuir a minha receptividade, iria ficar com a parte mais leve do fardo. Creio que eu ento j sabia, to bem como o soube mais tarde, o que era capaz de enfrentar para proteger os meus discpulos, mas demorou algum tempo para que eu me convencesse in-teiramente de que a minha honesta aliada estava em condies de obser-var os termos de um compromisso to difcil. Eu era uma companheira bastante estranha to estranha como a companheira que me coubera encontrar, mas, ao lembrar as coisas por que passamos, vejo quanta coisa em comum devia haver na idia que por sorte, podia dar-nos coragem. Era a idia, o segundo movimento, que me lanou para fora, por assim dizer, do aposento secreto do meu terror. Podia, ao menos, respirar ao ar livre, e Mrs. Grose podia unir-se a mim. Lembro-me perfeitamente da maneira singular pela qual recobrei minhas foras, antes de nos recolher-mos. Havamos analisado, repetidas vezes, todos os pormenores daquilo que eu vira.

    A senhorita diz que ele procurava algum. . . algum que no era a senhorita?

    Procurava o pequeno Miles respondi, tomada de portentosa clarividncia. Isso que le procurava.

    Mas como que sabe? Sei! No tenho a mnima dvida! Cresceu a minha exaltao:

    E a senhora tambm o sabe!Ela no o negou, mas senti que nem mesmo aquela confirmao

    me fazia falta. Perguntou-me, depois de um momento de reflexo: E o que aconteceria, se le o visse? O pequeno Miles? o que le deseja!Pareceu de novo muito assustada. O menino? Deus no o permita! O homem. Quer aparecer a eles.Era horrvel conceber tal coisa, mas, de certo modo, eu podia evitar

    que isso ocorresse e foi o que consegui, praticamente, provar, enquan-to permanecemos l. Tinha absoluta certeza de que eu tornaria a ver o que havia visto, mas algo em meu ntimo me dizia que, oferecendo-me corajosamente como nico sujeito de tal experincia, aceitando-a, pro-vocando-a, sobrepondo-me a tudo aquilo, serviria como vtima expiat-ria e defenderia a tranquilidade de meus companheiros. Principalmente as crianas, eu haveria de defender por todos os meios; fazer tudo para salv-las. Recordo uma das ltimas coisas que disse, aquela noite, a Mrs. Grose:

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    Surpreende-me que os meus discpulos no hajam mencionado nunca. . .

    Olhou-me fixamente, enquanto eu me detinha, pensativa. O fato de le haver vivido aqui e o tempo que passaram em sua

    companhia? perguntou-me ela. O tempo que passaram com le, e seu nome, e sua presena, e

    sua histria. . . Mas no o fizeram de modo algum. Oh, a menina no se lembra. Nunca ouviu nem soube nada. Acerca de sua morte? Refleti, com certa intensidade: Talvez. Mas Miles deveria lembrar. . . Miles deveria saber. Oh, no o interrogue! exclamou Mrs. Grose. Devolvi-lhe o olhar que me lanou: No tenha receio. E continuei pensando: Mas um tanto

    estranho. . . Que no tenha nunca falado dele? Nunca. Nem a menor aluso. E a senhora me diz que eram gran-

    des amigos. Oh, o pequeno no tinha culpa! declarou Mrs. Grose, com n-

    fase. Era tudo coisa de Quint. Brincar com le, quero dizer. . . mim-lo.Deteve-se um instante; depois, ajuntou: Quint tomava muita liberdade.Estas palavras, trazendo-me mente a viso do seu rosto e que

    rosto! me causaram sbito mal-estar e averso: Demasiada liberdade com o meu menino? Demasiada liberdade com todos!Abstive-me, no momento, de analisar mais nitidamente tal descri-

    o, limitando-me a pensar que podia aplicar-se, em parte, s diversas pessoas da casa, quela meia dzia de criadas e servidores que ainda constituam a nossa pequena colnia. Mas havia um motivo de apreenso no prprio fato, em si mesmo feliz, de que nenhuma lenda desagradvel, nenhum episdio lamentvel, relacionado com a criadagem, estivesse unido, na lembrana de ningum, simptica e velha manso. No tinha mau nome nem fama escabrosa, e Mrs. Grose, ao que tudo indicava, que-ria apenas apegar-se a mim e tremer em silncio. Cheguei mesmo a p-la prova, no ltimo momento. Foi quando, meia-noite, colocou a mo no trinco da porta da sala de estudos, disposta a recolher-se.

    Ento, a senhora me assegura e isso de mxima importncia que le era, reconhecidamente, um indivduo mau?

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    Oh, reconhecidamente, no. Eu o sabia, mas o patro ignorava. E nunca lhe contou? Bem, le no gostava dessas coisas: odiava queixas. Era terrivel-

    mente seco, quando se tratava disso; contanto que le julgasse direitas as pessoas. . .

    No se importava com o resto?Isso se enquadrava perfeitamente na impresso que me causara:

    no era um cavalheiro que gostasse de complicaes, nem muito exigen-te, talvez, quanto s pessoas que viviam em sua casa. Apesar de tudo, afirmei minha interlocutora:

    Asseguro-lhe que eu teria contado!Ela sentiu a minha discriminao. Reconheo que fiz mal em no contar. Mas tinha, realmente,

    medo. Medo de qu? Das coisas que aquele homem poderia fazer. Quint era muito

    inteligente. . . muito estranho.Suas palavras me causaram maior surpresa, talvez, do que o de-

    monstrei. E no tinha medo de alguma outra coisa? De sua influncia? . . . De sua influncia? repetiu ela, com uma expresso de angs-

    tia, enquanto eu balbuciava: De sua influncia sobre essas vidas inocentes e preciosas. As

    crianas estavam a cargo da senhora. No, no estavam a meu cargo! exclamou, franca e dolorosa-

    mente. O patro confiava nele e colocou-o aqui porque era uma pessoa de m sade, e acreditava que os ares daqui lhe fizessem bem. De modo que le podia dizer tudo, falar de todos. Sim confessou-me at mes-mo deles.

    Deles? Uma tal criatura?! tive de sufocar uma espcie de gri-to. E como que a senhora pde suportar tal coisa?

    No, no podia. . . como no posso agora!E a pobre mulher rompeu em pranto.A partir do dia seguinte, como disse, as crianas deveriam ser aten-

    tamente vigiadas; no obstante, durante a semana, quantas vezes no voltamos a tratar, com paixo, do mesmo tema! Por muito que o tivs-semos discutido naquela noite de domingo, permaneci ainda, principal-mente nas horas da madrugada que se seguira pois fcil imaginar se passei a noite em claro! obcecada pela sombra de algo que ela no me

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    havia dito. Eu no ocultara nada, mas havia uma palavra que Mrs. Gro-se no proferira. Tinha a certeza, ademais, na manh seguinte, que ela no fizera aquilo por falta de franqueza, mas porque vivamos cercados de temores. Parece-me agora, com efeito, retrospectivamente, que, ao amanhecer, quando o sol j estava alto, eu j havia lido, nos fatos que tnhamos nossa frente, quase todo o significado que deveriam rece-ber dos acontecimentos subsequentes, muito mais cruis. Evocava, de maneira particular, a figura sinistra do homem vivo o morto poderia esperar! e os meses que le havia passado continuamente em Bly, os quais, somados, representavam um longo perodo. Esse tempo mau s chegou a seu trmino quando, ao despontar de uma manh de inverno, Peter Quint foi encontrado morto, congelado, no caminho da aldeia, por um trabalhador que ia para o trabalho. Um ferimento visvel, na cabea, explicou a catstrofe, pelo menos superficialmente: aquele ferimento po-deria ter sido causado como, de fato, o foi, segundo o demonstraram as circunstncias por haver-se enganado de caminho, em plena noite, ao sair da taberna, e rolado, fatalmente, por uma encosta coberta de gelo, ao p da qual o seu corpo jazia. A encosta coberta de gelo, o caminho errado, as libaes na taberna, explicavam muita coisa: praticamente, no fim, depois das investigaes e dos infindveis comentrios, explicavam tudo. Mas havia certas coisas em sua vida estranhos episdios e peri-gos, desordens secretas, vcios mais que supeitados que teriam expli-cado muito mais.

    Mal sei de que modo redigir esta histria com palavras que tornem verossmil o meu estado de esprito; mas, naqueles dias, era literalmen-te capaz de encontrar alegria no extraordinrio herosmo que a ocasio exigia de mim. Vejo, agora, que havia sido convidada para um trabalho difcil e admirvel, e que havia certa grandeza em demonstrar oh, a quem aquilo pudesse interessar! que eu podia triunfar onde mais de uma jovem havia fracassado. Foi-me uma ajuda imensa confesso que chego a aplaudir-me ao pensar nessa poca o fato de haver encarado a minha tarefa com tanta calma e energia. Estava ali para proteger e de-fender as duas criaturinhas mais desamparadas e adorveis do mundo: o sbito apelo de seu desamparo se me tornou, de repente, bastante ex-plcito, ressoando em meu corao e causando-me um sofrimento pro-fundo, constante. Estvamos os trs isolados, unidos pelo perigo comum. Eles no tinham ningum seno a mim, e eu. . . bem, eu os tinha a eles. Era, em suma, uma oportunidade magnfica. Essa oportunidade se me apresentava sob uma forma essencialmente concreta. Eu era uma tela, e

  • 48

    devia ficar diante deles. Quanto mais eu visse, menos veriam eles. Passei a observ-los com tensa expectativa, com uma disfarada ansiedade que, se continuasse durante muito tempo, poderia converter-se em algo seme-lhante loucura. O que me salvou, percebo-o agora, foi que os aconteci-mentos tomaram outro rumo. Aquilo no durou muito como expectativa: foi substitudo por provas horrveis. Provas, sim, digo eu. . . e que surgiram no momento em que pude, realmente, perceber toda a situao.

    Esse momento data de uma tarde, hora em que eu costumava passear pelos jardins com a minha pequena discpula. Tnhamos deixado Miles em casa, sobre o acolchoado vermelho do assento que ocupava todo o vo de ampla janela; queria terminar um livro, e eu ficara contente em encorajar to louvvel propsito num jovenzinho cujo nico defeito era, s vezes, uma certa inquietude. Sua irm, pelo contrrio, parecia de-sejosa de sair, e caminhamos meia hora, procurando os lugares em que havia sombra, pois que o sol estava ainda alto e o dia era excepcional-mente quente. Tornei a notar, enquanto caminhvamos, at que ponto Flora conseguia, como o irmo aquilo constitua em ambos um dom encantador deixar-me sozinha sem que parecesse abandonar-me, e fazer-me companhia sem estar constantemente a meu lado. No eram jamais importunos e, no entanto, no se mostravam jamais indiferentes. Toda a minha vigilncia se limitava a v-los divertirem-se imensamente sem mim: era um espetculo que eles pareciam preparar ativamente, cabendo-me a mim apenas o papel de admiradora entusiasta. Eu vivia num mundo de sua inveno, sem que eles precisassem jamais recorrer minha, de modo que o meu tempo era ocupado em ser, para eles, unica-mente a personagem ou a coisa notvel que o seu folguedo do momento exigia que eu fosse, e que era sempre, graas minha posio superior e preeminente, alguma sinecura feliz e altamente honrosa. No recordo qual era o meu papel nessa ocasio; lembro-me apenas que era algo mui-to importante e tranquilo e que Flora brincava com muita seriedade e empenho. Estvamos margem do lago, e como, nos ltimos tempos, havamos comeado a estudar geografia, o lago era o mar de Azof.

    Sbito, nessas circunstncias, percebi que, da margem oposta do mar de Azof, um espectador muito interessado nos observava. Foi a coisa mais estranha do mundo a maneira pela qual aquela certeza se foi for-mando em meu esprito, com exceo de algo mais estranho ainda em que aquela certeza se converteu, passado um momento. Eu estava sen-tada com um trabalho nas mos porque eu era algum que conseguia sentar-se num velho banco de pedra existente diante do lago, e, na-

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    quela posio, mesmo sem erguer os olhos, comecei a sentir a presena, distncia, duma terceira pessoa. As velhas rvores, os arbustos espes-sos, formavam uma grande e agradvel sombra, mas estava tudo mergu-lhado no tranquilo e clido resplendor da hora. No havia ambiguidade em nada; nenhuma ambiguidade, pelo menos, na convico que de um momento para outro, fui adquirindo com respeito ao que veria direta-mente minha frente, no lado oposto do lago, quando erguesse os olhos. Meus olhos estavam fixos na costura que eu tinha nas mos, mas posso ainda sentir o espasmo de meu esforo para no ergu-los, enquanto no me houvesse acalmado o bastante para saber o que deveria fazer. Havia, vista, uma pessoa estranha uma figura cujo direito de estar ali repeli, em meu ntimo, com veemncia, no mesmo instante. Lembro-me de ha-ver pensado em todas as hipteses, de haver dito a mim mesma que nada seria mais natural, por exemplo, do que o aparecimento ali de algum dos homens que trabalhavam na casa, ou mesmo um mensageiro, um cartei-ro ou um entregador de mercadorias, vindo da aldeia. Este pensamento teve to pouco efeito sobre a minha convico real quanto mais conven-cida estava eu mesmo sem olhar do carter e da atitude de nosso visitante. Nada mais natural que aquilo fosse justamente o que as outras coisas, de modo algum, o eram.

    Quanto identidade positiva da apario, certificar-me-ia logo que o pequeno relgio da minha coragem marcasse o minuto exato; entre-mentes, com um esforo que j era bastante intenso, volvi os olhos para a pequena Flora, que, naquele instante, estava a uns dez passos de distn-cia. Durante um instante, meu corao cessou de bater, ao perguntar-me, cheia de espanto e terror, se ela tambm o veria e contive o flego espera de que um grito ou algum sinal inocente e sbito, de interesse ou alarme, mo revelasse. Fiquei espera, mas nada aconteceu; depois e h nisto, creio, algo mais horrvel ainda do que tudo o que tenho para re-latar tive a sensao de que, havia j um minuto, ela havia cessado de fazer qualquer rudo, bem como a de que, dentro desse minuto, sem dei-xar de brincar, havia voltado as costas para o lago. Essa era a sua atitude quando, por fim, a olhei, com a firme convico de que ainda estvamos, ambas, submetidas a uma observao direta e pessoal. Flora apanhara do cho um pedao de madeira chata, que tinha um pequeno orifcio, o qual, evidentemente, lhe sugerira a idia de introduzir no mesmo um outro fragmento, que poderia servir de mastro e fazer daquilo uma espcie de barco. Quando a observei, ela procurava, muito concentrada, ajustar em seu lugar o pedao de madeira. Fiquei to apreensiva diante do que ela

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    estava fazendo que, aps alguns segundos, senti que estava preparada para o que viesse depois. Ento, ergui de novo os olhos... e enfrentei o que devia enfrentar.

  • 51

    7

    Logo que pude, depois que isso aconteceu, lancei-me sobre Mrs. Grose; hoje, no me possvel descrever, de maneira inteligvel, as emo-es com que lutei no intervalo. No entanto, ainda posso ouvir o grito com que me atirei em seus braos:

    Eles sabem! por demais monstruoso! Eles sabem, sabem! Mas sabem o que, pelo amor de Deus? Enquanto me abraava, senti a sua incredulidade. Tudo o que ns sabemos. . . e s Deus sabe o que mais! Depois, quando ela me soltou de seus braos, expliquei o que ocor-

    rera e s ento talvez eu haja compreendido, com absoluta coerncia, o que estava acontecendo.

    H duas horas, no jardim mal pude falar Flora viu!Mrs. Grose recebeu minhas palavras como um golpe no estmago. Ela lhe disse? perguntou, arquejante. No me disse uma nica palavra. . . A que est o horror! Guar-

    dou tudo consigo! Uma criana de oito anos. . . e justamente ela!Minha estupefao era inexprimvel.Mrs. Grose, certamente, no pde fazer outra coisa seno ficar ain-

    da mais boquiaberta. Como , ento, que a senhorita sabe? Eu estava l. . . Vi com os meus prprios olhos: percebi que o

    notou perfeitamente. A senhorita quer dizer que ela notou a presena dele?

  • 52

    No. A presena dela.Sabia que, ao falar, estava me referindo a coisas prodigiosas, pois

    via o seu reflexo no rosto da minha companheira. Uma outra pessoa. . . esta vez. Mas uma figura em que transpa-

    reciam, inequivocamente, o horror e o mal: uma mulher de preto, plida e terrvel. . . Com um ar tambm terrvel. . . e que rosto!. . . do outro lado do lago. Eu estava l com a menina e, durante uma hora, tudo se achava tranquilo. De repente, porm, ela veio.

    Veio como?... De onde? Do lugar de onde eles vm! Apareceu, simplesmente, e ficou l

    de p. . . mas no muito perto. E no se aproximou? Oh, pela impresso e o efeito que causava, era como se estivesse

    to perto como a senhora!Minha amiga, cedendo a um impulso estranho, retrocedeu um pas-

    so. Era algum que a senhorita nunca viu? Nunca. Mas algum que a menina j viu. Algum que a senhora

    j viu.E, para mostrar que eu refletira bem sobre o caso, acrescentei : a minha antecessora. . . a que morreu. A senhorita Jessel? A senhorita Jessel. No acredita em mim? insisti. Ela no sabia para onde se voltar, em sua aflio. Como que pode ter certeza?No estado de nervos em que me achava, explodi, impaciente: Ento pergunte a Flora. Ela tem certeza!Mas, mal proferi essas palavras, contive-me. No, pelo amor de Deus, no pergunte! Ela dir que no. . .

    Mentir!Mrs. Grose no estava to perplexa que deixasse de protestar: E como que a senhorita sabe? Porque estou certa disso. Flora no quer que eu saiba. Ento porque quer, apenas, poup-la. No, no. H abismos, abismos! Quanto mais me debruo sobre

    eles, mais vejo e, quanto mais vejo, mais me atemorizo. No sei o que no veja, o que no tema!

    Mrs. Grose esforava-se por seguir minhas idias: Quer dizer que receia v-la de novo?

  • 53

    Oh, no! Isso no nada. . . agora. E expliquei: O que receio no v-la.

    Mas minha companheira parecia apenas plida. No compreendo. Bem. Receio que a pequena a veja e no me diga nada; receio

    que a veja, como seguramente a ver, sem que eu o saiba.Ante semelhante possibilidade, Mrs. Grose pareceu desfalecer um

    pouco, mas logo se reanimou, como se tomada por uma fora positiva que lhe dissesse que, se retrocedssemos um passo, estaramos perdidas.

    Querida, querida, no devemos perder a cabea! Afinal de con-tas, se ela no se importa. . . Tentou, mesmo, um gracejo sinistro: Talvez at goste!

    Gostar de tais coisas. . . um pedacinho de gente como ela! E no isso justamente uma prova da sua abenoada inocncia?

    perguntou, bravamente, minha amiga.Por um momento, quase me convenceu. Sim respondi. Devemos aferrar-nos a isso. . . agarrar-nos a

    tal possibilidade. Se no uma prova do que a senhora diz, uma prova de. . . Deus sabe o qu! Pois a mulher o horror dos horrores.

    Mrs. Grose, ao ouvir-me, pousou os olhos no cho durante um ins-tante; depois, ergueu-os de novo para mim:

    Diga-me como que o sabe. Ento, admite que ela era assim? Diga-me como que sabe repetiu, simplesmente, minha ami-

    ga. Como que sei? Basta v-la! Pela sua maneira de olhar. De olhar para a senhorita. . . com uma expresso m? Deus do cu, eu no o teria podido suportar! No me olhou uma

    nica vez. Fitava apenas a menina.Mrs. Grose procurava imaginar a cena: Cravava os olhos nela? Ah, e que olhos terrveis!Observou-me, como se os meus olhos pudessem parecer-se aos

    que eu acabara de descrever. Olhar de averso? No, Deus nos proteja! De algo muito pior. Pior do que averso? perguntou, completamente aturdida. Com uma determinao. . . indescritvel. Com uma espcie de

    inteno furiosa.

  • 54

    Fi-la empalidecer. Inteno? De apoderar-se dela.Mrs. Grose cujos olhos se detiveram um instante nos meus

    estremeceu e caminhou at a janela. Enquanto l estava, olhando atravs da vidraa, terminei meu relato:

    Isso que Flora sabe.Depois de um momento, voltou-se para mim. A senhorita disse que a pessoa estava vestida de preto? De luto. Luto bastante pobre, quase miservel. Mas, sim. . . era

    de uma beleza extraordinria.Reconhecia, agora, at onde eu havia levado, golpe atrs de golpe,

    a vtima da minha confidncia, pois que ela ponder