Expansoes Contemporaneas Literatura e Ou
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EXPANSESCONTEMPORNEAS
Literatura e outras formas
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISR Cllio Campolina Diniz
V Rocksane de Carvalho Norton
EDITORA UFMGD W M MV-D Roberto Alexandre do Carmo Said
CONSELHO EDITORIALWander Melo Miranda ()Ana Maria Caetano de FariaDanielle Cardoso de MenezesFlavio de Lemos CarsaladeHeloisa Maria Murgel StarlingMrcio Gomes SoaresMaria Helena Damasceno e Silva MegaleRoberto Alexandre do Carmo Said
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Ana Kiffer
Florencia GarramuoOrganizadoras
EXPANSESCONTEMPORNEAS
Literatura e outras formas
Belo Horizonte
Editora UFMG
2014
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2014, Os autores
2014, Editora UFMGEste livro ou parte dele no pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizaoescrita do Editor.____________________________________________________________________E96 Expanses contemporneas: literatura e outras formas / Ana Paula Kiffer e
Florencia Garramuo, organizadoras. Belo Horizonte : Editora UFMG,2014.155p.: il. (Babel)
Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-423-0043-7
1. Arte Coletnea. 2. Literatura Coletnea. 3. Arte moderna Sc.XXI Coletnea. 4. Arte e literatura Coletnea. 5. Literatura Esttica Coletnea. I. Kiffer, Ana Paula Veiga. II. Garramuo, Florencia. III. Srie.
CDD: 700 CDU: 7____________________________________________________________________
Elaborada pela DITTI Setor de Tratamento da InformaoBiblioteca Universitria da UFMG
C Michel Gannam
A Eliane Sousa e Eucldia Macedo
C Maria do Carmo Leite Ribeiro
P Cludia Campos
R Camila Figueiredo e Thas Duarte Silva
P Cssio Ribeiro, a partir do projeto de Marcelo Belico
F Victoria Arenque
P Warren Marilac
EDITORA UFMGAv. Antnio Carlos, 6.627 | CAD II / BLOCO IIICampus Pampulha | 31270-901 | Belo Horizonte/MGTel: + 55 31 3409-4650 | Fax: + 55 31 3409-4768www.editoraufmg.com.br | [email protected]
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SUMRIO
APRESENTAO 7
HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE
Trfego de imagens, composies anacrnicas e usos da
cultura material nas representaes do tupi-guarani
lvaro Fernndez Bravo 17
A ESCRITA E O FORA DE SI
Ana Kiffer 47
POESIA, CRTICA, ENDEREAMENTO
Celia Pedrosa 69
FORMAS DA IMPERTINNCIA
Florencia Garramuo 91
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VIDA E MORTE DA IMAGEM
Karl Erik Schllhammer 109
FORMAS MUTANTES
Wander Melo Miranda 135
SOBRE OS AUTORES 153
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APRESENTAO
A esttica contempornea est habitada por uma sriede prticas e intervenes artsticas que evidenciam um
estendido transbordamento de limites e expanses de cam-
pos e regies. Segundo a descrio que Jacques Rancire
faz dessa nova paisagem,
todas as competncias artsticas especficas tendem a sair
do seu prprio domnio e trocar seus lugares e seus poderes.Hoje temos teatro sem palavras e dana falada; instalaes e
performances como se fossem obras plsticas; projees de
vdeo transformadas em ciclos de afrescos e murais; fotografias
tratadas como quadros vivos ou pintura histrica, escultura
metamorfoseada em show multimdia, e outras combinaes.1
No campo das artes visuais, essa paisagem vem sendo
analisada de maneira consistente h alguns anos, numa
reflexo terica que foi impulsada pelo impacto poderoso
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da arte conceitual e das instalaes artsticas. J h algumas
dcadas, com uma marca claramente estruturalista quetalvez tenha sido a sua limitao mais importante, Rosalind
Krauss falou da escultura num campo expandido para
situar a apario de um novo tipo de obras artsticas que
s poderiam ser consideradas como esculturas se a prpria
categoria de escultura se expandisse de tal maneira que
deixasse de definir de modo especfico algum tipo de obra
em particular.2
Alguns anos mais tarde, e provavelmenteem resposta s crticas que tinha recebido pela rigidez desse
paradigma estruturalista, a prpria Krauss ser uma das pri-
meiras tericas a falar da condiopost-medialda arte con-
tempornea para se referir propagao internacional da
instalao de mixed media[que] tem se tornado ubqua.3
No por acaso, nesse mesmo ensaio, a reflexo de
Krauss se sustentava na anlise de algumas obras de MarcelBroodthaers, entre elas, a entitulada Charles Baudelaire: Je
hais le mouvement qui dplace les lignes, de 1973. Trata-se
de uma obra na qual o artista convm lembrar aqui, tam-
bm poeta utiliza esse verso de Baudelaire colocando-o
em cada pgina em lugares diferentes s vezes contra a
margem esquerda, depois no centro da pgina, posterior-
mente na margem direita , fazendo o texto figurar, sobrea pgina em branco, como imagem. O livro, pela sua vez,
converte-se em uma sorte de objeto visual que incorpora o
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verso e o que o verso tem, sempre, de imagem como ele-
mento construtivo dessa visualidade. Mas esse dispositivono faz o verso abandonar, nessa disposio, sua condio
de verso, nem o livro, sua condio de livro. Muito pelo
contrrio, precisamente a repetio e a colocao do verso
na pgina so alguns dos procedimentos mais paradigm-
ticos e representativos prprios e pertinentes da poesia
enquanto forma discursiva. Ao colocar lado a lado literatura
e visualidade, Broodthaers elabora uma forte crtica ideiade um meio especfico e se converte segundo Krauss em
um dos precursores, numa genealogia da condio post-
-medial, da arte contempornea. relevante que tenha sido
Baudelaire quem inspirou essa genealogia, j que foi um
dos nomes fundacionais em um movimento de expanso
dos limites da lrica. Com tal expanso da lrica, Baudelaire
vem consagrar a ideia de uma poesia moderna e de umaarte moderna , para a qual a sada para fora de siseria o
seu dispositivo mais contundente.
Neste momento poderamos assinalar que tal sada perfa-
zia-se, sobretudo, nos mecanismos de passagens, na prpria
relao entre as passagens do registro crtico ao potico, da
vida cotidiana ao museu, entre outras que, por sua vez, no
deixavam de inscrever nas prprias passagens arquitetnicascones de um certo modo de vida moderna na Paris de
Baudelaire. Essas passagens, ainda ligaes entre interior e
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exterior, vm sendo na arte e na vida contempornea
explodidas em seus contornos arquitetnicos, estticos esubjetivos. Esta, se poderia dizer, uma interrogao crucial
deste livro: quais transformaes se deixam notar entre a
expansodos limites da arte moderna e a radicalidade de
um no pertencimento contemporneo? De que modo o
fora de si, antes marcadamente caracterizado pelos limites
nacionais, territoriais e subjetivos, que faziam com que a
sua apario se fundasse numa verdadeira transgresso,passou a caracterizar-se como um operador cotidiano das
experincias-limite ou mesmo desidentitrias pelas quais
passamos mais ou menos todos no mundo atual?
E mesmo no mbito daquilo que por sculos (desde
praticamente as origens da constituio do que entende-
mos por Cincias Humanas)4se constituiu como lugar do
especfico e do identitrio, hoje vemos, como aponta otexto de lvaro Fernndez Bravo, os diferentes modos de
pensar o capital simblico amerndio como inespecfico
mvel e heterocrnico e por sua vez passvel de evocar
conotaes simblicas, histricas, etnogrficas e filosficas.
Ou seja, a interrogao sobre os diferentes modos do no
pertencimento, ou mesmo sobre a radicalizao das expe-
rincias que hoje constituem um estar fora de si, nodeixa de apontar a fora paradoxal que age numa partilha
do sensvel no mundo contemporneo. A prpria ideia de
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APRESENTAO 11
formas do no pertencimento (Garramuo) j em si um
operador paradoxal, posto que recorre forma para falar doinespecfico, ou ainda o fora de si (Kiffer), que apela para
uma exterioridade radical, porm ligada constituio do
subjetivo. Ou, mais longe ainda, todo o desenvolvimento
proposto por Schllhammer da ideia paradoxal de uma
imagem que ao mesmo tempo um composto de vida e
afeto, mesmo que saibamos que uma imagem j no mais
a vida seno que a sobrevivncia do instante de sua morte,ali concentrada, congelada ou refluda.
A esse respeito, tambm a literatura e a poesia contem-
pornea (Pedrosa e Garramuo) participam de uma intensa
expanso de seu campo ou meio especfico h alguns anos.
No dizer de Pedrosa, ao analisar a poesia de Marcos Siscar:
No ir e vir constante em que o dentro e o fora tm sub-
vertidas suas fronteiras e antagonismos, imagens visuaisse mesclam a fragmentos de memria potica, filosfica,
geogrfica, geolgica, biogrfica. Como na poesia de Mar-
cos Siscar, exploraes literrias que estabelecem pontos de
conexo e fuga entre fico e fotografia, imagens, memrias,
autobiografias, blogs, chats e correios eletrnicos, assim
como entre o ensaio e o documentrio, como o demostram
textos to diversos como os de W. G. Sebald, Bernardo deCarvalho, John Berger, Joo Gilberto Noll, Fernando Vallejo
ou, de Nuno Ramos, so cada vez mais numerosas, muito
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embora isso no implique que sejam hegemnicas. Caberia
assinalar, alis, que muitos dos textos que se limitam ao quepoderamos considerar como o seu prprio meio se de-
cidirmos optar por uma linguagem positivista evidenciam
uma srie de perfuraes nas convenes que tm definido
a especificidade literria, abrindo, por conseguinte, outras
possibilidades ou linhas de fuga em relao ideia da es-
pecificidade do literrio.
Trata-se no s de uma imploso do meio especfico,ainda se entendermos meio para alm do seu suporte
fsico, incorporando em sua definio as convenes que o
definem num momento histrico determinado.5Trata-se,
mais alm e isto o mais importante , de um profundo
questionamento do prprio enquanto definio estvel
e circunscrita de uma especificidade. Especificidade tanto
do meio como do prprio conceito de arte, como um modode postular o que em outro artigo temos chamado de uma
arte inespecfica.6 ali que se joga uma noo de literatura
ou de arte que tem incorporado, dentro de sua linguagem,
suportes e funes, uma relao com outros discursos e
esferas nos quais o literrio, ou o artstico, no dado nem
construdo, mas, muito pelo contrrio, desconstrudo ou,
pelo menos, colocado em questo ou sur rature, comoapontou Jacques Derrida. Esse movimento dispe textos
que, no dizer de Wander Melo Miranda, deveriam ser
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pensados como formas mutantes, onde o dispositivo da
montagem que os constri se realiza por meio de cortes erecortes no contnuo do relato, de migraes e sobrevivncia
das figuras em que os eventos narrados se transformam.
nessas sobrevivncias, nessas heterogeneidades7e heteroto-
pias, que essa arte inespecfica cifra uma vontade de imbri-
car as prticas artsticas na convivncia com a experincia
contempornea. Para alm mesmo da noo de campo,
enquanto espao circunscrito por limites e fronteiras, a ideiade uma arte que seria autnoma e independente aparece
suplantada por uma arte inespecfica que se figura como
parte do mundo.
Na tentativa de pensar essa nova paisagem da arte con-
tempornea, os ensaios deste livro tomam objetos diversos
prticas estticas, antropolgicas, poticas, literrias para
explorar com eles os modos como a expansividade da artehoje tem se constitudo num fora de si radical. O limite, des-
se modo, deixa de se localizar enquanto uma anterioridade j
dada, para se perfazer de modo transitrio, tnue ou poroso
enquanto lugar de experincia da prpria obra (Kiffer).
Desde os debates em torno da especificidade da obra de
arte colocados por antroplogos e historiadores (Fernndez
Bravo), expansividade da poesia brasileira contemporneaconcebida a partir de um hibridismo entre verso e prosa,
noes como as de formas mutantes, obra-instalao
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(Wander Melo Miranda) ou imagem pensiva (Rancire8
e Schllhammer) buscam definir conceitos que permitamcompreender esse fora de si para pensar a proliferao
escriturria que vai fazer da prpria atividade da escrita
uma passagem incessante entre regimes heterogneos, seja
no interior das artes, seja entre as diferentes camadas de
campos discursivos (Kiffer).
As organizadoras
Notas1 Jacques Rancire, El espectador emancipado, Buenos Aires, Manantial, 2010,
p. 27, traduo nossa.
2 Rosalind Krauss, Sculpture in the Expanded Field, October, v. 8, p. 30-44,Spring 1979. Lembremos a indefinio que pretende dar nome o conceito:Nos ltimos dez anos, coisas bem surpreendentes tm vindo a ser chamadasesculturas: estreitos corredores com monitores de televiso; grandes fotografias
documentando o campo; espelhos colocados em ngulos estranhos em quartoscomuns; linhas temporrias cortadas no piso do deserto. Nada, pareceria,poderia dar a essa heterogeneidade o direito de reclamar o que poderia sersignificado pela categoria de escultura. S se a categoria for tornada quaseinfinitamente malevel. (Ibidem, p. 31.)
3 Rosalind Krauss,A Voyage on the North Sea. Art in the Age of the Post-MediumCondition, London, Thames and Hudson, 1999, p. 20. Hal Foster tem apontadoque durante as ltimas trs dcadas o campo expandido tem lentamente im-plodido, j que termos antes tidos em contradio produtiva tm gradualmentecolapsado em compostos sem muita tenso, como nas muitas combinaes do
pictrico e do escultural, ou de arte e arquitetura, em arte instalao hoje arteque, na sua maioria, cabe bem demais na cultura do desenho-exibio criticadaem outra parte neste livro. (Hal Foster, This Funeral is for the Wrong Corpse,em Design and Crime, and Other Diatribes, New York/London: Verso Books,2002, p. 127, traduo nossa.) Segundo Jane Rendell, comentando Foster, o
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campo teria explodido mais do que implodido, e (...) por essa razo que ascategorias j no esto postas em tenso. (Jane Rendell, Art and Architecture:
A Place Between, London, New York, IB Tauris, Sept. 2006, no prelo, traduonossa.)
4 Michel Foucault, Les mots et les choses: une archologie des sciences humaines,Paris, Gallimard, 1966.
5 Cf. Jacques Rancire, What a Medium Can Mean, Parrhesia, n. 11, p. 35-43,2011.
6 Cf. Florencia Garramuo, Especie, pertenencia, especificidad, em e-misfrica,v. 10, n. 1, Winter 2013.
7
Ver Ana Kiffer, Sobre limites e corpos extremos, em Karl Erik Schllhammer eHeidrun Krieger Olinto (org.), Literatura e criatividade, Rio de Janeiro, 7Letras,2012.
8 Rancire, El espectador emancipado.
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HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADETrfego de imagens, composies anacrnicas
e usos da cultura material nas representaes
do tupi-guarani
lvaro Fernndez Bravo
O problema que gostaria de analisar brevemente neste
artigo a posio intermediria ocupada pelos objetos comoevidncia material para se teorizar sobre a natureza da cul-
tura. Quando falo de objetos, refiro-me a vestgios de uma
cultura material que se encontram em um espao indeciso
e em transio: podem ser lidos como restos arqueolgicos,
obras de arte, relquias ou artefatos, mas ficam fora de lugar
e por isso mesmo podem ser apropriados, descontextualiza-
dos ou restitudos no seu entorno (e tambm num campodisciplinar), possibilitando que se leia neles inmeros e
diferentes tipos de evocaes. So objetos que, quando se
reconhece seu itinerrio, desafiam a autonomia e no seu
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percurso cruzam fronteiras epistemolgicas, conceituais,
territoriais e temporais, desenhando assim um mapa decontornos expandidos.
Durante os anos de 1920, tanto na Europa quanto na
Amrica Latina, consolidou-se um interesse pelo mundo
indgena e sua cultura material como suporte para desen-
volver teorias estticas e investigaes etnogrficas, ou ainda
postular hipteses sobre a natureza das culturas nacionais.
As vanguardas apelaram ao referente indgena, s vezes paradesafiar a hegemonia dos paradigmas nacionalistas, outras
para consolid-la. O trfego de coisas aumentou, amparado
pelo aparato colonial (desdobrado tanto pelas potncias
coloniais do Atlntico Norte como pelos Estados nacionais
latino-americanos), e com ele o nmero de depsitos e a
infraestrutura para receber objetos e catalog-los. Nesse
processo, os etngrafos ocuparam um rol chave. Comosabemos, as coisas e os objetos adquirem essa condio
pelo uso e pelas camadas de olhares humanos que foram se
sobrepondo a eles, colocando-os, muitas vezes, em relao
com diferentes campos.
Os objetos que ingressaram e se movimentaram entre os
diferentes museus vo ser um dos focos de minha ateno
aqui, e em particular os debates em torno da especificidadeda obra de arte, posto que muitas delas s adquiriram essa
condio ao serem exibidas e contempladas como tais.
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Esse problema atraiu o interesse de numerosos pensadores
que se perguntaram pela migrao da cultura material noeuropeia, que foi trasladada em grandes quantidades desde
seus lugares arqueolgicos em todo o mundo at chegarem
aos museus europeus, norte-americanos e tambm latino-
-americanos, revelando, pela primeira vez, conotaes es-
tticas ali onde essa nfase no se configurava.
Assim se pode falar de uma dupla migrao da Amrica,
sia e frica para a Europa e os Estados Unidos e tambmdas reas rurais para as cidades e, uma vez l, entre os mu-
seus que se multiplicaram e foram ganhando especificidade.
Nas sucessivas trajetrias, os curadores e colecionadores
davam aos objetos novos atributos.
possvel encontrar um antecedente dessa preocupao
na viagem de Aby Warburg (1866-1929) para o territrio
da tribo dos ndios Pueblo, no atual estado de NovoMxico, Estados Unidos, em 1896. O contato de Warburg
com os Pueblo marcou as suas teorias sobre o Nachleben
e a sobrevivncia de prticas simblicas arcaicas em
manifestaes artsticas contemporneas e heterocrnicas.1
Warburg tinha comeado a pensar na questo da
sobrevivncia em obras do Quattrocentoitaliano, nas quais o
historiador de arte tinha reconhecido restos pagos arcaicos.Georges Didi-Huberman tem desenvolvido recentemente
uma provocativa e erudita releitura da obra de Warburg que,
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em contraste com as leituras de Ernst Gombrich com as
quais polemiza, busca reconhecer o valor do anacronismo.Didi-Huberman procurou recuperar a complexidade do
legado warburguiano e elaborar alguns conceitos sobre
os quais voltarei no meu trabalho, em particular o da
heterocronia das coisas e das imagens.2 O caminho de
Warburg foi precursor, se comparado a outros etngrafos,
artistas e pensadores que percorreram a Amrica do Sul
poucos anos depois e se detiveram na cultura materialamerndia para interrog-la e recuperar as perguntas do seu
trabalho de campo para questionar sua prpria prtica e,
com ela, os contornos disciplinares e os efeitos do trfego
de coisas e de conceitos.
Gostaria de pr em dilogo essas perspectivas para ana-
lisar o problema do tempo heterogneo, o trfego de ima-
gens e os usos da cultura material tupi-guarani como meio,isto , os diferentes modos de pensar o capital simblico
amerndio como inespecfico mvel e heterocrnico e
tambm passvel de evocar conotaes simblicas, hist-
ricas, etnogrficas e filosficas distintas. Para tal, vou levar
em considerao os debates que circundaram a publicao
da revista Documents, dirigida por Georges Bataille, e seu
efeito no modo de olhar para a cultura material guarani. Odilogo e a tenso entre etnografia e vanguarda atravessou
a especulao esttica e terica durante esses anos e pode ser
reconhecido nas pesquisas sobre o mundo guarani.
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A figura de Alfred Mtraux (1902-1963) e seus escritos
iniciais sobre as culturas tupi-guarani e tupinamb so umponto de partida para analisar o lugar do objeto de arte
como conglomerado de relaes. Interessa-me examinar
a construo de um discurso sobre o mundo guarani a
partir dos restos e dos vestgios da cultura material con-
servados em museus do norte da Europa e consultados por
Mtraux para escrever seus primeiros livros. A pesquisa de
Mtraux tem apoio em fontes escritas (relatos de viagem,crnicas coloniais e estudos etnogrficos contemporneos
ao momento de escritura), mas sobretudo em sua leitura
de documentos e nos cruzamentos interdisciplinares em
que convergem a etnografia, a arqueologia, a filologia e a
arte, o passado e o presente, a civilizao e o primitivo.
Publicado em 1928, o mesmo ano em que Mtraux fez a
curadoria, com Georges Henri Rivire, da exposio LesArts Anciens de lAmerique, no Museu do Louvre, e em
que se comea a publicar em So Paulo a Revista de Antro-
pofagia, La civilisation matrielle des tribus Tupi-Guarani
oferece um repertrio de objetos a partir dos quais se
desdobra uma teoria cultural. Porm, a assepsia metodo-
lgica do antroplogo nunca perde de vista o objeto que
ele usa para apoiar sua investigao.3Especula sobre suaantiguidade, sonda conotaes onde se reconhecem os
debates do momento, elabora mapas e prope itinerrios
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para as coisas. No segue o mesmo caminho do seu ami-
go Georges Bataille, mas mantm algumas preocupaescomuns. por isso, talvez, que Andr Breton o chamou
de o homem antipotico do sculo XX.4
Sua interveno pode ser lida como uma resposta (mas
tambm como um dilogo) com a revista Documents,
dirigida por Bataille, que comeou a ser publicada em
1929, no ano seguinte ao do seu livro e da exposio de
arte americana de 1.200 objetos exibida no Louvre, a pri-meira grande exibio de arte pr-colombiana na Europa
ocidental,5e da mudana de Mtraux para a Argentina,
onde j ento dirigia o recm-fundado Instituto de Et-
nologia da Universidade Nacional de Tucumn. Nesse
mesmo ano de 1928, Mtraux, com Jean Babelon e Georges
Bataille tinham editado um nmero da revista Cahiers de
la Republique des Lettres, des Sciences et des ArtsintituladoLart prcolombien. Ali se incluiu LAmrique disparue,
um dos primeiros artigos de Bataille. Essa revista permite
reconhecer uma precoce manifestao do campo expan-
dido no qual se cruzam a histria da arte, a cincia e a
literatura. dentro dessas guas que quero ler a obra de
Mtraux. Os objetos amerndios ocupavam uma posio
desconcertante e aberta na exposio. Veremos os efeitosdessa posio mais adiante.
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Cahiers de la Rpublique des Lettres, des Sciences et des Arts , 1928.
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Mtraux, filho de um mdico suo que tinha se
estabelecido na provncia de Mendoza, Argentina, passousua infncia na Amrica do Sul, viajou para realizar estudos
no liceu da sua cidade natal, Lausane, Sua, e logo continuou
seus estudos universitrios em Paris e em Gotemburgo,
Sucia. Defendeu sua tese de doutorado na Sorbonne
no mesmo ano de 1928, e a publicou em duas partes: La
civilisation materielle des tribus Tupi-Guaranie La religin
des Tupinamba et ces rapports avec celle des autres tribusTupi-Guarani.6Escreveu os dois livros sem ter realizado
trabalho de campo, baseando-se nas colees de cultura
material recolhidas por seu maestro Erland Nordenskild
na Amrica do Sul, entre 1901 e 1902, e alojadas no Museu
de Gotemburgo, e visitando os museus de Copenhague e
Berlim. Durante sua permanncia em Paris, estudou com
Marcel Mauss e estabeleceu uma longa relao com o grupode intelectuais surrealistas que pouco depois iria se nuclear
na revista Documents. Dado meu interesse pelos objetos,
vou me concentrar no primeiro de seus livros.
Documentos da barbrie
Antes de ingressar no problema da heterocronia da civili-
zao material tupi-guarani, quero me deter brevemente no
debate que teve lugar na revista Documents, e que tem um
eco no trabalho do etngrafo suo que analisaremos aqui.
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Muitos dos membros da revista (1929-1930, 15 nmeros)
estavam plenamente imersos na discusso sobre a posioda cultura material de origem no europeia (primitiva)
nos museus europeus. O subttulo da revista, Doctrines,
Archologie, Beaux-Arts, Ethnographie, permite reconhecer
a convivncia de categorias heterogneas dentro da publica-
o, que rechaava a ideia do valor esttico como autnomo,
desligado dos usos atribudos s coisas. Essa posio pode
ser lida como um antecedente da perspectiva de Mtrauxde ler os objetos num campo expandido. A relao entre
as vanguardas e a arte primitiva, j para fins dos anos de
1920, mostrava seus impactos sobre o mercado de arte e
consagrava a profanao desses objetos ao incorpor-los
decisivamente ao mercado, elevando sua cotizao e con-
firmando os efeitos irreversveis do museu sobre as coisas
que caam nas suas garras. Como assinala Denis Hollier noprefcio edio de 1991, Documentster por plataforma
uma oposio ao ponto de vista esttico.7
Gonzalo Aguilar destaca que um andamento seme-
lhante ocorre no Movimento Antropofgico em 1928. A
esttica que tinha ocupado um lugar central noManifesto
Pau-Brasil, de 1924, perde agora importncia e resulta
substituda por uma afiliao poltica ao negcio indgena.8Trata-se, claro, de uma afiliao retrica, afastada de todo
conhecimento etnogrfico ou contato com o mundo ame-
rndio, com o qual os membros da vanguarda antropfaga
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nunca tiveram uma aproximao efetiva, diferentemente
de Mrio de Andrade, que manteve uma relao ativa como conhecimento cientfico, tanto nas suas viagens como na
sua leitura da obra de Koch-Grunberg, citado vrias vezes
por Mtraux no livro La civilisation matrielle.
Se as coisas podiam ter um valor como documentos a
partir dos quais se lia rastros de culturas primitivas, quer
dizer, arcaicas e remotas, nesse valor de meio de acesso
que residia uma de suas maiores riquezas, porque em talvalor j se preparava, naturalmente, uma reflexo sobre o
contemporneo. Sem dvida que a defesa do valor de uso em
face do valor de cmbio que o mercado impunha aos objetos
radicava em preservar o resto material que essas coisas ti-
nham tido antes de ingressar na economia da coleo. Muito
embora se tratasse de objetos primitivos, se privilegiava seu
valor de uso e se denunciava os arquelogos e os estetaspelo seu formalismo, interessados na forma de uma asa [de
uma pea de olaria], mais incapazes de estudar a posio
do homem que bebe.9
Tambm significava conservar o lugar do intermdio
e aberto que tanto as imagens como os objetos possuem.
A condio de externalidade das coisas,10muito embora
fosse fantasmagrica e opaca, as preservava do fetichismo damercadoria que sua cotizao na bolsa de valores da arte j
comeava a lhes imputar. O debate suscitado em Documents
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teve vrios participantes ligados a Mtraux, como o prprio
Georges Henri Rivire, coeditor de Documentscom Bataille.Rivire tinha sido colaborador, com Mtraux, no s na-
quela primeira exposio no Louvre, mas tambm como
benfeitor, desde a subdireo do Muse de Ethnographie
du Trocadro, dos envios de cultura material realizados
desde o Chaco at Paris pelo etngrafo suo. O Muse du
Trocadro foi mudando de nome no decorrer dos anos,
primeiro para Muse de lHomme e depois para o atualMuse du Quai Brainly, e os objetos remitidos por Mtraux
ainda permanecem l e podem ser observados na pgina
web do museu. Foi no Muse du Trocadro onde Picasso
teria se inspirado para pintar Les demoiselles dAvignon,
logo aps observar objetos de procedncia africana expostos
nas vitrines.11
Carl Einstein, terico da arte primitiva e colaborador dapublicao, tambm se interessou pela questo da cultura
material no campo expandido.12Einstein tinha proclamado
alguns anos antes que a era das fices formalistas sobre a
arte tinha acabado,13e atacou a mediao europeia capita-
lista da qual a vanguarda se revelava, em ltima instncia,
cmplice , por consider-la cultora duma arte burguesa,
elitista, individualista e afastada de um propsito coletivistaque inclua situar os objetos longe da intermediao dos
colecionistas.
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O termo documento, que d ttulo revista, tambm
contrasta com a categoria de monumento. Monumentoalude ideia da cultura como trofu e sublimao, que os
membros da revista rechaavam, como fez Mtraux, em
suas leituras etnogrficas de objetos da arte a partir de sua
insero no mundo social de onde tinham sido extrados.
No se tratava de sustentar a transparncia da coisa, mas de
us-la como disparador para desenvolver hipteses sobre o
universo de onde provinham e no qual interatuavam.As coisas adquiriam, assim, um valorpost-medial, pela
sua condio inespecfica: a categoria de belas artes, em-
bora aparecesse no nome da revista, estava compreendida no
documento, que rechaava toda hierarquia (um sapato tinha
o mesmo valor que uma diadema de origem vikingou uma
obra de Giacometti). Recuperava-se, assim, intensamente, o
valor de uso como ia fazer Mtraux na sua reconstruo dacultura guarani a partir dos objetos reunidos na coleo de
seu maestro Erland Nordenskild no Museu de Gotembur-
go e se afastava, tambm, de toda noo de pureza e cultura
alta. por isso que a categoria de civilizao poder ser
usada por Mtraux para se referir ao mundo guarani que
at ento dificilmente poderia ter sido considerado como
tal. Na mesma linha, Paul Rivet, que tinha recomendado a
Juan B. Tern, Reitor da Universidade de Tucumn, para
contratar Mtraux, assinalava que
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capital o etngrafo, como o arquelogo, como o historiador
da pr-histria, estudar tudo o que constitui uma civilizao, semdeslegitimar nenhum elemento, por insignificante ou banal que
parea () os colecionistas tm incorrido no erro de um homem
que for julgar a civilizao francesa atual pelos objetos de luxo
que podem ser encontrados junto a um grupo muito reduzido
da populao.14
A afinidade da vanguarda com o baixo, a barbrie,os detritos, o anacronismo e seu ataque furioso s hierar-
quias consagradas no museu no impediram nem em sua
manifestao parisiense, nem nas suas expresses latino-
-americanas, incluindo o Movimento Antropofgico bra-
sileiro, as alianas estratgicas e o colaboracionismo com as
instituies de acumulao simblica primitiva localizadas
nos centros urbanos de poder poltico, tanto europeus
como latino-americanos, para onde o trfego dos vestgios
da cultura material continuou sem pausa.15No entanto,
os objetos, ainda que descontextualizados, albergam uma
resistncia e uma carga histrica inapagvel. Esse resduo
temporal e simblico vai ser o foco de interesse de Alfred
Mtraux a respeito da cultura guarani.
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A civilizao material tupi-guarani
O livro de Mtraux parte de dois conceitos raramen-te justapostos. Civilizao material apresenta um par
conceitual que no idntico: nem cultura material
nem civilizao isoladamente. A expresso pode se
explicar, conforme observam Bossert e Villar, em relao
ao alinhamento do antroplogo suo com o enfoque
cauteloso e ainda disposto a conviver com a incerteza da
escola escandinava de americanistas na qual o seu maestroErland Nordenskild o tinha treinado. Nordenskild
cujas obras Aby Warburg conheceu e consultou16 con-
tribuiu ainda com a revista Documents com um artigo
sobre a cultura material indgena americana, cujas ideias
tm semelhana com o mtodo de Mtraux no seu livro
La civilisation matrielle des tribus Tupi-Guarani.17No
entanto, o artigo tinha noes difusionistas que procu-ravam indagar na difuso de elementos culturais para
reconstruir o mapa tnico da Amrica do Sul. Tratava-
-se de uma posio moderada, disposta a reconhecer
invenes independentes e prximas a certo relativismo
cultural afastado dos extremos dogmticos dos tericos
da Kulturkreisedo difusionismo alemo ortodoxo.18
Assim, Mtraux propunha estudar a civilizao mate-
rial, um conceito que no estava associado com os grupos
indgenas Tupi-Guarani, particularmente na Argentina,
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onde o mundo indgena estava desprestigiado e tinha acesso
somente a museus etnogrficos sob os parmetros racistasda antropologia fsica. Apesar de algumas tentativas de
ingressar relquias indgenas em espaos associados com
a arte, como o Museu Nacional de Belas Artes de Buenos
Aires, elas tinham sido corts, mas firmemente derivadas
para o campo da cincia, como no caso da urna Quiroga,
uma pea de olaria calchaqui descoberta e doada pelo
arquelogo Adn Quiroga, eventualmente invisibilizadano Museu Etnogrfico da Universidade de Buenos Aires.19
Em contraste com esse antecedente, o guarani se en-
contra solidamente integrado no mundo paraguaio, onde
, junto com o espanhol, uma das duas lnguas oficiais do
Estado, e instituies como o Museu do Barro consagram
a cultura material guarani como emblema da cultura na-
cional.20O guarani ocupa, no entanto, um lugar menosntido tanto na Argentina como no Brasil e na Bolvia, onde
tambm habitam falantes de lnguas guaranis.
O Chaco uma zona de limites imprecisos que compre-
ende regies da Argentina, Bolvia, Paraguai e Brasil. Seu
territrio tem sido habitado e atravessado pelas migraes
guaranis e tupis durante vrios sculos. Vou tomar os es-
critos sobre esse grupo tnico como um campo expandidoe em movimentoque, a partir de objetos de arte de natureza
hbrida, por momentos carregados de um valor religioso,
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mas tambm dotados de conotaes estticas tal como
os considerou Aby Warburg no seu ensaio sobre os ndiosPueblo do Novo Mxico, elaborado em torno de 1927,mas s publicado 50 anos mais tarde ,21evidenciam umconglomerado de relaes a partir do objeto de arte quecompreende crenas, mitologia, prticas comunitrias ereligiosas e patrimnio lingustico.
Como assinalou recentemente Eduardo Viveiros deCastro, aplicar categorias como territrio ou comunidadeao mundo indgena entranha problemas difceis de seremresolvidos, ligados migrao, ao movimento e flutuaocontnua da mesma composio desses grupos humanos.22Como toda comunidade, os indgenas Tupi-Guaranino permanecem imveis, mas mudam, se deslocam,incorporam novos componentes, se fragmentam e alteramcontinuamente seu capital simblico. No permanecem
idnticos a si mesmos. No obstante, esse fenmeno foireconhecido muito cedo pelos etngrafos, particularmentepor Mtraux (mas tambm por Nordenskild); foi elequem dirigiu as pesquisas de objetos realizadas durantesua permanncia em Gotemburgo. Mtraux procuravareconstruir o itinerrio da suposta irradiao a partir deum ncleo primignio no Amazonas para diversas regies
da Amrica do Sul, incluindo a fronteira com o mundoandino, onde ele estudou os ento denominados indgenaschiriguanos, como possvel observar nos mapas declara inspirao difusionista includos em La civilisation
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matrielle des tribus Tupi-Guarani. Ali se reconhece um
xodo de leste a oeste, desde as costas atlnticas at ointerior do continente atravs dos rios amaznicos oudas selvas do Chaco, que culmina nos grupos Chiriguano(hoje denominados Av-Guarani) da Bolvia e do norteda Argentina.23 O efmero dos gentilcios, incluindo oprprio gentilcio tupi-guarani, indica no s uma condioatravessada por saberes contemporneos produo deconhecimento sobre esses grupos, mas tambm a maneiracomo o discurso para nome-los se torna rapidamenteanacrnico. Assim, categorias como tribo no ttulo daobra de Mtraux , nao e raa, para se referir aos tupi,revelam o anacronismo do discurso cientfico, atravessadopor uma forte ancoragem temporal. A lngua se encontraurdida pelo tempo em que foi usada e funciona, tal como afilologia tem sugerido, no s como meio de comunicao,
mas como arquivo e depositrio arqueolgico do tempoem que operou.
A palavra tinha um valor equivalente ao de um fssilpara os padres epistemolgicos dos anos de 1920, em quea antropologia se consolidava como disciplina,24mas osdiscursos etnogrficos, como a literatura de viagem, tinhamperdido tanto a sua nfase assertiva como a preciso cien-
tfica, e revelavam antes atributos estticos e ideolgicoscom valor para uma Kulturwissenschaft, a cincia da culturapela qual advogava Warburg. Ainda que a composio dotupi-guarani apele a fontes escritas, objetos e imagens de
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um extenso repertrio e atravs de um amplo arco tempo-
ral, todo esse fluxo de informao, bibliografia, citaes ereferncias conduz a uma teoria sobre o presente: a deca-
dncia e a ameaa de extino que se cerne sobre a cultura
guarani, e que o etngrafo procura resgatar antes que seja
tarde demais.
As duas imagens que vemos continuao, includas
no Captulo Sepultura de La civilisation matrielle des
tribus Tupi-Guarani,25
permitem reconhecer o modo detrabalho de Mtraux, que combina as ilustraes includas
no livro de Hans Staden com fotografias contemporneas
de objetos pertencentes coleo do Museu de Gotembur-
go para elaborar uma teoria que culmina no presente. A
bibliografia sobre sepultura inclui obras de Hans Staden,
Jean de Lry, Yves Dvreux, Claude DAbbeville, Gabriel
Soares de Souza, Andr Thvet e Martin Dobrizhoffer,todos autores de obras dos sculos XVI ao XVIII e que
cobrem uma extensa superfcie e variedade de grupos tni-
cos. Mas, junto com eles, tambm cita Nordenskild, Karl
von Steinen, Juan Bautista Ambrosetti, Antonio Tocantins
e Carl von Martius, autores mais modernos, alguns deles
ainda contemporneos do prprio Mtraux e tambm es-
tudiosos de culturas muito diversas. Os objetos convocamassim um repertrio heterogneo e impuro de saberes e
escritos que combinam momentos histricos desiguais,
de filiaes com escassas probabilidades de interseo.
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Imagens tomadas de A. Mtraux, La civilisation matrielle des tribusTupi-Guarani, 1928.
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O que que Mtraux prope ler na superfcie das coisas?
Seu mtodo recupera as mltiplas capas de tempo alojadasnos objetos e procura desenvolv-las para entender uma
trajetria que cruza diversos perodos e regies atravs dos
quais os Guarani se deslocaram. Por se tratar de uma pes-
quisa que confia em reconstruir uma trajetria, tem neces-
sariamente que apelar a uma mobilidade conceitual capaz de
registrar a sobrevivncia e, por isso mesmo, a heterocronia
das prticas simblicas atravs de extensos perodos histri-cos. Na sua anlise, o antroplogo reconhece componentes
estticos, rituais, religiosos, crenas, supersties e prticas
coletivas. Sua teoria culmina nos Chiriguano e nos Omagua,
grupos sobreviventes, contemporneos e portadores de
prticas nas quais o etngrafo procurava reconhecer rastros
do passado. Suas hipteses convivem com especulaes
sobre as prticas funerrias dos Tupinamb e dos Guaranioriginrios, s vezes superpostas ou formando parte de um
mesmo ncleo inicial a partir do qual comeou a difuso
dos ritos simblicos ainda visveis. Isto , o passado arcaico
e o presente contguo se tocam para postular uma imagem
do contemporneo. O contemporneo precisa do arcaico
para recortar seu territrio.
Nos ritos funerrios se reconhece um rastro dos inte-resses de Bataille que sobrevivem, ainda que muito mais
contidos, na prosa materialista de Mtraux. A festa, o
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gasto improdutivo e a produo simblica associados
morte permitem identificar algumas das obsesses dodiretor de Documentsna escritura muito mais mesurada
de Mtraux. Contudo, a espessura da coisa conserva sua
complexidade e tambm sua opacidade. Mesmo que a
busca por escrutar filiaes entre distintos grupos se man-
tenha, s permanece como uma hiptese que, em ltima
instncia, sugere a indistino e inespecificidade de cada
comunidade. Ainda que os indgenas sejamclassificadosem quadros de inspirao etnogrfica difusionista, tanto
nos seus nomes como nos seus atributos h um status
contingente e hipottico. A espcie s serve para demostrar
afinidades, e no diferenas essenciais entre grupos tnicos
como os Chiriguano: ainda que mantenham uma filiao
lingustica com o mundo guarani, tm sido infludos por
outras culturas, principalmente as andinas. A lngua exibesua prpria limitao como segurana de pertencimento
simblico.
Se pusermos em relao essa noo com a heterocronia
warburguiana, possvel pensar nos fsseis viventes, seres
perfeitamente anacrnicos da sobrevivncia, semelhantes
aos elos perdidos definidos como formas intermedirias
localizadas entre estgios antigos e estgios recentes de
variao.26Por essa condio inclassificvel, o Nachleben
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desafia as taxonomias evolucionistas e permite interpor-se
como instrumento conceitual no campo expandido.O olhar de Mtraux sobre os grupos indgenas do Chacono um olhar entusiasmado nem otimista. Seu trabalho
de campo foi difcil, numa rea rdua e para a qual careciade algumas ferramentas, assim como um conhecimentolingustico adequado.27Encontrou comunidades em de-cadncia, submetidas a uma rpida eroso do seu capital
cultural e tratadas com indiferena pelos Estados nacionaisque agora as incluam, mas que no tinham interesse empreservar ou em estudar culturas com as quais, alis, guar-davam fortes relaes de parentesco, como tem observadoRaul Antelo nos escritos de Mtraux. Porm, a comprovaoda sobrevivncia, como observa Didi-Huberman sobre osvaga-lumes, encerra o reconhecimento de uma forma de
resistncia cultural que conserva ao menos alguns vestgiosdo passado ainda vivos.28
Os indgenas mantm, ainda com grande perigo deextino, rastros que os vinculam com seus ancestres e suacultura primordial, primitiva, e por isso mesmo dotada deum valor intrnsecopostepre-media, j que no tm sidoainda integrados ao dispositivo do mercado da arte que
tinha comeado a deglutir e mercantilizar [commodify]na Europa a cultura material primitiva no europeia. Naimagem que vemos a seguir, uma fotografia tomada porMtraux durante seu trabalho de campo nos anos de 1930
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no Chaco, observamos a produo de vasilhas semelhantes
s que incluiu no seu captulo sobre a sepultura na culturatupi-guarani.29
Fotografia de Alfred Mtraux, c. 1930, Museu Etnogrficode Genebra, Sua.
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Concluso
possvel assinalar, como j observou Raul Antelo, queos anos de Mtraux na Argentina lhe permitiram desenvol-
ver uma teoria que no s compreendia os grupos indgenas,
mas tambm as sociedades crioulas locais. El problema de
la civilizacin, artigo publicado na revista Sur, de Buenos
Aires, em 1937,30pode ser lido tambm como uma teoria
do campo expandido, um manifesto contra a multiplicao
artificial das diferenas culturais e um reconhecimentoda lngua como um patrimnio comum, uma forma de
comunidade que revela abertura, intercmbio, interco-
nexo, impureza e comparao, antes que segmentao,
especializao e espacializao. Tanto nas pesquisas sobre
o mundo tupi-guarani como no seu trabalho de campo com
indgenas da regio do Chaco durante sua permanncia
na Argentina, Mtraux, interessado como muitos dos seuscolegas no problema da perda e no impacto da aculturao
sobre comunidades vulnerveis, refletiu, com efeito, sobre
um problema mais amplo: a decadncia das sociedades
modernas, o avano do nazismo na Europa, a desateno
das elites latino-americanas para com o patrimnio cul-
tural indgena e os padres de imitao e importao do
capital simblico europeu entre as burguesias locais, que
em muito pouco contribuam para reparar o dficit cultu-
ral crnico dessas sociedades, subvencionando a imitao
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ou comprando arte europeia para abastecer seus museus.
Essa indiferena pelo mundo amerndio era reveladorade uma civilizao, a crioula, dependente, atrasada e um
pouco grotesca; se trata da mesma acusao que articulou
o Movimento Antropofgico e que emerge em numerosas
vozes latino-americanas do perodo.
preciso assinalar, para finalizar, que, alm da recu-
perao do trabalho de Mtraux a favor das sociedades
primordiais, realizada por Antelo, a tarefa do etngrafonunca abandonou um compromisso ao menos equvoco
com o trfego da cultura material aos centros de acumula-
o cultural europeus, avaliados pelo aparato colonial: os
museus que as vanguardas tinham denunciado durante sua
fase heroica, mas dos quais se converteram em cmplices
muito pouco tempo depois. Tambm os museus latino-
-americanos se abasteciam de mecanismos semelhantes,a partir de estruturas polticas onde os Estados exerciam a
ao colonial sobre seus prprios povos originrios.
As mesmas imagens que abasteceram arquivos e depo-
sitrios fotogrficos so resultado de uma intermediao,
no s do etngrafo com as instituies metropolitanas e
urbanas do saber, para as quais trabalhou, negociou e re-
meteu coisas e imagens, mas tambm dentro do universocrioulo latino-americano, onde o contato com os indgenas,
e mesmo a possibilidade das tomadas fotogrficas eram
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difceis de se obter. As portas da comunidade chiriguana
tinham sido abertas aos cientistas por terras-tenentesaucareiros. O etngrafo se hospedou, acompanhado pelo
poeta argentino Oliverio Girondo e pelo escritor francs
Drieu la Rochelle, enquanto realizava trabalho de campo,
na confortvel fazenda de um engenho saltenho. Numa
carta de 1932, em plena Guerra do Chaco, entre a Bolvia e
o Paraguai, uma contenda afetou gravemente os indgenas
que atravessavam continuamente fronteiras nacionais re-centemente estabelecidas, e sobre a qual Mtraux guardou
um sugestivo silncio: No Chaco voltamos a nos encontrar
[Drieu la Rochelle e Mtraux] com Girondo e seu irmo,
e em um dos grandes engenhos da fronteira, hospedados
por Bercetche, um dos reis do acar e do trigo, tivemos
momentos trs parisiennes.31
Os engenhos de acar atraram uma grande quantida-de de indgenas guaranis at as ladeiras da cordilheira dos
Andes, na provncia de Salta, Argentina, tanto do Chaco
argentino como da Bolvia e do Paraguai, desde fins do
sculo XIX. Ofereciam trabalho e empregaram milhes de
operrios. Como resultado dessa migrao, suas formas de
vida sofreram uma severa aculturao, e muitos indgenas
morreram, vtimas de doenas e das difceis condiesde trabalho que imperavam no engenho.32 Essas foram
as condies de possibilidade para os etngrafos urbanos
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europeus e latino-americanos fotograf-los, entrevist-los
e tomar contato inicial com esses indgenas e seus objetos.Eles iniciaram, assim, os mapas, inventrios, descries e a
coleo de cultura material tupi-guarani ainda conservada,
mesmo que com escassa informao sobre sua origem e o
modo como as coisas foram obtidas e arquivadas nos acervos
dos museus onde ainda permanecem.
BibliografiaPierre Lauret, Le silence des masques: le Muse du Quai Brainly commetombeau des peubles authochtones, Situations: Cahiers Philosophiques,n. 108, p. 105-125, dec. 2006.
Alfred Mtraux, Antropofagia y cultura, em La religion des Tupinamba etses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, trad. Silvio Mattoni,Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2011.
Notas1 Aby Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America,
traduo e ensaio de interpretao Michael Steinberg, Ithaca, University ofCornell Press, 1995 (1. ed. alem baseada em conferncia de 1927).
2 Georges Didi-Huberman,La imagen superviviente. Historia del arte y tiempo delos fantasmas segn Aby Warburg, traduccin Juan Calatrava, Madrid, Abada,2009; Jos Emilio Buruca, Historia, arte, cultura. De Aby Warburg a CarloGinzburg, Buenos Aires, Fondo de Cultura Econmica, 2003; Serge Gruzinski,
La pense mtisse,Paris, Fayard, 1999.
3 Alfred Mtraux,La civilisation matrielle des tribus Tupi-Guarani, Paris, LibrarieOrientaliste Paul Geuthner, 1928.
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4 Edgardo Krebs, El escritor argentino y la tradicin etnogrfica, OliverioGirondo. Exposicin homenaje, 1967-2007, Buenos Aires, Museo Xul Solar,
2007, p. 34-44, Catlogo de exposio.5 Ibidem, p. 36.
6 Mtraux, La civilisation matrielle des tribus Tupi-Guarani; Idem, La religindes Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, Paris,Leroux, 1928; Federico Bossert e Diego Villar, La etnologa chiriguano de AlfredMtraux,Journal de la Socit des Amricanistes, v. 93, n. 1, p. 127-166, 2007.
7 Denis Hollier, Le valeur dusage de limpossible, prefcio a Documents, Paris,Jean Michel Place, 1991, p. VII-XXXIV. Cf., tambm, James Clifford, ThePredicament of Culture. Twentieth Century Ethnography, Literature and Art,
Cambridge, Harvard UP, 1988; e Hal Foster, Prosthetic Gods, Boston, OctoberBooks, 2004.
8 Gonzalo Aguilar, Por una ciencia del vestigio errtico. Ensayos sobre la antropo-fagia de Oswald de Andrade, seguido de La nica ley del mundo, de AlexandreNodari, Buenos Aires, Editora Grumo, 2010, p. 10.
9 Marcel Griaule, Poterie,Documents, n. 4, p. 236, 1930; Hollier, Le valeur dusagede limpossible, p. x.
10 Bill Brown, Thing Theory, Critical Inquiry, v. 28, n. 1 (Things), p. 1-22, Autumn
2001.11 Sobre o Muse du Quai Brainly, veja-se Krebs, El escritor argentino y la tradi-
cin etnogrfica, e Nstor Garca Canclini, La sociedad sin relato. Antropologay esttica de la inminencia, Buenos Aires, Katz, 2010. O ltimo realiza umacrtica demolidora da instituio fundada em 2006 e tributria do espetculoe do formato de parque temtico (que inclui plantas tropicais ad hoce motivosterceiro-mundistas). A coleo, agora despojada de toda referncia histrica origem dos objetos exibidos, muitos obtidos pelas expedies nas que participa-ram membros de Documents, como Michel Leiris na expedio Dakar-Djibouti,atravs do saqueio e a obteno em condies pouco claras de objetos rituais
transformados em arte (Michel Leiris, LAfrique fantme, Paris, Gallimard,1988). Sobre Picasso e a arte africana, ver Foster, Prosthetic Gods.
12 Raul Antelo, Apostilla a Alfred Mtraux. Antropofagia y cultura, em AlfredMtraux,La religion des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribusTupi-Guarani, trad. Silvio Mattoni, Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2011.
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13 Carl Einstein [1919], On Primitive Art, trad. Charles W. Haxthausen, October,v. 105, p. 124, Summer 2003.
14 Paul Rivet, Ltude des civilisations matrielles: ethnographie, archeologie,prhistoire, Documents, n. 3, p. 133, juin 1929.
15 Eduardo Jardim, A brasilidade modernista: sua dimenso filosfica, Rio deJaneiro, Graal, 1978; Leiris, LAfrique fantme.
16 Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America, p. 62.
17 Erland Nordenskild, Le balancier a fardeaux et la balance en Amrique,Documents, n. 4, p. 177-182, 1929.
18 Bossert e Villar, La etnologa chiriguano de Alfred Mtraux, p. 129; GastnGordillo, Lugares de diablos. Tensiones del espacio y la memoria, Buenos Aires,Prometeo, 2010.
19 Andrea Roca, La vida social de una urna, em La vecindad de los objetos: lo pro-pio y lo ajeno en el estudio de los sistemas clasificatorios del Museo HistricoNacional y el Museo Etnogrfico, Tese (Licenciatura), Universidad de BuenosAires, 2003.
20 Ticio Escobar, La belleza de los otros: arte indgena del Paraguay, Asuncin,Centro de Documentacin e Investigaciones de Arte Popular e Indgena delCentro de Artes Visuales, 1993.
21 Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America .
22 Eduardo Viveiros de Castro, A indianidade um projeto do futuro, no umamemria do passado, Prisma Jur., So Paulo, v. 10, n. 2, p. 257-268, jul.-dez.2011, disponvel em .
23 Gordillo, Lugares de diablos.
24 Roberto Esposito,Tercera persona. Poltica de la vida y filosofa de lo impersonal,trad. Carlo Molinari Marotto, Buenos Aires, Amorrortu, 2009.
25 Mtraux, La civilisation matrielle des tribus Tupi-Guarani, p. 272-273.
26 Didi-Huberman, La imagen superviviente, p. 60.
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27 Silvia Hirsch, De la autoridad etnogrfica a la pasin etnogrfica: una relecturade Alfred Mtraux, Cuadernos del INAPL, n. 18, Buenos Aires, Secretara de
Cultura de la Nacin, 1998-1999, p. 223-232; Krebs, El escritor argentino y latradicin etnogrfica.
28 Georges Didi-Huberman, Sobrevivncia dos vaga-lumes, trad. Vera Casa Novae Mrcia Arbex, reviso de Consuelo Salom, Belo Horizonte, Editora UFMG,2011.
29 Carlos Daro Albornoz, La coleccin Mtraux, Separata do Catlogo da mos-tra itinerante De Suiza a Sudamrica Etnologas de Alfred Mtraux, MuseuEtnogrfico de Genebra, Genebra/Sua, 1998.
30 Alfred Mtraux, El problema de la civilizacin. La nocin del cambio en el
dominio moral e intelectual de las sociedades, Sur, n. 30, p. 7-27, marzo 1937.
31 Carta de 26 de setembro de 1932 a Yvonne Oddon apudKrebs, El escritorargentino y la tradicin etnogrfica, p. 37.
32 Gordillo, Lugares de diablos.
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A ESCRI TA E O FORA DE SI
Ana Kiffer
Un aveugle ne mettra pas lme dans la glande pinale.Lme se trouve o il sent, o le vivant se mobilise aucontact de monde rel. Descartes considrait commecentre ce qui vient de la tte et en cela privilgie la vue.
Mais le rle du centre ne peut supprimer que la sen-sibilit est loeuvre dans les organes priphriques.Lespace nest pas que visuel.
Bernard Andrieu
Este texto, nascido de uma srie de impossveis, buscar
ser um sistema mvel e provisrio de notaes em torno da
noo de escrita e suas relaes com um modo discursivoformulado sob a gide de um fora de si. Tentaremos es-
boar fragmentos de leituras, sem perder de vista o contexto
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em que estes se inserem, e pensar, sobretudo, nas transfor-
maes sofridas por essa noo no contexto do pensamentodos ltimos 50 anos.
Roland Barthes, em texto de 1973, retoma, repensando
sua prpria trajetria, a noo de escrita:
O primeiro objeto com que me deparei em um trabalho
passado foi a escrita: mas entendia ento essa palavra em sentido
metafrico: para mim, era uma variedade do estilo literrio, suaverso () coletiva, o conjunto dos traos da linguagem por meio
dos quais um escritor assume a responsabilidade histrica de sua
forma e se vincula, com seu trabalho verbal, a certa ideologia da
linguagem.1
Ningum melhor do que o prprio autor resumiria a
empreitada histrica do Grau zero da escrita, livro de umjovem Roland Barthes que fez com que o debate intelectual
francs poca, centrado na figura de Jean-Paul Sartre e
sua noo de engajamento literrio, rodasse, rodopiasse. A
meu ver, Barthes no abandonar essa viso metafricada
escrita (e seria possvel faz-lo?), no entanto, e esse texto
de 1973 o demonstra, o autor vira os olhos, no por acaso
num contexto em que a corporalidade assume importantes
estratos discursivos na sociedade, para uma viso da escrita
que ele mesmo diz (cito) volta-se para o sentido manual
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da palavra.2Tal sentido, seria importante notar, apesar de
reinscrever a noo de escrita no interior das conhecidasdicotomias entre o intelectual e o manual, o metafrico e
o literal, o espiritual e o corporal, deixa entrever, ao menos
para esses nossos olhos j cansados de hoje, sadas interes-
santes e no negligenciveis. A primeira delas ser aquela
que implicar escrita e gesto:
Para o padre Jacques van Ginneken, jesuta, a primeira lin-guagem da humanidade foi uma linguagem gestual; () [para
ele], a promoo da vogal na linguagem e o aparecimento da
escrita estariam situados entre a era dos gestos e a dos cliques; em
outras palavras (proposio exorbitante), a escrita seria anterior
linguagem oral.3
Aqui, estamos menos interessados no contedo histricodo discurso de Barthes e mais interessados nisso que desse
contedo se libera enquanto potencialidade em torno da
noo de escrita. Do gesto, por conseguinte, interessa-nos
no sua anterioridade ou posteridade, mas a possibilidade
que abre para romper a dicotomia entre o oral e o escrito.
Dito de outro modo: a potencialidade de uma escrita que j
no mais se oponha oralidade o que a escrita enquanto
gesto pode liberar para ns. Rancire, 20 anos depois de
Barthes, desenvolve esse mesmo tema, no j famoso livro
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Polticas da escrita.4Mas o prprio Barthes no deixa de tirar
algumas concluses dessa nova potencialidade:
() no necessrio fazer a escrita descender da fala (se-
gundo o mito cientfico da transcrio) para nela distinguir as
duas coordenadas da linguagem: o paradigma e o sintagma. A
clivagem est alhures: () onde se pode opor sintagmas lineares
(escritas e falas) e sintagmas radiantes [eu diria rizomticos]
(nas figuraes murais, nas da pintura e nas dos quadrinhos).5[Eu acrescentaria: em algumas escritas contemporneas, como
veremos mais adiante.]
Vejam que Barthes j aqui busca observar mesmo que
atravs do carter manual da escrita novas formas de sua
prpria realizao que escapariam ao funcionamento dico-
tmico do pensamento estruturalista que ainda regia suareflexo sobre a linguagem em 1973. Sintagmas radiantes, ou
rizomticos, notados por Barthes na produo da escrita de
quadrinhos, nos murais ou mesmo na pintura, deixam en-
trever essa proliferao escriturria que vai fazer da prpria
atividade da escrita uma passagem incessante entre regimes
heterogneos, seja no interior das artes imagem, desenho,
mquina, mo, letra, palavra, trao, poesia etc. seja entre
distintas camadas de campos discursivos.
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Uma segunda e ltima instncia a destacar, no escopo
do que por ora nos interessa discutir com o texto de Barthesparte da seguinte reflexo:
() em estranghelo (antiga escrita siritica), o escriba vai de
cima para baixo, mas para ler preciso girar o manuscrito 90 para
a direita e ler horizontalmente: o corpo do ledor no o corpo
do escrevedor: um vira o outro; talvez a esteja a regra secreta de
todas as escritas: a comunicao [entre aspas no texto] passapor um avesso.6
Notemos a riqueza dessa indicao: primeiro, aquilo
que a atividade da escrita exigiria do escriba em termos
corpreos, mais ainda alm, na alterao mesma da lgicalinear que caracterizaria o prprio da atividade escriturria
e leitora. Segundo, a hincia que se estabelece entre o corpoque escreve e o corpo que l. Terceiro, a metamorfose que
tal hincia vem exigir para sair de um corpo escriturrioe adentrar um corpo ledor. Por ltimo, a interveno
propriamente barthesiana sobre o contedo histrico daescrita siritica, qual seja: a desconstruo em torno do mito
comunicacional de toda e qualquer escrita.
Interessa-nos diretamente essa metamorfose dos corposatravs das escritas. Sobre isso vimos trabalhando h muito.
A prpria noo de fora de si, ttulo deste trabalho e, ain-da mais, ttulo da pesquisa que vimos desenvolvendo nos
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ltimos dez anos, est atravessada por esse avesso, para
usar as palavras de Barthes. Se por um lado estar fora de siexprime uma exacerbao das intensidades afetivas e, por
conseguinte, corpreas, por outro, essa mesma noo vem
evocar um certo deslocamento, mais alm, uma profunda
dissociao entre um eu mesmo e algo fora dele.
Poder-se-ia dizer, assumindo at certo ponto a hiptese
levantada por Evelyne Grossman em Langoisse de penser:
possvel que com Blanchot, assim como com muitos outros
escritores modernos, ler requer menos de uma captao imagi-
nria e mais da nossa capacidade de suportar os efeitos dos afetos
mais ou menos violentos, desestruturantes, que o texto exerce
sobre ns. Em outros termos, trata-se para o leitor de ser capaz
de no resistir aos efeitos transferenciais reais que exerce sobre ele
a escrita, ainda melhor, de ser capaz de certa atitude dissociativa qualidade requisitada, como se sabe, de todo analista como de
todo analisado.7
Evelyne Grossman vem ressaltar que a relao com a es-
crita uma relao dissociativa. Se somarmos essa assertiva
contribuio de Barthes, deveramos notar que tanto autor
quanto leitor atravessam essa mutao corporal atravs do
processo de escrita/leitura. A paradoxal noo de fora de
si encontra aqui sua prpria condio de possibilidade,
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deixando de ser um julgamento moral ou imaginrio sobre
aquele que perde a razo em estado de fria, o fora de siganha atravs da escrita essa liberao estar habitado
pelo fora, ou escrever como processo de uma experincia
do desabrigo subjetivo o que vem nos propor muitas das
experincias artsticas modernas e contemporneas. No
longe dessa experincia se situa Marguerite Duras quando
descreve a inveno de seus personagens: Ento elas me
vm de alhures () A pretenso de se crer s diante dafolha enquanto tudo vos acontece de todos os lados. ()
isso vos acontece do exterior. Ou ainda:
sem dvida o estado que tento encontrar quando escrevo;
um estado de escuta extremamente intensa, mas veja, do exterior.
Quando as pessoas que escrevem dizem: quando se escreve se est
na concentrao, eu diria: no, quando escrevo tenho o sentimentode estar numa extrema desconcentrao, no me possuo mais,
() tenho a cabea esburacada.8
A cabea esburacada, furada, transpassada, de Duras
no deixa de remeter para essa experincia de disjuno
do corpo, para esse estado de despossesso que faz entre-
ver uma experincia corporal distante daquela que funda e
une corpo e identidade numa s e mesma srie, numa s e
mesma figura humana.9Outras corporalidades, portanto,
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o que vem reivindicar a escrita enquanto prtica ou cena
de um estar fora de si.Mas, muito antes de Duras, a escrita dos Cadernos,
de Antonin Artaud, j inventava outro comportamento
para as palavras, exigindo atravs de um novo modo de
dizer a criao, segundo o autor, de novos corpos de
sensibilidade.10Em outros trabalhos j buscamos desen-
volver a relao plstica do trao a sua figurao potica das
palavras.11
Assim como no pudemos deixar de observar aproduo incessante das figuras pontiagudas e das caixas e
cubos como mutaes desse corpo que, ao se fazer em cor-
pos escritos, vem transformar-se em mquinas perfurantes
e mquinas de sopro capazes de inscrever, rasgar, cortar o
abscesso da e na linguagem. Mquinas de sopro que bus-
cavam essa sensao vibrtil na experincia da escrita e da
leitura. Procedimentos que, por conseguinte, encetavam acriar, segundo o autor, a experincia de uma linguagem
raio.12Agenciamento ou no de corpos sem rgos, como
quis Artaud e, posteriormente, Deleuze e Guattari,13o mais
importante nos parece ser a notao sonora, vibrtil, ttil,
que essa escrita quer assumir. Novos corpos de sensibili-
dade exigem, certamente, uma alterao na organizao
dos sentidos, como vimos tambm insistindo. EvelyneGrossman ressalta:
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() para o escritor no se trata mais de anotar seus pensamen-
tos para fix-los num caderno, mas sim de inventar um suporte
suficientemente mvel e plstico, um sutil subjtil, como ele disse,
para que as frases inscritas possam ser a todo momento retoma-
das, recolocadas em movimento, entrando num outro conjunto
de fragmentos moventes.14
A crtica nos alerta para uma importante transformao
o caderno do autor comea a se aproximar mais das ex-perincias dos cadernos dos artistas, sem, no entanto, nisso
se transformar. Estamos ainda num regime de produo
de discurso da e atravs da escrita. Mas a escrita saiu de si
mesma, deixou sua identidade fixadora para transformar-
-se num procedimento algo mvel, vibrtil e, sobretudo, no
contexto de Artaud, algo que pudesse refazer seu prprio
corpo, ele mesmo tambm doente, desalojado e despossudode si mesmo. Evelyne vem insistindo no poder de rasgo,
na violncia disruptiva dessas experincias de escrita/lei-
tura. Ou, como j havia dito Maurice Blanchot, [o] jogo
da etimologia corrente [que] faz da escrita um movimento
de corte, um rasgo, uma crise () [] simplesmente a lem-
brana da ferramenta prpria para escrever que era tambm
prpria para fazer incises: o estilete.15
Gostaramos, aqui, no de discordar dessa hiptese,
mas de sobre ela inserir um deslocamento, um passo ao
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lado. Tal passo poderia indicar que muitas dessas escritas
desestruturadas e desestruturantes, como quer EvelyneGrossman, buscavam modos de se relacionar criticamente
com os projetos de reconstruo da humanidade a partir
do ps-guerra. Seria preciso dizer ainda que esse passo ao
lado s possvel porque tanto os grandes blocos tericos
quanto os grandes movimentos estticos sumiram da cena
contempornea deixando no um vazio, mas a possibili-
dade mesma de um exerccio crtico que se atrele menoss grandes duraes que buscavam encetar esses autores
anteriores, at agora aqui citados. Por grandes duraes es-
tamos sugerindo no exatamente o seu carter cronolgico
e histrico (mesmo que tambm por a se possa dizer algo
sobre isso), mas, e sobretudo, as categorias universalistas
que sustentaram o arcabouo desses discursos. Muitos
sempre e muitos nunca em torno de noes tais comoas de linguagem, de escrita, de sujeito, abundaram nas
teorias estruturalistas, assim como em determinadas corren-
tes psicanalticas, e por que no dizer, no investimento ora
heroico ora suicida que os prprios artistas viveram com
suas obras, dentre eles Artaud, mas tambm Blanchot ou
mesmo Marguerite Duras. por isso mesmo que podemos
dizer hoje que essa relao intrnseca entre a escrita e omvel, vibrtil, ttil no se dar sempre atravs de um
vnculo desestruturante, violento, dilacerante, como
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sugere Evelyne Grossman na esteira de Artaud e Blanchot.
A prpria noo de estrutura mesmo que ainda apareade modo viciado em nossas vises de mundo j no d
mais conta do que nos acontece hoje.
Se os Cadernosde Artaud, em seu prprio carter asilar,
atuaram como testemunho e efeito da barbrie da Segunda
Guerra, e, nesse sentido, no poderiam deixar de inscrever a
escrita enquanto lembrana etimolgica daquele ato/palavra
cruel e rasgar e cortar a prpria carne , hoje dificilmenteencontraremos, digamos, esse corpo heroico e glorioso que
se oferea enquanto testemunha de sua prpria palavra.
De modo distinto, porm ainda num deslocamento em
continuidade com essa escrita enquanto crise e rasgo, que
tambm vem se inscrever muitas das imagens gritadas do
cinema de Glauber Rocha. Sua crtica delirante no deixou
de observar com muita lucidez esse desabrigo que sustm,ao mesmo tempo em que pe em suspenso, a subjetividade
do prprio artista, agora no caso o artista latino-americano
e sua submisso outra barbrie, a dos regimes totalitrios
que assolaram a dcada de 1960 e 1970 do lado de c. Seu
fim proftico em Lisboa,16dizendo realizar na prpria carne
a esttica da fome, pobre, doente e miservel na Europa, faz
entrever de modo contundente essa escrita mais que escritade que falava Rancire,17e que vimos aqui bordejando, qual
seja: um corpo se entrega para confirmar a escritura.
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Quando vemos as experincias performticas do corpo
em movimento em algumas obras de Hlio Oiticica,18
sobre-tudo seus Parangols, ou na performance Corpo coletivo, de
Lygia Clark,19revemos, quase que de modo paradigmtico,
a pregnncia em torno desse corpo glorioso, a que ao fim e
ao cabo se oferecem, seja enquanto dor seja enquanto xtase,
muitas dessas manifestaes dilacerantes ou desestrutu-
rantes da arte do ps-guerra at mais ou menos os anos
de 1960 e 1970. Alis, dor e xtase so pares fundamentaisa uma esttica do fora de si. No por acaso muitos desses
autores aqui citados flertaram com a mstica medieval. Ou
dela buscaram um entendimento muito particular.
bem verdade que esse corpo exttico no o mesmo em
Artaud, Glauber, Oiticica ou Clark. E, por favor, entendam:
no a isso que nos referimos. No entanto, uma srie os liga
sem excluir a multiplicidade de suas diferenas. Essa srie,e isso o que vimos tentando dizer, se liberou por um lado
a escrita de seu carter fixador, imvel, de suas tendncias
imaginrias, por outro no a liberou de sua aposta numa
eternidade. Em Artaud, tal manifestao flagrante, e
a leitura de Grossman s vem confirmar esse carter: O
texto no tem nem comeo nem fim. Dito de outro modo:
nem nascimento nem morte. Eu jamais nasci, repete eledesde Rodez, e em consequncia no pode morrer, conclui
Evelyne Grossman.20
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Gostaramos de sugerir, a partir dessa genealogia frag-
mentada e fragmentria que fizemos at aqui, que umaesttica do fora de si no se caracterizaria exclusivamente
por essa exacerbao dos afetos, que faz crer que um corpo
seja do autor, seja do leitor se entregar como confir-
mao da letra morta ou da escrita rf. No esqueamos
que o fora de si antes de tudo um desalojar da alma, um
passo ao lado, um despossuir-se que reaparecer na cena
contempornea atravs de, como disse Ricardo Basbaum,uma falncia das vozes interiores.21 interessante pensar
como a literatura se sustm e se suspende a partir daquilo
que foi durante sculos o seu prprio cerne e questo: a
constituio de vozes interiores.
Mas ao dizer isso no podemos negar ou esquecer que
a construo artstica desses corpos gloriosos ou extticos
abriu um lastro possvel de experimentao para que no-vos corpos sensveis fossem criados no seio da arte e da
literatura. A primeira, sem ter mais a obrigao com a tela,
com o enquadre, com a moldura fez saltar para a vida um
sem-nmero de experincias. A segunda, at certo ponto
liberta das estruturas dicotmicas, assim como da lineari-
dade narrativa, fez com que tudo aquilo que parecia no se
poder ali dizer fosse percorrendo o campo de sua experi-ncia. Ainda se deveria notar que o entrelaamento, efeito
do prprio deslocamento ou expulso de suas identidades
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anteriores, fez com que esses dois campos literatura e
arte investissem em novos modos de dilogo entre si. Umdeles ser atravs da escrita. De que maneira saltar de um
para outro lado essa prtica, e qual transformao sofrer
a escrita em cada uma dessas passagens, so perguntas
necessrias quele que se aproxima de experincias-limite
entre esses dois campos hoje.
Sob esse aspecto gostaramos ainda de acrescentar dois
fragmentos ou hipteses de leitura, a partir de um projetode uma artista contempornea, Tatiana Grinberg, de quem
vimos tambm falando e aproximando nossa pesquisa,
sobretudo no ltimo ano e meio.
O projeto, intitulado Placebo01,22 foi exposto de abril
a junho de 2011 no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, com curadoria de Luis Camillo Osrio. Depois de
muitas conversas, encontros e visitas ao MAM, hoje temosem mos o catlogo recm-lanado e composto de fotos e
desenhos do projeto, texto-plaqueta da exposio, escrito
por Camillo Osrio, assim como uma longa conversa entre
a artista, Ricardo Basbaum e Ceclia Cotrim. O objeto, fruto
do projeto, um chip envolto numa capa plstica moldada
pela forma da cavidade bucal.23Tal chip na verdade um
captador; ele recebe o som por FM e vibra.24 Ou, comodisse Grinberg, ele um receptor, que transforma aquelas
ondas FM em vibrao.25Introduzido no interior da boca,
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em contato com os ossos dos dentes dever captar e vibrar
as ondas sonoras, fazendo com que o experimentador ouafragmentos de entrevistas realizadas pela artista com pessoas
que tenham passado por alguma situao de dor extrema,
cirurgia ou parto, por exemplo.
Desse projeto e da conversa da artista com Cotrim e
Basbaum, recm-lanada no catlogo da exposio, relevo
dois pontos para concluir essa outra conversa, que este texto
quis encetar. O primeiro deles diz respeito forma comoGrinberg (entre outros, claro) deslocar justamente esse
corpo exttico ou glorioso que herdamos mais ou menos
todos das experincias artsticas da segunda metade do s-
culo XX, a partir da relao entre a experincia do corpo e a
constituio de mundos ou vozes interiores. Tomemos a
instalao Entre quatro paredes,26originalmente feita numa
ocupao/performance em um hotel do bairro da Lapa, noRio de Janeiro (o LoveStory), mas reinserida nesta ltima
exposio no Museu de Arte Moderna do Rio.
Impossvel no notar a expulso que sofre o participante
do interior da caixa de Entre quatro paredes. Sua entrada
possvel mais se assemelha a uma intruso. O interior no se
abre, no acolhe, no convida: fechado, branco, de luz fria
e com alguns espelhos refletores, ele se nos aparece atravsdessas frestas / buracos pelos quais se pode penetrar partes
do corpo e, pela percepo que essa penetrao provoca,
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experimentar deslocamentos desse centro unitrio, desse
aglutinar do corpo e da experincia vivida na constituioou no reconhecimento de um si mesmo. Poder-se-ia dizer
que a experincia exttica dos Parangols, ou mesmo a dos
Ncleos, de Oiticica, tambm buscavam um deslocamento
ou projeo desse mundo interior para fora. Como disse o
prprio Hlio, tratava-se de uma obra de conquista do ex-
terior. No entanto, como vem observando Nuno Ramos,27
entre outros, essa conquista cada vez maior do exterior teria,na obra de Hlio, acabado por criar um imenso interior.
Esse desejo cada vez maior de fazer aparecer na obra a vida,
acabou por congelar num espao especfico aquilo que seria
a abertura e o fluxo da prpria relao obra/vida. No me
interessa discutir isso aqui. Sua hiptese me parece vlida
apenas para atentarmos que algo de uma outra experincia
do fora de si acontece nos espaos e nas relaes entreescrita e arte hoje.
Segundo depoimento de Tatiana Grinberg em entrevista
ainda indita que eu e Renato Rezende28realizamos com a
artista, ela disse ter tido, no decorrer da exposio Pla-
cebo01, o relato de uma menina cega que experimentou a
instalao Entre quatro paredes. Tal relato pode nos ajudar
a concluir essa hiptese. A menina, que sofria da privaode um dos sentidos, disse sentir-se, ao inserir partes de seu
corpo nas frestas da caixa fechada, como uma bailarina
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danando sobre uma perna s. Alterao radical do apara-
to perceptivo, desequilbrio do corpo, agora reequilibradonuma linha tnue de sensaes quase imperceptveis, que
associam e desalojam a experincia subjetiva. Impedir a
constituio de uma unidade entre corpo e identidade, ex-
pulsar o eu de seu mundo interior, pode ser, como indica
Grinberg, uma nova possibilidade de experimentar o dentro
e o fora do mundo ao mesmo tempo. Nesse sentido, o efeito
imediato no somente o apagar das fronteiras dentro efora, mas, e sobretudo, o deixar entrever, noflashde uma
fresta, que tais fronteiras, alm de mveis, so efeitos visu-
ais, sonoros, tteis, entre muitos outros, de construes e
desconstrues permanentes e aleatrias. Ou poderamos
dizer com Andrieu que
as diferenas entre dentro e fora, entre limpo e sujo, entremasculino e feminino, frente e trs, natural e artificial no existem
mais no corpo hbrido: no que sejam dissolvidas numa fuso
ou confuso de gneros, mas porque tornaram-se dispositivos
operatrios para chegar at o outro lado do corpo, nesses lugares
inditos que se do atravs da conscincia experiencial e no mais
somente atravs das categorias de julgamento.29
justamente aqui que interessa levantar a segunda e
ltima hiptese acerca desse mesmo trabalho. Parte da
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conversa entre Basbaum, Grinberg e Cotrim editada no
Catlogo. Ricardo Basbaum diz:
Uma coisa que eu tenho observado so as anotaes, essas
suas anotaes de trabalho. Onde est o limite entre aquilo ser
uma anotao privada, como nos cadernos de Hlio (Oiticica),
por exemplo, ou j ser feita para ser exposta ()
Responde Grinberg: Aqui misturadoNovamente Basbaum:
T misturado, deu pra ver (), mas isso tem a ver com a lgica
toda, com toda essa lgica de mundo exterior/interior, espao
privado, espao pblico, abertura onde est esse limite?
Fala Ceclia Cotrim:
Outro dia estava lendo o texto do