Giorgio Agamben Ninfas

24
NINFE – GIORGIO AGAMBEN NINFAS – GIORGIO AGAMBEN Tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko Egli è vero che tutte son femine, ma non pisciano Boccaccio 1. No primeiros meses de 2003 podia-se ver no Getty Museu de Los Angeles uma mostra de vídeo de Bill Viola intitulada Passions. Durante um dia de estudo no Getty Research Institute, Viola trabalhara sobre o tema da expressão das paixões, que tinha sido codificado no século XVII por Charles Le Brun e retomado depois, no século XIX, sobre bases científico-experimentais, por Duchenne de Boulogne e por Darwin. Resultado deste período de estudo foram os vídeos expostos na mostra. A primeira vista, as imagens na tela pareciam imóveis, mas, depois de alguns segundos, estas começavam quase imperceptivelmente a animar-se. O espectador então se dava conta que, na realidade, estas sempre estiveram em movimento e que apenas a extrema desaceleração, dilatando o momento temporal, as faziam parecer imóveis. Isto explica a impressão ao mesmo tempo de familiaridade e de estranhamento que as imagens suscitavam: era como se, entrando nas salas de um museu onde estavam expostas as telas dos antigos mestres, estas começassem milagrosamente a se mover. Neste ponto, tendo-se alguma familiaridade com a história da arte, o espectador reconhecia nas três figuras exaustas de Emergence a Pietà de Masolino, no quinteto atônito dos Astonished o Cristo deriso de Bosch, na dupla que chora da Dolorosa o díctico atribuído a Dieric Bouts na National Gallery de Londres. Decisiva, no entanto, não era tanto a transposição em hábitos modernos, quanto o colocar em movimento o tema iconográfico. Sob os olhos incrédulos do espectador, o musée imaginaire torna- se musée cinématographique. Como o evento que estes apresentam pode durar até vinte minutos, estes vídeos exigem uma atenção que não estamos mais 1

description

TEORIA

Transcript of Giorgio Agamben Ninfas

Page 1: Giorgio Agamben Ninfas

NINFE – GIORGIO AGAMBENNINFAS – GIORGIO AGAMBEN

Tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko

Egli è vero che tutte son femine, ma non piscianoBoccaccio

1.

No primeiros meses de 2003 podia-se ver no Getty Museu de Los Angeles uma mostra de vídeo de Bill Viola intitulada Passions. Durante um dia de estudo no Getty Research Institute, Viola trabalhara sobre o tema da expressão das paixões, que tinha sido codificado no século XVII por Charles Le Brun e retomado depois, no século XIX, sobre bases científico-experimentais, por Duchenne de Boulogne e por Darwin. Resultado deste período de estudo foram os vídeos expostos na mostra. A primeira vista, as imagens na tela pareciam imóveis, mas, depois de alguns segundos, estas começavam quase imperceptivelmente a animar-se. O espectador então se dava conta que, na realidade, estas sempre estiveram em movimento e que apenas a extrema desaceleração, dilatando o momento temporal, as faziam parecer imóveis. Isto explica a impressão ao mesmo tempo de familiaridade e de estranhamento que as imagens suscitavam: era como se, entrando nas salas de um museu onde estavam expostas as telas dos antigos mestres, estas começassem milagrosamente a se mover.Neste ponto, tendo-se alguma familiaridade com a história da arte, o espectador reconhecia nas três figuras exaustas de Emergence a Pietà de Masolino, no quinteto atônito dos Astonished o Cristo deriso de Bosch, na dupla que chora da Dolorosa o díctico atribuído a Dieric Bouts na National Gallery de Londres. Decisiva, no entanto, não era tanto a transposição em hábitos modernos, quanto o colocar em movimento o tema iconográfico. Sob os olhos incrédulos do espectador, o musée imaginaire torna-se musée cinématographique. Como o evento que estes apresentam pode durar até vinte minutos, estes vídeos exigem uma atenção que não estamos mais habituados. Se, como Benjamin mostrou, a reprodução da obra de arte contenta-se com um espectador distraído, os vídeos de Viola, ao contrário, constrangem o espectador a uma espera – e a uma atenção – insolitamente longas. Se entrou no final, ele – como se fazia no cinema com as crianças – se sentirá obrigado a rever o vídeo desde o início. Deste modo, o imóvel tema iconográfico se transforma em história. Isto aparece de maneira exemplar em Greetings, um vídeo exposto na Bienal de Veneza em 1995. Aqui o espectador podia ver as figuras femininas, que a Visitazione de Pontormo nos apresenta entrelaçadas, enquanto se

1

Page 2: Giorgio Agamben Ninfas

aproximam lentamente uma à outra, até comporem no fim o tema iconográfico da tela de Carmignano.Neste ponto o espectador se dá conta com surpresa de que não é apenas a animação das imagens, as quais era habituado a considerar imóveis, que captura a sua atenção. Trata-se muito mais de uma transformação que concerne a sua própria natureza. No fim, quando o tema iconográfico foi recomposto e as imagens parecem parar, estas, na realidade, carregaram-se de tempo até quase explodir e exatamente esta saturação cairológica imprime-lhes uma espécie de tremor, que constitui a sua aura particular. A todo instante, toda imagem antecipa virtualmente o seu desenvolvimento futuro e recorda os seus gestos precedentes. Se tivesse que definir numa fórmula a contribuição específica dos vídeos de Viola, poder-se-ia dizer que estes não inserem as imagens no tempo, mas o tempo nas imagens. E já que, no moderno, não é o movimento, mas o tempo o verdadeiro paradigma da vida, isto significa que há uma vida das imagens, que se trata de compreender. Como o próprio autor afirma numa entrevista publicada no catálogo: “a essência do vídeo é o tempo... as imagens vivem dentro de nós... nós somos database viventes das imagens – colecionadores de imagens – e uma vez que as imagens entraram em nós, estas não cessam de transformar-se e de crescer.”

2.

Como pode uma imagem carregar-se de tempo? Que relação há entre o tempo e as imagens? Por volta da metade do século XV, Domenico da Piacenza compõe o seu tratado Dela arte di ballare et danzare. Domenico – ou Domenichino, como lhe chamavam amigos e discípulos – era o mais célebre coreógrafo do seu tempo, mestre de dança na corte dos Sforza em Milão e naquela dos Gonzaga em Ferrara. Ainda que, no início do seu livro, ele cite Aristóteles e insista sobre a dignidade da arte da dança, que é “de tanto intelecto e fadiga quanto se possa pensar”, o tratado situa-se entre o manual didático e o compêndio esotérico deixado à tradição oral de mestre a aluno. Domenico enumera seis elementos fundamentais da arte: medida, memória, agilidade, modo, medida do terreno e “fantasmata”. Este último elemento – na verdade absolutamente central – é definido deste modo: “Dico a ti che chi del mestiero vole imparare, bisogna danzare per fantasmata e nota Che fantasmata è uma prestezza corporale, la quale è mossa cum lo intelecto del mesura... facendo requie a cadauno tempo che pari aver veduto lo capo di medusa, como dice el poeta, cioè che facto el moto, sii tutto di pietra in quello istante e in istante metti ale come falcone che per paica mosso sia, secondo la regola disopra, cioè operando mesura, memoria, maniera cum mesura de terreno e aire.” Domenico chama fantasma uma parada improvisada entre dois movimentos, o que contrai

2

Page 3: Giorgio Agamben Ninfas

virtualmente na própria tensão interna a medida e a memória da inteira série coreográfica.Os historiadores da dança interrogaram-se sobre a origem deste “dançar por fantasmata”, na “qual similitude”, segundo o testemunho dos alunos, o mestre pensava exprimir “muitas coisas que não se podem dizer.” É certo que esta deriva da teoria aristotélica da memória, compendiada no breve tratado Sobre a memória e a reminiscência, que tinha exercitado uma influência determinante sobre a psicologia medieval e na do renascimento. Aqui, o filósofo, ligando estreitamente tempo, memória e imaginação, afirmava que “somente os seres que percebem o tempo lembram, e com a mesma faculdade com que advertem o tempo”, isto é, com a imaginação. De fato, a memória não é possível sem uma imagem (phantasma), a qual é uma afecção, um pathos da sensação o do pensamento. Neste sentido, a imagem mnêmica é sempre carregada de uma energia capaz de mover e turbar o corpo: “Que a afecção (pathos) seja corpórea e que a reminiscência seja uma procura deste fantasma, disso se mostra, que cada um é agitado quando não consegue recordar, apesar da forte aplicação da mente, e que a agitação perdura até quando não procuram mais recordar – sobretudo os melancólicos, porque são muito agitados pelas imagens. O motivo pelo qual rememorar não está ao seu poder é que, como aqueles que lançam um dardo não têm mais a possibilidade de detê-lo, assim também aquele que procura na memória imprime um certo movimento à parte corpórea em que tal paixão reside.”A dança é, portanto, para Domenichino, essencialmente uma operação conduzida sobre a memória, uma composição por fantasmas numa série temporal e espacialmente ordenada. O verdadeiro lugar do dançarino não é no corpo e no seu movimento, mas na imagem como “cabeça de medusa”, como pausa não imóvel, mas carregada, ao mesmo tempo, de memória e de energia dinâmica. Mas isto significa que a essência da dança não é mais o movimento – é o tempo.

3.

Não é improvável que Aby Warburg tivesse tido consciência do tratado de Domenico (e daquele do seu aluno Antonio da Cornazano) quando preparava em Florença o seu estudo sobre Costumes teatrais em meados de 1589. Certo é que nada se assemelha mais à sua visão das imagens como Pathosformel do que as “fantasmata” que contrai em si numa brusca parada a energia do movimento e da memória. A semelhança concerne também ao espectral, estereótipa fixação que parece convir tanto à “sombra fantasmática” de Domenico (assim Antonio da Cornazano, mal-entendendo a expressão do mestre) quanto à Pathosformel warburguiana. O conceito de Pathosformel aparece pela primeira vez no ensaio de 1905 sobre Dürer e a antiguidade italiana, que reconduz o tema iconográfico de uma incisão dureriana à “linguagem

3

Page 4: Giorgio Agamben Ninfas

gestual patética” da arte antiga, através de uma Pathosformel testemunhada numa pintura vascular grega, numa incisão de Mantegna e nas xilografias de um incunabolo veneziano. Será importante prestar muita atenção ao próprio termo. Warburg não escreve, como por outro lado teria sido possível, Pathosform, mas Pathosformel, fórmula de pathos, sublinhando o aspecto estereótipo e repetitivo do tema das imagens com que o artista toda vez se media para dar expressão à “vida em movimento” (bewegtes Leben). Talvez o melhor modo de compreender o sentido é aproxima-lo ao uso do termo “fórmula” nos estudos de Milman Parry sobre o estilo formular em Homero, publicado em Paris nos mesmos anos que Warburg trabalhava no seu Atlas Mnemosyne. O jovem filólogo americano tinha renovado a filologia homérica mostrando como a técnica de composição oral da Ilíada e da Odisséia se fundava sobre um vasto, mas finito repertório de combinações verbais (os célebres epítetos homéricos: podas okys, “pés velozes”, korythaiolos, “elmos deslumbrantes”, polytropos, “de muitos enganos” etc.), ritmicamente configurados de modo a se poder adaptar a secções do verso e compostas por sua vez de elementos métricos intercambiáveis, modificado os quais o poeta podia variar a própria sintaxe sem alterar a estrutura métrica. Albert Lord e Gregory Nagy mostraram que as fórmulas não são apenas redundâncias de materias semânticos destinados a preencher um segmento métrico, mas que, ao contrário, é o métrico que deriva provavelmente da fórmula tradicionalmente transmitida. Do mesmo modo, a composição formular implica que não seja possível distinguir entre criação e performance, entre original e repetição. Nas palavras de Lord, “o poema não é composto para a execução, mas na execução”. Mas isto significa que as fórmulas, exatamente como as Pathosformel de Warburg, são híbridos de matéria e de forma, de criação e performance, de ineditismo e repetição.Tome-se a Pathosformel Ninfa, à qual é dedicada o mapa 46 do atlas Mnemosyne. O mapa contém vinte e seis fotografias, de um relevo lombardo do século VII ao afresco do Ghirlandaio em S. Maria Novella (onde aparece a figura feminina que Warburg chamava ludicamente “senhorita portainfretta” e que, no cartaz sobre a ninfa, Jolles define “o objeto dos meus sonhos, que toda vez transforma-se num encantador pesadelo”), da portadora d´água de Rafael até a lavradora toscana fotografada por Warburg em Settignano. Onde está a ninfa? Em qual das suas vinte e seis epifanias esta consiste? Mal compreende-se a leitura do Atlas se neste se procura algo como um arquétipo ou um original do qual os outros derivariam. Nenhuma das imagem é a original, nenhuma é simplesmente uma cópia. No mesmo sentido, a ninfa não é nem uma matéria passional para a qual o artista deve dar nova forma, nem um molde a partir do qual dobrar os próprios materiais emotivos. A ninfa é um indiscernível de originalidade e repetição, de forma e matéria. Mas um ser cuja forma coincide pontualmente com a matéria e cuja origem é

4

Page 5: Giorgio Agamben Ninfas

indiscernível do seu advir é aquilo que chamamos tempo, que Kant definia por isto nos termos de uma auto-afecção. As Pathosformeln são feitas de tempo, são cristais de memória histórica, “fantasmatas” no sentido de Domenico da Piacenza, em relação aos quais o tempo escreve a sua coreografia.

4.

Em novembro de 1972 Nathan Lerner, um fotógrafo e designer que vivia em Chicago, abriu a porta do quarto no 851 Webster Avenue no qual tinha vivido por quarenta anos o seu inquilino Henry Darger. Darger, que tinha deixado o quarto alguns dias antes para se transferir para um albergue para pessoas idosas, era um homem tranqüilo, mas certamente perturbado. Tinha sobrevivido até então no limite da miséria lavando pratos em um hospital e os vizinhos certas vezes o escutavam falando sozinho, imitando uma voz feminina (uma menina?). Saia raramente mas, no curso de seus passeios, era visto procurando na sujeira como um mendigo. No verão, quando em Chicago a temperatura faz-se improvisamente tórrida, sentava na escada externa da casa, com o olhar fixo no vazio (assim o mostra a única fotografia recente). Mas quando Lerner, em companhia de um jovem estudante, entrou no quarto, achou-se diante de uma descoberta inesperada. Não tinha sido fácil percorrer o caminho entre os montes de objetos de todos os gêneros (novelos de barbantes, vasilhas vazias de bismuto, retalhos de jornais); mas, amontoado em um ângulo sobre um velho baú, havia uma quinzena de volumes datilografados encadernados à mão que continham uma espécie de romance de quase trinta mil páginas, com o título eloqüente In the Realms of the Unreal. Como explica o frontispício, trata-se da história de sete meninas (as Vivian girls), que comandavam a revolta contra os cruéis adultos Glandolinians, que escravizam, torturam, estrangulam e estripam as meninas. Mais surpreendente ainda, foi dar-se conta de que o solitário inquilino era também um pintor, que por quarenta anos tinha pacientemente ilustrado em dezenas e dezenas de aquarelas e painéis de carta por vezes com até três metros de comprimento o seu romance. Aqui paisagens idílicas, nas quais as meninas privadas, no gênero munidas de um pequeno sexo masculino, vagam absortas ou jogam entre flores e maravilhosas criaturas aladas (as serpentes Blengiglomean), alternam-se (por vezes na mesma folha) com cenas sádicas de inaudita violência, nas quais os corpos das meninas são presos, espancados, destroçados e, por fim, abertos para deles extrair as vísceras ensangüentadas.Aquilo que aqui nos interessa de maneira particular é o genial procedimento de composição de Darger. Uma vez que não sabia pintar nem mesmo desenhar, ele recorta imagens de crianças de álbuns de história em quadrinhos ou de jornais e as cola com uma pequena vela. Se a imagem é muito pequena, a fotografa e a aumenta conforme as

5

Page 6: Giorgio Agamben Ninfas

suas necessidades. Ao fim, o artista dispõe de um repertório formular e gestual (variações seriais de uma Pathosformel que podemos chamar nympha dargeriana) que pode combinar como quiser (através de collage ou decalque) nos seus grandes painéis. Ou seja, Darger representa o caso extremo de uma composição artística unicamente por Pathosformeln, que produz um efeito de extraordinária modernidade.Mas a analogia com Warburg é ainda mais essencial. Os críticos que se ocuparam de Darger sublinharam os aspectos patológicos da sua personalidade, que não teria jamais superado os traumas infantis e apresentaria traços indubitavelmente autistas. Muito mais interessante é indagar a relação de Darger com as suas Pathosformeln. Certamente ele viveu por quarenta anos totalmente imerso no seu mundo imaginário. Como todo verdadeiro artista, ele não queria simplesmente construir a imagem de um corpo, mas um corpo para a imagem. A sua obra, como a sua vida, é um campo de batalha em que o objeto é a Pathosformel “ninfa dargeriana”. Esta foi reduzida à escravidão pelos malvados adultos (freqüentemente representados em vestes de professores, com toga e chapéu). Isto é, as imagens das quais é feita a nossa memória tendem, no curso da sua transmissão histórica (coletiva e individual), incessantemente a enrijecer-se em espectros e, portanto, trata-se de restituí-las à vida. As imagens estão vivas, mas, sendo feitas de tempo e de memória, a sua vida é sempre já Nachleben, sobrevivência, é sempre já ameaçada e pronta para assumir uma forma espectral. Liberar as imagens do seu destino espectral é a tarefa que tanto Darger quanto Warburg – no limite de um essencial risco psíquico – confiam, o primeiro, ao seu interminável romance, o outro, à sua ciência sem nome.

5.

As pesquisas de Warburg são contemporâneas ao nascimento do cinema. Aquilo que os dois fenômenos parecem, à primeira vista, ter em comum é o problema da representação do movimento. Mas o interesse de Warburg pela representação do corpo em movimento – que ele chama bewegtes Leben e do qual a ninfa constitui o exemplar canônico – não respondia tanto as razões de ordem técnico-científica ou estética, quanto à sua obsessão por aquilo que se poderia chamar de a “vida das imagens”. Este tema define – de Klages a Benjamin, do futurismo a Focillon – uma corrente não secundária no pensamento e na poética (e, talvez, na política) do primeiro Novecentos, cuja relação com o cinema permanece ainda por ser indagada. A proximidade entre as pesquisas warburguianas e o nascimento do cinema adquire, nesta perspectiva, um novo sentido. Trata-se, em ambos os casos, de retirar um potencial cinático que já está presente na imagem – fotograma isolado ou Patyhosformel mnésica – e que tem a ver com aquilo que Warburg definia com o termo Nachleben, vida póstuma (ou sobrevivência).

6

Page 7: Giorgio Agamben Ninfas

É notório que na origem dos aparelhos precursores do cinema (o fenakitoscopio de Plateau, o zootropo de Stampfer ou o taumatoscópio de Paris) está a descoberta da persistência da imagem retínica. Como se lê na brochure ilustrativa do taumatoscópio, “já foi experimentalmente certificado que a impressão que a mente recebe deste modo dura cerca de um oitavo de segundo depois que a imagem foi removida... o taumatoscópio depende deste mesmo princípio ótico: a impressão deixada sobre a retina pela imagem desenhada sobre o papel não se apagam antes que a imagem pintada sobre o outro lado atinja o olho. A conseqüência é que vocês vêem as duas imagens ao mesmo tempo.” O espectador, cujo olhar se colocava sobre um disco de papel em movimento, no qual estavam desenhados de um lado um passarinho e, do outro, uma gaiola, por efeito do fundir-se das duas imagens retínicas separadas no tempo, via o passarinho entrar na gaiola.Pode-se dizer que a descoberta de Warburg é que, ao lado da Nachleben fisiológica (a persistência das imagens retínicas), há uma Nachleben histórica das imagens, ligado ao persistir da sua carga mnésica, que as constitui como “dinamogramas”. Isto é, ele é o primeiro a dar-se conta de que as imagens transmitidas pela memória histórica (Klages e Jung ocupam-se mais de arquétipos meta-históricos) não são inertes e inanimadas, mas possuem uma vida especial e diminuída, que ele chama, portanto, vida póstuma, sobrevivência. E como o fenakitoscopio – e, mais tarde, de modo diverso, o cinema – devem conseguir apreender a sobrevivência retínica para colocar em movimento as imagens, assim o histórico deve saber colher a vida póstuma das Pathosformeln para lhes restituir a energia e a temporalidade que estas continham. A sobrevivência das imagens não é, de fato, um dado, mas requer uma operação cuja efetuação é tarefa do sujeito histórico (assim como se pode dizer que a descoberta da persistência das imagens retínicas exige o cinema que saberá transformá-la em movimento). Através desta operação, o passado – as imagens transmitidas pelas gerações que nos precederam – que parecia em si concluído e inacessível, recoloca-se, para nós, em movimento, torna-se novamente possível.

6.

A partir da metade dos anos trinta, enquanto trabalha no livro sobre Paris e, em seguida, naquele sobre Baudelaire, Benjamin elabora o conceito de “imagem dialética” (dialektisches Bild), que deveria constituir o fulcro da sua teoria da consciência histórica. Talvez em nenhum outro texto ele se aproxime a dar-lhe uma definição como em um fragmento (N3, 1) do livro sobre as Passagens parisienses. Aqui ele distingue as imagens dialéticas das essências da fenomenologia husserliana. Enquanto estas são conhecidas independentemente de todo dado factual, as imagens dialéticas são definidas pelo seu índice

7

Page 8: Giorgio Agamben Ninfas

histórico, que as envia à atualidade. E enquanto para Husserl a intencionalidade permanece o pressuposto da fenomenologia, nas imagens dialéticas a verdade se apresenta historicamente como “morte da intentio”. Isto significa que às imagens dialéticas compete, no pensamento de Benjamin, uma dignidade comparável às eide da fenomenologia e às idéias em Platão: a filosofia tem que lidar com o reconhecimento e a construção de tais imagens. A teoria benjaminiana não contempla nem essências, nem objetos, mas imagens. No entanto, decisivo é para Benjamin que estas se definam através de um movimento dialético que vem instruído no ato de sua captura (Stillstand): “Não é que o passado lance a sua luz sobre o presente, mas a imagem é aquilo em que o que foi se une fulminantemente com o agora (Jetzt) numa constelação. Em outras palavras: a imagem é dialética em situação de irrupção (Stillstand não indica simplesmente uma captura, mas um limiar entre a imobilidade e o movimento).” Num outro fragmento, Benjamin cita uma passagem de Focillon na qual o estilo clássico é definido um “breve instante de plena possessão das formas... como uma felicidade rápida, como a akmé dos Gregos, a haste da balança não oscila mais se não debilmente. Aquilo que espero não é logo vê-la pender novamente, e ainda menos o momento de fixação absoluta, mas, no milagre desta imobilidade hesitante, o leve tremor, imperceptível, que me indica que está viva”. Como no “dançar por fantasmata” de Domenico da Piacenza, a vida das imagens não consiste na simples imobilidade, nem no sucessivo retomar do movimento, mas numa pausa carregada de tensão entre estes. “Onde o pensamento se fixa inesperadamente numa constelação saturada de tensões”, lê-se na XVII tese sobre a filosofia da história, “imprime-lhe um choque através do qual esta se cristaliza como mônada.”A troca de cartas com Adorno no verão de 1935 esclarece de que modo devem se entender os extremos desta tensão polar. Adorno define o conceito de imagem dialética a partir da concepção benjaminiana da alegoria no Trauerspielbuch, no qual se falava de um “esvaziamento de significado” operado nos objetos da intenção alegórica. “Extinguindo-se nas coisas o valor de uso, as coisas, estranhadas, são esvaziadas e enquanto cifras simbólicas atraem significados. A subjetividade se apropria delas colocando nestas intenções de desejo e de angústia. Uma vez que as coisas isoladas atestam como imagens as intenções subjetivas, estas se apresentam como atávicas e eternas. As imagens dialéticas são constelações entre as coisas estranhadas e o advento do significado, extraídas no instante da indiferença entre morte e significado.” Recopiando no seu fichário esta passagem, Benjamin comenta: “A propósito destas reflexões tem-se presente que no século XIX o número das coisas ‘esvaziadas’ aumenta numa medida e ritmo antes desconhecidos, já que o progresso técnico põe continuamente fora do curso os novos objetos de uso.” Onde o sentido se suspende, aí aparece uma imagem dialética. Isto é, imagem dialética é uma oscilação

8

Page 9: Giorgio Agamben Ninfas

não resolvida entre um estranhamento e um novo evento de sentido. Similar à intenção emblemática, esta suspende o seu objeto num vazio semântico. Daqui a sua ambigüidade, que Adorno critica (“esta –a ambigüidade – não deve absolutamente permanecer assim como é”). Aquilo que Adorno, que tenta relacionar em última análise a dialética à sua matriz hegeliana, parece não compreender é que, para Benjamin, o essencial não é o movimento que, através da mediação, conduz à Aufhebung da contradição, mas o momento da captura, da irrupção, no qual o meio é exposto como uma zona de indiferença – como tal, necessariamente ambígua – entre os dois termos opostos. A Dialektik im Stillstand, da qual Benjamin fala, implica uma concepção da dialética cujo mecanismo não é lógico (como em Hegel), mas analógico e paradigmático (como em Platão). Segundo a aguda intuição de Melandri, a sua fórmula é “nem A, nem B” e a oposição que esta implica não é dicotômica e substancial, mas bipolar e tensiva: os dois termos não são nem removidos nem compostos em unidade, mas sim mantidos numa coexistência imóvel e carregada de tensão. Mas isto significa, na verdade, que não apenas a dialética não é separável dos objetos que nega, mas que estes perdem a sua identidade e se transformam nos dois polos de uma mesma tensão dialética, que alcança a sua máxima evidência na imobilidade, como um dançar “por fantasmata”.Na história da filosofia, esta “dialética em estado de captura” tem um arquétipo ilustre. Este está na passagem dos Segundo analíticos, nos quais Aristóteles compara a captura inesperada do pensamento, no qual se produz o universal, a um exército em fuga no qual subitamente um soldado pára, um outro depois dele e assim por diante, até que se reconstitui a unidade inicial. Aqui o universal não é reunido através de um procedimento indutivo, mas se produz analogicamente no particular através da sua captura. A multiplicidade dos soldados, (isto é, dos pensamentos e das percepções) em fuga desordenada é inesperadamente percebida como unidade, assim como Benjamin – retomando uma imagem de Mallarmé que, no Coup de dés, tinha elevado a página escrita à potência do céu estrelado e, ao mesmo tempo, à tensão gráfica da réclame – falava da brusca captura do pensamento numa constelação. Esta constelação é, segundo Benjamin, dialética e intensiva, isto é, capaz de colocar em relação um instante passado com o presente.Há uma citação de Focillon de 1937, na qual o grande historiador da arte (que tinha herdado do pai a paixão pelos selos) parece ter querido fixar numa imagem este incerto perturbação do pensamento. Esta representa um acrobata que oscila preso ao seu trapézio sobre o picadeiro iluminado de um circo. Embaixo à direita, a mão do autor escreveu o título: La dialectique.

7.

9

Page 10: Giorgio Agamben Ninfas

É notória a influência que sobre o jovem Warburg tinha exercido a leitura do ensaio de Friedrich Theordor Vischer sobre o símbolo. Segundo Vischer, o espaço próprio do símbolo se situa entre a obscuridade da consciência mítico-religiosa, que identifica mais ou menos imediatamente imagem (Bild) e significado (Bedeutung, Inhalt) e a clareza da razão, que as mantém em todos os pontos distintas. “Deve-se chamar simbólico”, escreve Vischer, “um elemento mítico no qual um tempo cria-se, sem mais fé real e, no entanto, assumido e recebido com vivente transposição como uma aparência dotada de sentido (Sinnvoll Scheinbild), esteticamente livre e todavia não vazia”. Isto é, entre a consciência mítico-religiosa e aquela racional deve-se introduzir “como segunda forma fundamental aquela que está no meio entre livre e não livre, claro e escuro, e apenas em seguida poderá aparecer como terceiro momento a forma inteiramente livre e clara (...) O meio (die Mitte): podemos também chamar penumbra (Zwielicht) isto que aqui se trata. É a animação natural (Naturbeseelung), involuntária e todavia livre, inconsciente e todavia num certo sentido consciente, o ato doador (der leihende Akt), através do qual nós submetemos a nossa alma e as nossas emoções ao inanimado.” Vischer chama vorbehaltende, suspendente, este estado intermediário, no qual o observado não crê mais na forma mágico-religiosa das imagens e, no entanto, permanece de alguma maneira ligado a este, mantendo-o suspenso entre o ícone eficaz e o signo puramente conceitual.O eco que estas idéias deveriam encontrar em Warburg é evidente. O encontro com as imagens (as Pathosformeln) se dá para ele nesta zona nem consciente nem inconsciente, nem livre nem não livre, na qual, todavia, estão em jogo a consciência e a liberdade do homem. Isto é, o humano se decide nesta terra de ninguém entre o mito e a razão, na ambígua penumbra em que o vivente aceita confrontar-se com as imagens inanimadas que a memória histórica lhe transmite para restituir-lhes vida. Como as imagens dialéticas em Benjamin e o símbolo em Vischer, as Pathosformeln – que Warburg compara a dinamogramas carregados de energia – são recebidas num estado de “ambivalência latente não polarizada” (unpolarisierte latente Ambivalenz) e somente neste modo, no encontro com um indivíduo vivente, podem readquirir polaridade e vida. O ato de criação, no qual o indivíduo – artista ou poeta, mas também o estudioso e, no limite, todo ser humano – mede-se com as imagens, tem lugar nesta zona central (die Mitte, chamava-a Vischer, e Warburg não se cansa de advertir que das Problem liegt in der Mitte) entre os dois opostos pólos do humano – zona de “indiferença criadora”, podemos defini-la, retomando uma imagem de Salomon Friedlaender que Benjamin amava citar. O centro, que está aqui em questão, não é uma noção geométrica, mas sim dialética: não o ponto mediano que separa dois segmentos sobre uma linha, mas a passagem através deste de uma oscilação polar. Como o “fantasmata” de Domenico di Piacenza, este é a imagem imóvel de um ser de passagem.

10

Page 11: Giorgio Agamben Ninfas

Mas isto significa também que a operação que Warburg confia ao seu atlas Mnemosyne é exatamente o contrário de quanto se espera compreender sob a rubrica “memória histórica”: segundo a aguda fórmula de Carchia, esta “termina com o revelar-se, no espaço da memória, como uma autêntica voragine no sentido, como o lugar da sua própria falta”.O atlas é uma espécie de estação de despolarização e repolarização (Warburg fala de “dinamogramas desconexos”, abgeschnürte Dynamogramme), na qual as imagens do passado, que perderam o seu significado e sobrevivem como pesadelos ou espectros, são mantidas em suspenso na penumbra em que o sujeito histórico, entre o sono e a vigília, se confronta com estas para lhes restituir vida – mas também, para despertar-se eventualmente destas.Entre os esboços recuperados por Didi-Huberman nas suas escavações entre os manuscritos warburguianos, além dos vários esquemas de oscilação pendular, há um desenho à caneta que mostra um funâmbulo que caminha sobre uma tábua mantida em precário equilíbrio entre duas outras figuras. O funâmbulo – desenhado com a letra K – é, talvez, a cifra do artista (Künster) que se mantém em suspenso entre as imagens e os seus conteúdos (alhures Warburg fala de um “movimento pendular entre a posição de causa como imagem e como signos”) – mas também a cifra do estudioso que (como Warburg escreve a propósito de Burckhardt) age como “um necromante que, em plena consciência, evoca os espectros que o ameaçam”.

8.

“Quem é a ninfa, de onde vem?”, perguntava Jolles a Warburg nas correspondências trocadas em Florença em 1900 a propósito da figura feminina em movimento pintada por Ghirlandaio na capela Tornabuoni. A resposta de Warburg soa, pelo menos em aparência, peremptória: “segundo a sua realidade corpórea, esta pode ter sido uma escrava tártara liberada (...), mas segundo a sua verdadeira essência, esta é um espírito elementar (Elementargeist), uma deusa pagã em exílio...” A segunda parte da definição (uma deusa pagã em exílio), sobre a qual se direcionou sobretudo a atenção dos estudiosos, inscreve a ninfa no contexto mais próprio das pesquisas warburguianas, o Nachleben dos deus pagãos. A aproximação entre Elementargeiter e deus no exílio já está em Heine (na edição da Revue des deux mondes, o escrito sobre os Elementargeister – composto em 1835 – abre o ensaio Les dieux em exil). Não foi, por outro lado, notado que a doutrina dos espíritos elementares através de Heine e de Undine de La Motte Fouqué, envia ao tratado de Paracelso De nymphis, sylphis, pygmeis et salamandris et caeteris spiritibus e assinala, na genealogia da ninfa, um ramo escondido e, por assim dizer, esotérico, que não podia não ser familiar tanto a Warburg quanto a Jolles. Nesta deriva, que se situa no

11

Page 12: Giorgio Agamben Ninfas

cruzamento de tradições culturais diversas, a ninfa denomina o objeto por excelência da paixão amorosa (e como essa era certamente para Warburg: “gostaria de deixar-me carregar alegremente com ela” ele escreve a Jolles).Tomemos o tratado de Paracelso, que Warburg evoca diretamente. Aqui a ninfa se inscreve na doutrina bombastiana dos espíritos elementares (ou criaturas espirituais), cada um dos quais ligado a um dos quatro elementos: a ninfa (ou ondina) à água, os silfos ao ar, os pigmeus (ou gnomos) à terra e as salamandras ao fogo. O que define estes espíritos – e a ninfa em particular – é que estes, ainda que tenham o aspecto totalmente similar ao homem, não foram gerados por Adão, mas pertencem a um grau segunda da criação, “diferente e separado tanto dos homens, quanto dos animais”. Existe, segundo Paracelso, uma “duplice carne”: uma que vem de Adão, crassa e terrena, e uma não adâmica, sutil e espiritual. (Esta doutrina, que implica, para certas criaturas, uma criação especial, parece a exata contraparte da doutrina de La Peyrère da criação pré-adâmica dos gentis). Em todo caso, aquilo que define os espíritos elementares é que estes não têm uma alma e não são, portanto, nem homens nem animais (enquanto possuem razão e linguagem), e nem mesmo propriamente espíritos (enquanto possuem um corpo). Mais que animais e menos que humanos, híbridos de corpo e de espírito, estes são pura e absolutamente “criaturas”: criadas por Deus nos elementos mundanos e sujeitas como tais à morte, estes estão para sempre fora da economia da salvação e da redenção:“Ainda que estejam entre as coisas, isto é, espírito e homem, não são nem uma coisa nem outra. Não podem ser homens, porque se movem como espírito; não podem ser espíritos, porque comem, bebem e têm carne e sangue (...). São, portanto, criaturas particulares, diferentes das primeiras duas e formadas por uma espécie mesclada da sua dupla natureza, como um composto de doce e de amargo, ou como duas cores numa única figura. Deve-se insistir, no entanto, que, ainda que sejam de um certo modo tanto espíritos quanto homens, não são nem um nem outro. O homem tem uma alma, o espírito dela é privado. Estas criaturas estão entre as coisas e todavia não têm alma; mas tampouco são, por isso, espíritos. De fato, o espírito não morre; a criatura morre. Tampouco é como o homem, porque não tem alma. É, deste modo, um animal e, todavia, mais que um animal. Morre como os animais, mas o corpo animal não tem, como ele, uma mente. É assim um animal que fala e ri exatamente como os homens (...). Cristo nasceu e morreu por aqueles que têm uma alma e foram gerados por Adão. Não para estas criaturas, que não provêm de Adão: ainda que sejam de algum modo homens, falta-lhes uma alma”.Paracelso pára com uma espécie de amorosa compaixão sobre o destino destas criaturas totalmente similares ao homem e, no entanto, condenadas sem culpa a uma vida puramente animal: “São um povo de humanos, que morrem, no entanto, com as bestas, caminham com os

12

Page 13: Giorgio Agamben Ninfas

espíritos, comem e bebem com os homens. Morrem como animais, sem que nada reste deles. A sua reprodução é similar àquela dos homens... e todavia não morrem como os homens, mas como o gado. Como toda carne, também a carne deles se corrompe (...). Nos costumes, nos gestos, na língua, na sabedoria são perfeitamente humanos; como os homens, virtuosos ou viciosos, melhores ou piores (...). Vivem com os homens sob uma lei, comem o produto de suas mãos, tecem para si vestes que vestem como os homens, usando a razão e governando as suas comunidades com justiça e sabedoria. Ainda que sejam animais, têm a humana razão – só são privados da alma. Por isso não podem servir a Deus nem caminhar nas vias do Senhor.”Como homens não humanos, os espíritos elementares de Paracelso constituem o arquétipo ideal de toda separação do homem de si mesmo (a analogia com o povo hebraico é também aqui surpreendente). Aquilo que define, todavia, a especificidade das ninfas em relação às outras criaturas não adâmicas é que, elas podem receber uma alma se se unirem sexualmente com um homem e gerando com ele um filho. Aqui Paracelso se alinha a uma outra e mais antiga tradição que ligava indissoluvelmente as ninfas ao reino de Vênus e à paixão amorosa (e que está na origem tanto do termo psiquiátrico “ninfomania” quanto, talvez, àquele anatômico que designa como nynphae os pequenos lábios da vagina). De fato, segundo Paracelso, muitos “documentos” atestam que as ninfas “não apenas aparecem aos homens, mas têm comércio sexual (copulatae coiverint) com estes e geram filhos.” Se isto acontece, tanto a ninfa quanto a sua prole recebem uma alma e tornam-se assim verdadeiramente humanas. “Isto pode ser provado com muitos argumentos enquanto, ainda que não sejam eternas, ao unirem-se com os homens se tornam – isto é, adquirem, como os homens, uma alma. Deus criou-lhes tão similares e conformes aos homens que nada poder-se-ia pensar de mais semelhante. Mas lhes acrescentou o milagre de privar-lhes da alma. Mas unindo-se aos homens em estável união, conseqüentemente esta união confere-lhes uma alma (...). É claro, portanto, que sem os homens seriam animais, como os homens sem o pacto com Deus seriam nada (...). Por esta razão as ninfas procuram os homens e freqüentemente juntam-se em segredo com estes.”Toda a vida das ninfas é colocada por Paracelso sob o signo de Vênus e do amor. Se ele chama “Monte de Vênus” a sociedade das ninfas (collectio et conversatio, quam Montem Veneris appellitant... – congregatio quaedam nynpharum in antro... – como não reconhecer aqui um topos por excelência da poesia amorosa), é porque Vênus mesma é, na verdade, apenas uma ninfa e uma ondina, ainda que a mais alta em grau e um tempo, antes de morrer (aqui Paracelso se confronta a seu modo com o problema da sobrevivência dos deuses pagãos) a sua rainha (iam vero Venus Nympha est et undena, caeteris dignior et superior, quae longo quidem tempore regnavit sed tandem vita functa est).”

13

Page 14: Giorgio Agamben Ninfas

Condenadas deste modo a uma incessante amorosa procura pelo homem, as ninfas levam sobre a terra uma inteira existência paralela. Criadas não à imagem de Deus, mas do homem, elas constituem-lhe uma espécie de sombra ou de imago e, como tais, perpetuamente acompanham e desejam – e por eles são, por sua vez, desejadas – aquilo de que são imagem. E somente no encontro com o homem as imagens inanimadas adquirem uma alma, tornam-se verdadeiramente vivas: “E como dissemos que o homem é uma imagem de Deus, plasmada segundo a sua imagem, assim se pode dizer que estas criaturas são as imagens do homem, formadas segundo a sua imagem. E como o homem não é Deus, ainda que feito à sua imagem, assim também estas criaturas, ainda que sejam criadas à imagem do homem, permanecem no modo como foram plasmadas, como o homem permanece tal qual Deus o criou.”A história da ambígua relação entre os homens e as ninfas é a história da difícil relação entre o homem e as suas imagens.

9.

A invenção da ninfa como figura por excelência do objeto de amor é obra de Boccaccio. Ele não inventa aqui integralmente, mas, segundo um habitual gesto seu, ao mesmo tempo mimético e apotropaico, desloca e transcreve um módulo dantesco e stilnovista num novo âmbito (que podemos definir com o termo moderno “literatura”, que não seria certamente possível aplicar sem aspas a Dante e Cavalcanti). Secularizando deste modo aquelas que eram essencialmente categorias filosófico-teológicas, ele constitui retroativamente como esotérica a experiência dos poetas de amor (em si totalmente diferente à oposição exotérico/esotérico) e, situando assim sobre este enigmático fundo teológico a literatura, oblitera-lhe e, ao mesmo tempo, conserva o legado. Em todo caso, é certo que a “ninfa florentina” é a figura central das prosas e poesias amorosas de Boccaccio, ao menos a partir de 1341, quando compõe aquele singular prosímetro, misto de novelete e de terzas rimas, que intitula (não sem uma clara alusão ao poema dantesco) Comedia das ninfas florentinas. (Rubricado em 1900 “ninfa florentina” o caderno ao qual confia a correspondência com Jolles, Warburg evoca discretamente Boccaccio, um autor, como é notório, particularmente caro a Jolles). Mas ainda no Ninfale fiesolano, no carmen bucolicum e, num sentido especial, no Corbaccio, amar significa amar uma ninfa.O objeto de amor – que Dante chama “ninfa” apenas em pouco, mas decisivos lugares (na terceira carta, nas éclogas e, sobretudo, no Purgatório, onde esta constitui uma espécie de limiar entre o paraíso terrestre e aquele celeste) – representa, nos poetas de amor, o ponto em que a imagem ou fantasma comunica com o intelecto possível. Como tal, este é um conceito-limite não apenas entre o amante e a

14

Page 15: Giorgio Agamben Ninfas

amada, entre o sujeito e o objeto, mas também entre o singular vivente e o único intelecto (ou pensamento, ou linguagem). Deste conceito-limite filosófico-teológico, Boccaccio faz, ao contrário, o lugar onde pôr o problema, admiravelmente moderno, da relação entre vida e poesia. Isto é, a ninfa é a quase-reificação literária da intentio da psicologia medieval (por isso Boccaccio, fingindo acreditar numa brincadeira familiar, poderá transformar Beatriz numa menina florentina). Os dois textos decisivos e aparentemente antitéticos são aqui a introdução ao quarto dia do Decamerone e o Corbaccio.Na introdução, Boccaccio, na oposição entre as Musas (com as quais “não podemos habitar...nem estas conosco”) e as mulheres, toma decisivamente partido pelas segundas, transformando, de resto, os termos da cisão (“le Muse son donne, e benché le donne quelle che le muse vagliono non vagliono, pure esse hanno nel primo aspetto somiglianza di quelle”). No Corbaccio, a escolha é invertida e a crítica feroz das mulheres acontece ao mesmo tempo da reivindicação exclusiva do comércio com as “ninfas castalidi”. Contra as mulheres que afirma que “todas as boas coisas são femininas: as estrelas, os planetas, as Musas (...)”, Boccaccio com brusco realismo abre uma cesura insanável entre as Musas e as mulheres: “é verdade que todas são fêmeas, mas não mijam.” A costumeira miopia dos especialistas acreditou resolver a contraposição entre estes dois textos projetando-a sobre a cronologia – isto é, em última análise, sobre a biografia do autor, lendo-a como uma evolução senil. A oscilação é, ao contrário, interna ao problema e corresponde à essencial ambigüidade da ninfa boccaccesca. A cesura entre realidade e imaginação, que a teoria dantesca e stilnovista do amor voltava-se a suturar, é aqui reproposta em toda sua crueza. Se “ninfal” é aquela dimensão poética em que as imagens (que “não mijam”) deveriam coincidir com as mulheres reais, então a ninfa florentina é sempre já em ato de dividir-se segundo as suas duas opostas polaridades, ao mesmo tempo muito viva e inanimada, sem que o poeta consiga mais conferir-lhe uma vida unitária. A imaginação que, nos poetas de amor, assegurava a possibilidade da conjugação entre o mundo sensível e o pensamento, torna-se aqui o lugar de uma sublime ou falsária fratura, na qual se assenta a literatura (e, mais tarde, a teoria kantiana do sublime). A literatura moderna nasce, neste sentido, de uma cisão da imago medieval. Não espanta então que, em Paracelso, ela possa apresentar-se como uma criatura em carne e osso, criada à imagem do homem, que pode adquirir uma alma somente unindo-se com ele. A conjunção amorosa com a imagem, símbolo da consciência perfeita, torna-se aqui a impossível união sexual com uma imago transformada em criatura, que “bebe e come” (como não recordar a crua caracterização boccaccesca das ninfas-Musas?).

10.

15

Page 16: Giorgio Agamben Ninfas

A imaginação é uma descoberta da filosofia medieval. Nesta, ela atinge o seu limiar crítico – e, ao mesmo tempo, a sua formulação mais aporética – no pensamento de Averróes. A aporia central do averroísmo, que não cessa de suscitar as obstinadas objeções dos escolásticos, está, de fato, na relação entre o intelecto possível, único e separado, e os indivíduos singulares. Segundo Averróes, estes se conjugam (copulantur) com o intelecto único através dos fantasmas que se encontram no sentido interno (em particular, na virtude imaginativa e na memória). A imaginação recebe deste modo um caráter de toda forma decisivo: no vértice da alma individual, no limite entre o corpóreo e o incorpóreo, o individual e o comum, a sensação e o pensamento, esta é a extrema escória que a combustão da existência individual abandona sobre o limiar do separado e do eterno. Neste sentido, a imaginação – e não o intelecto – é o princípio que define a espécie humana.Resta que esta definição é aporética, porque – como Tomás insistentemente objeta na sua crítica, afirmando que, se se aceita a tese averroísta, o homem singular não pode conhecer – ela situa a imaginação no vazio que se escancara entre a sensação e o pensamento, entre a multiplicidade dos indivíduos e a unicidade do intelecto. Daqui – como a cada vez que se trata de apreender um limiar ou uma passagem – o vertiginoso multiplicar-se, na psicologia medieval, das distinções: virtude sensível, virtude imaginativa, memorial, intelecto material, afiliada etc. Isto é, a imaginação circunscreve um espaço em que não pensamos ainda, no qual o pensamento se torna possível somente através de uma impossibilidade de pensar. Nesta impossibilidade os poetas de amor situam a sua glosa à psicologia averroísta: a copulatio dos fantasmas com o intelecto possível é uma experiência amorosa e o amor é, antes de tudo, amor por uma imago, por um objeto de alguma maneira irreal, exposto, como tal, ao risco da angústia (que os stilnovistas chamam “dottanza”) e da falta. As imagens, que constituem a última consistência do humano e o único trâmite da sua possível salvação, são também o lugar do seu incessante faltar a si mesmo.É sobre este fundo que se deve colocar o projeto warburguiano de recolher num atlas – cujo nome é Mnemosyne – as imagens – as Pathosformeln – da humanidade ocidental. A ninfa warburguiana deriva da ambígua herança da imagem, mas a desloca sobre um plano totalmente diferente, histórico e coletivo. Já Dante, no De monarchia, tinha interpretado a herança averroísta no sentido que, se o homem é definido não pelo pensamento, mas por uma possibilidade de pensar, então esta não pode ser realizada por um homem singular, mas apenas por uma multitudo no espaço e no tempo, isto é, sobre o plano da coletividade e da história. Trabalhar sobre imagens significa neste sentido para Warburg trabalhar no cruzamento não apenas entre o corpóreo e o incorpóreo, mas também, e sobretudo, entre o individual e

16

Page 17: Giorgio Agamben Ninfas

o coletivo. A ninfa é a imagem da imagem, a cifra das Pathosformeln que os homens se transmitem de geração em geração e à qual deixam a sua possibilidade de encontrar-se ou de perder-se, de pensar ou de não pensar. As imagens são, portanto, um elemento decisivamente histórico; mas, segundo o princípio benjaminiano pelo qual se dá vida a tudo aquilo a que se dá história (e que aqui poder-se-ia reformular no sentido de que se dá vida a tudo aquilo a que se dá imagem), estas são, de alguma forma, vivas. Nós estamos habituados a atribuir vida apenas ao corpo biológico. Ninfal é, ao contrário, uma vida puramente histórica. Como os espíritos elementares de Paracelso, as imagens têm necessidade, para ser verdadeiramente vivas, que um sujeito, assumindo-as, una-se a elas; mas neste encontro – como na união com a ninfa-ondina – está ínsito um risco mortal. No curso da tradição histórica, de fato, as imagens se cristalizam e se transformam em espectros, de quem os homens tornam-se escravos e de quem sempre é preciso libera-los novamente. O interesse de Warburg pelas imagens astrológicas tem a sua raiz na consciência que “a observação do céu é a graça e a maldição do homem”, que a esfera celeste é o lugar em que os homens projetam as suas paixões pelas imagens. Como para o vir niger, o enigmático decano astrológico que ele tinha reconhecido nos afrescos de Schifanoia, essencial é, no encontro com o dinamograma carregado de tensão, a capacidade de suspender-lhe e inverter-lhe a carga, de transformar o destino em sorte. As constelações celestes são, neste sentido, o texto original em que a imaginação lê aquilo que nunca foi escrito.Na carta a Vossler, enviada poucos meses antes da morte, Warburg reformulando o programa do seu atlas como uma “teoria da função da memória humana para imagens (Theorie des Funktion des menschlichen Bildgedöchtnisses)”, coloca-o em relação com o pensamento de Giordano Bruno: “Veja o senhor que eu não devo deixar-me escapar sob nenhum custo, como o fiz até agora, a possibilidade de entrar em relação com uma figura que me fascina há quarenta anos e que, pelo que posso ver, não encontrou até agora a sua justa colocação na história do espírito: Giordano Bruno.”O Bruno a que Warburg aqui se refere em relação ao atlas só pode ser o Bruno dos tratados mágico-mnemotécnicos, como o De umbris idearum. É curioso que, no seu estudo sobre a Arte da memória, Frances Yates não se deu conta de que os sigilos que Bruno insere neste livro têm a forma de matrizes astrológicas. Esta semelhança com um dos objetos privilegiados das suas pesquisas não podia não ter tocado Warburg que, no seu estudo sobre adivinhações na época de Lutero, reproduz matrizes quase idênticas. A lição que Warburg retira de Bruno é que a arte de dominar a memória – no seu caso, a tentativa de compreender através do atlas o funcionamento do Bildgedächtnis humano – tem a ver com as imagens que exprimem a subjetivação do homem ao destino. O atlas é o mapa que deve orientar o homem na sua luta contra a

17

Page 18: Giorgio Agamben Ninfas

esquizofrenia da própria imaginação. O cosmo, que o mítico herói homônimo carrega sobre as costas (Davide Stimilli lembrou a importância desta figura para Warburg) é o mundus imaginalis. A definição do atlas como “histórias de fantasmas para adultos” encontra aqui o seu sentido último. A história da humanidade é sempre história de fantasmas e de imagens, porque é na imaginação que tem lugar a fratura entre o individual e o impessoal, o múltiplo e o único, o sensível e o inteligível e, ao mesmo tempo, a tarefa da sua dialética recomposição. As imagens são o resto, o traço daquilo que os homens que nos precederam esperaram e desejaram, temeram e removeram. E já que é na imaginação que algo como uma história tornou-se possível, é através da imaginação que esta deve a cada instante novamente se decidir.A historiografia warburguiana (nisto muito próxima à poesia, segundo a indiscernibilidade entre Clio e Melpomene que Jolles sugeria num belo ensaio de 1925) é a tradição e a memória das imagens e, ao mesmo tempo, a tentativa da humanidade de liberar-se destas para abrir, além do “intervalo” entre a prática mítico-religiosa e o puro signo, o espaço de uma imaginação sem mais imagens. O título Mnemosyne nomeia, neste sentido, o sem imagem, que é a despedida – e o refúgio – de todas as imagens.

18