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    Estao LiterriaLondrina, Volume 9, p. 168-180, jun. 2012

    ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

    EXPERINCIA, INRCIA EMETALITERATURA EM PAULO

    HENRIQUES BRITTO

    Laura de Assis Souza (UFJF)1

    Resumo: O presente trabalho empreender uma anlise de contos do livroParasos artificiais (2004) do escritor brasileiro Paulo Henriques Britto,com o objetivo de discutir de que modo abordada nessas narrativas atemtica do esvaziamento da experincia na contemporaneidade.Palavras-chave: Esvaziamento; Experincia; Literatura contempornea.

    Experincia e contemporaneidade: narrar o hoje

    A palavra experincia amplamente utilizada em nveis distintos designificao, mas em todos eles possvel identificar um mesmo sentido original queremete etimologia do vocbulo. Experinciavem da palavra grega experientia: o queest fora e foi retirado (ex-) de uma prova ou provao (-perientia). Esse conceitoocupa lugar de bastante destaque na filosofia de Walter Benjamin. A primeira vezque esse conceito aparece em sua obra em um texto de 1913 intitulado justamenteExperincia, no qual Benjamin fala sobre a experincia no sentido de vivncia,colocando-a como uma prerrogativa do adulto diante dos jovens. Ele caracteriza essavivncia como uma experincia amarga e montona, pois as coisas grandiosas,novas, futuras no podem ser experimentadas. De acordo com Benjamin:

    Tudo o que tem sentido, que verdadeiro, bom, belo est fundamentado sobresi mesmo o que a experincia tem a ver com isso tudo? E aqui est o segredo:a experincia se transformou no evangelho do filisteu porque ele jamaislevanta os olhos para as coisas grandes e plenas de sentido; a experincia setorna para ele a mensagem da vulgaridade da vida (Benjamin 1984: 23-24).

    1Estudante do Programa de Ps-Graduao em Letras: Estudos Literrios da Universidade FederaldeJuiz de Fora. Mestre. E-mail: [email protected].

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    No texto original, Benjamin usa a palavra alem Erfahrung, oriunda do verboerfahren, que significa aprender, vir a saber, descobrir, experimentar, estandorelacionada, portanto, ao conhecimento em seu carter individual, adquirido navivncia de cada um.

    Tambm em Sobre o programa de uma filosofia futura (1917) Benjamin tocana questo da experincia, definindo-a como a multiplicidade unitria e contnua doconhecimento. Essa definio vai se aproximar bastante da postulada emExperincia e pobreza (1933), texto no qual Benjamin volta a esse conceito,relacionando-o situao da sociedade moderna daquela poca e encarando aexperincia como um fator mais coletivo e social. Nesse texto Benjamin conclui queest claro que as aes da experincia esto em baixa (Benjamin 1994: 114) equestiona:

    Pois qual o valor de todo o nosso patrimnio cultural, se a experincia no

    mais o vincula a ns? A horrvel mixrdia de estilos e concepes do mundodo sculo passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valoresculturais podem nos conduzir, quando a experincia nos subtrada, hipcritaou sorrateiramente, que hoje em dia uma prova de honradez confessar nossapobreza. Sim, prefervel confessar que pobreza de experincia no maisprivada, mas de toda a humanidade (Benjamin 1994: 115).

    O filsofo Giorgio Agamben, responsvel pela edio italiana das obrascompletas de Walter Benjamin, dedicou releitura das ideias deste vrios de seustextos. O livro Infncia e Histria: destruio da experincia da histria (2005) traz vrios

    artigos relacionados obra de Benjamin, que buscam dar conta de alguns dosconceitos presentes na obra do filsofo alemo no sem contemplar tambm umaperspectiva atual desses conceitos, procurando afin-los com os dias de hoje. Assimcomo evidenciado no ttulo, a questo da experincia tema central do livro. Noprimeiro ensaio Agamben direciona suas reflexes justamente para a questo daperda da experincia, analisando algumas proposies de Benjamin no j citadoExperincia e pobreza e anuncia que:

    Todo discurso sobre a experincia deve partir atualmente da constatao deque ela no mais algo que ainda nos seja dado a fazer. () o dia-a-dia do

    homem contemporneo no contm quase nada que seja ainda traduzvel emexperincia: no a leitura do jornal, to rica em notcias do que lhe diz respeitoa uma distncia insupervel; no os minutos que passa, preso ao volante, emum engarrafamento; no a viagem s regies nferas nos vages do metr nema manifestao que de repente bloqueia a rua (...). O homem moderno voltapara casa noitinha extenuado por uma mixrdia de eventos divertidos oumaantes, banais ou inslitos, agradveis ou atrozes, entretanto nenhumdeles se tornou experincia (Agamben 2005:21-22).

    Giorgio Agamben afirma ainda que essa precarizao da experincia pode sernotada, por exemplo, no desaparecimento da mxima e do provrbio. De acordo com

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    Agamben, na sociedade de hoje eles foram substitudos pelo slogan. A mxima e oprovrbio teriam sido, no passado, a palavra de autoridade da experincia e, deacordo com Agamben, nos dias de hoje, o slogan o provrbio de uma humanidade que

    perdeu a experincia. (Agamben 2005:23).

    A pobreza de experincia da qual Benjamin fala no ensaio relido porAgamben, Experincia e pobreza, est diretamente ligada s consequnciascatastrficas da Primeira Guerra Mundial, diante das quais o frgil e minsculocorpo humano se viu abandonado em um campo de foras de correntes eexploses destruidoras (Benjamin 1994: 115). No entanto, como observa Agamben,no necessrio nenhum acontecimento catastrfico para que se consume adestruio da experincia nos dias atuais, pois a existncia cotidiana em umagrande cidade , para esse fim, perfeitamente suficiente (Agamben 2005: 21).

    O distanciamento dos indivduos um dos principais sintomas de que aexperincia autntica est de fato se perdendo. Tomando, por exemplo, a definiode experincia de Maurice Blanchot para quem a experincia contato com o ser,renovao do eu nesse contato (Blanchot 1987: 83) e de Michel Foucault que afirmaque uma experincia qualquer coisa da qual samos transformados em nsmesmos (Foucault apud Revel 2005: 47) , pode-se concluir que a experincia estsempre relacionada com a alteridade, com o contato com o outro.

    Sendo a arte criao relacionada representao e elaborao do mundo, inevitvel, portanto, que a experincia e as modificaes que essa noo vemsofrendo estejam atingindo, tanto em uma perspectiva formal quanto temtica, aliteratura. De fato, possvel notar na prosa de ficocontemporneaalguns traosque apontam para uma tentativa de representao do empobrecimento daexperincia. De acordo com Silvia Regina Pinto, professora do Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro:

    Em grande parte das narrativas atuais, inclusive no cinema, evidencia-se aquesto ps-humanista no mundo hoje, que descarta a metafsica, desconfiada imanncia, passa ao largo dos sentidos nicos, envolve-se todo o tempocom os mais variados problemas de identidade, e, de quebra, questiona asindecidibilidades da autoria (Pinto 2008: 168).

    Silvia cita Budapeste (2003), livro de Chico Buarque, como exemplo de obra que

    de algum modo tenta representar essa crise da qual ela fala e a esse exemplopodemos somar ainda livros como Nove noites (2002), de Bernardo Carvalho eCordilheira(2000), de Daniel Galera e filmes como eAdaptao (2002) e Sindoque, NovaYork (2009), ambos roteirizados por Charlie Kaufman.

    De fato a frequncia de estratgias narrativas como a metafico e ametaliteratura chama a ateno de qualquer leitor que acompanhe mais atentamentea literatura ps-moderna e contempornea, assim como a hibridizao de realidade efico que, em 1985, j era apontada por Flora Sssekind, quando a crtica tece umcomentrio acerca do livro Em liberdade (1981), de Silviano Santiago. De acordo comFlora:

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    S pelo realce da prpria ficcionalidade, em meio a mltiplas refernciashistricas e personagens com nomes por demais conhecidos; s pela misturade gneros (ensaio, dirio, fico), o romance de Silviano Santiago j se situa

    em posio singular em meio ao panorama literrio brasileiro da ltimadcada (Sssekind 1985: 54).

    Bem, todas as caractersticas de Em liberdadedestacadas por Flora realce daprpria ficcionalidade, referncias histricas e personagens reais e mistura degneros vo aparecer e se intensificar na produo literria brasileira a partir dosanos 2000. Mas se h duas dcadas e meia eram responsveis por situar o livro deSantiago em uma posio singular em meio ao panorama literrio brasileiro, hojese configuram como bastante recorrentes. A essas estratgias somaram-se aindaoutros tipos de solues de contedo e estilo ligadas prosa de fico, como a

    metaliteratura, a inrcia da trama e o esvaziamento do universo ficcional, e soprincipalmente elas o foco deste artigo como ser apresentado posteriormente.O realce da ficcionalidade que a partir daqui ser chamado pelo seu nome

    mais recorrente: metafico , na maior parte das vezes, a estratgia inicial utilizadapelos autores quando comeam a abordar as relaes entre arte e a realidade em seustextos, de alguma maneira questionando o limite entre as duas estncias. Em umtexto metanarrativo ou metaficcional evidenciado no prprio texto seu processo deconstruo e, portanto, o foco se volta tanto para o universo ficcional quanto parafora dele, ao mesmo tempo estruturando e explicitando a fico. Esse conceito demetafico definido por Linda Hutcheon (1984) como narrativa narcsica, ou seja,

    a narrativa que evoca o prprio ato de narrar e questiona a forma como o texto estsendo produzido:

    Metafiction, as it has now been named, is fiction about fiction that is,fiction that includes within itself a commentary on its own narrative and/orlinguistic identity. Narcissistic the figurative adjective chosen here todesignate this textual self-awareness is not intended as derogatory but ratheras descriptive and suggestive, as the ironic allegorical readings of theNarcissus myth (Hutcheon 1984: 1).

    [Metafico, como vem sendo chamada, fico sobre fico isto , fico

    que inclui em si mesma um comentrio sobre sua prpria identidade narrativae/ou lingustica. Narcisista o adjetivo qualificativo escolhido aqui paradesignar essa autoconscincia textual no tem sentido pejorativo, masprincipalmente descritivo e sugestivo, como as leituras alegricas do mito deNarciso.]

    J a metaliteratura seria uma categoria maior, mais abrangente, dentro daqual a prpria metafico estaria inserida. Ela est relacionada presena daliteratura como tema central das narrativas, ou seja, a produo do texto no precisa

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    ser evocada especificamente, pois o fato da literatura falar sobre si mesma que d aessa estratgia um carter autorreflexivo.

    Outras estratgias recorrentes e j citadas, que tambm sero analisadas estoligadas inrcia da trama. O que marca essas caractersticas so: a ausncia de

    diegese, de clmax e de desenvolvimento do universo ficcional, todas muitofrequentes na obra de Paulo Henriques Britto, como veremos a seguir.

    Inrcia, metafico e metaliteratura na obra de Paulo Henriques Britto

    Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951 e bastanteconhecido por seu trabalho como tradutor traduziu cerca de 80 livros, tanto nasdirees ingls/portugus como portugus/ingls, tendo como suas principaistradues obras de Willian Faulkner, Ian McEwan, Lord Byron, Elizabeth Bishop,

    Philip Roth, Thomas Pynchon e Wallace Stevens. Tambm atua como professor nasreas de traduo, criao literria e literatura brasileira na PUC-Rio e vem sendoapontado como um dos autores mais representativos da poesia contemporneabrasileira. Publicou seis livros de poesia: Liturgia da matria (1982), Mnima lrica(1989), Trovar claro(1997),Macau(vencedor do Prmio Portugal Telecom 2004), Tarde(2007) e Formas do nada(2012) e um livro de contos, Parasos artificiais (2004), que sero objeto da anlise do presente trabalho.

    Na prosa de Paulo Henriques Britto existem trs linhas que interessam aquiespecialmente, por estarem diretamente relacionadas com a questo central desseartigo, a representao do esvaziamento da experincia na prosa de fico

    contempornea. As trs linhas so: a metafico, a linha que aborda a questo dainrcia e a metaliteratura. Primeiramente abordaremos a questo da metafico,estratgia recorrente na produo contempornea.

    No primeiro conto do livro, Os parasos artificiais, o narrador se dirige a uminterlocutor Voc est sentado numa cadeira. Voc est sentado nesta cadeira jfaz bastante tempo. (Britto 2004: 9) narrando possveis atos e sensaes dessevoc ao sentar-se em uma cadeira, e a maior parte do conto se desenvolve em tornodo conforto e do desconforto de se estar sentado e as possveis posies que podemtornar essa situao mais ou menos confortvel.

    Voc est sentado numa cadeira. Voc est sentado nesta cadeira j fazbastante tempo. Voc fica sentado nesta cadeira durante muito tempo,diariamente. Voc no conseguiria ficar parado em p por tanto tempo; logovoc ficaria cansado, com dor nas pernas. Tambm no conseguiriapermanecer tanto tempo assim deitado na cama, de cara para o teto; essaposio se tornaria cada vez mais incmoda com o passar do tempo, at faz-lo virar-se para um lado por exemplo, para o lado esquerdo; mas depois dealguns minutos de bem-estar, seu corpo seria dominado pouco a pouco poruma sensao de desconforto que gradualmente se transformaria numa idia,de incio vaga, depois mais ntida, mais e mais, at cristalizar-se nas palavras:Esta posio a menos confortvel que h (...) (Britto 2004: 9)

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    No h um enredo objetivo, personagens ou uma ao substancial. Todo oconto se articula em um discurso que apenas expe impresses. Ao fim do conto,depois de discorrer sobre as possveis aes do interlocutor, o narrador passa a

    considerar outra questo que estaria ligada a essas aes:

    Pois ao levantar-se da cadeira voc se d conta de que a poro de espao quevoc ocupou durante tanto tempo, sentado na cadeira, est agora impregnadada presena fsica do seu corpo; ou seja, ela guarda agora alguns vestgios desubstancialidade que seu corpo deixou ali. (...) Naturalmente, nada impedeque voc recoloque a cadeira no mesmo lugar de antes, se sente nela epermanea ali por quanto tempo quiser, ou conseguir, e durante todo essetempo goze a sensao de estar na posse da sua materialidade perdida. Masessa sensao ilusria, pois esses vestgios no fazem mais parte de voc (...)

    (Britto 2004: 10)

    O narrador passa ento a apresentar para o interlocutor uma possvel soluopara o problema da materialidade perdida, e nesse momento do conto que seevidencia a metafico presente nessa narrativa de Paulo Henriques Britto, pois aalternativa encontrada pelo narrador para a perda dos vestgios desubstancialidade justamente a literatura:

    Mas h uma maneira simples de alterar essa situao - quer dizer, no alter-la objetivamente, o que seria impossvel, e sim modificar o modo como voc avivencia (e como voc s sabe das situaes o que vivencia delas, para todosos fins prticos modificar sua percepo de uma situao a mesma coisa quemodificar a situao em si): basta sentar-se na cadeira, pegar um lpis e umafolha de papel, e comear a escrever (Britto 2004: 11-12).

    Acerca desse conto existem ainda dois outros pontos importantes: o primeiro que ele, ao contrrio dos outros contos do livro, grafado em itlico, o que evidenciauma tentativa de diferenciao das outras narrativas de Parasos artificiais. possvelainda estabelecer uma relao entre o conto em questo e o livro Parasos artificiais(1858), de Charles Baudelaire, uma vez que, desde o ttulo, h um dilogo bastanteclaro entre os dois. Ambos os textos falam de algum modo da busca pela satisfao.

    Mas se em Baudelaire essa satisfao pode ser encontrada no pio e no haxixe, emPaulo Henriques Britto a alternativa apresentada a literatura e o ato da escrita.

    O enredo de Os parasos artificiais , portanto, centrado apenas nasimpresses de um possvel interlocutor e em uma determinada realidade constitudaapenas por acontecimentos mnimos como sentar-se em uma cadeira e mudar deposio. O conto narra pequenos eventos, transformando-os, no entanto, em matriapara a narrativa. A ausncia de ao perpassa toda a narrativa e a inrcia apresenta-se como caracterstica preponderante da diesege. Em A era do vazio (2005), GillesLiposvetsky observa que a passividade vem de fato se constituindo como um traoexpressivo do indivduo contemporneo:

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    O tempo em que a solido designava as almas poticas e excepcionaisterminou, aqui todos os personagens a conhecem com a mesma inrcia.Nenhuma revolta, nenhuma vertigem mortfera a acompanha; a solido se

    tornou um fato, uma banalidade com a mesma importncia dos gestoscotidianos. As conscincias no mais se definem pela dilacerao recproca; oreconhecimento, a sensao de incomunicabilidade e o conflito deram lugar apatia, e a prpria intersubjetividade se encontra relegada (Lipovetsky 2005:29).

    A partir dessa considerao de Lipovestky, passamos a abordar ento maisdiretamente a segunda linha que nos chama ateno na prosa de Paulo HenriquesBritto e que se configura como tema que deve ser destacado no presente trabalho: aquesto da inrcia representada atravs da ausncia de ao da narrativa. Assim

    como nesse primeiro conto analisado, so outros os textos de Parasos artificiaisnosquais a ausncia e imobilidade de personagens e o esvaziamento da diegese e douniverso ficcional so pontos centrais. Essas narrativas so relatos sobre a inrcia e aimobilidade, centrados nas impresses do narrador acerca de determinada realidade,que constituda apenas pelas experincias mnimas vividas pelos protagonistas,experincias essas que primeira vista podem soar como quase insignificantes, masque so, no entanto, transformadas em matria para a fico.

    A caracterstica mais marcante do conto Uma doena, por exemplo, justamente a imobilidade. A narrativa em primeira pessoa sobre um homem que,acometido por uma doena das que obrigam a pessoa a ficar deitada o tempo todo

    (Britto 2004: 13), passa a observar nos mnimos detalhes o quarto no qual estconfinado, analisando e catalogando manchas, rachaduras e acidentes geogrficosdas paredes, do teto, do cho e at mesmo do lenol, e na composio desseinventrio que o narrador consegue vencer, pelo menos momentaneamente, o tdio ea inrcia fsica inerentes a essa situao.

    Aps analisar e inventariar tudo o que est ao alcance de sua vista, inclusiveseu prprio corpo, o narrador pensa ter encontrado uma relao entre o avano deuma rachadura no teto e seu estado de sade, mas aps vrias anlises, desiste detentar descobrir qual seria essa relao:

    Durante algum tempo no fiz outra coisa a no ser observar a rachadura emeu corpo, tentando resolver o problema; por fim cheguei concluso bvia, alis de que, com os dados de que eu dispunha, a questo era, a rigor,insolvel. Alm disso, a rachadura j estava me entediando, por ser umfenmeno demasiado previsvel. (Britto 2004: 17).

    Uma vez que a investigao de todos os aspectos possveis do quarto no qualest e de seu corpo j no interessam mais ao narrador, ele busca outra alternativa inrcia: Ento resolvi escrever esse breve relato (Britto 2004: 17). Desse modo pode-se compreender que, se no primeiro conto existe um narrador que considera a escritaa nica forma de validar a experincia vivida e evitar a perda da substancialidade, no

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    segundo h uma reafirmao desta idia, j que o relato a sada para que estesupere a imobilidade, mesmo que a experincia a ser narrada seja mnima.

    Esse mesmo tema aparece tambm na poesia de Paulo Henriques Britto, emuma srie de poemas chamada justamente Uma doena, do livro Tarde. bvia a

    dificuldade de comparao entre os dois gneros, por serem, a prosa e a poesia,linguagens distintas que apresentam estratgias diferentes de construo. No entantodestaco apenas essa questo temtica, que lida no s com o tema da doena, mastambm da dinmica de posio e mobilidade o que tambm remonta ao primeiroconto de Britto aqui analisado, Os parasos artificiais:

    Nenhuma posio natural.Qualquer ordenao de p e moe tronco to-somente parcial.

    e momentnea, uma constelaoto arbitrria e pouco funcionalquanto a Ursa Maior ou o Escorpio.

    Nenhuma estritamente indispensvel.Nenhuma realmente lenitiva.Nenhuma propriamente confortvel.Apenas uma definitiva.(Britto 2007: 27)

    A inrcia permeia ainda outros contos do livro, como Uma visita. A

    delimitada ao dessa narrativa se passa toda ela com o protagonista na janela de suacasa observando um homem na rua. Britto traz tona o tradicional tema do duplosem, no entanto, levar os personagens a algum confronto de qualquer espcie,delimitando a narrativa apenas observao distncia.

    Parecida com a trama de Uma visita a de Um criminoso. Assim como noprimeiro, no segundo tambm um homem na janela o centro da narrativa, em umatrama definida na orelha do livro como uma verso carioca deJanela indiscreta. Masao contrrio do filme de Alfred Hitchcock, no h nenhum risco, perigo ouassassinato e toda a histria , de fato, criada na mente do protagonista, queexperimenta um estado de tenso insuportvel s por ver um homemdesconhecido parado na rua e, a partir da, constri para si mesmo uma tramaimaginria cujos desdobramentos nunca chegam a se realizar.

    A capa do livro, inclusive, retrata exatamente esse tipo de cena, relativa aosdois ltimos contos citados. Um homem parado em frente janela, de costas, em umambiente mobiliado e estril, passando justamente a imagem de solido queatravessa essas narrativas, o que nos remete fala de Lipovestky: a solido setornou um fato, uma banalidade com a mesma importncia dos gestos cotidianos(Lipovetsky 2005: 29).

    Entretanto, em Os sonetos negros, ltimo conto do livro, a solido, a inrciae a imobilidade saem de cena para dar lugar a outra estratgia tambm bastante

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    recorrente na prosa de fico contempornea: a metaliteratura, terceira linha da prosade Britto que consideramos interessante para esta anlise.

    O enredo de Os sonetos negros gira em torno de uma pesquisadora deTeoria da Literatura que faz uma pesquisa de campo acerca da obra da fictcia poeta

    Matilde Fortes e, para tanto, se desloca at a tambm fictcia cidade de So Dimas,onde essa poeta teria morado em vida. A protagonista do conto, Tnia, estescrevendo uma tese de doutorado sobre determinadas publicaes misteriosas deMatilde Fortes, e para prosseguir em sua pesquisa tem ento que lidar com Gasto,vivo da escritora, para quem explica suas intenes:

    [...] seu Gasto me perguntou o que eu viera fazer em So Dimas. Expliqueique meu objetivo era examinar os manuscritos de Matilde para esclarecer umasrie de dvidas textuais, porque ele no era o nico a fazer crticas edioda Poesia reunida: quase todo mundo encontrava uma srie de problemas na

    edio, e no s na introduo. Alm das gralhas evidentes, havia muitasdvidas quanto pontuao; a estrofao tambm tinha sido questionada pormais de um crtico, principalmente nos poemas em verso livre. Acrescenteique era minha inteno fazer mais uma tentativa de encontrar os originais dosSonetos negros, porque a minha tese de doutorado, expliquei, seria sobre ossonetos (Britto 2004: 85).

    Diferente dos contos anteriormente analisados, em Os sonetos negros ainrcia e a imobilidade no se constituem como eixos da narrativa e o universoficcional ampliado, o conto mais convencional, no sentido de possuir uma tramacom vrios personagens, aes e comeo, meio e fim. O conto, inclusive, tem um tomde narrativa de mistrio, uma vez que a pesquisadora precisa resolver um enigmaacerca da obra da poeta que objeto de sua tese. E nesse contexto que Britto criauma histria que tem como tema a prpria literatura. No entanto, o autor no scoloca a literatura como tema principal, mas tambm a teoria e a pesquisa literria,tratando ambas com certa ironia ao longo da narrativa, emulando a linguagemacadmica dos Estudos Literrios rea de conhecimento, inclusive, na qual oprprio Paulo atua:

    Vou passar o resto da tarde lendo uma tese sobre Matilde Fortes que a Ercilame passou com altos elogios. O ttulo no nada animador: Verso sub-verso:a desconstruo da(o) fala(o) lrica(o) na escritura clitocntrica de MatildesFortes. Nenhuma tese jamais vai me convencer de que a poesia de MatildesFortes clitocntrica. Nem que escritura no coisa de cartrio (Britto2004: 95).

    Alm de ironizar, por exemplo, os ttulos pomposos de certas pesquisas eadicionar termos inventados, comuns ao ambiente acadmico clitocntrica, comono fragmento acima ou matildeana, em outro trecho da narrativa , soevidenciados ainda dilemas e percalos da pesquisa literria, tanto relativas prpriapesquisa a dificuldade da protagonista em encontrar os originais da obra que

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    procurar e o mistrio que circunda essas publicaes quanto dificuldades prticasrelacionadas vida acadmica. Paulo Henriques Britto usa como matria para anarrativa o percurso fictcio de uma pesquisadora em seus mnimos detalhes como,por exemplo, a preocupao com a bolsa de financiamento da pesquisa:

    Relendo a mensagem agora noite, me pergunto se faz sentido atacar demodo to frontal a tese da clitoricidade da escritura matildeana quer dizer,politicamente falando. Afinal, a bolsa que est custeando minha viagem depesquisa a So Dimas provm do NUELFE. Sei que a Ercila faz de tudo paradefender meu sagrado direito de discordar dela, mas nem todo mundo noNUELFE h de ser to tolerante com a minha incorreo poltica. Enfim, noadianta chorar sobre o e-mail enviado (Britto 2004: 97).

    A metaliteratura, portanto, tambm se manifesta como estratgia nas

    narrativas de Parasos artificiais. No entanto, possvel observar que, como jsalientado anteriormente, o trao mais marcante da literatura de Paulo HenriquesBritto est relacionado questo da inrcia, da apatia e da solido. Essas estratgiasutilizadas pelo autor esto diretamente ligadas precarizao da experincia, umavez que so relatos centrados nas impresses do narrador acerca de determinadarealidade, que constituda apenas pelos eventos mnimos vividos pelosprotagonistas, experincias essas que primeira vista podem soar como quaseinsignificantes, mas que so, no entanto, transformadas em matria da narrativa.Inclusive, nos textos que tratam deste livro e podem ser facilmente encontrados nainternet, recorrente o uso de palavras como banal e trivial para descrever o

    tema dos contos.

    Consideraes finais

    A questo capital para esse trabalho foi, portanto, a hiptese central de que possvel observar na prosa de fico contempornea alguns traos que apontam parauma tentativa de representao do empobrecimento tambm chamado deesvaziamento ou precarizao da experincia. E, atravs da anlise da obra dePaulo Henriques Britto, acreditamos que tenha sido possvel entender de que modo a

    literatura tem procurado representar ou expressar esse fenmeno.O uso de estratgias como a metaliteratura, metafico e esvaziamento dadiegese, evidencia um sintoma da precarizao da experincia autntica analisadapor Benjamin e Agamben, entre outros tericos citados, pois, se a literatura representao da experimentao do mundo, quando essa experimentao reduzida ou modificada, resta literatura narrar essa ausncia, reduo ou mudana.E atravs do uso dessas estratgias que podemos perceber que o estatutotradicional da narrativa est sendo de fato bastante modificado.

    Dentro dessa questo de narrar a ausncia, importante destacar que, deacordo com Agamben, a aporia ausncia de via, de caminho que fundamenta a

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    Laura de Assis Souza (UFJF)EXPERINCIA, INRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO 178

    Estao LiterriaLondrina, Volume 9, p. 168-180, jun. 2012

    ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

    nica experincia possvel para o homem hoje. Portanto, as estratgias narrativasaqui elencadas podem ser encaradas justamente como uma representao dessaaporia. Se a experincia nos dias de hoje foi esvaziada ou precarizada, resta literatura para quem at ento a matria seria justamente a experincia vivida

    representar essa falta, essa ausncia de caminho.E, para tanto, a soluo encontrada tem sido, como vimos, cada vez mais falar

    de si mesma, das suas peculiaridades, dificuldades e limitaes atravs dametafico e metaliteratura ou representar tematicamente essa lacuna, por meio doesvaziamento interno da prpria narrativa movimento que aqui chamamos deinrcia e desficcionalizao do enredo, ausncia de diegese e reduo do universoficcional.

    Mais uma vez recorrendo a Agamben, apenas para concluir essa exposio,trago tona a investigao que ele empreende sobre a contemporaneidade, com focoespecialmente no conceito de contemporneo. Em O que o contemporneo e outrosensaios (2009), Agamben se concentra em buscar especificidades na natureza docontemporneo, partindo de uma proposio de Roland Barthes segundo a qual ocontemporneo o intempestivo e concluindo que:

    Pertence verdadeiramente ao seu tempo, verdadeiramente contemporneo,aquele que no coincide perfeitamente com este, nem est adequado s suaspretenses e , portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso,exatamente atravs desse deslocamento e desse anacronismo, ele capaz, maisdo que os outros, de perceber e apreender seu tempo (Agamben 2009: 58).

    Somando a essa definio de Giorgio Agamben uma citao de AntoineCompagnon, Un contemporain est un crivain qui nous parle de nous2(Compagnon 2011) , nos parece bastante clara a importncia de investigar em quemedida a literatura contempornea tem, de fato, procurado estar afinada com asquestes de seu tempo. Se esse trabalho elegeu a literatura do presente como corpus,isso se deu justamente por acreditar que necessrio compreender como a literaturavem lidando com os desafios e especificidades da contemporaneidade. Se a arte umdos caminhos para se entender e apreender a humanidade e a sociedade como umtodo, nada mais lgico do que nos debruarmos cada vez mais sobre a produoliterria do presente.

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    Laura de Assis Souza (UFJF)EXPERINCIA, INRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO 179

    Estao LiterriaLondrina, Volume 9, p. 168-180, jun. 2012

    ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

    EXPERIENCE, INERTIA AND METALITERATURE IN PAULO HENRIQUESBRITTO

    Abstract: This study will analyze the short stories in the book Parasos artificiais(2004)by Paulo Henriques Britto, with the aim of discussing how these narratives deal withthe theme of experience's emptyingin contemporary times.Keywords: Emptying; Experience; Contemporary literature.

    REFERNCIAS

    AGAMBEN, Giorgio. Infncia e Histria: destruio da experincia e origem da histria.

    Belo Horizonte:Editora da UFMG, 2005.

    ______. O que o contemporneo? e outros ensaios. Chapec: Argos, 2009.

    BLANCHOT, Maurice. O espao literrio. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

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    ______. Tarde. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

    BENJAMIM, Walter.Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, 1994.

    ______. Reflexes: a criana, o brinquedo, a educao. So Paulo: Summus, 1984.

    COMPAGNON, Antoine. Vous avez dit contemporain?. Texto publicado no sitedo College de France em 2011. Disponvel em: Acesso em 08 de setembro de 2011.

    HUTCHEON, Linda. Narcissistic narrative: the metafictional paradox. New York:

    Methuen, 1984.

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    REVEL, Judith.Michel Foucault conceitos essenciais. So Carlos: Claraluz, 2005.

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    Laura de Assis Souza (UFJF)EXPERINCIA, INRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO 180

    Estao LiterriaLondrina, Volume 9, p. 168-180, jun. 2012

    ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

    ______. Literatura e vida literria.Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985.

    SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literria.Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985.

    ARTIGO RECEBIDO EM 01/03/2012 E APROVADO EM 05/03/2012.