Filme- Os Naradores de Javé

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- Os narradores de Javé Ficha Técnica Título Original: Narradores de Javé Gênero: Comédia Duração: 100 min. Lançamento (Brasil): 2003 Distribuição: Lumière e Riofilme Direção: Eliane Caffé Roteiro: Luiz Alberto de Abreu e Eliane Caffé Produção: Vânia Catani e Bananeira Filmes Co-Produção: Gullane Filmes e Laterit Productions Música: DJ Dolores e Orquestra Santa Massa Som: Romeu Quinto Fotografia: Hugo Kovensky Direção de Arte: Carla Caffé Figurinista: Cris Camargo Letreiros: Carla Caffé e Rafael Terpins Edição: Daniel Rezende Elenco José Dumont (Antonio Biá) Matheus Nachtergaele (Souza) Nélson Dantas (Vicentino) Rui Resende Gero Camilo (Firmino) Luci Pereira Nelson Xavier (Zaqueu) Jorge Humberto e Santos Altair Lima (Galdério) Alessandro Azevedo (Daniel) Henrique (Cirilo) Maurício Tizumba (Samuel) Orlando Vieira (Gêmeo) Roger Avanzi (Outro) Narradores de Javé, um filme sobre memória, História e exclusão Direção Eliane Caffé, 2004, Brasil. Por Marta Kanashiro Se fosse possível colocar uma trilha sonora para esta resenha do filme Narradores de Javé certamente ela não poderia ter a cadência dramática e sóbria que em geral é usada em filmes sobre o sertão nordestino. A sutileza, as ironias e os momentos tragicômicos de Narradores de Javé podem mesmo ser embalados pelo som eletrônico-regional-pulsante de DJ

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- Os narradores de Javé

Ficha Técnica

Título Original: Narradores de JavéGênero: ComédiaDuração: 100 min.Lançamento (Brasil): 2003Distribuição: Lumière e RiofilmeDireção: Eliane CafféRoteiro: Luiz Alberto de Abreu e Eliane CafféProdução: Vânia Catani e Bananeira FilmesCo-Produção: Gullane Filmes e Laterit Productions Música: DJ Dolores e Orquestra Santa MassaSom: Romeu Quinto Fotografia: Hugo KovenskyDireção de Arte: Carla CafféFigurinista: Cris CamargoLetreiros: Carla Caffé e Rafael TerpinsEdição: Daniel Rezende

Elenco

José Dumont (Antonio Biá)Matheus Nachtergaele (Souza)Nélson Dantas (Vicentino)Rui ResendeGero Camilo (Firmino)Luci Pereira Nelson Xavier (Zaqueu)Jorge Humberto e Santos Altair Lima (Galdério)Alessandro Azevedo (Daniel)Henrique (Cirilo)Maurício Tizumba (Samuel)Orlando Vieira (Gêmeo)Roger Avanzi (Outro)

Narradores de Javé, um filme sobre memória, História e exclusãoDireção Eliane Caffé, 2004, Brasil.

Por Marta Kanashiro

Se fosse possível colocar uma trilha sonora para esta resenha do filme Narradores de Javé certamente ela não poderia ter a cadência dramática e sóbria que em geral é usada em filmes sobre o sertão nordestino. A sutileza, as ironias e os momentos tragicômicos de Narradores de Javé só podem mesmo ser embalados pelo som eletrônico-regional-pulsante de DJ Dolores, responsável pela trilha sonora do filme. É nesse clima que se dá abertura para o espectador vislumbrar a importância dos sujeitos na História e as soluções e saídas para o sofrimento do sertão.

O longa, dirigido por Eliane Caffé, reúne tantos elementos interessantes para discussão, que é difícil eleger os que devem ocupar o espaço de uma resenha. Além disso, os oito prêmios recebidos pelo filme apontam a qualidade com que foram

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abordados esses elementos. Muitos temas relacionados com a História estão presentes: a história oral, a oficial, sua cientificidade, o limiar com a literatura, o vídeo e o próprio cinema, diferentes suportes para a História, diferentes olhares e intercâmbios, a busca de uma "verdade", teoria e método. Esse segundo filme da cineasta (o primeiro foi Kenoma-1998), trata de um povoado fictício (Javé), que está prestes a ser inundado para a construção de uma hidrelétrica. Para mudar esse rumo, os moradores de Javé resolvem escrever sua história e tentar transformar o local em patrimônio histórico a ser preservado. O único adulto alfabetizado de Javé, Antônio Biá (José Dumont) é o incumbido de recuperar a história e transpor para o papel de forma "científica" as memórias dos moradores.

Ironicamente, Biá, que havia sido expulso da cidade por inventar fofocas escritas sobre os moradores, é o escolhido para escrever o "livro da salvação", como eles mesmos chamam. O artifício de "florear" e inventar fatos locais já era usado pela personagem para aumentar a circulação de cartas, obviamente escassas no povoado, e manter em funcionamento a agência de correio onde ele trabalha. Escrever a história de Javé e salvá-la do afogamento é sua oportunidade de se redimir. E a redenção parece ter que se dar justamente aflorando seu lado mais condenável. "Bendita Geni", pois é justamente a capacidade de Biá de aumentar as histórias que traz à tona o papel do historiador interferindo na História, reunindo relatos, selecionando-os, conectando-os de forma compreensível.

Na coleta do primeiro relato "javélico", Biá diz à sua "fonte": "uma coisa é o fato acontecido, outra é o fato escrito". Esse pequeno conjunto de elementos já é suficiente para apontar a isenção e a imparcialidade impossíveis à História e ao historiador. O filme se desenrola com a difícil tarefa para Biá: reunir uma história a partir de cinco versões diferentes - uma multiplicidade de fragmentos, memórias incompatíveis entre si. O personagem se vê entre essa impossibilidade e um futuro/progresso destruidor e irremediável.

Nas várias versões os heróis são alterados conforme o narrador. Assim, na versão relatada por uma mulher do povoado, a grande heroína entre os fundadores de Javé é Maria Dina. Na versão de um morador negro, o herói principal também é negro e chama-se Indalêo. Assim, ao mesmo tempo que o filme nos diz da interferência do narrador na história, também fala sobre os excluídos da "história oficial" (a dos livros didáticos).

Na narração sobre Indalêo surge a oralidade da memória - como praticada por culturas milenares. O narrador negro canta a história em seu dialeto africano, quase num êxtase profético, que nos remete tanto aos gregos como aos xamãs. As divisas

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cantadas, que são as fronteiras de Javé pronunciadas em canto, também são um outro exemplo da aparição desse elemento no filme. O canto demarca uma terra (Javé), que está sendo disputada, e é o canto que legitima sua posse, não um documento escrito. Da mesma forma, são as versões orais que podem tornar esse espaço de terra patrimônio histórico. De forma sintética, todo o filme fala de uma disputa entre a história oficial e aqueles excluídos dessa história, assim como, entre a oralidade e a escrita.

Em outro momento, uma das moradoras de Javé argumenta perante uma câmera digital que a hidrelétrica não poderia ser construída lá onde estavam enterrados seus antepassados e seus filhos que morreram. Eles não poderiam ficar embaixo d'água. De forma sutil, a cena introduz no filme essa questão fundamental do patrimônio imaterial, a cultura, e os laços diversos que podem existir com um pedaço de terra. A cena remete ao filme de Werner Herzog, "Onde sonham as formigas verdes" (1983), no qual também trava-se uma disputa em torno de uma área de terra. No caso, uma tribo aborígene defende a sacralidade da terra onde estão seus antepassados e onde sonham as formigas verdes, diante da construção de uma companhia de mineração; uma representação dos avanços da sociedade branca, industrial. A problemática da destruição de um grupo étnico, sua memória, cultura, religião, modo de vida, é uma história bem comum nesses nossos 500 anos, e o filme de Eliane Caffé também se destaca por essa inclusão.

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso". (Benjamin 1985:226).

Entre a multiplicidade de versões que ecoam em seus ouvidos, a arbitrariedade da interferência e a necessidade de produzir algo convincente para salvar Javé, Antônio Biá entrega um livro em branco para a população. Cobrado e acuado por todos no meio da rua, Biá sai aos berros andando de costas. O gesto remete a uma outra passagem do filme em que se diz que essa atitude demonstraria coragem, seria um recuo e não uma fuga. Mas a mesma imagem pode ir além disso, quando se pensa no "anjo da história" de Walter Benjamim (veja quadro ao lado).

Biá, assim como o anjo, caminha olhando o passado a ser "destruído" irremediavelmente pelo futuro, pelo progresso, pela hidrelétrica. E esta, "responsável" pela transformação do sertão em mar, afogará a memória, a cultura local e os antepassados.

Narradores no pluralVale destacar as dimensões e os infinitos níveis das interferências que os narradores podem ter na História. Todo o caso de Javé - a história que não é escrita por Biá - é narrado por Zaqueu (Nelson Xavier), que tenta distrair um viajante num bar a beira de um rio. Durante todo o tempo em que o caso ocorreu, Zaqueu não estava presente no povoado, pois sai para buscar mantimentos. Isso nos faz supor que sua versão já é fruto de uma série de outras versões, e abriga toda a interferência dessas múltiplas narrações, inclusive a dele mesmo. Ao mesmo tempo, a história que Biá não consegue escrever está contada, mas em outro suporte, na narração de Zaqueu, que é o próprio filme.

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A própria filmagem de Narradores de Javé sinaliza o grau de intercâmbios entre presente, passado e futuro na construção da História. Os dois mil moradores de Gameleira da Lapa (locação do filme) estavam sem coleta de lixo há onze anos e foram incentivados a não apenas recolher o lixo como a separá-lo para reciclagem. Com tudo isso, a população local passou a exigir dos órgãos competentes a coleta seletiva, o que deu início a um processo para trocar o nome da cidade de Gameleira da Lapa para Javé. Certamente o filme deu mais conta da História e seus Sujeitos do que esperava.

Fonte: http://www.comciencia.br/resenhas/memoria/narradores.htm Acesso em 26-01-09

Narradores de Javé: a memória entre a tradição oral e a escrita

Maria Aparecida Bergamaschi

Começo minha fala a partir do que considero desencadeador do enredo do filme de Eliane Caffé: o prazer de “contar causos” para passar o tempo. Penso que o filme é uma homenagem aos contadores de histórias, aos contadores de causos. Se ocorridos ou inventados não importa, o que quero destacar é a sedução que exercem. O passageiro que perde o horário da embarcação ganha o abrigo (o quartinho dos fundos), mas, principalmente, ganha o entretenimento, a história do Vale de Javé narrada como se acontecida. Se Homero é evocado no filme para comparação com Antônio Biá é porque, com igual importância, podemos evocar os contadores dos contos de uma tradição brasileira, ameríndia e afro-descendente.

Também gostaria de destacar outro aspecto forte que o filme suscita e que remete à história do Brasil: o acesso à terra, o direito ancestral dos povos americanos, direito que é continuamente usurpado por outra forma de relação com a terra introduzida nesse continente pelos europeus desde os primórdios da colonização. Desde então ocorrem contínuas migrações como a mostrada pelo filme e forjam uma legião infinita de sem-terras. A terra, cujos limites eram cantados, porque, como organismo vivo escuta e sente, respondendo aos anseios da vida das pessoas que a cultivam e que nela habitam com reverência. Transformada em propriedade porque entra em cena outra concepção de mundo e outra forma de ocupação: a exploração da terra, o lucro, o bem da maioria em detrimento dos “tantos” que perdem a terra e pedaços de vida (como diz o personagem do filme).

Bem, após essas considerações passo a abordar dois temas que sinto fortes no filme e acredito que foram eles que me mobilizaram para essa conversa: a memória e a oralidade, que os narradores de Javé confrontam com a escrita. O filme mostra a memória dinâmica e

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não como algo guardado em uma “caixa secreta”, em um baú, como costumamos dizer e que, em algum momento, é resgatada. Acredito que a memória é trabalho, como diz Ecléa Bosi, é imaginação, como mostram os narradores de Javé. Memória: lembrança e esquecimento; memória: trabalho de criação em função do presente.

Diante da ameaça concreta de inundação de suas terras e sem nenhuma documentação formal que comprove que elas lhes pertencem, surge a necessidade de usar a escrita – até então rechaçada (rechaço evidenciado no filme pelo desprezo ao morador que escrevia), a escrita, a ferramenta do Outro – revelador de uma outra cultura é requisitada como última chance de manter suas as terras que foram ocupadas através de outras migrações, em tempos ancestrais. Passam então a realizar um trabalho de memória, evocando lembranças, imaginando um passado épico, uma “história grande” do Vale de Javé, com heróis forjados e requisitados pelos homens – Indalécio – e pelas mulheres mais ousadas - a Maria Dina. E, nessa trama que visa buscar as origens de Javé, aparecem múltiplos elementos da memória individual e coletiva, como por exemplo, a história dos gêmeos, presente nos mitos de origem dos povos indígenas brasileiros. Ex. o mito de origem do povo Guarani também existem gêmeos, que são gerados cada um com um pai.

A relação entre história e memória é intensa e aparece em sua complexidade que dificulta colocar no papel, no “livro da salvação” as lembranças, as histórias contadas, “as idéias que estão na cabeça”. Aparecem no filme memória e história com suas peculiaridades: a história, filha de memória não pode com ela ser confundida e nem, tampouco há uma linearidade de produção da história como registro de lembrança dos fatos do passado. A memória, matéria prima da história é, como esta, produzida num campo de poder, evidenciados no filme por uma disputa para registrar lembranças de pessoas e famílias de maior prestígio. Le Goff (1996) explica que as sociedades “cuja memória social é, sobretudo oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita” permitem compreender a luta pelo domínio da memória. Diz também o autor que uma das preocupações dos indivíduos e grupos que dominam as sociedades é de tornarem-se também donos das lembranças e dos esquecimentos.

Portanto, história e memória são construções e ocorrem num campo de disputas como bem mostra o filme, em que cada família, cada morador tem a sua versão, constrói um passado para Javé, a partir de seus interesses pessoais e familiares. Vemos também os jogos de sedução de Biá, encarregado dos registros e que usa o poder da escrita para “tirar vantagem” em relação as pessoas que escolhe para registrar as narrativas.

Memória para os gregos antigos era Mnemosyne, filha de Urano (o céu) e Gaia (a Terra). Com Zeus Mnemosyne gerou nove filhas, as musas, responsáveis pela inspiração. Entre elas Clio, a musa da história. A memória, nesse entendimento tem a força da natureza e que, na belíssima exposição HomemNatureza, no Museu da UFRGS, é

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elemento forte e presente nos entrelaçamentos cultura-natureza. A memória é constituída a partir do presente e tem como função principal manter a coesão do grupo, identificando-os como uma “comunidade de memória”, produzida, criada, como mostram as narrativas dos moradores de Javé. No filme, cada pessoa, especialmente as mais velhas, requer para si o papel de guardiã da memória e o passado épico é recriado como estratégia de luta para manutenção da terra diante da ameaça concreta de inundação provocada pela construção de uma barragem.

A memória, entre lembranças e esquecimentos seleciona a partir dos anseios individuais e coletivos do presente, os fatos que devem e podem ser lembrados e ou esquecidos. E, nesse sentido, o filme mostra as diferentes versões do passado, cada uma com sua legitimidade, cada uma forjada por relações de afetos e desafetos: a disputa dos irmãos envolvendo heranças; o herói versus a heroína lembrada pelas mulheres e desconstruída por lembranças masculinas. A disputa por uma memória épica de grandes feitos ou de um passado fracassado reafirma a memória afetiva, “que tem no coração das pessoas um lugar único e especial”, como lembra Carreiro ao comentar o filme.

O que interessa naquela situação é falar da fuga ou da retirada? Falar do medo e das frustrações ou da coragem dos ancestrais? São elementos que vem a tona e que a memória oral, com sua dinâmica, dá conta de todos esses conflitos, porém, na iminência de tornar essas narrativas fixas, a necessidade de uma verdade científica, comprovada e, se possível, documentada para escrever. O “terror da escrita” diz Lefrevre, ao abordar os conflitos vividos na modernidade ocidental que processual e conflitivamente abandona a tradição oral e adere à escrita como linguagem principal e de maior poder. Exemplo também são as experiências do povo Guarani com o qual trabalho, que explicitam o cuidado com a memória oral, com as idéias que “guardam na cabeça”, mesmo ao adquirirem a necessária escrita, que dá conta do presente e das relações que precisam estabelecer com as sociedades não indígenas.

Nas sociedades de tradição oral não há necessidade de memorização integral, palavra por palavra, mas o comportamento narrativo como papel mnemônico tem a função de atualizar o passado: “enquanto a reprodução mnemônica palavra por palavra está ligada à escrita, as sociedades sem escrita, excetuando certas práticas de memorização das quais a principal é o canto, atribuem à memória mais liberdade e mais possibilidades criativas”, diz Le Goff e que fica visível no filme: a principal concordância nas narrativas são os limites cantados da terra cultivada por cada família ou grupo.

A escrita, temida pelo povo de Javé, altera a relação com as palavras, fixa as idéias, rouba-lhe o movimento. A escrita é a anti-fala diz Lefevre (1991, p. 164-165), embora também afirme que a escrita jamais consegue suplantar completamente a tradição oral. “O importante é notar o caráter imperativo da escrita e do inscrito e sua

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duração. A escrita faz a lei. Muito mais ainda, ela é a lei. (...) ela obriga pela atitude imposta, pela fixação, pela recorrência implacável, pelo testemunho (transmissão e ensino) e pela historicidade assim estabelecida para a eternidade”.

Jack Goody (1996), estudioso da tradição oral de povos africanos, oferece alguns elementos para pensar a relação entre escrita e memória oral e a interferência da escrita que penso ser um dos elementos de reflexão proposta por Eliane Caffé. Diz o autor que nas sociedades orais a tradição é transmitida através da comunicação pessoal, das trocas que vão acompanhando o processo de esquecer ou de transformar fatos do vivido que deixam de ser necessários ou pertinentes, ao contrário das sociedades com escrita, cujo passado não pode ser modificado e é considerado distante, separado do vivido. A oralidade permite um refazer constante do passado a ponto de não separá-lo do presente.

Porém, vemos no final do filme uma reconciliação entre oral e escrito, momento em que Biá começa a escrever afoitamente no “livro da salavação”, talvez pela força do acontecimento que literalmente traga Javé. Penso que é um pouco o que diz Michel de Certeau (1988), ao analisar as relações entre oralidade e escrita. Considera impossível dissociar as duas práticas diante da força da memória e da tradição oral: “somente uma memória cultural adquirida de ouvido, por tradição oral, permite e enriquece aos poucos as estratégias de interrogação semântica cujas expectativas a decifração de um escrito afina, precisa ou corrige”, relativizando assim a pretensão de uma única produção favorecida sobremaneira pela escrita, em detrimento da oralidade. É também uma evidência que os registros escritos não apagam a experiência vivida, da memória que produz marcas indeléveis nos corpos e que a própria polissemia da leitura revela.

Creio que, com essas idéias, podemos iniciar um debate acerca das questões evocadas pelos Narradores de Javé e que são pertinentes hoje, como alerta Le Goff acerca da atualidade do tema: “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.

Referências BibliográficasBERGAMASCHI, M. A. Nembo’e. Enquanto o encanto permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. 2005. 270f. Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz, 1983.

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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 3a ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.GOODY, Jack y WATT, Ian. Las consecuencias de la cultura escrita. In. GOODY, Jack (comp.). Cultura escrita en sociedades tradicionales. Barcelona, España: Gedisa, 1996, p. 39-82.LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996.LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo, Ática, 1991.

Fonte: http://www.museu.ufrgs.br/admin/artigos/arquivos/NarradoresJave.doc Acesso em 26-01-09

Amnésia e Narradores de Javé: a memória em dois temposMarcelino Rodrigues da Silva

Universidade Vale do Rio Verde (UninCor)Brasil

Resumo: O trabalho é uma reflexão sobre o tema da memória a partir de dois filmes. Na leitura de Amnésia (Christopher Nolan, EUA, 2000), evidenciarei as diferenças entre acontecimento e narração, expressas pela estrutura narrativa do filme, e as interferências do presente na rememoração do passado. Na análise de Narradores de Javé (Eliane Caffé, Brasil, 2003), discutirei os aspectos sociais da memória, que se configura no filme como um terreno marcado por conflitos e negociações. Articulando as duas obras, por fim, colocarei em foco questões como a necessidade de narrar para viver, as relações entre discurso memorialístico e identidade e a importância do esquecimento como mecanismo de funcionamento da memória.Palabras clave: Memória, Memento, Ch. Nolan, Narradores de Javé, Eliane Caffé

 

Em uma acepção ampla, que engloba o processo mental, a atividade discursiva e a prática social de resgate incessante do passado - a questão da memória é sem dúvida um tema eminentemente contemporâneo. Para evidenciar essa pertinência, basta lembrar algumas circunstâncias do mundo de hoje, em que os problemas relativos à memória estão claramente presentes. No universo das comunicações, por exemplo., as novas mídias e tecnologias midiáticas recriam constantemente as formas de perceber, acumular e interpretar as informações sobre o passado. No mundo político, novos e antigos movimentos de afirmação étnica, religiosa, de gênero e de caráter nacionalista aparecem ou retornam com grande força, invariavelmente valendo-se do apelo a uma determinada interpretação de sua trajetória no tempo. E no próprio campo acadêmico, disciplinas como a história, a análise do discurso, os estudos culturais e a literatura comparada se entregam a um intenso debate sobre as diferentes práticas discursivas de recuperação e interpretação do passado, assumindo como pressuposto o caráter sempre vicário, lacunar e ideológico da linguagem.

Em função dessa contemporaneidade, resolvi estabelecer como objetivo deste trabalho discutir a questão da memória a partir de duas obras cinematográficas relativamente recentes. Essas obras são os longa-metragens Narradores de Javé, um

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divertido filme brasileiro dirigido por Eliane Caffé e lançado em 2003, e Amnésia, uma produção americana em tom de suspense, dirigida por Christopher Nolan e lançada no ano de 2000.

Narradores de Javé conta a história de um povoado perdido no interior brasileiro, que se vê às voltas com a construção de uma usina hidrelétrica em sua região, o que levará à inundação de todo o vale de Javé, ameaçando a própria existência da comunidade. Em face desse perigo, os moradores do povoado resolvem em assembléia realizar um esforço “científico” de recuperação e escrita de suas “grandes histórias” do passado, na esperança de mostrar que o vilarejo era um patrimônio histórico a ser preservado e assim evitar seu desaparecimento. Para isso, decidem convocar Antônio Biá (interpretado por José Dumont), antigo carteiro e único a dominar as letras no povoado, e que havia sido banido para os arredores do vilarejo por falsificar e enviar cartas meledicentes sobre os outros moradores, no intuito de manter a agência dos correios em atividade e preservar seu emprego. A maior parte do filme é ocupada pelas peripécias de Antônio Biá, coletando com os membros mais destacados da comunidade as tais “grandes histórias do povo javético” e se preparando para fixá-las pela escrita num caderno grande e imponente. A tarefa, no entanto, não chega a se concretizar, pois o escriba se perde em função das inúmeras discordâncias entre as narrativas que coletava com os moradores e das suas próprias tendências para a preguiça e o delírio criativo. Ao final da narrativa, as esperanças da comunidade se frustram e o vilarejo é inundado, mas seus antigos moradores seguem juntos para se estabelecerem em outro território. Triste diante imagem das casas que submergiam, Antônio Biá resolve retomar sua empreitada e começa, efetivamente, a registrar em seu caderno a história do povo de Javé, que segue em seu encalço, discutindo interminavelmente sobre qual “verdade” deveria ser fixada pela escrita.

O filme Amnésia possui um enredo e uma estrutura narrativa extremamente engenhosos, que se entregam com dificuldades para o espectador. É a história de Lenny (interpretado por Guy Pearce), um homem que não consegue reter informações novas sobre o passado recente, acreditando porém que se lembra com precisão de sua vida antes do violento assalto que provocou seu problema de memória e a morte de sua esposa. Desde então, sua vida gira em torno do objetivo de encontrar e matar o suposto assassino, que é perseguido com a ajuda de uma série de artifícios que possibilitam ao protagonista lidar com o esquecimento, se orientar na investigação e se prevenir contra os engodos dos outros personagens da trama. Fotos de polaróide, anotações, recortes de documentos, tatuagens e hábitos como não falar ao telefone e olhar nos olhos do interlocutor são alguns desses artifícios que constituem o arsenal do investigador amnésico. Dois planos narrativos se alternam, ao ritmo dos esquecimentos do protagonista, diferenciando-se pelo tratamento da imagem, em cores no plano principal e em preto-e-brando no secundário. No começo do filme, o espectador é conduzido a uma sensação de estranhamento, que dura até o momento em que ele percebe que o plano principal segue uma cronologia invertida, com as cortes das cenas marcando recuos até o ponto em que a cena anterior começava. Na busca pelo suposto assassino, Lenny interage com diversos personagens, destacando-se um detetive com ares malandros que se chama Teddy e que, na cena inicial do plano narrativo principal, é morto pelo protagonista. No final do filme, os dois planos narrativos convergem - passagem que é indicada por uma cena que começa em preto-e-branco e ganha cores em um determinado instante - e acontece o momento do reconhecimento, em que Teddy revela a Lenny a chave de seu enigma: o verdadeiro responsável pela morte de sua esposa havia sido o próprio Lenny, que logo a seguir opta pelo auto-engodo e prepara para si mesmo uma pista falsa, que o levará a acreditar que o assassino era Teddy. Se confiar nas palavras de Teddy (possibilidade que pode ser questionada, diante das inúmeras suspeitas que são lançadas sobre ele ao longo da narrativa), o espectador é levado a concluir que mesmo as lembranças mais

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antigas de Lenny haviam sido alteradas, deslocadas e manipuladas, com a finalidade de esconder do protagonista o fato de era ele o assassino de sua esposa.

Do ponto de vista assumido neste trabalho, a primeira observação que se impõe na análise desses dois filmes é o fato de que, cada um à sua maneira, ambos tematizam o caráter ambíguo e paradoxal da memória e, no limite, de toda atividade de conservação e resgate do passado. Nas duas obras, a lembrança das experiências individuais e coletivas é uma necessidade vital que confere uma identidade às personagens, possibilitando a sua própria sobrevivência e situando-as no mundo em que vivem. Mas, ao mesmo tempo, o esforço da memória parece ser também uma busca inevitavelmente condenada ao fracasso, pois o passado aparece nos dois filmes como uma miragem, que escapa ao olhar das personagens e é inventada por elas a partir de uma perspectiva presente.

Os moradores do vale do Javé precisam lembrar e escrever suas histórias para que a comunidade e suas tradições não desapareçam, tragadas pelo avanço implacável da modernidade. E, mesmo que essa escrita não tenha se concretizado, no fim das contas parece ter sido justamente o esforço coletivo que por ela foi empreendido o responsável pela não dissipação dos laços entre os membros da comunidade, que seguem juntos para se estabelecerem em outro território. Já no filme de Christopher Nolan, o investigador amnésico faz de suas técnicas de memorização artificial a verdadeira sustentação de sua existência, permitindo-lhe manter em foco o objetivo de vingar a morte da esposa, que parece ser sua única razão de viver.

Como contraponto a esse conjunto de relações entre os sujeitos e suas memórias, os dois filmes mostram de modo enfático os limites e as armadilhas da empreitada memorialística. Em Amnésia, a própria estrutura narrativa sublinha, pela cronologia fragmentada e invertida, as diferenças entre o narrado e o vivido. Ao longo do filme, a obsessão do protagonista por suas técnicas mnemônicas revela uma permanente desconfiança, glosada por uma fala em que ele declara explicitamente sua convicção de que, mesmo nas pessoas supostamente normais, a memória é traiçoeira e tende sempre à infidelidade. E finalmente, o desfecho da narrativa surpreende, revelando como mentira deliberada todas as convicções de Lenny sobre seu passado.

Em Narradores de Javé, as suspeitas em relação ao resgate do passado são evidenciadas de diversas maneiras. O próprio tom jocoso da narrativa e da representação das personagens já coloca em xeque, como ingenuidade, sua pretensão de transformar o vilarejo em patrimônio histórico através da escrita das “grandes histórias do povo javético”. È muito significativa, também, a escolha de um escriba sabidamente mentiroso para realizar a tarefa, e todas as atitudes e falas da personagem contribuem para dar ênfase a sua tendência a acrescentar ao seu trabalho fortes doses de imaginação ficcional. Destacam-se, desse ponto de vista, as cenas em que Antônio Biá explica os motivos de sua preferência pelo lápis (em detrimento da caneta, que corre solta no papel e não permite arrependimentos) e defende o embelezamento das histórias contadas pelos moradores do vilarejo, mesmo que isso signifique uma completa transformação dos fatos supostamente ocorridos. Ainda mais relevante, como demonstração da impossibilidade de uma recuperação fiel do passado, é o fato de que as mesmas histórias, especialmente o episódio da chegada dos primeiros moradores do vilarejo sob a liderança de Indalécio (ou Indalêo), são contadas de modo completamente diferente pelos membros da comunidade. As diversas versões do episódio variam e ganham novas cores, sempre ao sabor dos desejos, interesses e perspectivas daqueles que as narram.

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Desse modo, nos dois filmes, o passado só pode existir como uma invenção do presente. As forças e variáveis que interferem no modo como o presente molda o passado, no entanto, se configuram de modo diverso em cada um deles. A principal diferença, talvez, seja o fato de que enquanto Amnésia fala de uma memória individual, submetida às interferências das necessidades psicológicas, traumas e recalcamentos do protagonista, Narradores de Javé trata sobretudo de uma memória coletiva, marcada pelos conflitos entre as diferentes posições enunciativas e perspectivas interpretativas dos narradores, dependendo portanto de uma operação de negociação que parece nunca chegar ao fim.

Exatamente por colocarem o problema da memória de modo diferente, enfatizando-se num deles o plano individual e no outro o aspecto coletivo, os dois filmes resolvem de modo diverso as tensões entre o passado e o presente, entre o vivido e o imaginado. Mas, de certa maneira, o que um enfatiza também pode estendido ao outro e vice-versa. Como se a memória individual e a memória coletiva funcionassem de modo semelhante e interligado, tornando-se portanto partes de um mesmo problema. Essa, aliás, é uma idéia bastante explorada nos estudos contemporâneos sobre a memória, encontrando fundamento teórico nas formulações clássicas de Maurice Halbwachs, para quem mesmo as memórias mais estritamente individuais estão ancoradas na coletividade e nas relações de pertencimento entre o indivíduo e os diferentes grupos sociais dos quais ele participa em sua vida.

Em Narradores de Javé, o que se acentua é o caráter conflituoso, subjetivo e parcial da empreitada memorialística, representado pelas intermináveis arengas entre os moradores do vilarejo em torno da história de Indalécio. Ao mesmo tempo em que embargam o processo de escrita de Antônio Biá, são esses conflitos que impulsionam o exercício da memória e permitem ao grupo continuar existindo. Já em Amnésia, a idéia de que o presente molda o passado é acompanhada por uma constatação que choca o espectador no final da narrativa. A memória deixa de ser um acúmulo de lembranças sobre o passado, necessário para que o sujeito viva e se situe no mundo, para se tornar o contrário disso: uma mentira que o sujeito conta sobre seu passado, justamente para esconder de si mesmo aquilo que “realmente” é. Revela-se, então, o próprio esquecimento como mecanismo fundamental no funcionamento da memória e de todo discurso sobre o passado.

Assim, uma narrativa acaba por iluminar a outra e ambas podem ser vistas pela perspectiva daquilo que se enfatiza na outra. De um ponto de vista, digamos, “javético”, podemos perceber que também a memória individual funciona de uma forma dramática, marcada pelo conflito entre diferentes posições enunciativas e perspectivas interpretativas. Pois, embora recalcada, a lembrança do fato de que o protagonista foi o responsável pela morte de sua esposa parece insistir em vir à tona, incidindo de forma deslocada em sua obsessão pelas técnicas mneumônicas e na interminável busca que dá sentido a sua existência. E, de um ponto de vista “amnésico”, a idéia de que qualquer imagem do passado é, pelo menos em parte, uma mentira e um resultado do esquecimento, dá outra dimensão ao seu papel nos jogos discursivos que dão forma às identidades grupais. A memória coletiva pode, então, ser vista como resultado de uma disputa de caráter eminentemente político, por meio da qual os diferentes grupos sociais definem os seus contornos simbólicos e recriam permanentemente os laços sociais que os unem, articulando relações de poder e mascarando os conflitos que inevitavelmente marcam suas trajetórias ao longo do tempo.

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989, p.3-15.

Filmes:

AMNÉSIA. Direção de Christopher Nolan, EUA, 2000 (113 min.).

NARRADORES DE JAVÉ. Direção de Eliane Caffé, Brasil, 2004 (100 min.).

 

© Marcelino Rodrigues da Silva 2009

Espéculo. Revista de Estudios Literarios. Universidad Complutense de Madrid

Disponível em http://www.ucm.es/info/especulo/numero40/memoria.html

Acesso em 26-01-09

CULTURA BRASILEIRATRADIÇÃO ORAL E MODERNIDADE

EM NARRADORES DE JAVÉ

Josilene Batista da Silva (UERJ)Evanete Lima (UERJ)

Rita de Cássia M. Diogo (UERJ)

O presente trabalho tem como objetivo o estudo da produção cinematográfica latino-americana contemporânea a partir da perspectiva dos estudos sobre tradução cultural. Para tanto, deteremos nossa análise no filme de Eliane Caffé, intitulado "Narradores de Javé", baseando-nos nos textos de Renato Ortiz (ORTIZ, 2001) e na teoria de tradução de Walter Benjamin (in: ANGEL VEGA, 1994).

Enquanto nação pós-colonial, assim como os demais países da América Latina, nós brasileiros vivenciamos até hoje uma profunda assimetria cultural em relação ao chamado "mundo desenvolvido", do qual continuamos a receber influências e, muitas vezes, a copiar seus paradigmas. Uma assimetria que se confirmará em relação ao cinema: ao longo de sua história, o cinema brasileiro manteve-se numa silenciosa submissão à voz do outro, sofrendo de uma auto-desvalorização e sendo devorado pelo discurso alheio. Assim, quando o cinema sonoro chega à América Latina, o Brasil, bem como a Argentina e o México, compartilharão do mesmo modelo de desenvolvimento cinematográfico inspirado por Hollywood.

Suzana Lages (LAGES, 2002: 14-5), em análise sobre a tradução em Walter Benjamin, parece refletir bem a situação da cinematografia latino-americana na

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primeira metade do século XX: segundo a autora, existe um tipo de tradutor que, na medida em que admira o original, a autoridade do autor, se apaga, para dar vez e voz ao outro, ao alheio, emudecendo o elemento autóctone. Somente a linguagem vanguardista do Cinema Novo é que reverterá este quadro, ao questionar a suposta superioridade do cinema estrangeiro: ao invés de sentir-se um animal frente aos deuses, o bárbaro frente ao civilizado, o coitado frente ao herói, cineastas como Glauber Rocha, Carlos Diegues e Walter Lima vão influenciar, com o movimento de descolonização cultural, outros cinemas emergentes do Terceiro Mundo.

O Cinema Novo representou a afirmação cultural do cinema brasileiro, que passou a ser considerado como um dos mais revolucionários focos de criação do cinema moderno. A partir desse momento, não haverá mais espaço para a noção de tradução servil, que dará lugar a uma prática tradutória agressiva, destruindo a aura do colonizador cultural, aproximando-se do cerne do conceito de antropofagia segundo Oswald de Andrade: assimilar o que é estrangeiro, transformar o alheio em substância própria e valorizar o que é nativo e primitivo, em outras palavras: igualar-se.

Em entrevista no ano de 2003, Carlos Diegues (http: //cinema.terra.com.br) declarou que, depois de anos de difícil sobrevivência, os novos diretores de cinema do Brasil e Argentina compartilham a busca por recuperar as identidades locais frente à hegemonia do cinema proveniente dos Estados Unidos. Cabe inserir nesse contexto um modo de produção que retrata não uma realidade monológica, mas a pluralidade das culturas, que constrói, ou tenta construir um discurso de identidade associado à questão da linguagem popular reinventada, criando um realismo dentro de uma perspectiva crítica. Esse "realismo reflexivo", estético e pluralista conforme enfatiza Ortiz (ORTIZ, 2001: 172-3), propõe a manifestação de um distanciamento crítico do espectador, levando-o à reflexão sobre o que vê e ouve, contrapondo-se assim, ao "realismo reflexo", cuja univocidade voltada para atender às exigências da indústria cultural, mostra-se incompatível com as propostas revolucionárias dos cineastas do Cinema Novo.

A construção do discurso da identidade, livre da servidão ao discurso alheio, evidencia que muitos de nossos cineastas se posicionam hoje na travessia entre o "realismo reflexo" e o "realismo reflexivo", tal como podemos observar no filme de Eliane Caffé. Em "Narradores de Javé", a cineasta brasileira traduz, do ponto de vista pluricultural e sob vários ângulos (cada morador é um narrador), a história de um povoado que tenta resgatar a memória do sertão baiano. Tomando o povoado de Javé como uma metáfora do Brasil, temos por verdadeiras as palavras de Diegues (IbId.), quando afirma que o cinema segue buscando a identidade do povo brasileiro, encarnada neste filme pela diversidade de vozes que conformam a nossa cultura: um mosaico de diferentes cores, raças, gêneros e religiões.

“Narradores de Javé” marca a luta de um povo, os moradores do Vale de Javé, no sertão baiano, na tentativa de reconstituir sua história perpetuada através da oralidade, buscando garantir sua existência no futuro, que se encontra ameaçado pela Modernidade: a construção de uma represa que fará o povoado desaparecer em suas águas.

A saída apontada pelo Estado para uma possível preservação do povoado seria a de ele possuir algum monumento ou patrimônio histórico que justificasse seu tombamento, certamente pressupondo sua inexistência. De qualquer forma, esta idéia está associada à ideologia governamental que prega a preservação da tradição, da memória popular encarnada numa visão folclórica de busca de identidade cultural e nacional. (ORTIZ, 2001: 163)

Diante desse posicionamento, o povo de Javé resolve encarregar o antigo responsável pela Agência de Correios do povoado - ele era o único alfabetizado do

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lugar -para ouvir o relato dos moradores e a partir deles, escrever a história do povo do Vale de Javé.

Ao pensar sobre esta proposta, percebemos a supremacia da cultura letrada sobre a cultura popular de base oral. O discurso oficial releva a tradição oral do povo, que só seria reconhecida no momento em que passasse a fazer parte do registro legitimado pela sociedade moderna: o registro escrito. Essa visão preconceituosa e elitista, que considera a cultura letrada superior à oral também marca a presença de um discurso de dominação socioeconômico que nos acompanha desde a época colonial: não podemos nos esquecer que a colonização da América Latina teve como conseqüência o extermínio dos povos indígenas, seguido pelo total desprezo por sua produção cultural, já que para a mentalidade européia, só o registro escrito dava legitimidade e autoridade à história e à cultura de um povo.

No filme em estudo, uma população analfabeta é expulsa de suas terras e vê todo o seu passado destruído, tendo como justificativa a necessidade de um progresso inevitável que beneficiará "um grande número de pessoas", no qual os moradores de Javé não estão incluídos. Também serve como argumento o fato de “não possuírem” uma herança cultural, já que sua história e existência não haviam sido registradas formalmente. Portanto, não possuíam sua cidadania reconhecida, eram cidadãos de segunda classe que não faziam parte de nenhuma estatística, ou seja, não existiam.

Subjacente ao discurso oficial, o que vemos é a visão de uma identidade brasileira que está fragmentada em pares opositivos: civilização x barbárie, tradição oral x tradição escrita, ao invés de estar marcada pela complementaridade. Esta, por sua vez, só será possível quando houver uma tomada de consciência de que mesmo a modernidade sendo inexorável, é imprescindível que a sociedade assuma as suas diferentes manifestações culturais a fim de não comprometer a diversidade, elemento fundamental da identidade brasileira e latino-americana.

O povo de Javé passa então a registrar a sua identidade histórica e cultural, ao relatar ao carteiro da região aquilo que lhes havia sido passado de geração em geração: a saga de seu fundador, Indalécio, no desbravamento do sertão baiano, a fim de fundar um povoado para os seus seguidores. Fato que, ao ser transmitido à posteridade, vai se distanciando cada vez mais do “original”; além disso, ele será permeado pela visão pessoal dos moradores, os quais vão traduzindo-o segundo o seu olhar, sua formação sociocultural e religiosa.

Partindo-se do princípio de que tudo o que se vive, ouve ou vê, passa por um processo interno de releitura e reconstrução conforme o modo de ser e de pensar de cada um, bem como de acordo com a bagagem histórico-cultural que adquirimos no decorrer da vida, podemos dizer que todo ser humano é um tradutor. Assim, ao contar uma cena que presenciamos, esta terá a nossa versão pessoal, não será mais a cena original, mas a sua tradução. Porém, sabemos que o sentido primitivo estará sempre presente em nossas traduções, pois, caso contrário, não seriam traduções e sim ficções, invenções, e perderiam o elo de ligação com o original.

No momento em que todos são narradores/tradutores, temos diversas narrativas relatando o mesmo acontecimento. Há divergências no modo de contar, porém o sentido original, o fio condutor da história, é preservado. É como se a história tivesse se fragmentado em diversas partes, que ao invés de se excluírem, passam a se complementar entre si, de modo que o escritor responsável pela reconstituição da história do Vale de Javé se vê obrigado a juntá-las para chegar a um todo harmônico. No entanto, esta tarefa revela-se impossível, além dos mais, desinteressante, pois é justamente esta diversidade de traduções que conforma a verdadeira identidade de um povo, ou seja, o seu caráter híbrido. O escritor, que por sua vez é também tradutor de todas essas narrativas, sente-se impotente

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diante de uma tarefa tão complexa e grandiosa. Na verdade, como resolver o dilema de traduzir uma narrativa oral que esteve sempre em movimento, viva na boca dos moradores do vilarejo, para um registro escrito, que, como tal é estático e imutável, e que, acima de tudo, só permite uma versão que é única e definitiva?

Com o carteiro-tradutor, os moradores de Javé sucumbem à Modernidade que não foi capaz de respeitar a diversidade cultural que faz parte do nosso universo. Esta não é vista em sua imensa riqueza e em seu potencial de complementaridade, é sim enquadrada sob o ponto de vista da classe dominante e, portanto, classificada como inferior. “Para o bem de todos”, a pluralidade deve ser superada e substituída pelo “Mesmo”, demonstrando, como vemos no filme, uma total falta de sensibilidade para com os valores alheios. Não há a possibilidade da mescla ou da convivência harmoniosa, o que resta é a adaptação ou a aniquilação total, de modo que o “bárbaro” para atingir a civilização tem que renunciar à sua herança cultural e assimilar acriticamente os valores impostos pelo elemento dominador. Assim, a população de Javé tenta escrever sua história para se ajustar a uma Modernidade, a qual não pertence, já que, neste caso, a diferença é vista como sinal de atraso e é usada para legitimar o seu aniquilamento. Como não conseguem atender às exigências do progresso e da civilização, desaparecem como palavras ao vento.

Ainda que haja no mercado uma demanda por filmes em que a realidade é tratada de forma reflexa, na qual, segundo Ortiz, se reforçam as demandas e exigências do espectador (Ibid: 173), Eliane Caffé confronta o seu público com uma realidade, diante da qual este não tem como ficar passivo, sendo levado a posicionar-se frente à situação retratada. Ao desenhar na tela uma realidade brasileira que mostra as diversas faces formadoras da sociedade, dando voz às etnias, religiões e classes excluídas, a diretora retoma o posicionamento crítico-reflexivo colocado em marcha pelos adeptos do Cinema Novo.

O filme “Narradores de Javé” sinaliza um importante momento de retomada e reencontro do nosso cinema com as diversas formas de expressão da cultura brasileira, nos permitindo entrar em contato com o Brasil de todos os brasileiros.

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Walter. La tarea del traductor. In: ANGEL VEGA, M. (org.) Textos clásicos de teoría de la traducción. Madrid: Cátedra, 1994. p. 285-296.

DIEGUES, Carlos. Disponível em: http: //cinema.terra.com.br. Acesso: setembro, 2004.

LAGES, Suzana Kampft. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2001.

FILMOGRAFIA

Narradores de Javé. Diretora: Eliane Caffé. Elenco: José Dumont, Nelson Xavier, Nelson Dantas e outros.

Disponível em : http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno06-04.html Acesso em 26-01-09