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    Sumrio

    O porqu deste livro 7

    CAPTULOUM Saia, saia, de onde quer que voc esteja 17

    CAPTULODOIS O hipcrita 37

    CAPTULOTRS De quem voc filho? 55

    CAPTULOQUATRO Filhos de Aba 69

    CAPTULOCINCO Mais santos que Deus 93

    CAPTULOSEIS Ressurreio 117

    CAPTULOSETE Desejo santo 143

    CAPTULOOITO Determinao 163

    Bibliografia 183

    Sobre os autores 187

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    ... no ser outra pessoa a no ser voc mesmo,num mundo que, dia e noite, faz todo o possvel

    para que voc seja outro, significa travar ininterruptamentea mais rdua batalha que um ser humano pode travar.

    E. E. CUMMINGS

    UMAPALAVRADEBRENNANMANNINGEm 1994, publiquei um livro chamado O impostor que vive emmim, e um dos captulos se chamava O impostor. Foi essecaptulo que recebeu mais ateno do pblico, mais que todosos outros juntos. Para um grande nmero de leitores, O im-postor a essncia de todo o livro. Isso no me surpreende.

    O impostor continua mostrando o rosto em minha vida e sem-pre se utiliza de disfarces novos e sinistros. Astuto personagem

    do meu verdadeiro eu, ele me prepara emboscadas dia aps dia.Nesses ltimos tempos, tem se aproveitado de meus momentosde senilidade, impedindo que eu me lembre se hoje de manhtomei meu antidepressivo e minhas vitaminas.

    Esse hipcrita maquiavlico se aproveita da minha amnsiatemporria para me fazer esquecer de que devo graa tudo oque sou. Tudo. At a graa para entender a graa graa. Em

    vez de ficar boquiaberto diante da extravagncia do amor deDeus, h muitos dias em que simplesmente espero por ele. Emvez de uma gratido sincera pela generosidade das ddivas que

    O Porqu deste livro

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    Deus derrama sobre mim sem restries e sem que eu as mere-

    a, muitas vezes sou dominado por um sentimento arrogante desatisfao diante do que consigo fazer e por uma falsa seguranade superioridade espiritual.

    O impostor complicado, traioeiro e sedutor. Ao mesmotempo que me tenta com um sentimento de auto-satisfao, eletambm abala os fundamentos do meu eu mais autntico, minhaidentidade de filho amado deAba. (Aba uma palavra aramaicaque denota certa intimidade e se traduz por pai; grosso modo,

    equivale expresso papai. Jesus chocou os lderes religiosos doprimeiro sculo ao dirigir-se ao Criador comopapaiAba. De-pois falaremos mais sobre isso.) O impostor tenta me convencerde que, no importa o que Deus diga, filho de Aba uma falsaidentidade, totalmente fora do meu alcance. O impostor quer mefazer acreditar que minha nica esperana est em forjar meuverdadeiro eu e, a exemplo do que diz e. e. cummings, transfor-

    mar-me em outra pessoa.Se no fosse comigo, eu diria que se trata de uma luta fasci-nante. Nos ltimos anos, minha maior dificuldade tem sido le-var o impostor o hipcrita presena de Jesus, em vez deficar tentando disciplin-lo por conta prpria. Mas trata-se demim, e no h nada de fascinante nisso. Quero fazer o hipcritase render. Quero vencer essa guerra comigo. Ledo engano. Emvez de submeter a Cristo o meu eu centrado em si mesmo, tento

    espanc-lo at morte. Da eu me desanimo e concluo que mi-nha suposta vida espiritual no passa de iluso e fantasia.

    Esse comportamento meu velho conhecido. Aos 23 anosde idade, eu era novio da Ordem Franciscana em Washington,D.C., nos Estados Unidos. A ordem costumava pr em prticauma antiga disciplina espiritual nas noites de sexta-feira durantea Quaresma. Um sacerdote ficava em p, junto ao vo da escada-

    ria no primeiro andar, e lentamente recitava em voz alta o salmo51 em latim:Misere me, Domine, secundum misericordiam, tuam...enquanto ns entrvamos em nossos minsculos aposentos no

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    segundo andar, cada um com seu instrumento de tortura de uns

    trinta centmetros: um pedao de fio de telefone espiralado comn na extremidade. Seguindo aquela antiga tradio, enquantodurasse o salmo, golpevamos as costas e o quadril para extin-guir as chamas da sensualidade. Na primeira sexta-feira noite,apliquei os golpes com tanta determinao, que fiquei com bo-lhas de sangue pelas costas.

    No outro dia, no lugar onde tomvamos banho, um sacer-dote olhou para o meu corpo marcado e relatou o que viu ao

    chefe dos novios, que me repreendeu por ter ido longe demais.De fato, eu havia exagerado. Eu estava tentando a todo custo seragradvel aos olhos de Deus.

    O mesmo no acontecia com o irmo Dismas, que moravano aposento ao lado do meu. Eu o ouvia enquanto ele se chico-teava com tanta violncia, que cheguei a temer por sua sade esanidade mental mas era tanta violncia, que me arrisquei a

    espiar atravs da porta rachada. Ele estava ali sentado com umsorriso nos lbios e um cigarro na mo esquerda. Era na paredeque ele estava batendo, no no prprio corpo. Sabe qual foi mi-nha reao? Tive compaixo daquela pobre alma e voltei parao meu aposento com uma insuportvel sensao de superiori-dade espiritual.

    No recomendo muito o mtodo dele nem o meu.

    Escrever O impostor que vive em mim foi uma intensa experinciaespiritual para mim. Ouvi dizer que sua leitura tem sido umaprofunda experincia para pessoas de todo o mundo. O impostorque vive em mim tem sido traduzido para lnguas que eu no falo,porque, pelo que parece, pessoas de outras culturas espanhola,

    francesa, alem podem entender a mensagem se ela estiverem sua lngua-me. Fico empolgado quando vejo como conseguitransmitir verdades que atravessam barreiras culturais.

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    Chegou a hora de contemplar um dialeto que no falo, pelo

    menos no falo bem. a lngua da cultura pop, o dialeto dos jo-vens. Por isso, Jim Hancock, veterano lder de jovens, e eu estamostraduzindo O impostor que vive em mim para leitores das geraesemergentes. Essa traduo se chamaFalsos, metidos e impostores.

    Oro para que este novo livro chegue a lugares aonde noposso ir e alcance pessoas cujo corao eu conheo, embora nofalemos exatamente a mesma lngua.

    Fao minhas as palavras de Larry Hein, diretor espiritual hoje

    aposentado, que escreveu esta bno:

    Que todas as suas expectativas se frustrem, todos os seus planos

    fracassem, todos os seus desejos dem em nada, para que voc

    experimente a fragilidade e a humildade de uma criana e cante

    e dance no amor de Deus, que Pai, Filho e Esprito. E hoje,

    no planeta Terra, que voc possa experimentar a maravilha e

    a beleza de si mesmo como filho de Aba e como templo doEsprito Santo, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor.

    BRENNAN MANNING

    UMAPALAVRADE JIM HANCOCKBrennan e eu chegamos a este livro por caminhos diferentes. Soupresbiteriano e, h muito tempo, lder de jovens, nascido na fa-

    mlia de um pregador da conveno batista do sul dos EstadosUnidos, um fundamentalista em recuperao.

    A primeira vez que recorri ao impostor foi quando eu esta-va levando uma vida dissimulada durante o ensino mdio. Euqueria me sentir aceito. Tinha medo de ser rejeitado. O impos-tor me ajudou a parecer melhor do que eu era (ou pior, se piorfosse melhor). Ele me ajudou a ocultar a verdade das pessoas

    que, pensava eu, podiam me julgar de forma to sumria comoeu costumava me julgar. E continuei a ouvir os seus conselhos,pois a grande maioria deles funcionava.

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    O impostor o homem das mil faces. Ele me ensinou a inven-

    tar mscaras para quaisquer ocasies, usando o que estivesse minha volta. Com os meus amigos que gostavam de msica, eutinha as mesmas preferncias musicais. Com os meus amigosesportistas eu era introspectivo e falava pouco. Quando estavacom crianas muito inteligentes, eu dava um jeito e as ludibriavacom conversas superficiais ou inventava coisas (espere a... achoque ainda fao isso!). Com a ajuda do impostor, consegui me sair

    bem no ensino mdio, mas foi uma tarefa difcil e exaustiva. Eu

    ia igreja (face espiritual), passava tempo com os amigos (facedo cara sabido), saa um pouco (face sincera). Tantos disfarces,to pouca diverso de verdade, desempenhando todos aquelespapis sem saber quem eu era. Ou se, no final das contas, eu eraalgum.

    Eu era uma busca impossvel, procurando minha identidadena vida de outras pessoas. E admirava muito algumas delas, pois,

    como diz o meu amigo Michael Yaconelli, eu julgava o que seisobre mim a partir do que no sabia sobre elas. Eu sentia medode algumas daquelas pessoas, pois eram influentes e num piscarde olhos podiam significar o cu ou o inferno para a posio so-cial de algum. E havia tambm algumas poucas pessoas que mefascinavam, pois, baseado no que eu conseguia enxergar, elas nodavam a mnima para o que os outros pensavam delas noligavam nem mesmo se as pessoas no pensassem nada.

    Representei papis para todas elas. Eu no sabia mais o quefazer.

    Se eu soubesse o que sei agora, teria relaxado, teria tratado amim mesmo com mais condescendncia, teria parado de tentarmelhorar a realidade.

    Eu estava num acampamento de vero quando me dei contade que poderia no ter o que era necessrio para ser feliz, muito

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    menos para ser bom. Pelo que me constava, meu segundo ano

    naquela escola havia sido o melhor possvel, mas eu havia de-testado tudo aquilo. Olhei com total sobriedade para o melhorano da minha vida e disse em voz alta: estraguei tudo o que procureifazer. Eu estava cansado de sentir medo. Estava cansado de ficarsozinho. Estava cansado de ser uma farsa.

    Ento, pela primeira vez na vida, entreguei os pontos. Do-brei-me diante da esperana de que Deus poderia fazer por mimtudo o que eu no conseguia fazer por conta prpria. Eu era o

    filho prdigo que voltava para casa para pedir ao pai algum tra-balho na sua propriedade. Eu era o Pinquio que voltava paracasa havendo me comportado de maneira ridcula, meu narizestava com um quilmetro de comprimento por causa de tantasmentiras e agora tinha esperana de que Gepeto poderia (eiria) me transformar num garoto de carne e osso.

    E quer saber da verdade? Deus fez o que eu no consegui fazer.

    Meu ltimo ano no ensino mdio foi uma mistura de sentimentosde grande alegria com momentos muito bons. E eu estava mesmome transformando numa pessoa melhor tratando melhor aspessoas e assumindo responsabilidades. E ainda por cima esta-va me sentindo verdadeiramente espiritual, como nunca antes.s vezes eu acordava no meio da madrugada para orar e fazeranotaes em meu caderno; depois disso, eu fechava os olhos e,feliz da vida, voltava a dormir. Era maravilhoso!

    Mas chegou uma hora em que comecei a simular essas coisas.Comecei a simular parece um jeito meio intempestivo de

    falar, como se aquilo existisse num dia e desaparecesse no ou-tro. Foi assim que o impostor me envolveu: aquela semana noacampamento de vero havia sido to diferente de qualqueroutra coisa que eu j tinha experimentado, apesar de ter cresci-do indo igreja, que fiquei em dvida se, quando voltasse para

    casa, encontraria algum que fosse to cristo como eu tinhapassado a ser. Esse pensamento era sincero, no se tratava dearrogncia. Ainda no.

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    Pedi informaes em minha cidade e encontrei uma pessoa

    que alegava ser crist como eu. Ele me pareceu ser um bom sujei-to, e combinamos estudar a Bblia juntos. Trouxemos outro cara,mais outro, depois mais dois, de modo que acabamos formandoum pequeno grupo. Que coisa boa! Eu nunca havia estudado aBblia desse jeito, e aquilo que fazamos parecia-me real e cheiode vida como nada antes.

    No demorou para que alguns adultos bem-intencionadoscomeassem a me ensinar um esboo de trs pontos, para que

    eu falasse aos outros sobre minha nova f:

    1. Minha vida antes de me encontrar com Cristo.2. Como me encontrei com Cristo3. Minha vida depois de me encontrar com Cristo

    O que poderia ser mais simples, mais claro, mais honesto e

    mais direto que isso?Bom, para mencionar uma coisa, a verdade sobre o terceiroponto, Minha vida depois de me encontrar com Cristo. Seismeses depois, eu certamente teria recebido um Muito Bem!no meu boletim espiritual, mas certo que no teria sido (nemhoje seria) um dez com louvor. Progresso? Sim. Perfeio? Vocdeve estar brincando!

    Foi ento que o impostor apareceu de novo. Ele sabia e as-

    sinalou com detalhes como minha mudana de vida havia sidoincompleta. Uma vez que meus amigos e parentes j sabiam queTODASASCOISASHAVIAMMUDADO!, e era tarde demais para voltaratrs, ele sugeriu que talvez eu devesse me alegrar com a reali-dade dos fatos da minha experincia (s um pouco) para evitarque as pessoas ficassem confusas e decepcionadas.

    E foi isso que fiz durante ... no sei exatamente ... uns vinte

    anos mais ou menos. Durante esse perodo, fiz parte de equipesde liderana e depois me tornei pastor de jovens de carteirinha.Casei-me e tornei-me pai. Eu era preletor em retiros e criava

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    recursos para gente que trabalhava com jovens. E tenho orgulho

    de dizer que, com a competente ajuda do impostor, as coisas fo-ram bem na maior parte do tempo. O impostor me recomendouque informasse a voc que, ao contrrio de Brennan, que admiteser alcolico, sbrio pela graa de Deus, eu nunca fiquei bbado,nunca fumei, nunca me deitei com outra mulher que no fosseminha esposa, nunca colei numa prova, nunca furtei nada emlojas. Como voc pode ver, minha ficha bem limpa, certo?

    Opa ... no bem assim! Todas essas declaraes corres-

    pondem aos fatos, mas elas no so de todo verdicas, poisnenhuma daquelas coisas jamaisrepresentou uma tentao que eutivesse de enfrentar. Nunca me em-

    bebedei nem fumei, mas tenho es-tado perigosamente acima do peso,pois sou sempre tentado a comer sem

    moderao quando estou sofrendo,ou bravo, ou triste ou, para essefim, alegre. A comida minha drogapreferida (legal, barata e ao meu al-cance!). Nunca me deitei com outramulher que no fosse minha esposa,

    mas ainda me sinto forte e sexualmente compulsivo, e todos osdias sou tentado a cair vtima desse comportamento. Nunca

    colei numa prova, mas exagero e sempre sou tentado a men-tir, para que as pessoas pensem bem de mim (e sei como se fazisso, pois j fiz muitas vezes). Nunca roubei em lojas, mas tenhousado meus cartes de crdito para gastar milhares de dlarescom coisas que jamais vou usar, pois o que eu realmente estavacomprando era a emoo de comprar coisas que amenizassemalgum sofrimento ou ausncia que eu sentisse no momento (em

    vez de entregar esse sofrimento a Jesus). E ainda sou tentadoa agir assim praticamente todos os dias. No acho que mere-a algum crdito por aquilo que deixei de fazer, porque, mais

    Ele sugeriu que talvez

    eu devesse me alegrar

    com a realidade

    dos fatos da minha

    experincia (s um

    pouco) para evitar

    que as pessoas

    ficassem confusas

    e decepcionadas.

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    cedo ou mais tarde, acabo fazendo tudo o que sou seriamente

    tentado a fazer.Neste exato momento, o impostor est muito insatisfeito co-migo. Ele no gosta quando eu falo desse jeito. Ele ainda temmedo da verdade, medo de que voc coloque este livro de lado epea seu dinheiro de volta, pois, afinal de contas, por que algumiria querer ler alguma coisa escrita por um alcolico sbrio e porum farsante que ainda nem se recuperou direito?

    Brennan e eu resolvemos dizer ao impostor que ele v cui-

    dar da prpria vida, enquanto explicamos direito algumas coi-sas. Estamos cansados de ser hipcritas e farsantes e, por isso,acima de tudo, queremos viver de acordo com o que realmentesomos filhos de Aba.

    Para simplificar as coisas, neste livro o pronome eu semprese refere a Brennan, a no ser que o avisemos de que o eu serefere a Jim. O pronome ns refere-se a ns e a todos os nossoscolegas hipcritas e farsantes ns sabemos quem somos...

    Esperamos que tudo isso lhe seja til da mesma forma quetem sido para ns. E, por favor, mande-nos sua opinio.

    JIM HANCOCK

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    SAIA, SAIA, DEONDEQUERQUEVOCESTEJA

    noite. Ruller est acordado, ouvindo seus pais conversaremno quarto ao lado.

    O pai diz: O Ruller meio esquisito. Por que ele est sem-pre brincando sozinho?

    Como eu posso saber? responde a me do meio da es-curido.Ruller uma criao de Flannery OConnor; um garoto de

    uma cidadezinha e est desabrochando para o mundo. dia. No meio da mata, Ruller corre atrs de um peru selvagem

    que est ferido.Ah, se eu conseguisse peg-lo, o que ele pensa e, caram-ba, ele vaipeg-lo, mesmo que tenha de correr para fora do estado.Ruller imagina-se entrando triunfante pela porta da frente, com a

    ave sobre o ombro, e toda a famlia exclamando admirada: Olha, o Ruller est trazendo um peru! Ruller, onde foi que

    voc conseguiu esse peru? Ah, eu peguei no meio do mato. Se quiserem, qualquer dia

    pego outro para vocs.Mas pegar aquela ave ferida muito mais difcil do que ele pen-

    sava. Ento lhe ocorre outra idia: Acho que Deus vai me fazer

    correr toa atrs desse maldito peru a tarde inteira. Ele sabe queno devia pensar isso de Deus mas assim que ele est se sen-tindo. E quem pode culp-lo por estar se sentindo desse jeito?

    Captulo um

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    Ruller tropea, cai e fica ali no meio da sujeira, pensando se

    ele mesmo esquisito.Mas, de repente, a caada chega ao fim. O peru cai mortopor causa do tiro que havia levado. Ruller coloca a ave sobre oombro e comea sua marcha triunfal para casa, que fica bem nocentro da cidade. Ento se lembra do que pensou a respeito deDeus antes de capturar a ave. Eram pensamentos bem ruins, eleconfessa. provvel que Deus esteja chamando sua ateno,detendo-o antes que fosse tarde demais. E ento exclama: Obri-

    gado, Deus! O senhor foi extremamente generoso.Ele pensa que aquele peru pode ter sido um sinal. Pode ser

    que Deus queira que ele se torne um pregador. Ruller quer fazeralguma coisa para Deus. Se naquele dia encontrasse um pobrena rua, iria dar-lhe sua moeda de dez centavos. a nica queele tem, mas Ruller pensa que, por causa de Deus, ele a dariaao pobre.

    Andando agora pelo meio da cidade, as pessoas ficam ad-miradas com o tamanho da ave que ele carrega. Homens e mu-lheres ficam olhando para ele. Um grupo de crianas da roa oacompanham. Ento certo homem pergunta:

    Quanto voc acha que ele pesa? Pelo menos uns cinco quilos. Quanto tempo voc correu atrs dele? Mais ou menos uma hora.

    Que coisa impressionante!Mas Ruller no est com tempo para conversa fiada. Ele mal

    pode esperar para ouvir o que seu pessoal vai dizer quando elechegar em casa com aquela caa.

    E torce para encontrar algum mendigando. Com certezaele lhe daria sua moeda. Senhor, mande um mendigo. Mandeum antes que eu chegue em casa. E ele sabe que Deus vai lhe

    enviar um mendigo, pois uma criana incomum.Por favor, um mendigo agora mesmo, a orao de Ruller.No exato momento em que ele diz isso, uma mendiga velhinha

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    anda em sua direo. O corao de Ruller quase salta pela boca.

    Ele avana na direo da mulher, gritando: Aqui, aqui!. Colocaa moeda na mo dela e continua a andar sem olhar para trs.Aos poucos seu corao desacelera e ele sente algo inusi-

    tado como se estivesse feliz e sem graa ao mesmo tempo.Ruller est andando sobre as nuvens ele e a ave que Deus lheenviou.

    Nesse momento ele percebe a presena das crianas que oseguiam. Todo generoso, vira-se e pergunta:

    Vocs querem ver o peru que eu cacei?As crianas ficam olhando para ele.

    Eu o persegui at ele morrer. Olhem s a marca do tirodebaixo da asa.

    Deixe eu dar uma olhada diz um dos meninos. Ento,num gesto inesperado, o menino pega a ave, coloca-a sobre o pr-prio ombro e, girando o corpo, atinge o rosto de Ruller enquanto

    sai. E fica tudo por isso mesmo. Os meninos saem andando elevam o peru que Deus lhe havia mandado.Antes que Ruller conseguisse se mexer, os garotos j estavam

    a um quarteiro de distncia. Desaparecem na escurido, e Rullercomea a se arrastar para casa, mas logo dispara numa corrida. EFlannery OConnor termina a impressionante histria de Rullercom as seguintes palavras: Ele corria cada vez mais e, ao chegar estrada que dava para sua casa, estava com o corao to acelerado

    quanto as pernas e com a certeza de que havia Algo Terrvel atrsde si, com os braos rgidos e as mos prontos para agarr-lo.1

    Algo Terrvel.

    MEDOO que vem nossa mente quando pensamos em Deus o queexiste de mais importante a nosso respeito.2 Foi assim que

    1The Collected Works of Flannery OConnor, p. 42-54.2 A. W. TOZER, The Knowledge of the Holy, p. 9.

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    A. W. Tozer se expressou ao falar como as pessoas projetam no

    mundo a opinio que tm de Deus. Ele pergunta aos que cremem Deus e a maioria de ns cr quem o Deus em quecremos? Boa pergunta.

    Muita gente pensa o mesmo que Ruller sobre Deus. O Deusem quem cremos Algum que nos d um peru com uma mo eo tira com a outra. Quando ele d, vemos nisso um sinal de queDeus se importa conosco. Quando conseguimos o que quere-mos, a sensao de que estamos perto de Deus, o que tambm

    faz com que nos sintamos generosos. Assim, todo mundo ficasatisfeito, certo?

    Mas a histria diferente quandoperdemos o peru um claro sinal derejeio. Procuramos entender o mo-tivo. Onde foi que eu errei? Por que Deusest bravo comigo? Deus est tentando me

    ensinar alguma coisa?A maioria de ns jamais fala algo as-

    sim em voz alta nem se arrisca a pensarmuito nisso, mas quando perdemos o peru, passamos a pensarque Deus imprevisvel, mal-humorado, mesquinho e injusto.So pensamentos que nos afastam dele e nos fazem mergulhar emns mesmos. Deus se transforma num contador que contabilizacada passo em falso, cada erro, cada burrada, e debita tudo contra

    ns. Deus algum rancoroso que nos arranca das mos famlia,amigos, sade, dinheiro, satisfao, sucesso e alegria.

    Mas da pensamos: quem pode jogar a culpa em Deus? srio. s olhar para mim olhe para mim! Minha vida uma

    baguna. Pra incio de conversa, eu jamais teria conseguido ca-ar o peru. Se ele no tivesse cado morto na minha frente, euno conseguiria.

    Ento projetamos em Deus os piores sentimentos e idiasque temos sobre ns mesmos. Como algum j observou, Deusnos fez sua imagem, e ns prontamente lhe retribumos a gen-

    Quando perdemos

    o peru, passamos

    a pensar que Deus

    imprevisvel,

    mal-humorado,

    mesquinho e injusto.

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    tileza. Se sentimos que nos odiamos, a concluso lgica que

    Deus nos odeia. Certo?No, no bem assim.No bom pressupor que Deus sente em relao a ns o mes-

    mo que sentimos a no ser que nos amemos intensa e livre-mente com sabedoria plena e compaixo infinita. Se a histriado cristianismo verdica, o Deus que revela seu amor por nsem todos os lugares, em todas as coisas, expressa esse amor deforma plena e definitiva naquilo que Jesus fez em nosso favor.

    A transao est completa. Nada a acrescentar. Nada a retirar.Alguma pergunta?

    Bom, para dizer a verdade, temos algumas perguntas. fcilfazer essas afirmaes a respeito de Deus, principalmente quandose trata de faz-las para os outros, mas no to simples acreditarnelas. Juliana de Norwich foi de uma preciso cirrgica quandoescreveu: Algumas pessoas crem que Deus todo-poderoso e

    capaz de tudo, que ele tem uma sabedoria absoluta e poder parafazer todas as coisas, mas que ele tem um amor absoluto e real-mente far todas as coisas outra histria. Na minha opinio,essa ignorncia o maior de todos os obstculos para quemama a Deus.3 Aonde pensamos que estamos indo quando nosafastamos de Deus?

    Os pequenos deuses que adoramos quando nos afastamos doverdadeiro Deus so dolos que criamos para se parecerem conos-

    co. Sem uma profunda converso, no possvel aceitar que Deus incansvel em sua ternura e compaixo para conosco do jeito quesomos e no apesar de nossos pecados e faltas, mas neles e pormeio deles. Como diz Anne Lamott, o segredo que Deus nosama exatamentecomo somos, e ama tanto que no ir nos deixarnesse estado; e estou tentando confiar nisso.4 H duas coisas queela deixa claras nessa declarao: Deus no vai deixar de trabalhar

    3The Revelations of Divine Love, cap. 73.4Operating Instructions, p. 96.

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    em ns, at que sua obra esteja pronta E Deus no retm seu amor

    porque o mal est em ns. Nem agora, nem nunca.Certa noite, um amigo meu perguntou ao filho deficiente: Daniel, quando voc v Jesus olhando para voc, o que

    que voc enxerga nos olhos dele?Depois de um longo silncio, o menino respondeu:

    Os olhos dele esto cheios de lgrimas, papai.Hesitando nas palavras, seu pai lhe perguntou:

    Por qu, Daniel?

    Outro momento de silncio, mais longo ainda. E por que ele est triste?Daniel olhou para o cho. Ao levantar a cabea, seus olhos

    estavam rasos dgua. Porque eu estou com medo.Puxa! No era para ser assim. Deus

    jamais quis que tivssemos medo. Joo

    escreve: No amor no existe medo; an-tes, o perfeito amor lana fora o medo.Ora, o medo produz tormento; logo,aquele que teme no aperfeioado no

    amor.5 Entristecemos o corao de Deus quando temos medodele, medo da vida, medo do outro, medo de ns mesmos.

    Assim, fazemos tudo o que est ao nosso alcance para olharapenas para o nosso umbigo, para sermos auto-suficientes, para

    que nossa satisfao no dependa dos outros. como o ditadoque diz: Melhor estrada velha que vereda nova.

    Entristecemos o corao de Deus quando, ao tropear, cor-remos dele e no para ele.

    DIOPara um alcolico, um descuido uma experincia aterra-

    dora. A obsesso fsica e mental pela bebida chega como uma

    5 1Joo 4:18.

    Entristecemos

    o corao de Deus

    quando, ao tropear,

    corremos dele

    e no para ele.

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    rpida inundao num local que todos pensavam ser seco e ina-

    tingvel. Quando a pessoa que bebeu volta sobriedade, ela sesente arrasada.Isso no apenas teoria. Eu sou alcolico. Minha vida foi

    arruinada pelo lcool e restaurada pelo amor incondicional deJesus. Quando tive uma recada, restaram-me duas opes (esomente duas): dobrar-me outra vez diante da culpa, do medo,da depresso e talvez diante da morte provocada pela bebida, oucorrer de volta para os braos do meu Pai celestial.

    A verdade a seguinte: no nenhum bicho de sete cabeassentir-se amado por Deus quando nossa vida est em equilbrioe contamos com nossos sistemas de apoio. Quando nos sentimosfortes, a auto-aceitao acontece com mais facilidade.

    Mas, e quando perdemos o controle das coisas? E quando er-ramos ou deixamos de fazer o que certo, quando nossos sonhosse despedaam, quando as pessoas que amamos no confiam

    em ns, quando decepcionamos a ns mesmos? E quando nosomos melhores que as pessoas que sempre menosprezamos?Como ficamos?

    Pergunte a algum que tenha acabado de passar por um rom-pimento, seja a perda de um amigo, seja o divrcio dos pais. Ele

    j se reequilibrou? Sente-se seguro? Digno? Sente-se como umfilho amado de Aba ou deixou de sentir o amor de Deus quandoperdeu o controle da situao? Essa pessoa experimenta o amor

    de Deus quando tudo parece estar detonado ou somente quandoas coisas vo bem somente quando ela vai bem?

    Deus no fica chocado quando camos. No mais do que umame que v seu filhinho tropear, cair e se meter em situaesdas quais no consegue sair. Juliana de Norwich escreveu: OSenhor no quer que seus servos entrem em desespero, por maisfreqentes e duras que sejam as nossas quedas, porque o fato de

    cairmos no se transforma em obstculo ao seu amor.

    6

    6 Op. cit., cap. 39.

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    Acreditar nisso no tarefa fcil. Pessoas como ns so muito

    desconfiadas desse tipo de coisa. Achamos que deve haver algu-ma armadilha. E se no fcil aceitar algo assim com a nossamente, muito mais complicado aceit-lo do fundo do cora-o. Somos to tmidos (ou seria orgulhosos?), que dificilmenteconseguimos pedir a misericrdia que tanto necessitamos. Noporque odiemos a Deus ou porque ele nos odeie, mas porqueodiamos a ns mesmos.

    SEGURANASe voc tiver de aprender uma s verdade, aprenda esta: a vidaespiritual comea com nossa aceitao do amor pleno e sincerode Deus pelo nosso eu ferido, quebrantado, hostil e triste. Noh outro ponto de partida.

    Deus nos chama a todos para fora do esconderijo. Ele noschama de onde quer que tenhamos ido para encontrar vida,

    chama-nos de volta para casa. Deus o pai que ama loucamen-te, que fica esperando na janela at que o filho que se perdeurecupere o juzo e pense no caminho de volta, o pai que agoracorre para se encontrar com seu garoto e abra-lo, carregan-do-o pelos ltimos metros da caminhada, de modo que pos-sam recomear a vida do zero, como se nada de mau houvesseacontecido, como se a festa que ele pretende dar naquela noitefosse para comemorar o nascimento do filho.

    Sempre foi assim. Ado e Eva ficaram envergonhados quandodesobedeceram a Deus e, por isso, esconderam-se. E de um jeitoou de outro, desde ento eles tm sido modelos para ns. Porqu? Porque detestamos que os outros vejam o que realmentesomos, e isso tem pouca relao com a dimenso da maldadeque poderamos atingir e tudo a ver com o fato de no sermoso que poderamos e deveramos ser o que aspiramos e talvez

    at finjamos ser.Conhecemos a verdade sobre ns mesmos ou pelo menosa maior parte dela e essa verdade no muito bonita, no.

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    Nosso jeito de lidar com o que h de feio em ns passa prin-

    cipalmente pelo caminho da desconversa: Ei, d uma olhadacomo aquelecara feio! Olha o monte de coisas que eu no fao!Procuramos solucionar as coisas por meio de uma farsa, pondo-nos debaixo de uma capa quando nos vemos numa situao depresso escondemo-nos. Isso nunca foi soluo.

    Simon Tugwell escreveu:

    Escondemos atrs de alguma aparncia que julgamos mais

    agradvel tudo o que sabemos e sentimos acerca de ns mesmos

    (coisas que achamos que os outros nunca havero de aceitar

    nem de amar). Escondemo-nos atrs de um rosto bonito que ar-

    ranjamos para o bem do nosso pblico. Com o tempo podemos

    at nos esquecer de que estamos nos escondendo e vir a pensar

    que realmente somos aquele rosto bonito que arranjamos.7

    Agora, surpresa! Quer algum j tenha se incomodado emnos dizer essas coisas, quer gostemos delas, quer no, Deus amaa pessoa que realmente somos. Assim como chamou todos osoutros desde Ado e Eva, Deus nos chama para sairmos do nossoesconderijo do jeito que estamos. No h tratamento de belezaque possa nos tornar mais apresentveis a Deus ele nos aceitano estado em que nos encontramos e diz: Tenho andado suaprocura! Tenho o lugar perfeito para voc!.

    Se o que Deus diz a nosso respeito a expresso mximada verdade, ento lgico que devemos segui-lo e aceitar nos-so presente estado como ponto de partida. Thomas Mertondisse: A razo por que nunca chegamos a um relacionamentodos mais profundos com Deus que raramente reconhecemosque no somos nada diante dele.8 Se confessarmos a verdadea nosso respeito, teremos todos os motivos para ter medo de

    7The Beatitudes: Soundings in Christian Tradition, p. 130.8The Hidden Ground of Love: Letters, p. 38.

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    que Deus venha a dizer sim, isso mesmo, e tem mais uma

    coisa..., e no temos dvida de que sempre haver mais algu-ma coisa. Somos como as pessoas que temem dizer ao mdicoonde di, pois tm medo de que a doena seja mais grave doque imaginam.

    E estamosmais doentes do que imaginamos. Estamos mor-rendo e, por mais maluco que isso possa parecer, fugimos domdico porque temos vergonha e nos odiamos por o tudo o quesomos e por tudo o que no somos.

    O Deus que nos chamou existncia o Deus que nos dizagora: Pare de odiar a si mesmo e venha para o meu amor.

    Venha para mim agora mesmo. Ele diz:Esquea de si mesmo. Aceite quemeu anseio ser em seu favor, quem eusou por voc seu Resgatador meuamor no tem fim, minha pacincia

    eterna, meu perdo irresistvel. Parede projetar sobre mim seus sentimentosdoentios. Voc uma flor cujo caule se

    quebrou eu no a esmagarei uma vela de luz bruxuleante eu no a apagarei. De uma vez por todas, relaxe: onde querque seja, comigo voc est em segurana.

    REJEIO

    Uma das maiores contradies entre os cristos est na antipatiaque temos por ns mesmos. A implicncia e a falta de tolernciaque temos com nossas fraquezas so muito maiores do que asque temos com outras pessoas. David Seamands enxerga assimessa questo:

    A maior arma psicolgica de Satans um sentimento vis-

    ceral de inferioridade, incompetncia e baixa auto-estima.

    Tal sentimento escraviza muitos cristos, apesar de muitas

    experincias espirituais e do conhecimento da Palavra de Deus.

    De uma vez

    por todas, relaxe:

    onde quer que seja,

    comigo voc est

    em segurana.

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    Embora compreendam que desfrutam da condio de filhos

    de Deus, eles se acham imobilizados, presos por um terrvelsentimento de inferioridade e acorrentados a um profundo

    senso de indignidade.9

    Conta-se uma histria interessante de um homem que sofriade depresso crnica e foi buscar ajuda do psiclogo Carl Jung.O psiclogo lhe disse que reduzisse sua jornada de trabalho decatorze horas para oito, fosse diretamente para casa e passasse

    as noites sozinho e em silncio. Ento ele comeou a passar to-das as noites trancado em casa, lendo Thomas Mann e HermanHesse e tocando Mozart e Chopin em seu piano.

    Poucas semanas depois, o homemprocurou novamente Jung, contou o quevinha fazendo e queixou-se de que nohavia sentido melhora alguma. Jung res-

    pondeu: Mas voc no me entendeu. Eu nodisse que voc devia ficar na companhiade Hesse, Mann, Chopin ou Mozart. Eumandei que voc ficasse completamentesozinho.

    Com o olhar aterrorizado, o homem respondeu: Mas no poderia haver uma companhia pior que essa.

    Ento, Jung devolveu: Mas a essa pessoa que voc submete os outros catorze

    horas por dia.10

    Odiar a si mesmo uma atitude que se pe como uma nuvementre os cristos e o Pai das luzes. Ficamos apavorados com apossibilidade de estar sozinhos em silncio. Ficamos to parali-sados pela auto-rejeio, que neutralizamos a ao do Esprito

    9Healing for Damaged Emotions, p. 49.10 Morton KELSEY,Encounters with God.

    Ficamos to

    paralisados pela

    auto-rejeio,

    que neutralizamos

    a ao do

    Esprito de Deus

    em ns.

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    de Deus em ns, obstruindo o alimento que deveria nos fazer

    crescer, florescer e produzir fruto.Ouvimos a voz de adultos autoritrios, membros de igrejamoralistas, parceiros cruis, amigos desleais. At aquele que olhapara ns quando olhamos para o espelho reflete nada mais que

    julgamento e desculpas esfarrapadas:Voc nunca vai ser ningum.Voc nunca vai crescer.Voc igualzinho ao seu pai.

    Como que voc pode ser assim?Nem invente de abrir seu prprio negcio.No de admirar que tanta gente queira se dopar. O lcool

    e outros depressores do conta do recado, assim como tambma obrigao auto-imposta de superar as expectativas dos outrose todas as formas de agradar as pessoas ao nosso redor. O mes-mo efeito pode ser obtido pela ingesto de alimentos ricos em

    calorias e de lanches rpidos, que elevam o nvel de acar nosangue, e pelos estimulantes, que disparam o corao e tornama pessoa ultra-sensvel aos estmulos visuais e auditivos, ao toquee ao paladar. O sexo casual tambm pode servir para nos dopar.E o mesmo efeito pode ser alcanado pela auto-agresso e portodo tipo de sofrimento que infligimos a ns mesmos, se a dorque sentimos for piorando com o tempo.

    Henri Nouwen escreveu:

    Percebi que a grande armadilha na nossa vida no o sucesso,

    nem a popularidade, nem o poder, mas a auto-rejeio. fato

    que o sucesso, a popularidade e o poder podem ser uma grande

    tentao, mas o poder de seduo que eles tm sobre ns est

    intimamente relacionado com o papel que desempenham

    na tentao da auto-rejeio, esta sim muito maior. Quando

    passamos a acreditar nas vozes que nos dizem que somos

    indignos e no merecemos ser amados, o sucesso, a popularidade

    e o poder apresentam-se facilmente como solues que nos

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    atraem. A grande armadilha, no entanto, a auto-rejeio [...]

    Ela o pior inimigo da vida espiritual, pois contradiz a vozsagrada que nos chama de Amados. Sermos Amados constitui

    a grande verdade acerca de nossa existncia.11

    Aprendemos a ser flexveis com ns mesmos quando expe-rimentamos a compaixo ntima e afetuosa de Jesus. Quandoele tem liberdade em nosso corao, propicia-nos luz e calore, pouco a pouco, renovao, at que a fortaleza das trevas se

    transforme num palcio.

    SOLITUDENo vero de 1992, passei vinte dias num chal nas MontanhasRochosas no estado do Colorado. Esse retiro aliava aconselha-mento, silncio e, com exceo da presena do meu conselheiro,isolamento total. Foi um passo gigantesco que dei em minha ca-

    minhada interior. Todos os dias, logo cedo, eu me reunia com umpsiclogo, e ele me ajudava a recuperar lembranas e sentimen-tos reprimidos da minha infncia. No restante do dia, eu ficavasozinho no chal, sem televiso, sem msica, sem leitura.

    Com o passar dos dias, percebi que eu havia perdido a ca-pacidade de realmente sentiralguma coisa desde os oito anosde idade, quando uma experincia traumtica bloqueou minhamemria pelos nove anos seguintes e meus sentimentos durante

    cinco dcadas.Quando eu tinha oito anos, o impostor meu falso eu

    nasceu como uma defesa contra o sofrimento. Ele sussurravadentro de mim: Brennan, nunca mais seja voc mesmo, porqueningum gosta de voc desse jeito. Invente um novo Brennanque todos possam admirar, mas que ningum possa conhecer deverdade. Eu segui esse conselho. Tornei-me um bom garoto educado, de boas maneiras, modesto e amigvel. Estudei muito,

    11Life of the Beloved, p. 21

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    tirei notas altas, ganhei uma bolsa de estudos na faculdade, mas

    a cada minuto eu era assaltado pelo medo do abandono e pelasensao de que no podia contar com ningum.Tudo isso funcionou grande parte do tempo. Aprendi que

    um desempenho perfeito me garantia o reconhecimento e aaprovao que eu buscava. Mas difcil manter a aparncia deperfeio, e isso me dava mais medo ainda. Ento, para manterafastados o medo e a vergonha, migrei para uma rbita em queeu no tinha sentimentos.

    O impostor me fez o favor de se responsabilizar por todos osmeus compromissos pblicos, tarefa que cumpriu com leveza eencanto. Ele me manteve ativo nas horas em que eu teria desis-tido. Conduziu-me durante duas dcadas em minha funo desacerdote e com grande competncia conservou separados minhamente e corao. Uma cena do filmeLembranas de Hollywoodmuito eloqente nesse aspecto. Uma estrela do cinema conversa

    com seu diretor, que a faz pensar na vida maravilhosa que elateve e em como qualquer outra mulher invejaria sua condio.Ela ento responde: , eu sei, mas quer saber de uma coisa?No consigo sentir a minha vida. Nunca fui capaz de sentir avida e todas as coisas boas que ela me deu.12 Posso entend-la.Durante dezoito anos proclamei as boas novas do amor ardentee incondicional de Deus convencido dessa verdade no inte-lecto, mas sem nunca ter sentido o amor de Deus no corao.

    Meu terapeuta fez a seguinte observao: Durante todos essesanos havia uma porta de ao que escondia suas emoes e ne-gava-lhe acesso a elas.

    No dcimo dia do meu retiro nas montanhas, peguei-mechorando e soluando. medida que minha dor era postapara fora, aconteceu algo extraordinrio. Ouvi o som de m-sica e dana a certa distncia de onde eu me encontrava. Eu

    era o filho prdigo que, aos trancos e barrancos, voltava para

    12 Columbia Pictures, 1990.

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    casa no para ser um espectador, mas para participar do

    amor de Aba. O impostor comeou a se dissipar, e eu entreiem contato com meu verdadeiro eu, o filho de Deus que vol-tava. Minha necessidade de elogios e afirmao comeava adecrescer.

    Conforme Mary Michael OShaughnessy gosta de afirmar:Muitas vezes, os colapsos nos levam s solues. Acabei en-tendendo que meu desligamento emocional se fortaleceu por-que, na infncia, recusei-me a chorar a falta de uma palavra de

    carinho e de um abrao afetuoso. uma bno sentir que vocperdeu o que mais valorizava. S assim voc pode ser acolhidopor Aquele que mais voc valoriza.13

    Eu costumava nunca me sentir satisfei-to comigo mesmo se meu desempenho nofosse irretocvel. Meu desejo de ser perfeitoera maior que meu desejo de Deus. Intimi-

    dado pelo meu prprio padro baseado nooito ou oitenta, eu via as fraquezas como ex-presses de mediocridade e as incoernciascomo perda de controle. Eu achava que compaixo e aceitaode si mesmo eram auto-indulgncia. E acabei chegando a umestado de esgotamento. Minha sensao de fracasso e incompe-tncia acabaram com minha auto-estima, disparando episdiosde depresso leve e ansiedade profunda.

    Mesmo sem querer, projetei sobre Deus os sentimentos queeu tinha a meu respeito. Sentia-me bem com ele somente quan-do conseguia me enxergar como algum distinto, generoso,afetuoso, isento de cicatrizes, medos e lgrimas uma pessoaperfeita!

    Com o passar do tempo estava se tornando cada vez maisdifcil mostrar minha verdadeira face. Mas naquela manh re-

    luzente, num chal no meio das Rochosas, sa do esconderijo.

    13 Mateus 5:4.

    Meu desejo

    de ser perfeito

    era maior

    que meu desejo

    de Deus.

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    Jesus retirou de sobre mim a capa de perfeccionismo e, sentindo-

    me perdoado, livre e seguro, corri para a casa de Aba. At queenfim tive a certeza de que podia contar com Algum. Profun-damente fascinado, com lgrimas escorrendo pelas faces, abra-cei e finalmentesentitodas as palavras que eu j havia escrito efalado a respeito do Amor determinado e incondicional de Deus.Entendi naquela manh que as palavras no passam de fumaaquando comparadas com a Realidade. Passei de uma condioem que eu ensinava sobre o amor de Deus para outra em que eu

    acreditava de verdade ser o prazer de Aba.O que significa sentir-se seguro? Naquela mesma tarde es-

    crevi em meu dirio:

    Sentir-me seguro deixar de viver na esfera do intelecto e mer-

    gulhar no corao, sentindo-me amado e aceito [...] no tendo

    mais que me esconder nem me distrair com livros, televiso,

    cinema, sorvete, conversa fiada [...] ficar no momento presentee no escapar para o passado nem projetar-me para o futuro,

    alerta e atento ao agora [...] sentindo-me tranqilo e no nervoso

    e agitado [...] sem precisar impressionar ou fascinar os outros

    nem chamar a ateno para mim [...] Confiante, um novo jeito

    de estar comigo mesmo, um novo jeito de estar no mundo [...]

    calmo, destemido, sem andar ansioso com o que vai acontecer

    em segui da [...] amado e valorizado [...] simplesmente firme

    e sereno.

    O RISCOO risco este, pelo menos para mim: ao escrever agora sobreaquela experincia, corro o risco de criar um novo impostorcom um disfarce ainda mais sutil. Ele me fala baixinho: Oi,olhe como voc se transformou numa pessoa humilde. Isso

    no uma bno? Olhe s como Deus fez de voc um exem-plo da sua graa. Agora que voc chegou a um estgio assim,h tanta coisa que voc pode oferecer! No estrague tudo;

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    no permita que as pessoas se aproximem demais e venham a

    desconfiar de que voc no to humilde o tempo todo. Aorefletir sobre o tipo de encontro que tive com Deus no retironas montanhas, lembrei-me das palavras solenes de Teresa devila: Experincias como essas so concedidas aos irmose irms mais fracos para fortalecer-lhes a f vacilante. Possotomar nas mos o crdito que dou graa de Deus e comuma rapidez alucinante transform-lo num discurso para meautopromover.

    Thomas Merton disse certa vez a um colega monge: Se eufizer alguma coisa com base no fato de que sou Thomas Mer-ton, estarei acabado. E se voc fizer alguma coisa com base nofato de que o encarregado de cuidar do chiqueiro, voc estaracabado. E que soluo Thomas Merton d para essa situao?Pare totalmente de contabilizar seus acertos e entregue-se comtoda a sua pecaminosidade ao Deus que no olha nem para os

    acertos nem para quem os contabiliza, mas apenas para seu filhoredimido por Cristo.14

    Pare de contabilizar acertos. Essa tarefa ser difcil enquantoalimentarmos a esperana de que, apesar de todas as coisas, dealguma forma acabaremos sendo os vencedores (e nossos inimi-gos, claro, sero os perdedores).

    Lamento inform-lo, mas no assim que essas coisas fun-cionam.

    Elas funcionam deste jeito: todas as coisas cooperam para obem daqueles que amam a Deus, e Agostinho de Hipona acres-centa, at mesmo nossos pecados. Mas no apenas nossospecados. O Deus que perdoa e esquece o que fazemos de mautambm transforma nossa fraqueza em fora:

    Eu me alegro tambm com as fraquezas, os insultos, os sofri-

    mentos, as perseguies e as dificuldades pelos quais passo por

    14 James FINLEY,Mertons Palace of Nowhere, p. 53.

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    causa de Cristo. Porque, quando perco toda a minha fora, ento

    tenho a fora de Cristo em mim.15

    A pea de Thorton Wilder The Angel that Troubled the Waters[O anjo que agitava as guas] se passa no tanque de Betesda, localdo encontro entre Jesus e um homem que no conseguia andar,conforme narrado em Joo 5:1-4. As pessoas iam a esse tanquepor acreditar que, de vez em quando, um anjo agitava as guas,e a primeira pessoa que entrasse no tanque depois do toque do

    anjo seria curada. Na pea de Wilder, h ummdico que chega ansioso para ser curado desua depresso. Quando o anjo aparece, ele im-pede que o mdico entre na gua. O mdicoimplora ajuda ao anjo, mas este lhe diz queaquele momento no era para ele:

    Sem tuas feridas, onde estaria a tua fora? a tua melancoliaque leva tua voz fraca e trmula ao corao de homens e

    mulheres. At mesmo os anjos no tm condies de convencer

    os filhos miserveis que tateiam neste mundo, no tanto

    quanto um ser humano quebrantado sobre as rodas do viver.

    Somente soldados feridos podem estar a servio do Amor.

    Mdico, afasta-te.

    Um pouco depois, o homem que havia entrado na gua en-quanto o mdico era impedido aproxima-se e diz:

    Por favor, acompanha-me. Minha casa fica somente a uma

    hora daqui. Meu filho est perdido em meio a pensamentos

    sombrios. Eu no o compreendo, e somente tu j conseguiste

    anim-lo. Uma hora apenas [...] E h ainda a minha filha; desde

    15 2Corntios 12:10.

    Sem tuas

    feridas,

    onde estaria

    a tua fora?

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    que seu beb morreu, ela fica sentada no meio da escurido.

    Ela no nos ouve, mas ouvir a ti.16

    Somente soldados feridos podem estar a servio do Amor.Fingir que no temos feridas uma mentira egocntrica. E noapenas egocntrica, mas autodestrutiva. Quando sou levado pelomedo e pela vergonha a ocultar minhas feridas, no so apenas asoutras pessoas que mantenho na escurido. Se assim, por que to fcil eu me agarrar com unhas e dentes aos sentimentos ruins

    e s minhas dores, se o que eu deveria fazer descart-los?Dietrich Bonhoeffer disse certa vez que a culpa um dolo,e ele tinha razo, pois algumas pessoas, em se tratando de sen-timento de culpa, so insaciveis, e qualquer coisa da qual eusempre precise mais torna-se um deus para mim.17

    Mas, culpa? Por que algum haveria de adorar no altar daculpa? Seria porque se trata da culpa da prpria pessoa e nin-gum pode tir-la a no ser ela? Ou porque isso d estrutura

    sua vida? Ou seria porque, no final das contas, a culpa tem a vercom a prpria pessoa? Qualquer coisa da qual eu sempre pre-cise mais torna-se um deus para mim .

    Enquanto fingimos ser bons demais para precisar de perdo,ou miserveis demais para receb-lo, vivemos num paralelo so-litrio com as outras pessoas sem nunca as encontrar de verda-de. Quando nos aventuramos a viver de modo que o verdadeiro

    perdo de Deus nos sacie, ento, e somente ento, nossa vidase entrelaa com a vida de todos os outros agentes de cura que,mesmo feridos, achegam-se cada vez mais a Jesus.

    O RELAES-PBLICASOs Alcolicos Annimos formam uma comunidade de agentesde cura, cada um com suas feridas. O psiquiatra James Knight

    16The Angel That Troubled the Waters and Other Plays, p. 20.17 Don FINTO em Old Friend, Real Kids: Survivors: Powerful Profiles on Addiction, Vio-

    lence, &Loss.

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    escreve a esse respeito: A eficcia dos membros dos AA no

    tratamento e no cuidado com seus pares alcolicos uma dasgrandes histrias de sucesso da nossa poca e ilustra de modorealista o poder das feridas que, se usado com criatividade, podesuavizar a presso da dor e do sofrimento.18

    Mas, por que Alcolicos Annimos e no as comunidadescrists? Talvez o motivo seja este: as pessoas que procuram osgrupos dos Alcolicos Annimos no conseguem mais admi-nistrar a prpria vida. A grande maioria das outras pessoas ja-

    mais admitiria ter perdido a capacidade de administrar a prpriavida, e o impostor no permitiria isso. O que o impostor faz temtudo a ver com administrao de risco e, quando necessrio,com gerenciamento de danos. O impostor um manipulador,um relaes-pblicas, faz trfico de influncia e varre a sujeirapara debaixo do tapete faz o que for necessrio para mantera aparncia de que no perdemos o controle da situao, de que

    conseguimos administrar nossa vida e de que no precisamosde um Resgatador.Mas o impostor sabe que tudo isso no passa de uma mentira.

    E ns, aglomerados na escurido, tambm sabemos.

    18

    Psychiatry and Religion: Overlapping Concerns. O excelente artigo de Knight,The Religio-Psychological Dimension of Wounded Healers a principalfonte de meus pensamentos aqui. Agradeo a ele e a Lillian Robinson porterem me apresentado o livro.