Formas de Tratamento Na Lingua Portuguesa

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Uma Teoria de Interpretação das Formas de Tratamento na Língua Portuguesa Author(s): Manuela Cook Source: Hispania, Vol. 80, No. 3 (Sep., 1997), pp. 451-464 Published by: American Association of Teachers of Spanish and Portuguese Stable URL: http://www.jstor.org/stable/345821 . Accessed: 12/09/2011 19:53 Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at . http://www.jstor.org/page/info/about/policies/terms.jsp JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected]. American Association of Teachers of Spanish and Portuguese is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Hispania. http://www.jstor.org

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Uma Teoria de Interpretação das Formas de Tratamento na Língua PortuguesaAuthor(s): Manuela CookSource: Hispania, Vol. 80, No. 3 (Sep., 1997), pp. 451-464Published by: American Association of Teachers of Spanish and PortugueseStable URL: http://www.jstor.org/stable/345821 .Accessed: 12/09/2011 19:53

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Uma Teoria de Interpreta a:o das Formas de Tratamento na Lingua Portuguesa

Manuela Cook University of Wolverhampton, UK

Abstract: Em portugues as formas de tratamento assumem caracteristicas especificas resultantes do sintagma sujeito nominal + verbo para a segunda pessoa gramatical. 0 sujeito nominal permite uma variada produgdo de significado de efeito social a diferentes niveis de formalidade e informalidade, enquanto que a omissdo do mesmo conduz a um efeito de neutralidade que permite evitar uma tomada de posiCgo dentro do contraste formal-informal. Consequentemente, e dificil aplicar com exito a lingua portuguesa um modelo de interpreta- 9o de formas de tratamento que se limite a focalizar um sistema binario de opi6es ou um modelo concebido para linguas onde um sujeito pronominal e a norma generalizada em paradigmas da segunda pessoa. No caso portugues e necessario considerar o contetido semantico do denotador do sujeito e e necessario que uma anti- lise da actuaCqo dos factores poder e solidariedade sobre as oppies disponiveis nao deixe de considerar tam- bem uma dimensdo de neutralidade.

Key Words: formas de tratamento, lingua portuguesa, portugues moderno, segunda pessoa, sujeito prono- minal, sujeito nominal, voce, formal-informal, forma de neutralidade

N um estudo pioneiro sobre formas de tratamento, Brown e Gilman (1960) apresentaram um modelo

de interpretadio segundo um sistema bind- rio em que V-T se constitue como uma re- presentaCdo simb61ica dos vocdbulos lati- nos vos e tu, para, respectivamente, o ceri- monioso e o nao-cerimonioso. No entanto, a lingua portuguesa faz uso de um modo de tratamento que se subtrai a dualidade V-T, o de Neutralidade (N) (Cook 1994). Uma 6ptica diacr6nica da constituikdo e do uso das opp6es V-T e N nesta lingua proporcio- nara nao s6 uma vis~o geral das suas linhas de evolugho mas tambem, e em consequen- cia da mesma, uma vis~o mais liicida da sua posikdo no fim do s6culo XX.

(A) Opg6es V-T e N-Constituikio e Uso

A semelhanpa do que ocorreu noutras linguas romanicas, o portugues recebeu do latim dois pronomes distintos para a segun- da pessoa, tu e v6s, e respectivas desinencias verbais, para o singular e o plu- ral (Entwistle 278-85; Elcock 90-92). Pode- r i dizer-se que os paradigmas da segunda pessoa tiveram, de inicio, uma correspon-

d ncia literal com o T e o V da dualidade V- T, onde o plural era a escolha para um tra- tamento cerimonioso e o singular para um nao-cerimonioso. Mais tarde, acompanhan- do uma voga que percorreu vairias regi6es da Europa, a lingua portuguesa adoptou uma outra perspectiva de enfoque para V, que tinha tambem um precedente no latim, onde o imperador de Roma era tratado por Vossa Majestade (Uestra Maiestas). Uma pessoa em posiko eminente seria exaltada por refer ncia ao seu atributo mais notivel, o qual seria gramaticalmente isolado em substantivo abstracto e, acompanhado do possessivo da segunda pessoa, seria entao epiteticamente aplicado como forma de tra- tamento honorifico. De acordo com este formato, no seculo XIV o monarca portu- gues passou a ser tratado por Vossa Merce (Lindley Cintra 18-23; Mattoso C mara 80- 81).

No principio do seculo XVI, Gil Vicente retrata-nos figuras da classe popular do Portugal de entao que usam o paradigma T tu, tais como a mae que admoesta a filha ansiosa por um noivo: " Como queres tu casar / Com fama de preguigosa." (Ines Pereira 222). Em contraste, as altas classes

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sociais da 6poca comunicam entre si em paradigma V v6s, tratamento que tamb6m recebem de inferiores. E igualmente nestes termos que a Alma pecadora se dirige

'

Santa Madre Igreja procurando refdigio e salvagdo-"Mandai-me, ora, agasalhar / [. ..]" (Alma 94)-e ao Anjo Cust6dio, procu- rando amparo-"V6s nao me desempareis/ [...]" (Alma 98). O primeiro exemplo en- contra-se na segunda pessoa do singular, para tratamento nao-cerimonioso. O segun- do exemplo, como o sujeito omitido e a fun- gdo significante entregue apenas a desin n- cia verbal encontra-se na segunda pessoa do plural, para tratamento cerimonioso; esta iltima fundio sendo tamb6m servida no ter- ceiro exemplo, desta vez com o sujeito ex- presso.

Em paralelo a pritica de V vos para trata- mento cerimonioso, a perspectiva de enfoque honorifico vinha se estabelecendo. Um marco hist6rico deste fen6meno 6, em meados do s6culo XV, um texto em que o cronista Gomes Eanes de Azurara tenta conciliar a novidade de um sujeito nominal com o sistema tradicional de inflexao ver- bal. Na dedicat6ria da Cr6nica da Guind, de 1453, dirige-se ao rei de Portugal empregan- do, entre outros titulos, o de Vossa Merce, mas nao faz concordancia morfol6gica en- tre o sujeito nominal emergente e a desinen- cia verbal: "...stando Vossa Mercee o anno passado em esta cidade, me dissestes..." (Cr6nica x).

A introduCdo do sujeito nominal veio con- duzir o verbo para a terceira pessoa, forma- to que se consolidou a medida que o uso de honorificos se foi propagando e passou a abranger uma maior variedade de individu- os em posiCdo de destaque na hierarquia social tais como membros da aristocracia, membros do clero e eventualmente tam- b6m da burguesia. A consequ6ncia mais imediata do aparecimento da f6rmula subs- tantiva foi a esfera V passar a ser servida por dois formatos distintos, o paradigma tradi- cional com o sujeito pronominal v6s e a desin~ncia verbal da segunda pessoal plu- ral, e o novo sintagma sujeito nominal + ver- bo usando este a desin~ncia da terceira pes- soa. A esfera T continuou a ser servida pelo

paradigma tradicional com o sujeito prono- minal tu e a desinencia verbal da segunda pessoa singular.

A f6rmula Vossa Merce, inicialmente apli- cada ao rei ou ' rainha, foi posteriormente destronada desse cargo - no qual foi substi- tuida por, sucessivamente, Vossa Alteza e Vossa Majestade. 0 honorifico decadente passou a ser aplicado a nobreza, depois a burguesia, e continuou a descer na escala social, circulando em variantes morfo- fonol6gicas tais como vossanc e voce, a uil- tima emergindo no s6culo XVII, e chegou, principalmente em Portugal, ao extremo de ser percepcionado como ofensivo em certas camadas da populaCdo (Lindley Cintra 25- 36). Portanto, Vossa Merce na sua evolugho voce nao s6 deixou a esfera V, do cerimoni- oso, e entrou na T, do nao-cerimonioso, mas nalguns contextos sociais foi relegado para o discerimonioso. A mudanpa de esfera socio-semantica que se verifica em voce corresponde a mais uma fase no processo de evolugdo da segunda pessoa em portu- gues na medida em que o sintagma sujeito nominal + verbo passou a usar-se tanto em V como em T.

Existem a partir de agora dois formatos para a dualidade V-T nas formas de trata- mento da lingua portuguesa. A esfera V 6 servida pelo paradigma tradicional com o sujeito pronominal vos e a desinencia ver- bal da segunda pessoal do plural, e tamb6m pelo novo sintagma sujeito nominal + ver- bo com a desinencia da terceira pessoa. A esfera T 6 servida pelo paradigma tradicio- nal com o sujeito pronominal tu e a desin6ncia verbal da segunda pessoa do sin- gular, e tamb6m pelo novo sintagma sujei- to nominal + verbo com a desin ncia da ter- ceira pessoa. Temos, assim, tanto para V como para T um formato com um duplo apoio significante, no pronome denotador do sujeito e na inflexao verbal, e um forma- to com um i6nico apoio significante, o do substantivo denotador de sujeito, e uma mesma inflexao verbal usada em comum.

A coexist~ncia destes dois fomatos veio a resultar em certos desvios de infase e certas deslocaCSes de uso. O paradigma tra- dicional da segunda pessoa plural foi gradu-

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almente deslocado pelo sintagma sujeito nominal + verbo na terceira pessoa, e aca- bou por entrar numa exist ncia arcaizante. O seu paralelo para o singular perdurou. Tem mantido, no entanto, uma existencia mais vigorosa no portugu s falado a leste do Oceano Atlantico do que naquele falado no Brasil, onde principalmente nas zonas urba- nas tem sido substituido pelo sintagma su- jeito nominal + verbo na terceira pessoa. Neste pais para sujeito nominal generalizou- -se o uso de voce, palavra que escapou 's conotay6es negativas que acumulou em Portugal, onde, por sua vez, embora mal aceite por muitos, continuou a gozar de boa aceitaCdo nalguns sectores (Celso Cunha e Lindley Cintra 211).

Na literatura brasileira do seculo XIX estdo bem documentados tanto T tu como o sujeito nominal. Em Alencar, no interior da floresta, surpreendida pelo jovem Martim que a contempla, a virgem Iracema dispara uma flecha mas logo se apressa a quebrar a arma de ataque e entrega a haste ao desconhecido. Ambos se falam:

-Quebras comigo a flecha da paz? -Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmios? De onde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu? (Iracema 41).

O branco, que parece ser de origem portu- guesa, e a india comunicam no paradigma tradicional da segunda pessoa do singular.

Machado de Assis apresenta-nos um outro jovem, Bentinho, que recebe pressio de sua mae, vifiva de um conceituado cida- dio, para que ingresse no seminirio, o que constitui problema, pois ele ndo sente voca- 9do para o sacerd6cio. Recorre entao a pri- ma Justina na esperanga de encontrar nela quem interceda em seu favor:

-Prima Justina, a senhora era capaz de uma coisa? -De quo? -Era capaz de... Suponha que eu ndo gostasse de ser padre... a senhora podia pedir a mamae... -Isso nao, atalhou prontamente; prima G16ria tern Aste neg6cio firme na cabega.... Voc~ ainda era pequenino, ji ela contava isto a t6das as pessoas da nossa amizade, ou s6 conhecidas. (Dom Casmurro 75- 76).

Bentinho e Justina relacionam-se usando o

sintagma sujeito nominal + verbo na tercei- ra pessoa. Contudo, os denotadores de su- jeito que empregam sdo diferentes. A prima Justina, interlocutor adulto, 6 respeitosa- mente tratada por senhora, mas Bentinho, em posiCio junior, 6 tratado por vock. 0 ter- mo o senhor- e seu feminino a senhora - con- trasta, portanto, com voce num bin6mio V- T.

A generalizaCdo aos p6los opostos da dualidade V-T da forma de tratamento em formato de sujeito nominal + verbo na ter- ceira pessoa resultou, morfol6gica e sintac- ticamente, na abertura da possibilidade para a evoluCdo da forma de neutralidade, a qual se tornou obtenivel pela simples omissio do sujeito nominal. Esta omissdo corresponde a uma transferencia para o sintagma de composiCdo nominal e verbal do artificio de economia de esforgo sintactico que jai era pritica no latim e continuara em uso nos paradigmas tradicionais do portugu s (por exemplo Mattoso Camara 81). O denotador do sujeito-pronominal neste caso-era com frequ ncia dispensado, ficando a indi- cadio da pessoa gramatical ao cuidado ex- clusivo da desin ncia verbal.

Assim, a forma de neutralidade de trata- mento na lingua portuguesa 6 gramatical- mente obtida pela omissdo do denotador de sujeito em conjungho com o uso do verbo na terceira pessoa. E o caso de, por exem- plo, -Como estd? ou -Como se chama?

No entanto, embora a forma de neutrali- dade tivesse estado presente, pelo menos em exist ncia virtual, desde o inicio da prai- tica do sintagma sujeito nominal + verbo na terceira pessoa, tal potencialidade s6 veio a ser significativamente explorada, a medida que mudanpas na estrutura social assim o justificaram.

Numa sociedade firmemente estratifica- da, uma intengio de neutralidade assumiria provavelmente um significado negativo, interpretada como tentativa de evas-o ao cumprimento do dever de observar a forma de tratamento reconhecida para cada cama- da social. Ocorr~ncias de forma de trata- mento com o verbo na terceira pessoa e sem sujeito expresso significariam mais prova- velmente um abandono do denotador do

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sujeito nominal a semelhanga do que se fa- zia em relaCdo ao sujeito pronominal dos paradigmas tradicionais. Tais ocorrencias nao corresponderiam a uma intenCdo de modo de neutralidade, e a supressao do denotador do sujeito teria lugar ap6s o tom do relacionamento ter sido definido por esse mesmo denotador.

Com respeito nao tanto a dimensio N como ' dualidade V-T, a vertente sociol6gi- ca das formas de tratamento da lingua por- tuguesa beneficia, at6 certo ponto, da and- lise de Brown e Gilman (1960) em termos de poder e solidariedade. Parte-se do prin- cipio que as oppies que os falantes de uma lingua tomam entre as formas V e T se pro- cessam no espago definido por estas duas coordenadas, onde a primeira costumava ser o factor principal de escolha nas linguas europeias at6 ao fim do s6culo XIX. Poder representaria o dominio de um dos interlocutores, com base na sua reconheci- da superioridade em ' idade, poskiio soci- al, condigko econ6mica ou outro factor de ascend6ncia. Um inferior dirigir-se-ia em V a um superior, mas este dirigir-se-ia Aquele em T. Os individuos de classes diferentes relacionar-se-iam, portanto, em disrecipro- cidade de forma de tratamento. Entre iguais haveria reciprocidade, em T para individu- os das classes baixas e em V para individu- os das classes altas. Face a esta rigidez de hierarquizaCdo social haveria pouco incen- tivo para o desenvolvimento de uma forma de neutralidade.

O Quadro 1 apresenta o panorama geral das formas de tratamento da lingua portu- guesa na viragem para o presente s6culo, mostrando diferentes modalidades de abrangimento da hierarquia social do tem- po. Inclui os paradigmas originalmente her- dados do latim, isto 6, vds, com o verbo na segunda pessoa do plural (2a p.pl.) e tu, com o verbo na segunda pessoa do singular (2a p. sing.). Inclui tamb6m a f6rmula de intro-

duC;o mais tardia, isto 6, sujeito nominal

(suj. nom.) e verbo na terceira pessoa (3a p.), ambos concordando em nmimero, singu- lar (sing.) ou plural (pl.). Por sua vez, o su- jeito nominal abrange uma vasta gama de possibilidades V-T: por exemplo, na sequ6n-

cia sintagmitica de possessivo + substanti- vo, o reverente Vossa Excelencia; substanti- vos vArios, alguns para V como o senhor/a senhora, o senhor doutor / a senhora douto- ra; e evolug6es de Vossa Merce, em especi- al voce.

A observaio do quadro e dos exemplos acima apresentados revela que ao tempo as formas de tratamento em portugues se definiam dentro de uma dualidade V-T. Entretanto, por6m, o sintagma sujeito nomi- nal + verbo na terceira pessoa (singular e plural) continha uma f6rmula linguistica de aplicado social gen6rica, pelo menos em embriao. Um terreno mais f6rtil em que este pudesse germinar seria necessArio.

Com especial referencia 'as formas de tratamento no Brasil da segunda metade do s6culo XX, Jensen (1981) fez um estudo comparativo do portuguis, em relaCo a outras linguas europeias, dentro da dualidade V-T. Nele chama a atengo para que o uso do sujeito nominal resulta em T e V partilharem uma forma verbal "nao-as- sinalada" (Jensen 54). Ora nesta caracteris- tica reside muito do potencial para uma concretiza go em modo de neutralidade, um fen6meno que parece estar a operar-se em coexistncia corn o sistema V-T estabe- lecido. Esta coexist6ncia torna-se manifes- ta ao fazer-se um exame sincr6nico das di- ferentes Areas de lingua portuguesa na se- gunda metade do s6culo XX, que permita obter uma visao global de aspectos signifi- cativos quanto 'a presente fase de evoluCdo da lingua no que respeita 'as formas de tra- tamento e a segunda pessoa gramatical.

Retratando a vida nos musseques da pe- riferia da capital angolana, Luandino Vieira apresenta diilogos como o seguinte extrai- do de "Est6ria do ladrao e do papagaio," que escreveu em 1963, no qual, na esquadra da policia, Dosreis recebe acusa6oes e procu- ra defender-se:

-Voch bs bandido, nao 6? -Bandido nio sou, nio senhor! --Cala-te a boca mas 6! Voch 6 bandido... Vamos. (Luuanda 57)

Nesta troca de palavras, temos um contras- te em que a autoridade 6 tratada em V, por

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UMA TEORIA DE INTERPRETA(AO DAS FORMAS DE TRATAMENTO NA LINGUA PORTUGUESA 455

Quadro 1: Formas de Tratamento da Lingua Portuguesa no Limiar do Seculo XX

=> = resultando em

Forma de Tratamento Modo de Neutralidade (potencial/latente)

Dirigida a um receptor individual: Esfera V

v6s + verbo 2-

p.pl. (arcaizante)

ou suj. nom. sing. + verbo

3- p. sing. => verbo 3a p. sing.

Esfera T tu + verbo

2- p.sing.

ou suj. nom. sing. + verbo

3- p. sing. => verbo

3- p. sing.

Dirigida a um receptor colectivo: Esfera V

v6s + verbo 2-

p.pl. (pratica reduzida)

ou suj. nom. pl. + verbo

3- p. pl. => verbo

3- p. pl.

Esfera T v6s + verbo

2- p.pl.

(pratica reduzida) ou

suj. nom. pl. + verbo

3- p. pl. =>_1 verbo

3- p. pl.

Ilustrando o conteddo do Quadro 1 com exemplos extraidos do verbo chamar, obtem-se o seguinte:

Forma de Tratamento Modo de Neutralidade (potencial/latente)

Dirigida a um receptor individual: V: (v6s + chamais)

suj. nom. + chama => chama T: tu + chamas

suj. nom. + chama => chama

Dirigida a um receptor colectivo: V: (v6s + chamais)

suj. nom. + chamam => chamam T: (v6s + chamais)

suj. nom. + chamam => chamam

senhor, e o acusado 6 tratado em T, numa mistura de paradigmas, o de tu (as; -te) e o do sujeito nominal (voce, e). Se, nesta coli- sdo de elementos morfol6gicos T, um paradigma vier a eliminar o outro, a versio nominal parece encontrar-se em melhores condi?kes para vencer, ancorada como est~i na desinencia verbal comum a V-T. Numa

posi?do mais isolada, e, portanto, mais vul- nerivel, tu pode vir a ser desviado para um papel secundirio, reduzido a uma configu- radio obliqua de pronome objecto (-te), re- alizadio que frequentemente se ouve no Brasil.

Retratando cenas familiares em que mui- to est~ presente da vida urbana do Rio de

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Janeiro, Clarice Lispector apresenta-nos a dualidade V-T servida por o senhor/a senho- ra em confronto com vock. Inserido numa colectanea que foi publicada em 1960, o conto "Comegos de uma fortuna," mostra- -nos o jovem Artur, seu pai e sua mae, que, reunidos a mesa para a primeira refeiC;o do dia, falam entre si: -Ora a senhora diz que na mesa ndo se fala, ora quer que eu fale, ora diz que ndo se fala comrn a boca cheia, ora... -Olhe o modo como voce fala com sua mde, disse o pai com severidade.... -Coma mais batata, Artur, tentou a mde.... (Lagos 129)

Como se ve neste exemplo, a oeste do Atlan- tico voce goza de uma aceitadio que ihe permite funcionar confortavelmente no ambito domestico e familiar, o que nem sempre consegue a leste do mesmo ocea- no. No entanto, sera dificil que voce possa servir uma fun;to de relacionamento neu- tro, pois encontra-se no extremo inferior do binairio V-T (Cook 1995).

Numa narrativa que saiu ao pfiblico em 1984, Jos6 Saramago localiza a acCqo em Lisboa, onde vemos um obsequioso geren- te de hotel dirigindo-se ao h6spede que aca- ba de chegar: "...0 meu nome 6 Salvador, sou o responsavel do hotel, o gerente, pre- cisando o senhor doutor de qualquer coisa, s6 tem que me dizer...." (Ano 21). De novo deparamos com o binario V-T, implicito mais do que expresso neste iltimo exem- plo que reflecte em certa medida a situaCdo em Portugal. Verifica-se neste pais uma acentuada preferencia pela omissdo do denotador de sujeito nominal. Vejamos exemplos da imprensa portuguesa dos iilti- mos anos extraidos de entrevistas que t~m aparecido em jornais e peri6dicos com di- versa clientela. O presidente de um dos principais grupos industriaias do pais 6 con- vidado a expressar a sua opiniao sobre a politica econ6mica do governo: "Concorda com as orienta.Les macroecon6micas que tim sido impostas por este governo ?" 1 Um advogado que trabalha para um dos maio- res grupos financeiros nacionais 6 interro- gado a respeito da sua carreira profissional: "Tambkm foi professor no ensino superior?'"

Um editor e livreiro 6 incitado a fornecer informaCdo sobre uma nova loja de venda ao piblico: "Como explica a polemica em torno dos convites para a inauguragdo da livraria?" 3 Um poeta recebe encorajamento para falar sobre a sua obra: 'Adoptou um pseud6nimo para ter mais liberdade de escri- ta?"4 A um actor c6mico da televisdo brasi- leira sdo feitas perguntas sobre a sua visita e trabalho em Portugal: "Hd quanto tempo estd em Lisboa?" 5 A ausencia de denotador do sujeito 6 feiCdo comum a todos estes exemplos.

Brown e Gilman (1960) consideram uma segunda fase de desenvolvimento nas lin- guas de formadio europeia a qual interpre- tam a luz de um fen6meno de evoluCdo so- cial. A partir do final do s6culo XIX tem-se dado uma esp6cie de democratizagio das formas de tratamento, a medida que certas sociedades se tem tornado mais igualitairi- as. Ocorreu assim um desvio do elemento poder para o elemento solidariedade como determinante principal de escolha, enten- dendo-se por solidariedade a afinidade par- tilhada por grupos de individuos com base em elos de familia ou de amizade ou de iden- tidade associativa. Considerando um forma- to binario de opg6es, aqueles autores identificam uma evoluCdo em que a nova tendencia consiste no uso reciproco de V com estranhos e no uso reciproco de T den- tro do circulo da solidariedade, nao obstante a posiCdo social relativa dos interlocutores, tendo passado a haver pou- ca exibikio de poder atrav6s de uso ndo re- ciproco de forma de tratamento. A tenden- cia para um decr6scimo de exibiC;o de po- der atrav6s do uso ndo reciproco de forma de tratamento 6 observivel tamb6m na lin- gua portuguesa. Simplesmente neste caso o fen6meno de mudanga tem como princi- pal veiculo de concretizaCdo a forma de neu- tralidade.

O Quadro 2 apresenta o panorama geral das formas de tratamento do portuguis no fim do s6culo XX, mostrando, em relaCo ao quadro anterior, uma redu~o de f6rmulas que faculta a efectivaCo da forma de neu- tralidade.

A observaCao do quadro e dos exemplos

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UMA TEORIA DE INTERPRETA(AO DAS FORMAS DE TRATAMENTO NA LINGUA PORTUGUESA 457

Quadro 2: Formas de Tratamento na Lingua Portuguesa no Fim do Seculo XX

=> = resultando em

Forma de Tratamento Modo de Neutralidade (efectivo)

Dirigida a um receptor individual: Esfera V

suj. nom. sing. + verbo 3" p. sing. => verbo 3? p. sing.

Esfera T tu + verbo 24 p.sing.

(enfraquecido) ou

suj. nom. sing. + verbo 3? p. sing. => verbo 3? p. sing.

Dirigida a um receptor colectivo: Esfera V

suj. nom. pl. + verbo 3? p. pl. => verbo 3? p. pl.

Esfera T suj. nom. pl. + verbo 3? p. pl. => verbo 3" p. pl.

Ilustrando o conteudo do Quadro 2 com exemplos extraidos do verbo chamar, obtem-se o seguinte:

Forma de Tratamento Modo de Neutralidade (efectivo)

Dirigida a um receptor individual: V: suj. nom. + chama => chama T: tu + chamas

suj. nom. + chama => chama

Dirigida a um receptor colectivo: V: suj. nom. + chamam => chamam T: suj. nom. + chamam => chamam

acima apresentados revela o desapareci- mento de v6s. De facto, dos dois paradigmas tradicionais da segunda pessoa que datam da formaCdo da lingua portuguesa, a segun- da pessoa plural V vds est~ praticamente extinta na lingua padrao, embora sobrevi- vendo em areas geogrificas e sectores de aplicaCdo limitados; a segunda pessoa sin- gular T tu tem persistido, principalmente no lado oriental do Atlhntico, onde e a primei- ra opdo de forma de tratamento dirigido a crianpas e para expressao de intimidade. A opdo tu subsiste, porem, como tinica ex- ceppdo a tend ncia geral para a pritica do sintagma sujeito nominal + verbo na tercei- ra pessoa, este com a permanente possibi-

lidade de converter-se em modo de neutra- lidade, socialmente, de aplicaqdo generica.

O oscilar da balanpa a favor do sintagma sujeito nominal + verbo na terceira pessoa torna-se particularmente significativo quan- do visto em termos demogrificos. E hoje em dia a f6rmula preferida em quase todo o Brasil, um pais com mais de cento e cin- quenta milh6es de habitantes e a maior con- centraCdo de falantes de portuguis, para cuja totalidade a espapo universal se faz uma estimativa de aproximadamente du- zentos milh6es de individuos. Curiosamen- te, talvez nao seja no Brasil que se nota uma tendencia mais acentuada para a queda do denotador de sujeito deixando o verbo em

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forma de neutralidade. No Brasil a dicotomia entre os denotadores vocd e o se- nhor/a senhora esta bem definida (Jensen 47). Em Portugal, uma zona do mundo de lingua portuguesa, onde o contraste ndo e tao acentuado, tem vindo a acentuar-se a pritica de neutralidade.

(B) Esquema de InterpretaCdo das Formas de Tratamento

Ao procurar-se um esquema de interpre- tagdo para as formas de tratamento em por- tugues, um aspecto fundamental a ter em conta e o facto de ser possivel subtrair a produgdo social de sentido V-T atraves da omiss~o do denotador de sujeito. Trata-se de um fen6meno que excede os limites da teorizaCdo de Brown e Gilman. Focalizando um formato binairio de escolhas V e T, o modelo e insuficiente para o caso portu- gues, onde tambem estai em causa uma di- mensao de neutralidade. O modelo de Brown e Gilman e um ritil instrumento de andlise em reladio ao primeiro periodo que considera, ate fins do seculo passado, em que o contexto social de realizaCdo das for- mas de tratamento era de rigida estratifica- gdo e hierarquizaCdo social, mas encontra os seus limites quando se procuram anali- sar as formas de tratamento num contexto social com uma mais ampla margem para negociaqdo de modo de interrelacionamento.

Um aspecto importante a considerar e a ambivalkncia das mensagens de sentido social que as formas de tratamento podem transmitir e a dificuldade em conciliar essa ambivalkncia com o postulado de Brown e Gilman, de que em sociedades mais iguali- tirias se verifica uma redugho do factor po- der e a tendencia e para T ser usado no cir- culo da solidariedade e V com estranhos. Como vimos para voce, uma forma T pode ser portadora tanto de solidariedade positi- va como negativa. Tamb~m tu, geralmente associado a solidariedade positiva, pode ser veiculo de uma intengo patronizante de solidariedade negativa. De facto, em muitas sociedades se pratica o uso de uma mesma forma de tratamento tanto para sinal de in- timidade como para instrumento de contro-

lo em afirmaCao de ascend ncia (por ex. Chaika). Do mesmo modo, estrategias V podem ter grada?6es varias no campo da solidariedade, pois a cortesia e um eixo de dois p6los, um positivo e outro negativo, como demonstrado por Brown e Levinson (1978, 1987). Em consequincia, o estreita- mento de distincia social das opp6es T pode expressar afeiCdo ou intromissdo insultuo- sa; enquanto que o distanciamento social em V pode expressar respeito ou cortesia mas pode tambem insinuar exclusdo, e o uso de uma opCdo V inapropriada pode ser- vir a intenCdo de ofender. Numa lingua com a riqueza semAntica de um sujeito nominal, como se verifica em portugu s, haveri ain- da uma maior variedade de matizes possi- veis tanto em T como em V para realiza?6es simrtricas e assimetricas de relacionamen- to. Esta variedade esti documentada no estudo em que Head (1976) identifica no Brasil diferentes padr6es de interrelaciona- mento para diadas e grupos incluindo ami- gos e estranhos, diferentes gera?6es dentro e fora do circulo familiar, discentes e docen- tes, empregados e representantes da enti- dade patronal (Head 307-34). Finalmente, podem adicionar-se as possibilidades ofere- cidas por elementos paralinguisticos, tais como entoaCdo ou volume de voz, ou ainda meios de comunicapao extra-verbal, tais como jogo fision6mico e gesticula~go, am- bos, alias, com aplicago a qualquer lingua.

A redugho de poder em favor de solida- riedade identificada por Brown e Gilman sera, portanto, melhor interpretada como redugho de aceitabilidade de meios de ex- pressdo gramaticalmente estabelecidos para um relacionamento de disreciprocida- de, pois o exercicio de poder e' uma cons- tante em qualquer sociedade. O poder em si e um fen6meno que s6 existe em termos de relacionamento e consegue reificar-se6 apenas na medida em que se repetem e re- produzem pontos de fixaiAo que mantim uma rede de linhas de forga; o abandona- mento ou afrouxamento dos pontos de fixaCo tende a resultar no aparecimento de uma nova rede de linhas de forga e outra reificago de poder (Clegg 57-93). O aban- donamento ou afrouxamento do uso nao

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reciproco V-T encorajara uma mais intensa exploraCdo de ambival ncias na mensagem semi6tica em meios directos e indirectos de obter novas reifica?6es de poder. Em contrapartida, a presenpa do elemento de solidariedade permitiri uma neutralizaCdo relativa de excessos de fixaCdo de linhas de forpa e reificaCdo de poder.

O modelo de Brown e Gilman tem sido visto como est~tico e falhando quanto a flexibilidade de sentido interaccional (por ex. Oliveira), pois nao se pode ignorar o uso de formas de tratamento em negociadio de relacionamento (Scotton). A necessidade de considerar este aspecto 6 tanto mais pre- mente quanto a sociedade for uma de ten- d ncia igualitaria. Quanto menos se prede- terminar a posigdo social relativa de cada individuo, mais amplamente se forma uma area de negociaCdo. No processo, como vi- mos, tanto f6rmulas T como V podem ser apropriadas como instrumento de disreci- procidade de modo de tratamento. E em lin- guas onde existem mecanismos linguisticos para uma dimensao de neutralidade, estes fornecem um palco onde os protagonistas podem negociar posi?6es de relacionamen- to.

Identificados os requisitos necessarios num esquema te6rico de interpretadio para as formas de tratamento propie-se neste ensaio um modelo que tem em vista o caso especifico da lingua portuguesa mas que podera encontrar aplicadgo mais larga, abrangendo outras linguas modernas de formaqdo europeia. Considera-se uma di- mensdo T, para o ndo-cerimonioso e infor- mal, uma V, para o cerimonioso e formal, e uma N, de neutralidade. Estas dimensies correspondem as linhas de forga Aproxima- gdo e Afastamento com uma posiCdo inter- m6dia de Imparcialidade. Os elementos poder e solidariedade sao factores que so- cialmente actuam nas linhas de forpa de Aproxima ko e Afastamento e tamb6m na faixa de Imparcialidade, e que linguistica- mente influenciam a escolha de entre as oppies disponiveis em T, V e N.

O modelo de interpretago de formas de tratamento aqui proposto considera dois contextos sociais diferenciados, um de

estratificaCpo vinculativa (I) e um de estratificaCdo nao-vinculativa (II). No con- texto de estratificaCdo vinculativa a forma de tratamento classifica o individuo de acor- do com a posiCdo que o mesmo ocupa na ordem hierirquica vigente. No contexto de estratificaCdo nao-vinculativa a forma de tra- tamento nao 6 necessariamente indicativa de classificaCdo hierrrquica.

I - Num contexto social de estratificaCdo vinculativa, com formas de tratamento estabelecidas dentro de uma oposiCdo bind- ria V-T, o poder encontra em formas linguis- ticas fixadas um veiculo legitimado de reificaCdo em modo de relacionamento nao- -reciproco. Consideram-se:

* sociedades em pr6-democratizadio * colectividades com estrutura organizacio- nal baseada em graduaCdo de autoridade, e.g., as forpas armadas

Entre superiores e inferiores o factor poder sobrep6e-se ao factor solidariedade, verticalmente com sentido descendente (AproximaCdo) e ascendente (Afastamen- to). Solidariedade positiva corresponder~ a coincid6ncia de intengdo com os deveres de subordinagdo e superordinapao apontados pelas f6rmulas linguisticas V e T. Solidarie- dade negativa correspondera a resist6ncia e subversdo exercidas atrav6s do uso ambivalente de V ou T, o que sera efectua- do velada, mais do que abertamente. Entre iguais o factor poder 6 tamb6m aceite como determinante de relacionamento mas com uma direcqdo horizontal. Membros de cada camada diferenciada da hierarquia usarao reciprocidade de forma de tratamento; pode ser em V se nas camadas mais altas, ou em T nas mais baixas (claro que os inferiores num escaldo mais alto serao os superiores do escalho imediatamente abaixo).

Solidariedade positiva entre iguais mani- festa-se, portanto, no reconhecimento de identidade comum dentro da faixa partilha- da na escala do poder; solidariedade nega- tiva corresponderd t falta desse reconheci- mento. E uma forma N existirn mais em pot6ncia do que em efectivaCo. Num siste- ma dualista de interrelacionamento huma-

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Figura 1: Modelo de InterpretaCdo de Formas de Tratamento

I - Contexto social estratificago vinculativa

V Superiores (

V

Superiores N

a a p f r a O S x t i T N V a m m a e Sn

t o 0 r o -4 N

Inferiores - Inferiores (V)/T

II - Contexto social de estratificap o nio-vinculativa

Superiores h V/T ) Superiores

N iA A

a m a p ( p , f r a a o r s x c t i T N i N V a m a m a e

i n d t

I0 a d

V Ye

N

Inferiores ( V Inferiores

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UMA TEORIA DE INTERPRETA;AO DAS FORMAS DE TRATAMENTO NA LINGUA PORTUGUESA 461

no ha' pouca latitude para a formaCdo de uma f6rmula linguistica de mensagem so- cial neutra, a qual correria o risco de ser percepcionada como manifestaCdo de soli- dariedade negativa. Entre iguais poderia ser vista como supressao de solidariedade; en- tre classes diferente na hierarquia, da socie- dade em geral ou de uma instituigdo espe- cifica, poderia ser vista como evasdo a, ou rebeldia contra, a ordem estabelecida.

II - Num contexto de estratificaCdo nao- -vinculativa a oposigao binairia V-T nao fun- ciona necessariamente como um sistema institucionalizado de apoio e reforgo a nivel linguistico de linhas de forpa na reificaCdo de poder, mas aceita-se que funcione tam- bem como instrumento com que se podem negociar e re-negociar identidades sociais e pessoais. Consideram-se:

* sociedades democratizadas * colectividades com estrutura organizacio- nal de orientagio igualitAria (profissional, associativa ou outra)

Encontra-se uma maior flexibilidade de interpretadio no que respeita a relapses

de superioridade, inferioridade e igualdade entre diferentes individuos, e a categoria social de cada um nao permanece garanti- da ou rigidamente imposta, mas ajusta-se ao contexto de actuaCdo, numa maior mobili- dade de fixa~go de pontos de linha de for- pa. Como tal, a par dos eixos de Aproxima- ?do e de Afastamento do esquema V-T, exis- te um posicionamento de Imparcialidade que corresponde a uma predisposi~go para um modo de tratamento N. A disponibilida- de de mecanismos linguisticos que sirvam esta modalidade conduz ta criaCdo de uma plataforma em que os interlocutores tem o ensejo de encontrar uma definiCdo de rela- cionamento. Uma dimensao N circula, as- sim, tanto horizontal como verticalmente, em ambos os sentidos, e paralelamente zs oppes V e T, ts quais se recorre para jogo de pap&is assumidos e/ou relaC:es negoci- adas. O processo de escolha implica urma correlaCio dinimica entre V, T e N.

A escolha efectuada apresenta vwrios padries de concretizaCao. Tomemos o caso

de dois individuos amigos de infincia que se tratam em T mas que na vida profissional sdo colegas desempenhando altos cargos, por exemplo, ministros que numa reuniao de gabinete se tratam em V. Ou tomemos o caso de dois individuos que travam conhe- cimento e, evitando escolha V ou T, iniciam contacto em N, mas, ao descobrirem a sua afiliaCio comum a uma mesma ideologia, ou a um mesmo clube desportivo, passam a tratar-se em T. No primeiro exemplo ha uma deslocaCdo entre alternativas V e T; no segundo, uma deslocado de N para uma das alternativas na relaCdo V-T. No primei- ro, a transferencia de modalidade e deter- minada pelo factor externo do cenairio profissional; no segundo, pelo factor subjec- tivo da percepCdo de afinidade. No primei- ro, o relacionamento processa-se em duas modalidades diferentes que se alternam; no segundo, o relacionamento recebeu uma deslocaCdo de modalidade de caraicter per- manente. Em ambos se manifesta solidari- edade positiva, em termos de igualdade, antes e depois de efectivada a deslocaCdo. No entanto, no primeiro exemplo, quando colocada numa estrutura hierairquica, a diada funciona em termos de igualdade en- tre superiores; no segundo exemplo, a diada funciona desenquadrada de uma estrutura hierirquica, mas um enquadramento em tal cenirio resultara numa situaqdo id ntica a do primeiro, ou numa de igualdade entre inferiores, ou numa de desigualdade.

Podem tambrm verificar-se desloca?6es entre enunciados em termos de igualdade e desigualdade. Encontra-se um exemplo na situaCdo de dois familiares ou amigos inti- mos que tabalham na mesma empresa de- sempenhando cargos a niveis diferentes da hierarquia interna. Tratam-se reciproca- mente em T, quando se relacionam no am- biente de intimidade, mas tratam-se em dis- reciprocidade V-T - talvez ocasionalmente em N - quando se relacionam no local de trabalho. A deslocaao de T para V-T 6 mo- tivada pelos condicionalismos do cenirio profissional. Uma outra situaaio encontra- -se em, por exemplo, amigos do tempo de escola, num determinado periodo tratando- -se reciprocamente em T, que perderam

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contacto e voltam a encontrar-se na vida adulta numa mesma empresa mas desem- penhando cargos a niveis diferentes da hi- erarquia interna, onde se tratam em disre- ciprocidade V-T. Se o factor poder nao do- minar, o factor solidariedade influenciara uma tend ncia para reatar velhos lagos fora do cen'rio de trabalho. No regresso da dis- reciprocidade V-T a igualdade T, a faixa de Imparcialidade constitui o fulcro da mudan- pa real no primeiro exemplo e da possivel mudanga no segundo. No primeiro, o im- pacto de solidariedade positiva canaliza para T reciproco. No segundo, o grau de solida- riedade determinara se seraf possivel chegar a reciprocidade em T, ficar em N, ou talvez nem isso. Em ambos os casos uma concre- tizagdo em T colocarai a diada num mesmo estrato de superioridade ou inferioridade comum a ambos os individuos nao em rela- gdo ao enquadramento profissional mas em relaCdo a outros enquadramentos em que se inserem.

Outros padr6es de concretizagdo sdo possiveis na alternincia de opp5es V, T e N. A possibilidade de negociado permite aco- modar tentativas de supremacia e, como resposta, aquiesc ncia ou resist ncia. Con- sideremos o empregado de restaurante que se dirige em V a uns clientes que acabam de entrar. Estes decidem retorquir em T. O empregado pode aquiescer, aceitando a acentuada falta de reciprocidade, e continu- ar a usar V; pode retirar V e passar a N; pode ousar T. Neste exemplo hai um conflito de fixaCdo de pontos de linhas de forpa. No processo, N e a plataforma em que os interlocutores podem reagir a excessos de aplicado do dualismo V-T e onde tambem se podem subtrair ao dualismo V-T e apro- veitar o ensejo para reverem as respectivas tomadas de posigio. A correlaCdo dinimica entre V, T e N apresenta-se, pois, como um meio de construgo de identidade e jogo de pap~is, este permitindo tanto assumir como negociar aquela. A parte II do modelo- correspondendo a um contexto social de estratificaCgo nao-vinculativa-apresenta, por conseguinte, uma versatilidade que pode associar-se a uma evolugho diacr6ni- ca masque pode tamb~m coexistir sincro-

nicamente com a situaCdo apresentada na parte I do modelo-que corresponde a um contexto social de estratificaCdo vinculativa. Simultaneidade de perspectivas existirf nao s6 entre sociedades geogrdfica e politica- mente diferenciadas mas tambem dentro de uma mesma colectividade nacional e outras comunidades de compartilhada afinidade cultural. A constante influ ncia mfitua das duas tendincias representadas em I e II provoca uma dinimica de interacqo conti- nua que, por um lado, permite equilibrio de forgas, e, por outro, convida a uma dialkctica de mudanpa rumo a possiveis futuras fases de evolugho.

Em conclusao, identificam-se nos modos de tratamento duas perspectivas distintas, que se podem representar em termos de uma dualidade simbolizada em V-T para, respectivamente, o cerimonioso e o nao- -cerimonioso, onde as oppses tomadas por interlocutores sao influenciadas pelos fac- tores poder e solidariedade. O binario V-T era o sistema dominante em sociedades do passado e subsiste, em geral com maior flexibilidade de uso, nas sociedades actuais. Uma outra perspectiva de relacionamento e tambem identificada, um modo de neutra- lidade em que N coexiste com V-T, permi- tindo que se evite uma tomada de posiCdo dentro do sistema binario.

No portugu s moderno a dualidade V-T e servida principalmente por um sintagma no qual um denotador de sujeito substanti- vo confere uma riqueza semantica que re- sulta em miiltiplas subtilezas de projecqao de sentido social. Por sua vez, a omissao desse mesmo denotador permite um rela- cionamento em N. O potencial para uma dimensao de neutralidade tem, assim, exis- tido na lingua portuguesa desde a introdu- 9o ha centenas de anos da pritica do su- jeito nominal, embora ao tempo com limi- tada oportunidade de expansio numa socie- dade rigidamente hierarquizada com postu- ras de interrelacionamento bem definidas. Hoje em dia, portm, a forma N goza de uma realizaCo mais livre em contextos sociais de estratifica~o nao-vinculativa, onde exis- te margem para um posicionamento de im- parcialidade entre interlocutores.

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Prop6s-se, consequentemente, neste ensaio um modelo teoretico de interpreta- gdo para as formas de tratamento que con- sidera tanto o modo N como a dualidade V- T, e nesta o significado de projecqdo social das opp6es disponiveis. A exist ncia, laten- te e efectiva, de N e considerada tanto de um ponto de vista diacr6nico como sincr6nico, bem como a sua coexistencia com V-T e respectiva interacqdo. Num con- texto social altamente estruturado as f6rmu- las V-T apoiam pontos de fixaCdo de poder j~ existentes em disreciprocidade de relaci- onamento. Num contexto social mais aber- to as opp6es V-T sao instrumento de jogo de papeis em que pontos de fixaCdo de linhas de forpa se reveem, modos de relaciona- mento se negociam e identidades se defi- nem; e onde N fornece um palco em que os papeis melhor se desempenham. Estas di- ferentes facetas sao tomadas em conta no presente modelo, o qual foi concebido especificamente para a lingua portuguesa mas que podera receber uso mais vasto em aplicago a outras linguas em geral.

A aplicaCao generalizada deste modelo torna-se possivel devido a sua duplicidade de perspectiva~go analitica. Por um lado, focaliza a orientaCdo comunicativa do emis- sor para com o receptor, bem como a dina- mica transacional entre interlocutores. Por outro lado, focaliza a gama de instrumentos linguisticos disponiveis para modo de trata- mento. A primeira vertente de andlise toma em conta tres graus de distincia no proces- so de relacionamento. Considera um senti- do de aproximaCdo quando o emissor actua no receptor, exercendo direito de autorida- de ou outro tipo de influincia. Considera, pelo contrfrio, um sentido de afastamento, quando ha parte do emissor um movimen- to retr6grado, um auto-rebaixamento por motivo de respeito, receio ou outro. Consi- dera ainda uma zona intermrdia de impar- cialidade em que o emissor aparenta tanto desinteresse em influir no receptor como aus~ncia de sentimento de subalternidade em relaCo ao mesmo. A segunda vertente de anilise diz respeito as opp6es que exis- temrn dentro da lingua em questao para as modalidades V, T e N, isto 6, para aborda-

gem cerimoniosa, nao-cerimoniosa ou, sim- plesmente, neutra. Finalmente, e no ambi- to dos limites de efectivaCdo destes dois grupos de variaveis, e nos seus pontos de intercepCdo, que se analisa cada acto singu- lar de forma de tratamento.

presenta-se, portanto, um esquema interpretativo de formas de trata- mento que oferece versatilidade de

pr~tica bem como precisao analitica. Num contexto social de estratificaCdo vinculativa - que se encontra em sociedades em fase pre-democratica e em colectividades tais como as forpas armadas - o ponto de parti- da de andlise mais conveniente sera a f6r- mula linguistica usada dentro do contraste V-T, passando-se depois a investigagdo da presenpa, ou falta, de concordancia dessa f6rmula com a intenCdo socialmente legiti- mada para que ela aponta com respeito a deveres de subordinagdo e superordinapio. Diferentemente, num contexto de estratifi- caCdo nao-vinculativa - em sociedades e co- lectividades de indole democrntica - poder- se-a ter como ponto de partida de andlise o pressuposto da existencia de um campo aberto para negociaCdo de identidade soci- al e pessoal. Passar-se-a entao a investigar a manipulaCdo do elemento linguistico se- leccionado de entre as possibilidades N-V- T que existam no idioma em estudo. Trata- se, pois, de um modelo teoretico de inves- tigai0o de formas de tratamento que com- bina directrizes de interpretaCdo com flexibilidade de mrtodo de andlise, permi- tindo assim que cada caso individual se pa- tenteie na complexidade multifacetada do seu potencial e seja sondado na sua especi- ficidade linguistica e contextual de concre- tizaCdo.

* NOTAS

1Entrevista com Jorge Rocha de Matos. Exame (Novembro 1993): 30.

2Entrevista com Augusto de Athayde. Old Sema- ndrio (14 Maio 1994): 11.

3Entrevista com Francisco Paulo. JLJornal de Le- tras Artes e Ideias. (6 Julho 1994): 13.

4Entrevista com Ant6nio Gededo. PFzblico Magazi- ne. (10 Julho 1994): 21.

5Entrevista com Agildo Ribeiro. Gente Nova. (1 Margo 1995): 11.

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6Reificar-coisificar, realizar, substantivar (Dicio- ndrio de Sin6nimos 945); transformar, por operaCdo mental, conceitos abstractos em realidades concretas, em objectos (Diciondrio da Lingua Portuguesa 1541). Alhm da sua aplicado mais generica, este termo 6 hoje em dia usado com respeito ao tema das rela?6es de poder no campo da sociologia e da sociolinguistica.

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