EISENSTEIN Sentido Do Filme

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Sergei Eisensteip.

o Sentido do FHme

Apresenta,iio, notas e revisiio tecnica: Jose Carlos Avellar

Tradufiio: Teresa Ottoni

Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro

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Titulo original: The Film Sense

Copyright © 1947. 1942 by Harcourt Brace Jovanovich, Inc. Copyrightrencwed 1975. 1970 by Jay Leyda

Published by arrangement with Harcourt Brace Jovanovich, Inc.

Copyright © 2002 da ediljao em Hngua portuguesa: Jorge Zahar Editor Ltda. rua Mexico, 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro. RJ rei.: (2:) 2240-0226/ fax: (2!) 2262-5123

e-maH: [email protected] site: www.zahar.com.br

Todos os ditehos reservados. A reproduc;ao nao-autorizada desta publicac;ao, no todo

ou em parte, consticui violaljao de direims autorais. (Lei 9.610/98)

Capa: Sergio Campantc

Primeira ediljao em lingua portuguesa: 1990

Os editores agradecem a Fundaljao do Cinema Brasileiro e, em especial, a sua Diretoria Tcknica, represenrada por Ana Pessoa, pela reproduc;ao

fotografica das cenas dos filmes de Eisenstein utilizadas na ediljao brasileira de A forma do film, e 0 ,,"rido do filme.

as editores agradecem tambem a Cinemateca do Museu de Arte Modema do Rio de Janeiro por ter cedido c6pias dos filmes Alexander Nevsky. Agreve, 0 encourdfado Po/emkin c Outubro para que as reproduc;6es

fossem feitas diretamente dos fotogramas desses filmes.

Reprodu~ao dos fotogramas feita no Laborat6rio da Funda~o do Cinema Brasileiro por Jose de Almeida Mauro.

CIP·Brasil. cataloga~ao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

r--Eisenstein, Sergei. 1898-1948 E37s 0 sentido do filme I Sergei Eisenstein; apresenta~ao. notas e

revisao tecnica, Jose Carlos Avelar; tradu~ao, Teresa Ottoni. -Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002

il.;

Tradu~o de: The film sense Anexos ISBN 85-7110-107-8

1. Cinema - Estetica. I. Avellar, Jose Carlos, 1936-, II.

TItulo. I CDD 791.4301 J CDU791.43 I 02-1642

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Sumario

INTRODU<;AO: Seria imposs(vel viver, por Jose Carlos Avellar .

Palavra e imagem . • . . . •

Sincronizac;ao dos sentidos .

Cor e significado •.••••

Forma e contetldo: pratica .

NOTA BIOGRAFICA

FILMOGRAFIA. • .

SUGE5TOES DE LEITURA . Textos de Eisenstein . Textos sabre Eisenstein

fNDICE DE NOMES EASSUNTOS

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As notas ao final de cada capitulo assinaladas com as iniciais N.S.E. sao originais de Sergei Eisenstein.

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Apesar de 0 autar ser da profissao e saber tuda aquila que a experien­cia, com a ajuda de muira reflexao, pode ensinar, nao se debrus:ara tanto quanta se poderia pensar sabre esta faceta da acto que. para muitos artisras medlocres. parece. conscituir a acre em seu todo, mas sem a qual a acte nao existiria. Com 1550, estacl clando a sensas:ao de invadir 0 domInic dos cdeicos das questoes esteticas. genre que, sem duvida, acha a experiencia desnecessaria para ascenderem a analise especul?-tiva das arres.

Tratacl mais de quescoes filos6ficas do que tecnicas. Ism pode parecer singular num pintar que escreve sabre arte: mU![Qs semi-eru­ditos se dedicaram a filosofia da arte. Parece que consideravam sua profunda ignorancia das questoes tecnicas urn dtulo a ser tespeitado, convencidos de que a preocupas:ao com esse aspecto tao vital para qualquer arre privava os artisras profissionais da especulas:ao esretica.

Parece ate que imaginaram que uma profunda ignorancia das questoes recnicas era uma razao a mais para se elevatem as considera­croes estritamenre metaf!sicasi em suma, que a preocupas:ao com a tecnica impede os attistas profissionais de ascenderem a alturas ptoi­bidas para os que nao pertencem aos campos da estetica e da pura especulas:ao.

Eugene Delacroix Journal, 13 de janeiro de 1857

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INTRODUC;:AO

Seria impossfve! viver

Jose Carlos Avellar

A ideia deste livro surgiu em agosto de 1941. Eisenstein, entao ainda em Moscou {em outubro ele e rodo pessoal da Mosfilm seriam transferidos para Alma-Ata}, enviou um telegrama a Jay :"eyda, em Nova York, perguntando se ele conseguiria nos Estados Unidos a edi~ao de um livro com Montagem 1938 e outros artigos nao conhecidos fora da Uniao Sovietica. Pouco depois do telegram a, uma carta. Nela, os textos e uma indica~ao da ordem em que deveriam ser publicados - primeiro Montagem 1938, depois as tres partes de Montagem vertical; tambem nela, as fotos de Alexander Nevsky para as ilustra~6es e uma observa~ao quanto a tradu~ao do primeiro capitulo - deveria ser consultada a versao de Montagem 1938 publicada em Life and Letters Today, de Londres, porque para esta revista ele selecionara especialmente exemplos de poemas escritos em ingles. Jay Leyda, que na decada de 1930 estudara cinema com Eisenstein em Moscou e fora seu assistente de dire~ao no interrompido 0 prado de Bejin, conta como tudo aconteceu em Eisenstein at Work, livro que escreveu com Zina Voynow, publicado em 1982 pda Pantheon Books e pelo Museu de Arte Modema de Nova York. 0 sentido do filme ficou pronto em agosto de 1942, e Eisenstein recebeu 0 seu exemplar no dia em que comemorava 45 anos, em 23 de janeiro de 1943. Ele preparava entao a filmagem da primeira parte de lvii, 0 Terrlvel, que come~aria em abril. Contente com 0 livro, escreve a Leyda dizendo que gostara de tudo, a come~ar pela capa, amarelo e preto, como a capa de uma hist6ria de detetive, com um retrato dele com um sorriso de Giocondo, uma expressao meio irilnica, um tipo de face daquele usado para ilustrar algo como "ele sabe tudo sobre 0 seu futuro", ou como um livro sobre hipnotismo. A foto, diz Eisenstein, fora tirada no Mexico. Ele tinha na mao direita, erguida ate a altura do ombro, uma caveira de a~ucar, das usadas nas festas do dia dos mortos. Cortada a caveira 0 que ficou foi aquele sorriso de Giocondo. "Wonderful. Splen­did", comentou para Leyda. 0 sentido do filme foi 0 primeiro livro a reunir textos de Eisenstein. Poi tambem 0 unico de seus livros publicados enquanto de vivia.

POlleD depois cia edic;ao norte-americana veio a inglesa, que ficou pranta no come~o de 1943, e para ela Eisenstein escreveu um prefacio que jamais chegou as maos do editor. Ele se encontrava entao em Alma-Ata. 0 texto - Seria imposslvel viver - foi escrito e enviado para Londres em outubro de 1942, mas se extraviou

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par causa da guerra. Parte deste prefacio foi retomada pelo autor e citada no quarto capitulo de A natureza niio indiflrente, escrito em 1945. Nele, Eisenstein conta como em outubro de 1941 deixou Moscou, entao bombardeada pelos nazistas, ao lado de outros cineastas sovieticos, em dire¢o a Alma-Ata - doze dias e doze noites num trem, especie de nova area de Noe no meio do diluvio da guerra. Diz como encontrar Alma-Ata no mapa, tra~ando com a ponta do dedo uma linha que vai do SuI da india para a alto, parando na fronteira asiatica do SuI da Uniao Sovietica. Diz que ali, tao longe, tao na retaguarda, seria vergonhoso trabalhar e eriar, seria imposs{vel viver, se nao estivessem codos conscientes das miss6es que deveriam desempenhar durante a guerra: primeiro, disparar filmes e filmes contra a inimigo, aplicando com a cinema golpes tao devastadores quanta as de urn tanque au de urn aviao; segundo, presernr a cultura cinematagrafica da onda de destrui~ao fascista. Diz mais, que as enormes montanhas cobertas de neve contra a ceu azul de Alma-Ata convidam 11 medita¢o; que obsetvar a neve na montanha desloca a pensamento do caos daquele instante de guetra para aarte e a cultura que vida depois de, tetminada a loucura; que quem luta lange do front tern como missao analisar a passado para preparar a futuro; lembra que a fim da Primeira Guerra Mundial trouxe urn inesperado florescimento da cultura, e que a pedodo entre as duas guerras foi, mais do que qualquer outra coisa, a era do triunfo do cinema; diz que neste mesmo pedodo as outras artes se lan~ram febrilmente no caminho da desintegra¢o e da desagrega¢o da forma, da imagem e do pensamen­ta; que em nenhum outro momenta da hist6ria as artes viveram semelhante impasse; que depois de atingie as mais altos pontas de seu desenvolvimento a arte subitamente despencou, ate chegar ao grau zero; e que s6 a cinema, porque e a mais jovem das artes, porque partiu exatamente da desintegra~o em que as outras actes encalharam, s6 a cinema soube resistir a tempestade de desagrega¢o. Carta entao o seu texto com uma Frase salta:

A arte e a mais sensivel dos sism6grafos. E retoma a conversa dizendo que 0 impasse cd-gieo em que as actes se encen­

travam nos ultimos anos antes da Segunda Guerra refletia com precisao a grau de tensao e as contradi~6es dilacerantes em que a mundo se encontrava, contradi~6es que finalmente explodiram numa carnificina de propor~6es jamais vistas ate entao, de propor~6es difCceis de estabelecer quando observadas dali, daquele momenta, de outubro de 1942. Diz nao ter duvidas da vit6ria sabre as trevas, mas que nao era passive! ainda determinar 0 que 0 mundo teria de suportar ate a vit6ria e depois dela. Relembra a,hist6ria de Arquimedes, que teria gritado para as soldados roma­nos que invadiram sua casa para massacd.-lo "nao toquem nos meus desenhos

u, e

diz que codas deveriam gritar urn grito semelhante para salvar as filmes e as reflex6es de coda a gente que trabalha em cinema; e que era par isso, que era como urn grito, que ele publicava entao, no meio da guerra, esta coletinea de artigos que examinam a passado e se voltam para a futuro da montagem, que foi de certo modo

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Seria impassivel viver 11

a coiuna vertebral da estilfstica do cinema sovietico ate entao. Nos ultimos anos, diz em seguida, esta linha foi mais ou menos apagada, a montagem deixou de ser 0

meio mais largamente usado nos filmes soviericos, 0 que, sem duvida, historica­mente, nao foi simples obra do acaso. Explica que nos textos de 0 sentido do filme procura demonstrar que a montagem e uma ptopriedade organica de todas as artes. E que, estudando a hist6ria dos aumentos e diminui~6es de intensidade do uso da montagem atraves da hist6ria das artes, chegou a conclusao de que a importancia do metodo e da estrutura de montagem diminui invariavelmente em epocas de estabiliza~ao social, em epocas em que as artes se dedicam antes de qualquer outra coisa a refletir a realidade. E que inversamente, nos pedodos de uma intromissao ativa no desmonte, reorganizac;ao e reestruturac;ao da realidade, nos perfodos de uma reconstru~o ariva da vida, a montagemganha entre os metodos de constru~ao da arte uma imporcancia e uma intensidade que nao cessam de crescer.

Eo primeiro livro a reunir arrigos de Eisenstein. Poi 0 unico que ele chegou a ver publicado.

Na carta que endere~u a lay Leyda com, os textos e a indica~ao da ordem em que eles deveriam ser publicados, Eisenstein cita outros arrigos que terminava de escrever entao, agosto-setembro de 1941: urn texto sobre EI Greco, a versao inglexa de um artigo sobre Griffith, partes iniciais de Urn futuro livro sobre a hist6ria da ideia do primeiro plano, projeto que nao chegou a terminar. 0 artigo sobre EI Greco, El Greco y el cine, foi posteriormente integrado a coletanea Ginematisme: 0

artigo sobre Griffith, Dickens, Griffith enos foi posteriormente integrado a segunda co:etaneade textos de Eisenstein. Aforma do filme, editado em 1949, primeiro nos Estados Unidos, logo depois na Inglaterra, a partir de uma sele~ao de artigos feita pelo autor no final da decada de 1930 e revista em 1947, um ana antes de sua morte, ':poca em que trabalhava num ~Utro projeto de livro: A natureza niio indiferente, mais ou menos organizado de acordo com 0 projeto original e divulga­do em frances e ingles a partir de 1978. E bem af, no final deste ensaio, quando diz que nao indiferente nao e tanto a natureza que nos cerca mas sim a nossa pr6pria natureza, a natureza humana que jamais indiferente mas sim apaixonada, ativa e criativamente investiga e reconstr6i 0 mundo, bern af nesta frase e que quase se pode resumir a energia de Eisenstein (igual a m de montagem e t? de veIocidade da luz, ou de cinema ao quadrado, 0 que existe nos filmes, e 0 que existe tambem em todas as outras artes). Energia nao indiferente que se espalha igual em seus textos e em seus filmes, que contagia 0 leitor e 0 espectador a ponto de fazer presente peIo menos por urn instante, peIo menos como sensa~ao que brilha 0 tempo de um reIampago, peIo menos como coisa sentida como urn sonho, s6 no consciente, peIo menos como sentimento que mal se traduz em razao, que sem 0 cinema seria impossivel viver.

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l. Palavra e imagem1

Cada pa!avra foj permeada. como cada imagem foi transformada, pda intensidade da imaginaifao dc_ urn ara criarivo instigante. "Pense bern", diz Abc Vogler sabre 0 milagrc analogo do musico:

Pense bern: cada tom de nossa cscala em si e nada,· £Ild em toda parte do mundo - . alto. suave, e tudo (SId

dito: De~me. para usd-Io! eu 0 mis/uTo com mats dois em meu,

pensamento; Eis at! Voces viTam e ouviram: pensem e CUrvem a caberd!

De a Coleridge uma palavra vlvida_ de alguma anriga narrativa; deixe-o mistura-la a oureas duas em seu pen­samento; e entao (traduzindo teernas musicais para [cernos liter:irios), "a panir de rres sons e!e formaci nao um quarto sam, mas uma estrcla."

JOHN LlVINGSfONE LOWES2

Houve urn perlodo do cinema sovietico em que se proclamava que a montagem era "tudo". Agora estamos no final de urn perlodo no qual a montagem foi considerada como "nada". Considerando a montagem nem Como nada, nem como tudo) acho oportuno neste momento lembrar que a montagem e urn componente tao indis­pensave! da produ~ao cinematogdfica quanto qualquer outro e!emento eficaz do cinema. Depois da tempestade "a favor da montagemlt e da batalha "contra a montagem", devemos voltar a abordar esse problema com a maior simplicidade. Isto e ainda mais necessario quando se considera que, no perlodo de "nega~ao" da montagem, seu aspecto mais inquestionavelt 0 unico elemento realmente imune ao desafio, tambem foi repudiado. A questao e que os criadores de numerosos filmes, nos ultimos anOSt "descartaramn a montagem a tal ponto que esqueceram ate de seu objetivo e fun~ao fundamentais: 0 papel que toda obra de arte se imp6e, a necessi­dade da exposiriio coerente e orgilnica do tema, do material, da trama, da ariio, do movimento interno da seqUencia cinematognillca e de sua a<;5.o dramatica como

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Não exalta a montagem, dizendo apenas que é um elemento fundamental a linguagem cinematográfica.
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Pensamento construtivista russo.
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urn codo. Sem falar no aspecco emocional da hist6ria, ou mesmo de sua lOgica e continuidade, 0 simples atc de narrar uma hist6ria coesa foi frequentemente omi­tido nas obras de alguns proeminentes mestres do cinema, que realizam varios generos de filme. 0 que precisamos, daro, e nao tanto da cdtica individual desses mestres, mas basicamente de urn esfor~o organizado para recuperar 0 exerdcio da montagem, que tantos abandonaram. lsto e ainda mais necessario a partir do momenCO em que nossos filmes enfrentam a missao de apresentar nao apenas uma narrativa logicamente eaesa, mas uma narrativa que contenha 0 mdximo de emofao e de vigor estimulante.

A montagem e uma poderosa ajuda na solu~ao desta tarefa. Afinal, por q~e usamos a montagem? Mesma 0 mais fanatica inimigo da

montagem concordara que, nao a usamos apenas porque 0 rolo de filme 11 nossa disposic;ao nao tern urn comprimento infinito e, conseqUentemente, condenados a trabalhar com peda~os de comprimento restrico, temos de coloca-Ios ocasional­mente.

Os "esquerdistas" da montagem estao no extremo oposco. Ao brincar com peda~os de filme, descobriram uma propriedade do brinquedo que os deixou atoniros por muiros anos. Esta pcopriedade consiste no fato de que dois pedaros de filme de qualquer tipo, co/acados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da justaposiriio. Esta nao e, de modo algum, uma caracte­ristica peculiar do cinema, mas urn fenomeno encontrado sempre que lidamos com a justaposi~ao de dois fatos, dois fenomenos, dois objecos. Estamos acosrumados a fazer, quase que automaticamente, uma slntese dedutiva definida e 6bvia quando quaisquer objecos isolados sao colocados 11 nossa frente lado a lado. Por exemplo, tomemos urn tumulo, justaposco a uma mulher de luto chorando ao lado, e dificilmente alguem deixara de conduir: uma viuva. E exatamente neste aspecto da nossa percep~ao que a seguinte minianedota de Ambrose Bierce baseia seu efeico. Trata-se de: "A viuva inconsolavd", uma de suas Fdbulas flntdsticas:

Uma mulher de luta chorava sobre urn tdmuio. ''Acalme-se, minha senhora". disse urn estranho compassivo. "A misericordia divina e infinita. Em algum lugar ha urn,

outro homem. aMm de seu marido. com quem a:nda poded ser feliz." "Havia". ela soluc;ou - "havia. mas este e 0 seu tumulo."3

Todo 0 efeito da hist6ria e construldo tendo por base 0 fato de que 0 tumulo e a mulher enlutada a seu lado levam 11 inferencia, d~vido 11 conven~o estabdecida, de que da e uma viuva que chota 0 marido, quando na realidade 0 homem por quem chota e,seu amante.

A mesma circunstancia e freqiientemente encontrada em charadas - por exemplo, esta do folclore internacional: "0 corvo voou enquanto urn cachorro sentou-se em seu rabo. Como isso e poss{vel?" Automaticarnente combinarnos os

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Critica ao surrealismo?
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Ideia de tese, antítese e sintese.
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A montagem nao se restringe ao mundo cinematografico, é algo comum na nossa vida. É intuitivo.
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Exemplo da viuva
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elementos justapostos e os reduzimos a uma unidade. Como resultado, entende­mos a pergunta como se 0 cachorro estivesse sentado no rabo do corvo, quando na realidade a charada contern duas ac;:oes nao-relacionadas: 0 corvo voa, enquanto 0

cachorro senta-se em seu pr6prio rabo. Esta tend~ncia a juntar numa unidade dois ou mais objetos ou qualidades

independentes e muito forte, mesmo no caso de palavras isoladas que caracterizam diferentes aspectos de um unico fenomeno.

Um exemplo extremo disso pode ser encontrado no inventor da "palavra portmanteau", Lewis Carroll. A despretensiosa descri~ao que fez de sua inven~ao, de "dois significados colocados em uma palavra, como se a palavra fosse uma mala portmanteau",4 conclui a introdu~ao de seuA cafa ao Snark (The Hunting of the Snark).

Por exemplo, pegue duas pa!avras, "terrivel" e "horrfvel". Decida que dlra as duas palavras, mas nao decida qual dira primeiro. Agora abra a boca e fale. Se sellS pensamentos se indinam mesmo s6 urn pouco em dire~ao a "terrivel", voce dira "terrlvel-horrivel"; se eles se voltam, ate devido a urn golpe de ar, em dire~ao a "horrlvel", voce dira "horrivel-terdvel"; mas se voce tern 0 mais raro dos dons, urna mente perfeitamente equilibrada, dira "torrivel",5

E claro que neste caso nao ganhamos urn novo conceito, ou uma nova qualidade. 0 encanto deste efdto "portmanteau" e construldo com base na sensa­~ao de duaIidade que existe na palavra formada arbitrariamente. Todo idioma tem seu profissional de "portmanteau" - 0 norte-americano tem seu Walter Winchell. Obviamente, a manipula~o maxima da palavra portmanteau e encontrada em Finnegan; Wltke.

Por isso, 0 metodo de Carroll eessencialmente umaparodia de um fenomeno natural, uma parte de nossa percep~ao habitual- a forma~o de unidades qualita­tivamente novas; em conseqUencia, e urn metoda basico para se obterern efeitas cornicas.

Este efeito comico e conseguido atraves da percep~iio tanto do novo resultado quanto de suas duas partes independentes - aD mesmo tempo. Os exemplos deste tipo de engenho sao inumeraveis. Citarei aqui apenas tres exemplos que se podem encantrar em Freud:

Durante a guerra entre a Turquiae os Estados ba!d.nicos, em 1912, Punch retratou 0

papel desempenhado pela Romenia (Roumania) representando-a como urn ladrao de estrada assaltando membros da Alianria Babinica. A caricatura foi intitulada: Klepto­roumania ...

A rnaHcia europc!:ia rebatizou urn ex-potentado. Leopold. de_ Cleopold, par causa de sua rela~ao com urna dama chamada Cleo ...

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Neologismo, Guimarães Rosa.
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Neologismo
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16 o sentido do mme

Num canto ... urn dos personagens, urn "brincalhao" J fala da epoca do Natal como alcoholidays (ferias alco6licas). Par redu~ao, pode-se perceber facilmenre que te­mas aqui uma palavra compost3, uma combinac;ao de alcohol (alcoo}) e holidays (ferias) ... 6

Acho evidente que 0 fenomeno que estamos discutindo esta. mais da que difundida - e literalmente universal.

Par isso, naa h:l nada de surpreendente na fata de uma plateia cinematagnifi­ca tambem fazer uma inferencia precisa a partir da justapasi~ao de dais pedac;as de filme caladas.

Certamente nao estamos criticando estes fatos, nem seu valor. nem. sua uni­versalidade, mas apenas as falsas dedu~oes e canclusoes a que deram arigem. Cam base nissa, sera passivel fazer as carre~oes necessarias.

De que amissaa famas culpadas quanda destacamas pela primeira vez a indubiti­vel impartancia da fenomena acima citada para a campreensaa e daminia da montagem? 0 que estava cerro, ou errada, nas nossas entushisticas declara<joes da epaca?

o fata fundamental estava certa, e permanece certa: a justapasi~aa de dais planas isaladas atraves de sua uniaa naa parece a simples sama de um plano mais outro plana - mas 0 produto. Parece um produta - em vez de uma sama das partes - parque em toda justapasi~a deste tipa 0 resultado tf qualitativamente diferente de cada elementa cansiderada isaladamente. A esta altura, ninguem realmente ignara que quantidade e qualidade naa saa duas propriedades diferentes de um fenomena, mas apenas aspectos diferentes da mesma fenomena. Esta lei da flsica e verdadeira em autras campas da ciencia e daarte. Entre as muitas campas em que pade ser aplicada, a usa feita pela professar Kaflka na esfera da psicalagia compartamental tem rela~ao com nassa discussaa:

J:1 foi dito: 0 todo e mais do que a soma de suas partes. E mais correto dizer que 0 (odo e algo da soma de suas partes, porque a soma e urn processo insignificance. enquanto a relac;ao todo-parte e significativa7

A mulher, voltanda aa nassa primeiro exempla, e uma representa~aa, oluta que ela veste e uma representa~a - isto e, ambas estaa plasticamente representados. Mas "uma viuva", que surge da justapasi~aa de duas representa~oes, naa e plastica­mente uma representac;ao - - mas uma nova ide:ia, um novo conceito, uma nova

1magem. Qual foi a "distor~aoJJ de nossa posi~ao, na epoca, com relac;ao a este fenome­

na indiscutfvel?

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Questiona a veracidade das criticas que recebeu na epoca.
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Efeito Kuleshov, como no teste, em que em um plano o homem tem uma cara de nada, e nos outros temos uma sopa, uma mulher morta e uma gostosa. A impressão muda assim que vemos cada sequencia. Criando um novo produto
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Palavra e imagem 17

a erro residiu no fato de ressaltarmos mais as possibilidades da justaposic;:ao, enquanto paredamos dar menor atenc;:ao ao problema da andlise do material justa­

posto. as que me criticaram apressararn-se em apresentar isso como uma falta de

interesse pelo contelido dos fragmentos de montagem, confundindo 0 interesse de experimemador pela andlise de certo aspecto do problema com a atitude do proprio experimentador diante da realidade representada.

Deixo-os com suas pr6prias consciencias. a problema surgiu devido a minha atrac;:ao, antes de tudo, por aqueleaspecro

entao recem-descoberto na junc;:ao de dois fragmentos de montagem de urn filme, pelo fato de que - nao importa se eles nao sao relacionados entre si, e ate freqiientemente a coisa se d:l por causa disso mesmo . - . quando justapostos de acordo com a vontade do montador engendrarem "uma terceira coisa' e se torna­rem correlatos.

Por isso, eu estava preocupado com uma potencialidade adpica.da construc;:ao e composis:ao cinematognificas normais.

Trabalhando desde 0 inlcio com este material e esses fatos, era natural especu" lar principalmente sobre as potencialidades da justaposic;:ao. Foi dada menor aten­c;:ao a andlise da natureza real dos fragmentos justapostos. Tal atenc;:ao nao teria sido suficiente por si mesma. A historia provou que este tipo de atenc;:ao, dirigida apenas ao conteudo de pianos isolados, na pratica levou 0 decllnio da montagem ao nlvel de "efeitos especiais", "seqiiencias de mantagem", etc., com todas as suas canse­qiiencias.

Qual deveria ter sido a enfase correta, 0 que deveria ter recebido maior atenc;:ao, a fim de que nenhum elemento fosse indevidamente exagerado?

Teria sido necessario voltar 11 base fundamental que determina igualmente tanto 0 conteudo dos pianos isolados quanto a justaposic;:ao compositiva dos con­teudos independentes entre si, isto e, vol tar ao conteudo do todo, das necessidades gerais e unificadoras.

Urn extremo consistiu na falta de atenc;:ao quanta ao problema da tecnica da unificac;:ao (os metodos de montagem), 0 outro - na desatenc;:ao aos elementos unificados (0 conteudo do plano).

Deverlamos ter-nos preocupado mais em examinar a natureza do proprio princlpio unificador. Precisamente 0 principio que deveria determinar tanto 0

conteudo do plano quanto 0 conteudo revelado por uma determinada justaposiriio desses plan os.

Mas, com isso em mente, seria necessario que 0 interesse do pesquisador se voltasse basicamente nao em direc;:ao aos casos paradoxais, nos quais 0 resultado global, geral e final nao e previsto, mas emerge inesperadamente. Deverlarnos ter-nos voltado para os casas nos quais os pIanos nao 56 estao relacionados entre si, mas nos quais este resultado final, geral, global nao e.apenas previsto, mas predeter-

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mina tanto os elementos individuais quanto as circunstancias de sua justaposi~ao. Casas como esses sao normais, comumente aceitos e ocorrem com freqiiencia. Nestes casos, a todo emerge normalmente como "uma terceira coisa". A imagem total do filme, determinada tanto pelo plano quanto pela montagem, tambem emerge, dando vid:Le diferenciando tanto 0 conteudo do plmo quanto 0 conteudo da montagem. Casos assim e que sao tlpicos dacinematografia.

Com este criterio de montagem, os pianos isolados e sua justaposi~o atingem uma correta rela~o mutua. Aiem disso, a pr6pria natureza da montagem nao apenas deixa de se distanciar dos princlpios do estilo cinematografico realista, mas funciona como urn dos recursos mais coefentes e praticos para a narrac;ao naturalis­ta do conteudo de urn filme.

o que esta compreensao da montagem implica essencialmente? Neste caso, cada fragmento de montagem ja nao existe' mais como algo nao-relacionado, mas como uma dada representafiio particular do tema geral, que penetra igualmente todos os fotogramas. A justaposi~ao desses detalhes parciais em uma dada estrutura de montagem cria e faz surgir aquela qualidade geral em que cada detalhe teve participa~ao e que reune todos os detalhes num todo, isto e, naquela imagem generalizada, mediante a qual 0 autor, seguido pelo espectador, apreende 0 tema.

Se agora observamos dois fragmentos de filme reunidos, vemos sua justaposi­~o sob uma luz bastante diferente. Ou seja:

Fragmento A (derivado dos elementos do tema em desenvolvimento) e frag­mento B (derivado da mesma Fonte), em justaposi~o, fazem surgir a imagem na qual 0 conteudo do tema e corporificado da forma mais clara.

No imperativo, com 0 objetivo de estabelecer uma f6rmula de, trabalho mais exata, esta proposis:ao soaria assim:

A representafiio A e a representafiio B devem ser selecionadas entre todos os aspectos posslveis do tema em desenvolvimento, devem ser procuradas de tal modo que sua justaposifiio - isto e, a justaposi~ao desses proprios elementos e nao de outros, alternativos - suscite na percepc;ao enos sentimentos do espectador a mais COffi­

pleta imagem do proprio tema. Em nossa discussao sabre a montagem entraram dais novas termos: "repre­

sentac;ao" e "imagem". Queeo definir a demarcac;ao entre des antes de prosseguir­mos.

Usaremos urn exemplo para demonstra~o. Tomemos urn disco branco de tamanho medio e superflcie lisa, dividido em 60 partes iguais. A cada cinco partes e colocado urn numero na ordem consecutiva de 1 a 12. No centro do disco sao fixadas duas varas de meral, que se movimentam livremente sobre SUa extremidade fixa, pontu-

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Palavra e iMagern 19

das nas extremidades livres. uma do tamanho do raio do disco, a Dutra urn pouco mais curta. Deixemos a extremidade livre da vara pontuda mais longa marcar 0

numero 12, e ada mais curta, consecucivamente. apontar para os numeros 1,2,3 e'

assim por diante, ate 0 numero 12. Isto implicara uma serie de repf<;senta<;6es genmetricas de rela<;6es consecutivas das duas varas de metal, expressadas nas dimen­s6es 30, 60, 90 graus, e assim por diante, ate 360 graus.

Porem, se 0 disco dispuser de urn mecanismo que movimenta uniformemente as varas metalicas, a, figura geometrica formada em sua superflcie adquire urn significado especial. Agora nao e simplesmente uma representarlin, e uma imagem do tempo.

Neste caso, a representat;ao e a imagem que ela suscita em nossa percept;ao estao tao completamente fundidas que apenas sob condi~6es especiais distinguimos a figura geometrica, formada pelos ponteiros do rel6gio, do conceito de tempo. Isto pode acontecer com qualquer urn de n6s, evidentemente que em circunstincias Incomuns.

Aconteceu com Vronsky depois que Ana Karenina the contou que estava gravida:

Quando Vronsky olhou para seu relogio. na varanda dos Karenin, estava cao preocu­pado, que olhou para os ponteiros no mostrador do telogio e nao viu as horas.8

Neste caso, a imagem do tempo criada pelo rel6gio nao surgiu. Ele viu apenas a representa~o geometricaJormada no mostrador pelos ponteiros do rel6gio.

Como podemos ver, mesmo num exemplo tao simples, que diz respeito apenas ao tempo astronomico, a hora, a representac;:ao formada no mostrador do rel6gio e insuficiente em si mesma. Nao e suficiente apenas ver - algo tern de acontecer com a representac;:ao, algo mais tern de ser feito com ela. antes que deixe de ser percebida como apenas uma simples figura geometrica e se tome perceptivel como a imagem de uma "hora" particular na qual 0 acontecimento esta ocorrendo. Tolstoi nos mostra 0 que aContece quando esse processo nao ocoree.

o que e esse processo exatamente? 0ma determinada ordem de ponteiros no mostrador de urn rel6gio suscita urn grupo de representa~6es associadas ao tempo, que corresponde a hora determinada. Suponhamos, por exemplo, que 0 numero seja cinco. Nossa imagina~o esri treinada para responder a este numero recordan­do cenas de todos os ripos de acontecimentos que ocorrem nesta hora. Talvez 0 ch;l, o fim de uma jornada de trabalho, 0 come~ da hora do rush no metro, talvez lojas fechando as portas, ou a peculiar luminosidade do final da,tarde ... Em qualquer dos casas, automaticamente nos lembraremos de uma serie de cenas (representa¢es) do que acontece as cinco horas.

A imagem das cinco horas e composta de todas essas representa~6es parti­culares.

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20 o sentido do filme

Esta e a seqUencia completa do processo, que ocone deste modo na etapa de assimila~ao das representa~6es formadas pelos mlmeros que suscitam as imagens das horas do dia e da noite.

Em seguida, as leis de economia da energia psiquica entram emJuncionamen­to. Oearee uma "condensac;ao" no interior, do processo acima descrito: a cadeia de vinculos intermediarios desaparece e se estabelece uma conexao instantanea entre 0

numero e nossa percep¢o do tempo ao qual corresponde. 0 exemplo de Vronsky nos mostra que uma forte perturba¢o mental po de destruir esta conexao, e a representa~ao e a imagem se separam.

Estamos discutindo aqui a apresenta~ao plena do processo que ocorre quando uma imagem e formada a partir de uma representa¢o, como descrito acima.

Esta "mecinica" da formac;ao de uma imagem nos interessa porque as meca­nismos de sua forma¢o na realMade servem como prot6tipo do metodo de cria¢o de imagens pela arte.

Recapitulando: entre a representa¢o de uma hora no mostrador de urn rel6gio e nossa percep¢o da imagem dessa hora, ha uma longa cadeia de repre­senta~6es vinculadas aos aspectos caracterlsticos distintos dessa hora. E repetimos: o habito psicol6gico tende a reduzir esta cadeia intermediaria a urn minimo, a fim de que apenas 0 inlcio e 0 fim do processo sejam percebidos.

Mas assim que precisamos, por qualquer raziio, estabelecer as conex6es entre uma representac;.ao e a imagem a sec susdtada por ela na consciencia enos senti­mentos, somos inevitavelmente impelidos a reeorrer novamente a uma cadeia de representa~6es intermediarias que, juntas, formam a imagem.

Consideremos primeiro urn exemplo bern pr6ximo daquele outro exemplo da vida cotidiana.

Em Nova York, a maioria das ruas nao tern nome - Quinta Avenida, rua 42, e assim por diante. Os estrangeiros acham este metodo de designa¢o de ruas extremamente diflcil nos primeiros momentos. Estamos acostumados a ruas com nomes, 0 que e muito faci! para n6s, porque cada nome imediatamente suscita uma imagem da fua determinada, isto c, quando voce ouve a nome da ella, aparece urn conjunto particular de sensa¢es e, com ele, a imagem.

Achei muito diflcillembrar das imagens das ruas de Nova York e, conseqUen­temente, reconhecer as euas. Suas designac;6es, numeros neutros como "42" au "45", naD produziam em minha mente imagens que concentrariam minha percep­c;ao nos aspectos gerais de uma au outra rua. Para produzir estas imagensJ tive de colocar na mern6ria urn conjunto de objetos caracterCsticos de uma ou outra rua, urn conjunto de objetos surgidos em minha consciencia em resposta ao sinal "42", e bastante diferentes dos surgidos em resposta ao sinal "45". Minha mem6ria reuniu os teatros, lojas e ediflcios caracterlsticos de cada uma das ruas que tinha de recordar. Este processo passou por esragios definidos. Dois desses estagios devem ser ressaltados: no primeiro, a designa~ao verbal "rua 42", minha mem6ria com

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Palavra e imagem 21

grande dificuldade respondeu enumerando toda a cadeia de elementos caractedsd­cos, mas eu ainda nao tinha a verdadeira percep~ao da ma, porque os varios elementos ainda nao haviam se consoli dado numa imagem unica. Apenas no segundo escagio todos os elementos come~am a se fundir numa unica imagem: it men~ao do "numero" da rua, ainda surgia todo este grupo de elementos independentes, mas agora nao como uma cadeia, mas como a/go unico - como urna caracterizac;ao total da rua, como sua imagem total.

Apenas depois deste estagio se pode dizer que realmente. se memorizou a rua. A imagem da rua come~a a emergir e a viver na consciencia e na percep~ao exatarnente como, durante a criac;ao de urna obra de arte, sua irnagern total, unica, reconheclvel, e gradualmente formada por seus elementos.

Em ambos os casos - seja uma questao de memoriza~o, ou 0 processo de percep~ao da obra de arte -, 0 metodo de entrada na consciencia enos senti men­tos, atraves do todo, e no todo, atraves da imagem, permanece fiel a esta lei.

Alom disso, apesar de a imagem entrar na consciencia e na percep~ao, atraves da agregafiio, cada detalhe e preservado nas sensa~6es e na memoria como parte do todo. Isto ocorre seja ela uma imagem sonora·- . uma seqUencia dtmica e melodica de sons - ou plastica, visual, que engloba, na forma pictorica, uma serie lembrada de elementos isolados.

De urn modo ou de outro, a sorie de ideias 0 montada, na percep~ao e na consciencia, como uma imagem total, que acumula as elementos isolados.

Vimos que no processo de lembran~ existem dois esdgios fundamentais: 0

primeiro e a reuniiio da imagem, enquanto 0 segundo consiste no resultado desta reuniao e seu significado na memoria. Neste ultimo estagio, 0 importante que a memoria preste a menor aten~o posslvel ao primeiro estagio, e chegue ao resultado depois de passar pelo estagio de reuniao 0 mais dpido posslve!' Esta 0 a pratica na vida, em contraste com a pd.tica na arte. Porque, quando entramos na esfera da arte, descobrimos urn acentuado deslocamento da enfase. Na verdade, para conse­guir seu resultado, uma obra de arte dirige toda a sutileza de seus metodos para 0

processo. Uma obra de arte, entendida dinamicamente, 0 apenas este processo de

organizar imagens no sentimento e na mente do espectador.9 E isto que constitui a peculiaridade de uma obra de arte realmente vital e a distingue da inanimada, na qual 0 espectador recebe 0 resultado consumado de urn determinado processo de cria~ao, em vez de ser absorvido no processo it medida que este se verifica.

Esta condi~ao surge sempre e em qualquer parte, nao importa qual a forma ardsticaern discussao. Par exemplo, a interpretac;ao realista de urn ator e constituf­da nao par sua representac;ao da copia dos resultados de sentimentos, mas par sua capacidade de fazer estes sentimentos surgirem, se desenvolverem, se tramfonnarem em outros sentimentos - ~ viverem diante do espectador.

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22 o sentido do filme

Deste modo, a imagem de uma cena, de uma seqiiencia, de uma cria~o completa, existe nao como algo fixo e ja pronto. Precisa surgir, revelar-se diante dos sentidos do espectador.

Do mesmo modo, urn personagem (tanto num texto quanto na interpreta~o de urn papel), para produzir uma impressao verdadeiramente viva, deve ser cons­t[ulda diante do espectador, durante a curso da ac;ao, e nao apresentado como uma figura mecanica com caracterlsticas dererminadas a priori.

Na drama, e particularmente importante que, no curso da ac;:io, seja nao apenas consrruida uma ideia do personagem, mas tam bern que seja construido, seja "formado mentalmente", 0 proprio personagem.

Conseqiientemente, no metodo real de cria~o de imagens, urna obra.de arte deve reproduzir 0 processo pelo qual, na propria vida, novas imagens sao formadas na consciencia enos sentimentos human as.

Acabamos de mostrar a natureza disto em nosso exemplo das ruas numeradas. E seria correto se esperar de urn artista, diante da tarefa.de expressar uma determi­nada imagem atraves da. representa~o factual, 0 recurso a urn metodo identico a essa "assimila~ao" das ruas de Nova York.

Tambem usamos 0 exemplo da representa~o formada pelo mostrador de urn rel6gio, e revelamos 0 processo pelo qual a imagem da hora surge em conseqiiencia desta representa~o. Para criar uma imagem, a obra de arte deve se basear num metodo identico, a constru~o de uma cadeia de representa¢es.

Examinemos mais amplamente este exemplo da hora. Com Vronsky, acima, a figura geometrica nao surgiu como uma imagem da

hora. Mas existem casos em que a importance nao ever que e meia-noite era nome­tricamente, mas sentir a meia-noite com todas as associac:r6es e sensac;6es que a auror quer suscitar de acorde com seu eoredo. Pade sec a meia-noite da ansiosa espera de urn compromisso, a meia-noite da morte, a meia-noite de uma fuga fatal; em outras palavras, po de muito bern estar longe de ser uma simples representa~o da meia-noite econometrica.

Neste caso, de uma representafiio das doze badaladas deve emergir a imagem da meia-noite como uma especie de "hora do destino", repleta de significado.

!sto tambem pode ser ilustrado por urn exemplo - desta vez de Bel Ami, de Maupassant. 0 exemplo tern uma importincia adicional por ser sonoro. E ainda mais uma pocque, sendo em sua natureza pura montagem, atraves do metoda corretamente escolhido para sua so!uc;ao de e apresentado na hist6ria como uma narrativa de acontecimentos reais.

E a cena em que George Duroy (que agora assina Du Roy) esta esperando no fiacre por Suzanne, que concordou em fugir com ele it meia-noite.

Aqui, doze horas da noite s6 e a hora cronometrica num grau minimo, e e, num grau maximo, a hora na qual tudo (ou, de qualquer modo, muito) esta em jogo (''Acabou-se. Deu tudo errado. Ela nao viri.").

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Palavra e imagem 23

Este e 0 modo como Maupassant dirige it consciencia e aos sentimenros do leitor a imagem dosta hora 0 sou significado, diforonte de uma mera descri~ao da hora particular da noite:

Tornou a sair, as onze horas. errou durantealgurn tempo, tomou urn fiacre e mandou parar na Place de la Concorde, junto as arcadas do Ministerio da Marinha.

De vez em quando acendia um f6sforo, para olhar a hora no relogio. Quando vic aproximar-se a meia-noite, sua impadencia tornou-se fehril. A todo instante punha a cabe<;a na portinhola para alhar.

Urn relogio distante deu doze badaladas, depois urn outro mais perto, depois dais juntos, depois urn ultimo, muito longe. Quando este acabou de toear, pensou: "Acahou-se. Deu tudo errado. Ela nao vira.» Estava entretanto resolvido a ficar, ate de manha. Nestes Casos e preciso ser paciente.

Escutou ainda tocar um quarto, depois rneia hora, depois tres quartos; e todos as relogios repetiram a "uma", tal como tinham anunciado a meia-noite ... 10

Neste exemplo, vemos que, quando Maupassant quis gravar na consciencia e nas sensa~6es do lei tor a qualidade emocional da meia-noite, nao se limitou a mencionar que primeiro bateu a meia-noite e depois uma h~ra. Ele nos obrigou a experimentar a sensa~ao da meia-noite, fazendo com que as doze horas batessem em varios lugares e em varios rel6gios. Combinados em nossa percep~ao, estes grupo,; individuais de doze badaladas se transformam numa sensas:ao geral da meia-noite. As representl1foes sepl1rl1das se transforml1rl1m em uma imagem. 1sto foi inteiramente feito por meio de montagem.

o exemplo de Maupassant pode servir de modelo para 0 mais requintado estilo de roteiro de montagem, onde 0 sam das "doze horas" e denotado par meio de uma serie completa de planas "de diferentes ingulos de camera": "distante", "mais peetol

', "muito longe». Este badalar dos rel6gios, registrado a varias distan­cias, e como a filmagem de um objeto a partir de diferentes posi~6es da camera e repetida numa serie de tres diferentes enquadramentos: "plano geraP', "plano me­dio", "plano de conjunto». Porem, a badalada real ou, mais correcamente, a batida variada dos rel6gios de modo algum e escolhida par sua virtude como um detalhe naturalista de Paris it noite. 0 efeito primario destas batidas conflitantes de rel6gios em Maupassant e a enfase insistente na imagem emocional da "meia-noite" fatal, nao a mera informa'jao: "zero hora" .

. Se seu objerivo Fosse apenas informar que era zero hora, Maupassant dificil­mente reria recorrido a uma composi<;ao tao requintada. Do mesmo modo, sem a escolha cuidadosa de uma solus:ao criativa de mont.gem, ele nunca reria obtido, atraves de um meio tao simples, um efeito emocional tao palpavel..

Enquanto falavamos de rel6gios e horas, lembrei-me de um exemplo de minha pr6pria experiencia. Durante a filmagem de Outubro, nos deparamos, no

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24 o sentido do filme

Palacio de Inverno, com um curiosa especime de relogio: alem de mostrador principal, tambem tinha uma coroa de pequenos mostradores em redor do maior. Em cada um desses mostradores estava a nome de uma cidide: Paris, iondres, Nova York, Xangai, e assim par diante. Cada um mostrava ahara destas cidades, em contraste com a hora de Petro grado, no mostrador principal. 0 aparecimento deste relogio ficou gravado em nossa memoria. E quando, em nosso filme, precisamos apresentar de modo especialmente energico a momenta historico da vitoria e instaura~ao do poder sovietico, este relogio sugeriu uma solu~ao espedfica de montagem: repetimos a hora da queda do Governo Provis6rio, marcada no mostra­dar principal pela hora de Petro grado, em toda a serie de mostradores secundarios que. marcavam a hora em Londres, Paris, Nova York, Xangai. Assim, esta hora, unica na historia e no destino dos povos, emergiu atraves de uma variedade enorme de horas locais, como que unindo e fundindo todos as povos na percep~o do momenta da vito ria. 0 mesmo conceito foi tambem anunciado par um movimen­to rotativo da propria coroa de mostradores, urn movimento que, ao aumentar e acelerar-se, tambem fundiu plasticamente todos os indicadores de tempo diferentes e independentes na sensa~ao da hora historica unica .•. 11

Neste ponto, ou~o a pergunta de meus adversarios invislveis: "Est:! tudo bem, mas a que tem a dizer sobre um longo peda~o de filme, sem cortes, com a interpretac;ao de urn atce - 0 que isto tern a ver com a montagem? A sua incerpre­ta~ao, par si mesma, nao impressiona? A interpreta~o de um papel par Tcherka­sov12ou Okhlopkov, 13Tchirkov14ou Sverdlin 15 tambem nao impressionam?" E futil supor que esta pergunta significa urn golpe mortal na concep~o de montagem. 0 prindpio da montagem e muito mais amplo do que uma pergunta como esta supoe. E totalmente errado supor que se um ator atua num unico e longo peda~o de filme, nao cortado pelo diretor e cinegrafista em diferentes iingulos de cimera, esta constru~o e intocada pela montagem! De modo algum!

Neste caso, (Udo 0 que temos a fazer e procurar pela montagem em outro lugar, na realidade, na interpretariio do ator. Mais tarde discutiremos a questao do grau em que 0 prindpio da tecnica "interior" da interpreta~ao est:! relacionado com a montagem. No momenta sera suficiente deixar urn grande artista do palco e da tela, George Adiss, dar sua contribui~o:

Sempre acreditei que, no cinema, a interpretac;ao devia sec exagerada, mas vi imedia­tamente que a discrifiio era a coisa principal a sec aprendida, por urn ator, para transferir sua acte do palco para a tela ... A arte da discriCjao e da sugestao no cinema pade sec estudada a qualquer hora observando-se a interpretac;ao do inimicavel Charlie Chaplin. 16

A representa~o enfatica (exagero), Adiss contrapoe discri~o. Ele. v~ 0 grau desta discri~o na redu~o da realidade a sugestao. Ele rejeita nao apenas a repre-

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Palavra e imagem 25

senta~ao exagerada da realidade, mas ate a representa~ao da realidade na integra! Em vez disso, aconselha "sugestao". Mas ° que e "sugestao" senao urn elemento, urn detalhe, urn "primeiro plano" da realidade que, justaposto a outros detalhes, fun­ciona como uma resolu~ao do fragmento inteiro da realidade? Assim, de acordo com Arliss, 0 eficaz trecho de interpreta~ao amalgamado e nada mais do que uma justaposi~o de primeiros pIanos deste tipo, os quais, combinados, ctiam a imagem do conteudo da interpreta~ao. E, para ir mais alem, a interpreta~ao do ator pode ter o caroleer de uma representa~ao insipida, ou de uma imagem genuina, de acordo com 0 metodo que empregue para construi-Ia. Mesmo se sua interpreta~o for toda tomada de urn unico angulo (ou mesmo de uma uniea poltrona da plateia de urn teatro), apesar disso - num caso bern sucedido - a interpreta~ao tera a qualidade de "rnontagem".

E preciso que se diga que 0 segundo exemplo de montagem citado acima (de Outubro) nao e urn exemplo de montagem comum, e que 0 primeiro exemplo (de Maupassant) ilustra apenas urn caso onde urn objeto e filmado de varios pontos com virios angulos de camera.

Outro exemplo que citarei e bastante dpieo da cinematografia, nao mais re!acionado a urn objeto individual, mas, em vez disso, a uma imagem de todo urn fenomeno - formada, porem, exatamente do mesmo modo.

E urn exemplo notave! de "roteiro de filmagem". Ne!e, arraves de uma acumu­la~ao crescente de detalhes e cenas, uma imagem palpave! surge diante de n6s. Nao foi escrito como uma obra literiria acabada, mas apenas como uma nota de urn grande mestre que tentou colocar no pape!, para si mesmo, sua visualiza~o do Diluvio.

o "roteiro de filmagem" a que me refiro sao as notas de Leonardo da Vinci para uma representa~ao do Diluvio pe!a pintura. Escolhi este exemplo em particu­lar porque ne!e a cena audiovisual do Diluvio e apresentada com uma c1areza incomum. :.Jma realiza~ao como esta de coordena~ao sonora e visual e notive! vinda de qualquer pintor, mesmo sendo Leonardo.

Que se veja 0 ar escuro, nebuloso, atroitado pdo fmpeto de ventos contrarios entrela­c;ados com a chuva incessante e 0 granizo, carregando para Ia e para ca uma vasta rede de galhos de arvores quebrados, misturados com urn mimero infinito de folhas.

Que se vejam. em torno, arvores antigas desenraizadas e feitas em pedatros pela fiiria dos ventos.

Deve·se mostrar como fragmentos de montanhas. arrancados pelas torrentes impetuosas. precipitam.se nessas mesmas torrentes e obstruem os vales, ate que os rios bloqueados transbordam e cohrem as vastas plan!cies e seus habitantes.

Novamente devem ser vistos, amontoados nos topos de muitas das montanhas, muitas especies diferentes de animais em tropel. aterrorizados e reduzidos, finalmen· te t a.um estado de docilidade, em companhia de homens e mulheres que fugiram para hi com seus filhos.

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E. nos campos inundados. a superfCcie da agua estava quase que totalmente coalhada de mesas. camas, barcos e varios Dutcos tipos de balsas improvisadas devido a necessidade e ao medo da morte;

nos quais havia homens e mulheres com seus filhos, amontoados, grirando e chorando. apavorados com a Furia dos ventos. quc-cncrespavam as andas, fazendo·as girar como urn poderoso furacao, carregando com elas as carpas dos afogadosj

e nao havia objcto flutuando que nao estivesse coberto de varias e diferentes animais. que haviam feito uma tregua e se amontoavam aterrorizados, entre des lobos. raposas, cobras e criaturas de todo ripo, fugitivos da morte.

E todas as ondas que golpeavam scm cessac, com as carpas dos afogados, as golpes Marando aqueles nos quais ainda havia vida.

Serao vistos alguns grupos de homens, com armas nas maos, defendendo os minusculos pedac;os de terra que lhes restaram dos le6es, lobos e bestas predadoras que ndes procuravam a seguranc;a.

6 tumulto aterrador se ouve ressoando pdo ar sombrio, rasgado pda Furia do rrovao e dos raias que de, cospe e que a atravessam celeres, levando destruic;ao, derrubanda tuda 0 que se atravessa em seu caminho!

6, quantas pessoas podemser vistas tampando os ouvidos com as maas para calar o rugido feroz lan~do atraves do ar obscuro pda Furia dos ventos misturados com a chuva, pdo estrepito das ceus e pda chispar dos relampagos!

Outcas nao se contentavam em Fechar os alhos, mas, tapando-os com as maos, uma em cima da autra, as cobriam, ainda mais apertados, para nao ver 0 massacre impiedoso da rac;a humana pda ira de Deus.

Ai de mimI quantos lamentos! Quantos em seu terror se jogavam das rochas! Podem-se vcr galhos enormes dos

gigantescos carvalhos, repletos de homens. sendo carregados pdos ares com a Furia dos ventos impetuosos.

Quantos barcos emborcados. alguns inteiros, outras em pedac;os. em cima de homens que lutam para escapar com atos e gestos de desespero que pressagiam uma terrfvel morte.

Ourros, com atos freneticos, tiravam as proprias vidas, no desespero de nao conseguirem suportar tamanha angtlstia;

alguns se atiravam das altas rochas; ourros se estrangulavam com as pr6prias maos; alguns agarravam os proprios filhos, e com grande violencia os matavam de urn s6 golpe; alguns viravarn suas armas contra si mesmos, para ferir-se e morrer; ourros, caindo

de joelhos, enrregavam-se a Deus. Ai! quantas maes choravam os filhos afogados, segurando-os sobre os joelhos,

erguendo os brac;os abertos para 0 ceu e, com diversos gritos e guinchos, clamando contra a ira dos deuses?

Outcas, com as maos fechadas e as dedos entrelac;ados. mordem-nas ate sangrar e as devoram, curvando-se a ponto de os peitos tocarem as joelhos, em sua intensa e insuportavel agonia.

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Manadas de animais. como cava!os, bois) cabras. ovelhas, devem ser vistas ja cercados pda agua. isolados sobre os altos picos das montanhas, apcrtados contra os outros.

e os que e5rao no meio sub indo ate a topo e pulando em cima dos outros. e lutando encarnic;adamente. e muitos morrendo de fome.

E os passaros j.1 comec;avam a pousar nos homens enos animais. por nao mais encontrarem nenhum pedac;o de terra a flor d'agua que ja nao estivesse coberto de seres vivos.

A fome, 0 instrumento da morte, j.1 privara de vida a maior parte dos animais, quando os cad.1veres. j.1 mais leves. comec;aram a surgir do fundo das .1guas profun­da$, emergindo para a superffcie no torvelinho das ondas; e 1.1 ficaram batendo uns nos outros e feito bexigas cheias de vento. que ricocheteiam de volta ao lugar de onde foram lanc;adas. caem e se espalham uns sabre os outros.

E. acima desses horrores. a atmosfera se via coberta de nuvens higubres rasgadas pda chispa serpenteante dos terrlveis raios do ceu. que refulgiam. ora aqui. ora ali. em meio a densa escuridao ... 17

Esta descric;ao nao foi concebida por seu autor como urn poema ou ensaio liter:irio. Peladan, 0 organizador da edi~ao francesa do Trattato della pittura, de Leonardo, a considera 0 projeto de urn quadro nunca realizado, que teria sido uma insuperavel "chef d'oeuvre da paisagem e da representac;ao das for~as da natureza". 18

Apesar disso. a descric;ao nao e urn caos. mas foi executada com elementos caracte­rfscicos das artes Utemporaisl), em vez de "espaciais".

Sem anaHsar em detalhe a estrutura desse extraordinario "roteiro de filma­gem", devemos salientar porem 0 fato de que a descric;ao segue urn movimento bastante definido. AMm disso, 0 curso deste movimento de modo algum e fortuito. 0 movimento segue uma ordem definida, e depois. na correspondence ordem inversa, volta aos fenomenos do inCcio. Come~ndo com uma descric;ao dos ceus, 0 quadro termina com uma descric;ao semelhante, mas consideravelmente intensificada. No centro esta 0 grupo de seres humanos e suas experiencias; a cena se desenvolve dos ceus para os homens, e dos homens para os ceus, passando pelos animais. Os detalhes maiores (os primeiros planas) sao encontrados no centro, no clCmax da descri~ao (" ... maos fechadas com os dedos entrela~ados ... mordem-nas ate san­grar ... "). Com absoluta nitidez emergem os elementos dpicos de uma composi~ao de montagem.

o conteudo de cada quadro das cenas independentes e refor~ado pela crescen-te intensidade da ac;ao. '

Vejamos a que chamaremos de "terna animal'": animais tentando fugir; ani­mais arrastados pela torrente; animais se afogando; animais lutando com seres humanos; animais lutando uns com as outros; as carca<;as de animais afogados flutuando na sUl?erf{cie. Ou 0 progressivo desaparecimento da terra firme sob os pes das pessoas, animais e passaros, que atinge 0 auge no ponto em que os passaros

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28 o sentido do filrne

sao fors:ados a pousar nos homens e animais, sem encontrar nenhum peda~o de terra ainda nao-submerso, ou desocupado. Esta passagem nos lembra obrigatoria­mente que a distribui~ao de detalhes em urn quadro de urn s6 plano tambem presume movimento - urn movimento dos athos, de urn fenomeno para Dutro, de acordo com a composic?o. Aqui, e claro, 0 movimento e expressado com nao menos nitidez do que no cinema, onde 0 olho nilo pode discernir a sucessao da seqUencia de detalhes numa ordem diferente da estabelecida por quem determina a ordem da montagem.

Inquestionavelmente, porem, a descri~o extraordinariamente seqUenciai de Leonardo cumpre nao apenas a tarefa de enumerar os detalhes, mas a de tras:ar a trajet6ria do futuro movimento sobre a superffcie da tela. Aqui vemos urn exemplo brilhante de como, na aparentemente estatica "coexistencii' simultanea de deta­lhes, num quadro im6vel, ainda foi aplicada exatamente a mesma sele~ao de montagem, existe exatamente a mesma sucessao ordenada na justaposic;ao de deta­lhes, como nas artes que incluem 0 fator tempo.

A montagem tern urn significado realista quando os fragmentos isolados produzem, em justaposi~o, 0 quadro geral, a slntese do tema. Isto e, a imagem que incorpora 0 Cerna.

Passando desta defini~ao para 0 processo criativo, veremos que este ocorre do seguinte modo. Diante da visao interna, diante da percep~o do autor, paira uma determinada imagem, que personifica emocionalmente 0 tema do autor. A tarefa com a qual ele se defronta e transformar esta imagem em algumas representaroes parciais basicas que, em sua combinac;ao e justaposic;ao, evocarao na consciencia e nos sentimentos do espectadof, leiter ou ouvinte a mesma imagem geral inicial que originalmente pairou diante do artista criador.

Isto se aplica tanto a imagemda obra de arte como urn todo, quanto a imagem de. cada cena ou parte independente. No mesmo sentido, isto explica a cria~o de uma imagem pelo ator.

a ator tern diante de si exatamente a mesma tarefa: expressar, com dois, rro., ou quatro aspectos do carater ou modo de conduta, os elementos b:isicos que, em justaposi~ao, criam a imagem integral concebida pelo autor, pelo diretor e pelo pr6prio ator.

a que e mais digno de nota num metodo como este? Primeiro e antes de tudo, seu dinamismo. Que reside basicamente no fato de que a imagem desejada nilo e fixa au jd pronta, mas surge- _. nasce. A imagem concebida por autor, diretor e ator e concretizada por eles atravCs dos elementos de representa~o independentes, e e reunida - de novo e finalmente - na percep~o do espectador. Este e, na realida-de, 0 objetivo final do esfor~o criativo de todo artista. '

Gorki colocou isto com eloqUencia numa carta a Konstantin Pedin:

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Paiavra e imagem 29

Voce diz: Esta atormentado com a questao "como escrever?". Ha 25 anos observo como esta questao preocupa as pessoas ... Sim, e uma questao seria; preocupei-me, preocupo-me, e continuarei me preocupando com ela ate 0 tim de meus dias. Mas para mim a pergunta se,formula assim: como devo escrever, a fim de que 0 homem, nao importa quem seja, emerja das paginas da hist6ria a seu respeieo com a forc;a da palpabilidade fIsica de sua existencia, com a irrefutabilidade de sua realidade semi­imagindria, com a qual 0 vejo e 0 sineo? Este e 0 ponto como 0 entendo, este e. 0

segredo da questao ... !9

A montagem ajuda na solu~ao desta tarefa. A for~a da montagem reside nisto, no fato de induir no processo criativo a razao e 0 sentimento do espectador. 0 espectador e compelido a passar pela mesma estrada criativa trilhada pelo autor para criar a imagem. 0 espectador nao apenas ve os elementos representados na obra terminada, mas tam bern experimenta 0 processo dinimico do surgimento e reuniao da imagem, exatamente· como foi experimentado pelo autor. E este e, obviamente, 0 maior grau posslvel de aproxima0o do objetivo de transmitir visual­mente as percep~6es e inten~6es do auror em roda a sua plenitude, de transmiti-Ias com "a for~a da tangibilidade flsica", com a qual elas surgiram diante do autor em sua obra e em sua visao criativas. ..k

Relevante nesta parte da discussao e a defini00 de Marx do caminho da verdadeira investiga00:

Zur Wahrheir gehlirt nicht· nur das Resultat; sondern auch der Weg. Die Untersu­chung der Wahrheit muss selbst wahr sein, die wahre Untersuchung ise die enefaltete Wahrheit. deren auseinander. gestreute Glieder sich im Resultat zusammenfassen.20'"

A for~a do metodo reside tam bern no fato de que 0 espectador e arrastado para o ate criativo no qual sua individualidade nao esti subordinada it individualidade do auror, mas se manifesta atraves do processo de fusao com a inten~ao do autor, exatamente como a individualidade de urn grande ator se fundecom a individuali­dade de urn grande dramaturgo na cria00 de uma imagem cenica classica. Na realidade, todo espectador, de acordo com sua individualidade, a seu pr6prio modo, e a partir de sua pr6pria experiencia. . a partir das entranhas de sua fantasia, a partir da urdidura e trama de suas associa~6es, rodas condicionadas pelas premis­sas de seu carater, habitos e condi~ao social-, cria uma imagem de acordo com a orienta~ao plistica sugerida pelo auror, levando-o a. entender e sentir 0 tema do autor. E a mesma imagem concebida e criada pelo autor, mas esta imagem, ao mesmo tempo, tambem e criada pelo pr6prio espectador.

* Em alemao no original: A verdade pertence nao apenas 0 resultado, mas tambem 0 caminho. A jnvestiga~o da verdade deve em si sec verdadeira, a vecdadeira investigayao e a cevela~o da verdade, cujos memhros separados se unem no resultado.

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30 o sentido do filrne

Seria possivel achar que. nada poderia ser mais definido e claro do que a listagem quase cientlfica dos detalhes do Diluvio, que passam diante de nos no "roteiro de filmagem" de Leonardo. Porem, quao pessoais e individuais sao as imagens resultantes que surgem na mente de cada leitor, que derivam de uma especificac;ao e justaposic;ao de detalhes partilhadas por todos os leitores de urn documento como este. Cada imagem e exatamente tao semelhante e diferente quanto 0 seria 0 papel de Hamler, ou Lear, interpretado por atores diferentes de diferentes palses, epocas ou teatros.

Maupassant oferece a cada leitor a mesma estrutura de montagem para a batida dos relogios. Ele sabe que esta estrutura particular evocara na percepc;ao mais do que mera iriformac;ao sobre a hora. Uma experiencia do significado da meia-noi­te sed lembrada. Cada leitor ouve 0 bater das horas de modo identido. Mas em cada lei tor surge uma imagem propria, sua propria representac;ao da meia-noite, e seu significado. Cada representac;ao e, no que diz respeito a imagem, individual, diferente e, no entanto, identica tematicamente. E cada uma dessas imagens da meia-noite, ao mesmo tempo em que e para todo Ieitor tambem a do autor, e tam bern do mesmo modo a sua propria - viva, proxima, intima.

A imagem concebida pelo auror tomou-se carne e osso da. imagem do espec­rador ... Denno de mim, especrador, esra imagem nasceu e cresceu. Nao apenas 0

auror criou, mas eu tambe~ - 0 espectador que cria - participei. No inlcio desre capirulo faJei de uma hisroria emocionalmente excirante e

comovente, diferente de uma exposic;ao logica dos fatos - rao diferente quanto uma experiencia e diferente de urn resremunho.

Uma exposiflio-testemunho s~ria a correspondente estrutura de niio-montagem de cada urn dos exemplos cirados. No caso das notas de :'eonardo da Vinci para 0 Di/t1vio, uma exposic;ao-testemunho nao reria levado em considera~ao, como ele 0

fez, as varias escalas e perspectivas a serem distribuidas sobre a superflcie do quadro terminado, de acordo com seus dlculos da rrajetoria do olho do espectador. Teria sido suficiente a mera apresentac;ao do mostrador do relogio que mosrra a hora exara da queda do Govemo Proviso rio. Se Maupassant rivesse usado urn metodo como esre na passagem sobre 0 encontro de Duroy, teria dado a breve informac;ao de que a meia-noite saara. Em outras palavras, uma abordagem como esta transmi­re apenas informac;ao documental, nao rransformada pela arre em uma for~a esti­mulanre e urn efeiro emocional criados. Como exposi~5es-resremunho, todos esses exemplos seriam, na linguagem cinemarogdfica, representafoes filmadas de um unico lingulo. Mas, moldados pelos artisras, esres exemplos constituem imagens, criadas atraves da estrutura da montagem.

E agora podemos dizer que e precisamente 0 princlpio da montagem, diferente do da representafiio, que obriga os proprios espectadores a criar, e 0 princlpio da monragem, atraves disso, adquire 0 grande poder do estimulo criativo interior do espectador, que distingue uma obra emocionalmente empolgante de uma outra

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Palavra e :magem 31

que nao vai a!em da apresenta~o da informa9ao ou do registro do acontecimento.21

Examinando esta diferens:a. descobrimos que 0 princfpio da montagem no cinema e apenas urn caso particular de aplica9ao do principio da montagem em geral. urn princfpio que. se entendido plenamente. ultrapassa em muito os limites da colagem de fragmentos de filme.

Como afirmamos acima. os metodos de montagem comparados. de cria,iio pelo espectador e cria,iio pelo ator. podem levar a condusoes fascinantes. Nesta compara­lf5o. ocotre urn encontro entre 0 metoda de montagem e a esfera da tecnica interior do autor; isto e, a forma do processo interno atraves do qual a ator cria,um sentimen­to palpitante. exibido em seguida na autenticidade de sua atua9ao no palco ou na tela.

Foram criados varios sistemas e doutrinas sobre,os problemas da interpreta9ao do ator. Para ser preciso, hoi na verdade dais au tres sistemas, com varias ramifica-90es. As ramifica¢es se distinguem umas das outras nao apenas por diferen9as de terminologia. mas principalmente por suas diferentes concep¢es quanta ao prin­cipal papel desempenhado pelos diferentes pontos basicos da tecnica da interpreta­~o. Algumas Veles uma escola esquece quase completamente todo urn elo do processo psicol6gico da cria9ao da imagem. Algumas vezes urn elo niio-bJsico e elevado 11 posi~o principal. Mesmo num metodo tao monolftico quanto 0 do Teatro de Arte de Moscou. com todo 0 seu carpo de postulados basicos. ha tendencias independentes na interpreta~o desses postulados.

Nao tenho a inten9ao de entrar nas sutilezas das diferens:as. essenciais ou terminol6gicas. dos metodos de treinamento ou de cria9ao do atar. Meu objetivo e analisar os aspectos da tecnica do trabalho do ator que 0 capacitam a obter resulta­dos - que conquistem a imagina~o do espectador. Qualquer ator ou diretor e. na realidade. capaz de deduzir estes aspectos a partir de sua experiencia "interior". se ele consegue deter 0 processo para examina-lo. As tecnicas do ator e do diretor sao. com rela<tao a este ponto, indistingufveis, a partir do momenta em que 0 direto!, neste processo, e tambem, numa certa medida, urn ator. A partir da observa<tao deste "lado ator" em minha pr6pria experiencia como diretor, tentarei esboc;ar esta tecnica interna que ~tamos analisando atraves de urn exemplo concreto. Ao faze-10. nao tenho a menor inten~o de dizer algo novo com rela~o a esta questao em . . . partiCUlar.

Suponhamos que estou diante do problema de interptetar a "manha seguinte" de urn homem que. na noite anterior. perdeu dinheiro dos cofres publicos num jogo de cartas. Suponhamos que a cena esea cheia de todo tipo de per!pecias. inclusive, digamos, uma conversa com a mulher que nao suspeita de. nada, uma cena com a filha que fixa atentamente 0 pai. cujo comportamento Ihe parece

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32 o sencido do filme

estranho, uma cena do autor do desfalque esperando nervoso que 0 telefone toque responsabilizando-o, e assim por diante.

Suponhamos que uma serie destas cenas leve 0 autor do desfalque a uma tentadva de suicldio com urn tiro. A tarefa diante do ator e a de interpretar 0 ultimo fragmento do cllmax, no qual ele chega it conclusao de que so ha uma solus:ao - 0

suiddio - e suas maos comec;am a carear, na gaveta de sua escrivaninha, a procura do revolver ...

Acredito que seria quase imposslvel encontrar urn ator experiente que, nesta cena, comeqasse tentando "interpretar 0 sentimento" de urn hornem a beira do suicldio. Cada urn de nos, em vez de suar e se esforc;ar para imaginar como urn homem se comportaria sob tal circunstancia, abordaria a questao de urn modo bastantediferente. Farlamos com que 0 estado de animo apropriado e 0 sentimento apropriado se apoderassem de nos. E 0 estado, a sensas:ao, a experiencia autentica­mente sentida, em conseqiiencia direta, se "manifestaria" em movimentos, ac;oes, comportamento geral emocionalmente corretos. Este e 0 caminho em dire~ao a descoberta dos elementos iniciais de urn comportamento correto, correta no sentido de que e apropriado a urn estado au sendmento verdadeiramente vivenciado.

a proximo esragio do trabalho de urn ator consiste na escolha da composis:ao desses elementos, depurando-se de qualquer acrescimo formito e refinando-os para dar-Ihes 0 grau maximo de· expressividade. Mas este e 0 esragio seguinte. Nossa preocupa~ao aqui e com a estagio anterior.

Estamos interessados n. parte do processo na qual 0 ator e possuldo pelo sentimento. Como isto e conseguido? Ja dissemos que nao po de ser feito com 0

metoda do "esforc;o e' SUDe'. Em Vt::l disso, tomamos 0 caminho que deveria sec usado em todas as situ.c;6es como esta.

a que na realidade fazemos e obrigar nossa imaginas:ao a descrever para nos varias sima~6es e quadros concretos apropriados ao nosso tema. A agregas:ao dos quadros im.ginados suscita em nos a emos:ao requerida, 0 sentimento, a compreen­sao e a experiencia real que estamos procurando. Naturalmente, a material desses quadros im.gin.dos vai variar, dependendo das caracterlsdcas peculiares do cadter da imagem do personagem que 0 ator esta interpretando no momento.

Suponhamos que urn tra~o caracterlstico de nosso autor do desfalque seja 0

medo da opiniao publica. a que 0 aterrorizara mais nao sera tanto 0 remorso, a consciencia de sua culpa au 0 sofrimento com sua furura prisao, mas "0 que as pessoas vio dizer?" Nosso hornern, ao se ver nessa posh;ao, irnaginara em prirneiro lugar todas as terrlveis conseqiiencias de seu ato nesses termos.

Serao essas eonseqiiencias irnaginadas, e suas eornbinas:6es, que reduzirao 0

homem a urn tal grau de desespero que ele procurara uma salda inesperada. E assirn, exatamente deste modo, que oeorre na vida. 0 terror resultante da

consciencia da responsabilidade come~ a revelar 0 quadro febril das conseqiien-

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Palavra e i!11agem 33

cias. E este conjunto de quadros imaginados, agindo sobre os sentimentos, aumen­ta 0 terror, reduzindo 0 autor do desfalque ao auge do horror e desespero.

o processo e id~nrico aquele com que 0 ator provoca urn estado semelhante no teatro. Existe apenas uma diferens:a: 0 seu uso da vontade para fors:ar a imagina­yao a pintar 0 mesmo quadro de conseqiiencias, que na vida real a imaginaC;ao do homern suscitaria espontaneamente.

Os metodos pelos quais a imaginayao e levada a isto, com base nas circunstan­cias presumidas e imaginarias, nao sao no momenta pertinentes. Estamos tratando do processo no momenta em que a imagina,ao ja esta descrevendo 0 que e necessa­rio para a situa,ao. Nao e necessario ao ator obrigar-se a sentir e vivenciar as conseqiiencias previstas. Sentimento e experiencia, como as as:6es que fluem deles, surgem por si mesmos, criados pelos quadros que sua imagina,ao pinta. 0 senti­mento vivo sera suscitado pelos pr6prios quadros, por sua agrega~ao e justaposi~ao. Ao procurar modos de desperrar 0 sentimento exigido, pode-se descrever para si mesmo urna inumeravel quantidade de situac;6es e quadros relevantes nos quais emergira 0 terna sob varios aspectos.

Como exemplo, elegerei as duas situa~6es que me vieram a mente entre a multiplicidade de quadros imaginados. Sem reflerir sobre eles cuidadosamente, tentarei me lembrar deles como me ocorreram. "Sou urn criminoso aos olhos de meus ex-amigos e conhecidos. As pessoas me evitam. Sou colocado no ostracismo por elas", e assim par diante. Para sentir isto com todos as meus sentidos, sigo a processo esboc;ado acima, descrevendo para mim mesmo situac;6es concretas, qua­dros reais do desrino que me espera.

A primeira situa,ao na qual me imagino e 0 tribunal, onde meu caso esea sendo julgado. A segunda situa,ao sera minha volta a vida normal depois de cumprir minha pena. Estas notas tentado reproduzir as qualidades plasticas e graficas que varias situa~6es fragmentadas como estas possuem naturalmente, quando nossa imagina~ao esta funcionando a pleno vapor. 0 modo como essas situa~6es surgem difere de ator a atOf.

Isto e apenas 0 que veio 11 minha mente quando estabeleci para mim mesmo a tarefa:

o tribunal. Meu caso esta sendo ju}gado. Estou no banco dos reus. A sala esra replera de pessoas que me conhecem - algumas casualmenre, outras muito bern. Capto 0

olhar de meu vizinho flXado em mim. Somos vizinhos ha 30 arros. Ele percebe que 0

vi olhando para mim. Seus olhos resvalam sobre mim com aferada absrra~ao. Ele olha Hxamente para a janda, Hngindo fastio ... Outro espectador na sala do tribunal- a mulher que vive no apartamenro acima do meu. Encontrando meu olhar, cIa baixa os olhos arerrorizada, enquanro olha para mim com 0 rabo do olho ...

Com urn movimenro claro, meus companheiros de bilhar viram as costas para mim ... Ha 0 gordo, dono do salao de bilhar, e sua mulher - encarando-me com

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34 o sentido do filme

insolenda ... Tento me encolher olhando para as pes. Nao vejo nada, mas a minha volta OllC;O as sussurros de Censura e.o murmurio de vores. Como urn golpe awLs do outro. caem as palavras da sumula do promotor ...

Imagino a outra cena com a mesma nitidez - minha volta da prisao:

A batida dos pareoes arras de mim, quando sou libertado ... 0 o!har espantado da cmprcgada, que para de !impar as janelas do vizinho quando me Ye entrando em meu velho pn:dio ... Ha urn nome novo na caixa do correio ... 0 chao do vestibula foi recentemenrc encerado e hoi urn novo capece em frente a minha porta ... A porta do apartamento 010 lado se abre ... Pessoas que eu nunca vira antes me olham com suspeira e inquisitivamenrc. Os filhos se agarram neias; instincivamente se escondem. De baiXo, com 05 6cul05 tortos no nariz. 0 velho porreiro. que se lembra de mimi olha para cima atraves do vao da escada ...

Tres ou quatro cartas amareladas enviadas para meu enderec;o antes que minha desgras:a Fosse do domlnio publico ... Duas ou tres moedas soam em meu bolso ... E entao - a porta e fechada em minha eara pelos ex-conhecidos que agora ocupam meu. apartamento ... Minhas pernas carregam-me. relutantemente, para cima, em direC;ao ao apartamento da mulher que eu costumava visitar e enrno,_ quando s6 faltam mais dois passos, volta. A gola rapidamente levantada de urn, transeunte que me reconhece ...

E assim por diante. Acima esta 0 resultado apenas de anota~6es sobre tudo 0

que passa pela minha mente e sentimentos quando) tanto como diretor, quanta como ator. tento me apossar emocionalmente da situas:ao proposta.

Depois de me colocar mentalmente na primeira situa~ao, e depois de passar mentalmente pela segunda, fazendo 0 mesmo com duas ou tr~s situa¢es relevantes de intensidade variada, gradualmente atinjo a percep~o autentica do que me espera no futuro e, em conseqii~ncia, 11 experi~ncia real da desesperanc;a e da tragedia de minha posi~ao. A justaposi~o de detalhes da primeira situa~o imagi­nada produz urn matiz desta sensa~o. A justaposi~o de detalhes da segunda situa(j2:o - outro. 0 matiz de urn sentimento e acrescentado ao outro, e de todos eles comec;a a surgir a imagem da desesperanc;a, inseparavelmente ligada 11 intensa experi~ncia emocional de sentir de fato tal desesperanc;a.

Deste modo, sem esfor<jO para representar 0 pr6prio sentimento, e posslvel suscita-lo pela reuniiio e justaposi~o de detalhes e situa~6es deliberadamente selecionadas entre todas as que primeiro se acumularam na imagina~o.

E irrelevante se a descric;ao deste processo. como esbocei adma, coincida ou niio em seus detalhes mecinicos com qualquer escola de tecnica de representa~o. o que importa e que urn estagio semelhante ao descrito acima existe em qualquer caminho fumo a flrmafiio e intensificafiio da emo(j2:o, seja na vida real ou na tecnica

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Palavra e imagem 35

do processo criativo. Podemos nos convencer disto com urn minimo de auto-obser­va¢o, seja.das condi~6es da cria~ao, seja das circunstincias da vida real.

Outra questao importante e 0 faro de que a tecnica da cria~ao recria urn processo da vida, condicionado apenas pelas circunstincias especiais exigidas pela arte.

Deve-se levar em conta, e claro, que nao analisamos todo 0 corpo da tecnica de interpretac;ao, mas apenas urn unico elo de seu sistema.

Por exemplo, nao abordamos absolutamente a natureza da pr6pria imagina­c;ao, particularmente a tecnica de seu "aquecimento" ate 0 ponto em que ela seja capaz de pintar os quadros que desejamos, aqueles exigidos pelo tema particular. A falta de espa~o nao permite urn exame desses elos, apesar de que sua analise confirmaria as afirma~6es aqui feitas. No momento, nos limitamos ao ponto ja discutido, mas tendo em mente que 0 elo que analisamos nao ocupa urn espa~o maior na tecnica do ator. do que a montagem entre os recursos expressivos do cinema. Nem tampouco podemos presumir que a montagem ocupa urn lugar menos importante.

Pois bern, de que modo essa introdu¢o ao campo da tecnica interior do ator difere, na pratica ou em princlpio, do que esbo~amos previamente como a essencia da montagem cinemarografica? A diferen~a esta no campo da aplica~ao, e nao no da essencia do metodo.

Nossa ultima pergunta foi como fazer para que os sentimentos vivos e as experiencias emerjam do interior do ator.

A pergunta anterior foi como evocar nos sentimentos do espectador uma imagern sentida emocionalmente.

Em ambas as perguntas, os elementos estaticos, os fatores dados e os imagina­dos, todos em justaposic;ao, criam uma emoc;ao que emerge dinamicamente, uma imagem que emerge dinamicamente.

Nao consideramos isto, de modo algum, diferente, em princlpio, do processo de montagem no cinema: aqui ha a mesma concretiza¢o intensa do tema tornan­do-se perceptivel atraves de detalhes determinantes, sendo 0 efeito resultante da justaposi~ao desses detalhes a evoca~ao do pr6prio sentimento.

Quanto a vetdadeira natureza dessas "vis6es" que aparecem diante do "olhe interior" do ator, sellS aspectos pl:isticos (ou auditivos) sao completamente homo­geneos com as caracteristicas tipicas do plano cinematografico. Os termos "frag­mentos" e "detalhes", conforme aplicados, acima, a essas visoes, nao foram escolhi­dos ao acaso, ja que a imagina¢o nao evoca quadros completos, e sim propriedades decisivas e determinantes desses quadros. Porque, se examinamos as muitas "visoes" anotadas quase que automaticamente acima, que eu honestamente teotd registrar

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com a precisaa fatagrafica de urn documenta psical6gica, veremas que estas "vi­saes" cern uma ardem positivamente cinemacografica - com angulos de camera, tomadas de varias distancias e rico material de mantagem.

Urn plano, par exempla, era principalmente a de urn hamem viranda as costas, obviamente uma composi~o que mostra as costas, em vez de coda a figura. Dais rastas com urn alhar vltrea e abstinada cantrastam com as cllias abaixadas, sob as quais a mulher do apartamenta de dma me alhava de saslaia - . abviamente exiginda diferentes distandas de camera. Ha varias primeiras planas 6bvias - do tapete novo diante da porta, das tres envelopes. Ou, usanda autra sentida, que e igualmente parte de nassa mldia - a plano geral sonora do publico que murmura na corte de justi~a, contrastanda com as paucas maedas tilintanda em me~ balsa etc. As lentes mentais trabalham deste modo com varia~6es - ampliam a escala au a diminuem, ajustanda-se tao fielmente quanta uma camera de filmagem aas varias quadras exigidas -, avan~ando au afastanda a micrafane. S6 a que falta para transfarmar esses fragmentas imaginadas num tlpica toteira de filmagem e a calaca¢a de numeras antes de cada fragmental

Este exempla revel a a segreda da realiza¢a do rateira de filmagem, com ema¢a genulna e mavimenta, em vez de uma mera alternancia tediasa de primei­ras planas, planas medias e planas gerais!

A essenda basica do metoda vale para ambas as esferas. A primeira tarefa e a divisaa criativa do tema em representa~6es determinantes, e depais cambina¢a dessas representa~6es com a abjetiva de dar vida a imagem inicial do tema. E a pracessa pela qual esta imagem e percebida e identica a experienda original do tema, do canteuda da imagem. Tambem tao inseparavel desta experiencia intensa e genulna e a trabalha do diretar aa escrever a rateira de filmagem. S6 de pade Ihe sugerir as representa~6es decisivas atraves das quais a imagem" campleta do tema pade irramper na forma de vida criativa.

Nista reside a segreda daquela qualidade de expasi¢a emacianalmente insti­gante (diferente da expasi¢a-testemunha da mera infarma¢a), da qual falamas antes, e que e uma candi¢a tanto da interpreta¢a viva de urn atar, quanta da viva realiza¢a de filmes.

Veremas que urn canjunta semelhante de quadras, cuidadasamente selecia­nadas e reduzidas aa extrema lacanisma de dais au" tres detalhes, sera encantrada nos melhares exemplas da literatura.

Vejamas a paema narrativa de Puchkin, Poltava - a cena da execu¢a de Kachubei. Nesta cena, a tema, do "final de Kachubei" e expressada com brilha incamum pela imagem do "final da execu~aa de Kachubei". A imagem real deste final da execu¢a emerge e cresce da justapasi¢a de tres representa¢es seleciana­das quase "dacumentalmente" de tres detalhes do epis6dia:

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Palavra e imager.l

"Tarde demais", disse alguem o dedo apontando para 0 campo. La, 0 cadafalso fatal era desmontado Urn padre de sotaina preta rezava E sobre uma carros:a era colocado Por dois cossacos urn caixao de carvalho.22

37

Seria dificil encontrar uma sele~ao mais eficaz de deta!hes para descrever a sensa~ao da imagem da morte em todo 0 seu horror, do que esta da conclusao da cena de execu~ao.

A validade da escolha de urn m~todo reaIista para criar e obter uma quaIidade emodonal pode ser confirmada por varios exemplos muito curiosos. Eis, por exemplo, outra cena de Poltava, de Puchkin, na qua! 0 poeta faz com que a imagem de uma fuga noturna surja magicamente,diante do lei tor com todas as suas possibi­lidades pict6ricas e emocionais.

Mas ninguem sabia como ou quando Ela sumira. Urn pescador solitario Ouviu naquela noire 0 galope de cavalos, Vozes de cossacos e 0 sussurro de uma mulher ... 23

Tres pIanos: 1. Galope de cavalos 2. Vores de cossacos 3. 0 sussurro de uma mulher Novamente tres representas:6es objetivamente expressadas (sonoras!) se jun­

tam numa imagem unificadora expressada emodonalmente, diferente da percep­~o de fenomenos isolados percebidos desvinculados de sua associa~ao urn com 0

outro. 0 m~todo ~ usado apenas com 0 objetivo de suscitar a necessaria experienda emodona! no leitor. Apenas a experienda emociona!, porque a informa~o de que Marya desaparecera fora dada no verso anterior ("Efa sumira. Um pescador solitd­rio"). Tendo contado ao leitor que ela desaparecera, 0 autor quis dar-lhe a sensa~ao tambem. Para consegui-lo, usa a montagem. Com tres deta!hes selecionados entre todos os elementos da fuga, sua imagem de fuga noturna surge na forma de montagem, comunicando a experienda da a~o aos sentidos.

Aos tres quadros sonoros de acrescenta urn quarto quadro, que tern 0 efeito de urn ponto final. Para obter este efeito, ele escolhe seu quarto quadro em outro sentido. Este ultimo "primeiro plano" nao e sonora, mas visual:

... E oito ferraduras de cavalos deixarn suas pegadas Sobre 0 orvalho da manha no prado ...

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38 o sentido do fifme

Assim, Puchkin usa a montagem para criar as imagens de uma obra de arte. Mas tambem usa.a montagem com igual habilidade quando cria a imagem de urn personagem, ou de todo Urn dramatis personae. Com uma combina~ao superlativa de varios aspectos (isto e, "angulos de camera") e de diferentes elementos (isto e, a montagem de coisas representadas pictoricamente, destacadas pelo enquadramento do plano), Puchkin obtem espantoso realismo em suas descri~6es. E na verdade 0

homem, completo em seus sentimentas, que emerge das paginas dos poemas de Puchkin. .

Quando Puchkin trabalha com uma grande quantidade de trechos de monta­gem. seu uso desse recurso se tocna mais complicado. 0 ritmo, construCdo com sucessivas frases longas e frases tao curtas que constam de uma liniea palavra, introduz uma caracterlstica dinamica na imagem da estrutura da montagem. Este ritmo serve para estabelecer 0 verdadeiro temperamento do personagem descrito, dando-nos uma caracterizac;ao dinamica de seu comportamento.

Pode-se aprender tam bern com Puchkin como fazer para que uma sucessao ordenada da apresenta~o e revela~o das caracterlsticas e da personalidade de urn homem aumente 0 valor total da imagem. Urn exemplo excelente desta conetio e sua descri~o de Pedro, 0 Grande, em Poltava:

I. . .. E entao, com a maior veemencia, II. . .. Saou, vibrance, a voz de Pedro: III. ''As armas, Deus esteja conoseo!" Da renda. IV. Por imlmeros favoritos rodeado. v. Pedro surge. Seus olhos VI. Faiscam. Seu olhar e tetrive!. VII. Seus movimentos ageis. Magnifico, VIII. Toda 0 seu aspecto, Furia divina. IX. Avan~. Seu corcellhe e entregue. x. Fogoso e d6cil, fie! cavalo de batalha. XI. Pressenrindo 0 fogo fatal, XII. Treme. Enviesa as alhos. XIII. Ese lan~a na poeira da luta. XlV. Orgu!hoso de seu poderoso cavaleiro.24

A numerac;ao acima e a dos versos do poema: agora descreveremos novamente esta passagem como se Fosse 0 roteiro de urn fHme numerando os "pIanos" tal como montados por Puchkin

1. E entao, com a maior veemencia, soou, vibrante, a voz de Pedro: "As armas, Deus esteja conosco!"

2. Da tenda, por inumeros favoritos rodeado. 3. Pedro surge.

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Palavra e imagem 39

4. Seus olhos faCscam. 5. Seu olha( e terdvel. 6. Seus movimentos ageis. 7. Magnifico. S. Todo a seu aspecto, Furia divina. 9. Avan,a.

10. Seu corcellhe e entregue. 11. Fogoso e d6cil, fie! cavalo de batalha. 12. Pressentindo a fogo fatal, treme. 13. Enviesa as olhos. 14. E se lan~a na poeira da luta, orgulhoso de seu poderoso cavaleiro.

o numero de versos eo mimero de pianos se mostram identicosJ 14 em cada casoJ mas quase nao ha coincidencia entre 0 esquema dos versos e 0 esquema dos pIanos; tal coincidencia ocorre apenas duas vezes nos 14 versos: VIII = 8 e X = II. Alem disso, a conteudo de urn plano varia de dais versos completos (1, 14) a uma uniea palavra. (9).

Isto e muito instrutivo para profissionais de cinemaJ particularmente as espe­cialistas em som.

Examinemos como Pedro e "montado": Os planas 1, 2 e 3 contem urn excelente exemplo de apresenta~ao significante

de uma figura em a~ao. Aqui tres nlveis, tres estagios de seu aparecimento, sao absolutamente distintos: (1) Pedro ainda nao e mostrado, mas e apresentado pelo som - sua voz. (2) Pedro sai da tenda, mas ainda nao e vislvel. Tudo a que podemos ver e 0 grupo de favoritos rodeando-o. (3) Finalmente, apenas num terceiro estagio, Pedro e real mente vista ao se afastar da tenda.

Isto e seguido pelos a/has foiscantes, a detalhe mais importante de sua aparen­cia geral (4). Em seguida, todo a rosro (5). S6 entao sua figura inteira e apresentada (apesar de coreada nos joelhos pelo enquadramento de urn plano em traveling), para mostrar seus movimentosJ sua agilidade e energia. 0 ritmo do movimento e 0

personagem que ele ilumina sao expressados "impetuosamente" pelo choque de frases curtas. A apresenta~ao total de toda a figura s6 ocorre no Plano 7, e agora de urn modo que supera a descricrao informativa - vividamente, como uma imagem. "Magnifico." No plano seguinte, esta descri~ao e refor~da e ampliada: "Todo 0 seu aspecto, Furia divina." Apenas no oitavo plano Puchkin revela Pedro com a poder total de uma representa~o plastica. Este oitavo plano, obviamente, enquadra Pedro em todo 0 seu tamanho, salientado par todos as recursos da composi~o do plano, com uma coroa de nuvens acima deleJ com tendas e pessoas rodeando-o a seus pes. Depois deste plano amplo, a poeta nos reconduz imediatamente para a ambito do movimento e da acrao, com a unica palavra "avanc;a". Seria diffcil capturar de modo mais intenso a segunda caracteristica decisiva de Pedro: 0 andar de Pedro· - a mais

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40 o sentido do filme

impressionante desde as "olhos faiscantes". 0 laconico "avanc;a" transmite comple­

tamente a sensa.,ao do enorme, primitivo, impetuoso andar de Pedro, que sempre tomou diffcil a seu sequito segui-Io. De urn modo igualmente genial Valentin Serov capturou e registrou este "andar de Pedro" com seu famoso quadro de Pedro na constru~ao de Sao Petersburgo.25

Acredito que a apresenta.,ao acima seja uma leitura dnematografica correta dessa passagem. Em primeiro lugar, uma "incroduc;ao" como esta de urn persona­gem de Puchkin e geralmente t1pica de seu estilo. Basta ver, por exemplo, outra brilhante passagem de urn tipo exatamente igual de "apresenta.,ao", 0 da bailarina Istomina em Eugene Oneguin. 2GUma segunda prova da corre.,ao da leitura adma e a determina~ao da ordem das palavras que, com absoluta exatidao, por sua vez, ordena 0 aparecimento sucessivo de cada elemento, os quais finalmente se fundem na imagem do personagem, "revelando-o" plasticamente.

Os pianos 2 e 3 seriam construldos de modo bastante diferente se, em vez de

... Da tenda Por imimeros favoritos rodeado, Pedro surge ...

o [exeo dissesse:

... Pedro surge, Por imimeros favoritos rodeado, Da tenda ...

Se 0 aparedmento tivesse come~do com Pedro, em vez de conduzir a Pedro, a impressao seria bastante diferente. Como Puchkin escreveu, e urn modelo de expressividade, conseguido atraves de urn puro metodo de montagem e com meios de pura monragem. Para cada caso hi disponlvel uma estrutura expressiva diferen­te. Mas a estrutura expressiva escolhida para cada caso prescreve e tra~ previamente "a unica organiza.,ao correta das unicas palavras adequadas", sobre a qual Toistoi escreveu no ensaio 0 que t! a arte?

o som da voz de Pedro e suas palavras sao ordenados com a mesma qualidade de sucessao 16gica que permeia as imagens pict6ricas (ver Plano I). Porque Puchkin nao escreveu:

mas:

,_,"As armas, Deus esteja conosco!" Soall a voz. de Pedro, vibrance, e com a maior veemencia.

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Palavra e imagem

... E entao. com a maior veemencia. Soou. vibrante, a voz de Pedro: "As armas. Deus esteja conosco!"

41

Se n6sJ como cineastasJ tivermos que enfrentar a tarefa de construir a expres­sividade de uma tal exclama~ao, tambem devemos transmiti-Ia de modo que haja uma sucessao ordenada, revelando primeiro sua veemencia, depois sua qualidade vibrante, seguida pelo nosso reconhecimento da voz como a de Pedro, e finalmente, distinguindo as palavras que esta voz exaltada, poderosa, de Pedro emite: ''As armas, Deus esteja conosco!1J Parece evidente que, ao "encenarl) tal passagem, a questao deveria ser resolvida simplesmente ouvindo-se primeiro uma frase de exclama~ao saindo da tenda, na qual as palavras nao poderiam ser distinguidas, mas que ja transmitiriam as qualidades de veemencia e vibra~ao que mais tarde se reconheceria como caracterfsticas da voz de Pedro.

Como vemos, isto e de grande importincia com rela~o ao problema do enriquecimento dos recursos expressivos do cinema.

o exemplo e urn modelo do tipo mais complexo de composi~ao som-imagem ou audio-visual. Parece incrfvel que ainda exista entre n6s quem considere desne­cessario buscar esse tipo de ajuda para nosso meio de expressao, e considere que e posslvel acumular experiencia suficiente atraves do estudo da coordena~o da musica com a a~ao apenas na 6pera ou no bale!

Puchkin nos ensina ate como trabalhar de modo a evitar uma coincidencia mecinica entre os pIanos e 0 ritmo da trilha musical.

Consideremos apenas 0 caso mais simples - a nao coincidencia dos compas­sos (neste caso, os versos) com os finais, inlcios e dura~6es dos quadros plasticos isolados. Num diagrama simples seria mais ou menos assim:

A linha superior e ocupada pelos 14 versos da passagem. A linha inferior, pelas 14 imagens feitas a partir dos versos.

o diagrama indica sua distribui~ao correspondente em rela~ao 11 passagem. Este diagrama torna evidente 0 primoroso estilo de contraponto de elementos

sonoros-visuais que Puchkin usa para obter os magnificos resultados desta passa­gem polifonica do poema. Como ja vimos, com a exce~ao de VIII ~ 8 e X ~ II, nao verificamos nem mais urn unico caso de correspondencia identica de verso e plano.

Alem disso, plano e verso coincidem em rela~ao 11 ordem apenas uma vez: VIII

~ 8. Isto nao pode ser acidental. Esta unica correspondencia exata entre as articula­¢es da musica e as articula~6es dos pIanos marca 0 trecho de montagem mais significativo de toda composi~ao. E unico: neste oitavo plano, as caracterfsticas de

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r 42 o sentido do filme

Pedro sao plenamente desenvolvidas e plenamente reve!adas e, alem disto, e 0 unico Verso que usa uma comparac;ao pict6rica: "Toda a seu aspecto, Furia divina." Vemos que este recurso de coincidir a enfase da musica com a enfase da representa~o e usado por Puchkin no caso de maior impacto da passagem. Isto e exatamente 0 que Faria no cinema urn mantador experience - como urn compositor de harmonias audiovisuais.

Na poesia, 0 encadeamento de uma frase descritiva, de um verso para outro, e charnado de "enjambement'. Em sua Introdu;iio II metrica, Zhirmunsky escreve:

Quando a articulac;ao ffietrica nao coincide com a sinracica, surge a chamado enca­deamenro (enjamhement) ... 0 sinal mais caracterCsrico de urn encadeamento e a presenc;:a, em urn verso, de uma pausa Jinuitica mais significariva do que a do inicio ou fim do verso ... 27

Ou conforme se pode ler no Wtibsters Dictionary:

ENJAMBEMENT ••• Continuac;:ao do sentido em uma frase, depois do final de urn verso au dfscico, prolongamento de uma frase de urn verso para outro, de forma que palavras intimamente relacionadas caem em versos diferentes ... 28

Um bom exemplo de enjambement pode ser visto no Endymion, de Keats:

... Assim terminou ele. e ambos Sentaram-se silenciosos: porque a jovem relutava Inuito Em responder; percebendo bern que aquelas palavras sussurradas Se perderiam. sem serem ouvidas, e vas como espadas Contra crocodilos empalhados, ou pulos De gafanhotos contra 0 sol. Ela chora, E imagina; esforc;a-se para divisar alguma culpa Para colocar no olhar a expressao. Vergonha Por esta ;equena jTaqucza! mas apesar de todo 0 esforc;o. Seria mais facil para ela tirar a vida De uma pomba doente. Finalmente. para quebrar 0 silencio. Ela disse. com tremula expectativa: "E esse 0 motivo?" ...

Zhirmunsky tambem fala de uma interpreta;iio particular deste tipo de cons­tru~ao que tambem nos interessa, de certo modo, com re!a~ao as nossas harmonias audiovisuais no cinema, onde 0 quadro desempenha 0 pape! da frase sint:ltica e a estrutura musical 0 pape! da articula~ao rltmica:

Qua!quer nao-coincidencia da articulac;ao sintatica com a metrica e uma dissonancia artisticamente deliberada, que se resolve no ponto em que. depois de uma serie de

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Palavra e imagem 43

nao-coincidencias, a pausa sintatica finalrnente coincide com os lirnites da serie rltrnica. 29

Isto pode ser ilustrado por um exemplo, desta vez de Shelley, de Julian e Maddalo:

Ele parou e, I perturbado. reclinou-se urn poueo. II Entao levantando-se. com urn sorriso rnelancolieo Foi para urn sofa, II e deitou~se, II e dorrniu Urn sono pesado.1I e em seus sonhos ele chorou E rnurrnurou urn nome familiar, II enos Choramos, sem nos envergonharrnos, em sua companhia ...

Na paesia russa, a "enjambement" assume farmas particularmente ricas na obra de Puchkin.

Na paesia. francesa, a usa mais consistente desta tecnica se encantra na abra de Victor Hugo e Andre Chenier, apesar de 0 exemplo mais claro que jamais encontrei na paesia francesa estar num paema de Alfred de Musset:

L'antilope aux yeux bleus, I est plus tendre peut-etre Que Ie roi des flren; II mais Ie lion rlpond Qu~1 n'est pas antilope, I et qu'il a nom II lion'.

o "enjambement' enriquece a obra de Shakespeare e Milton, reaparecendo em James Thomson, Keats e Shelley. Mas e claro que 0 poeta mais interessante a este respeito e Milton, que teve grande influ~ncia sobre Keats e Shelley em seu uso desta tecnica.

Ele declarou seu entusiasmo pelo "enjambement' na introdu<;iio de Parafso perdido:

... verdadeiro deleite musical. .. consiste apenas em Nurneros apropriados, quantida­de adequada de SIlabas. eo sentido prolongada, de farmas variadas, de urn Verso pata autra ... 30

o pr6prio Paralso perdido e uma escola de primeiro nfvel no ensino de montagem e rela~6es audiovisuais. Charei varias passagens de diferentes partes da

Em frances no original: o antilope de olhos azuis I e calvez mais cerno Que 0 Rei da Floresca ;; Mas 0 leao responde Que nao e antilope ~ e que seu nome e IIleao

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44 o sen[ido do filme

obra - em primeiro lugar, porque Puchkin, traduzido, nunca consegue dar ao leitor estrangeiro 0 deleite direto das peculiaridades de sua composi~ao, conseguido pelo leitor russo em passagens como as analisadas acima. Isto 0 leitor pode conse­guir obter mais sucesso em Milton. E, em segundo lugar, porque duvido muito que meus colegas briranicos ou norte-americanos tenham 0 habiro de folhear com frequenda 0 Paralso perdido, apesar de ele conter coisas muito instrutivas para 0

cineasra. Milton e particularmente born em cenas de batalha. Aqui sua experiencia

pessoal e observa~6es de testemunha ocular freqUentemente tomam corpo. Hilaire Belloc escreveu com justi~ sobre ele:

Tudo 0 que e marcial~ que combina som e multidao, atraiu Milton desde as Guerras Civis ... Sua imaginaliao capturava especialmente 0 apelo da musica e 0 esplendor das cores ... 31

E, conseqUentemente, ele descreveu as batalhas divinas com detalhes tao intensamente terrenos que freqUentemente foi alvo de serios ataques e reprova~6es.

Estudando as paginas de seu poema e, em cada caso individual, analisando as qualidades determinantes e efeitos expressivos de cada exemplo, entiquecemos extraordinariamente nossa experiencia com rela~o 11 distribui~o audiovisual das imagens em sua montagem sonora.

Mas eis as imagens:

(A aproximariio da "Hoste de Satii") ... finalmente

Ao longe, no Horizonte, descobriu~se De urn lado ao autro. Regiao fgnea. disposra Sob a forma de exercito, que. aproximando-se Mostrava poderes ligados a Satanas. Cobertos com as raias inumeraveis De s6lidas e inflexlveis Lanc;asj via-se uma afluencia de Capacetes

e de varios Escudos Guarnecidos com Pinturas insolences Esses Poderes se apressavam Com furiosa rapidez ... 32

Notem a instruc;ao cinematografica, no terceiro verso completo, para mudar 0

lugar da cJmera: "aproximando-se"!

(0 movimento correspondente das "Hostes Celestiais") ... essa alta honea e reclamada, como direito, Por Azazel, grande Querubin,

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Palavra e imagem

Que, imediatamente, desfralda da Haste brilhante A InsCgnia Imperial que, elevada e plenamente avans:ada, Brilha como urn Meteoro, flutuando ao Vento, Como as Perolas e a rica cintilacrao do Ouro, A brasonarem as Armas e as Trofeus ser:ificos. Durante tudo este tempo o bronze sonora enchia a ar, com sons Marciais, Eo exercito universal expediu Urn grito. que rasgou a Cavidade do Inferno, e, mais lange ainda, Assustou 0 Reina do Caos e da velha Noite. Num instante, no mdo das Trevas. foram vistas Dez mil Bandeiras levantadas no Ar. Ondulando as Cores Orientais: com estas bandeiras, ergueu-se Enorrne Floresta de Lanc;:as, Capacetes aglomerados Apareceram e as Escudos curvaram-se em densa linha De extensao incomensuravel! Dencro em pouco, os guerreiros movem-se Em perfeira Falange, a maneira dos Dorios: Flautas e suaves Oboes; uma tal meneira elevou A altura da mais nobre calma her6is antigos A arrnareffi-se para a Batalha; ... 33

45

E aqui esta uma parte da pr6pria batalha. Eu a transcreverei com os mesmos dois tipos de transcric;:ao como 0 fiz na passagem de Poltava de Puchkin. Primeiro, como dividida em versos por Milton, e depois arrumados de acordo com os varios quadros de composi~ao, como um roteiro de filmagem, onde cada mlmero indica um novo fragmento de monragem, ou plano.

Primeira transcri~ao:

... em forc;:a, cada mao armada valia I. Uma Legiao. Conduzido ao combate, cada Soldado parecia urn Chefe. II. Cada Chefe urn Soldado; destros, III. Sabiam quando deviam avanc;ar ou deter-se, quando deviam mudar a direc;ao IV. Da Batalha, abrir au fechar V. OS suIcos da horrIvel Guerra. Nenhum pensamento de fuga VI. Nem de retirada, nenhuma ac;ao indecorosa VII. Que provasse 0 medo; cada urn confiava em si mesmo VIII. Como se a momenta da vit6ria dependesse IX. Somente do seu bracro. Inumeraveis feitos de fama imorredoura X. Foram efetuados. pois vasta e variada se estendia XI. A Guerra; ora 0 combate manrido em terra firme XII. Ora elevando-se sobre poderosa asa, XIII. Atormentava todo 0 Ar, e entao todo 0 Eter parecia XIV. Fogo Militante. A Batalha por muito xv. Foi suspensa em igual balancra ... 34

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46 o sentido do filme

Segunda transcric;ao:

J. Conduzido ao combate, cada soldado pareda urn chefe, cada chefe urn soldado; 2. destros, sabiam quando deviam avan,?r 3. ou deter-se 4. quando deviam mudat a ditec;ao da batalha 5. abrir 6. ou fechar as suIcas da horrfvel guerra 7. Nenhum pensamento de fuga, 8. nem de retirada, nenhuma ac;:ao indecorosa, que provasse 0 medo; 9. cada urn confiava em si mesmo, como se 0 momento da vir6ria dependesse de seu

brac;o 10. Inumeraveis feitos de fama imorredoura foram efetuados 11. pais vasta e variada se estendia a guerra; 12. ora 0 combate manrido se estendia em terra firme 13. ora levando~se sabre poderosa asa, atormentava todo 0 aT, 14. e entao todo 0 erer parecia fogo militante 15. A batalha por muito foi suspensa em igual ba~anc;a ...

Como na citac;ao de Puchkin, aqui tam bern ha urn numero identico de versos e planas. Tambem como em Puchkin, e construldo aqui urn esquema de contra­ponto nao-coincidente entre as limites das representa~oes e as limites das articula­~es rltmicas.

E-se levado a exclamar; nas pr6prias palavras de Milton em outra parte do poema:

.. .labirinros intrincados, Execntricos, envolvidos uns nos outros porem regulares Ao maximo, quanta mais irregulares parecem ... 35

Mais uma passagem do Livro VI, quando as anjos rebelados sao jogados no Inferno:

No entanto. 0 Filho de Deus nao tinha ainda usado a metade de sua fon;a, e refreou o Seu Trovao no meio da Descarga, pais Ele nao visava Destru!-las. mas desarraiga-los do CeUj I. Levantou os que estavam caldos e, como a urn Fato II. De Cabras ou a urn rebanho drnido, reunido em tropel, Ill. Expulsa-os a sua frente. Fu!minados, perseguidos IV. Pelos terrores e pelas furias ate os limites, v. Ate a Muralha de Crisral do Ceu, que, abrindo-se amplamente, Yl. Rola no seu amago e descobrc, par espa)=os Brecha. VII. 0 Abisrno devastadoj esta vista rnonstruosa

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Palavra e imagem 47

VIII. Os fere de horror, mas ao longe. horror ainda pior IX. OS faz reeuarj cabe':ra para baixo, eles pr6prios se precipiram X. Da borda do Ceu. a c61era ererna XI. Arde arras deles ate 0 abismo insondavel.

Nove dias cairam ... 36

E como se fosse urn roteiro de filmagem:

1. Levantou os que estavam caidos. e 2. como a urn fato de cabras au a urn rebanho dmido, reunido em tropel 3. expulsa~os a sua frente, fulminados, 4. perseguidos pelos terrores e pelas ftlrias ate os limites, ate a muralha de cristal do

ceu 5. que, abrindo~se amplamente, cola no seu amago 6. e deseobre, par espa':r0sa brecha 7. 0 abismo devasrado; 8. esta vista monstruosa os fere de horror 9. mais ao lange. horror ainda pior os faz reeuar 10. eabe':ra para baixo, des pr6prios se predpitam da borda do ceu; 11. a e61era eterna arde arras deles ate a abismo insondavel.

E posslve! achar em Milton tantos exemplos de coordena~ao, instrutivos como estes. quanta se desejar.

o esquema formal de urn poema, em geral, observa a forma de estrofes distribuCdas internamente de acordo com a articula~ao metrica - em versos. Mas a poesia tambem nos proporciona outro esquema, que tern urn poderoso defensor em Maiakovski. Em seu "verso cortado", a articulayao e feica nao de acordo com as limites do verso, mas de acordo com as limites do "plano".

Maiakovski nao trabalha com versos:

Vacuo. Voa nas alturas, Nas estrdas esculpindo seu caminho. 37

Ele trabalha com pianos:

Vacuo. Voa nas alturas. Nas estrelas escu!pindo seu caminho.

Aqui Maiakovski carta seu verso exatamente como urn experiente montador o faria ao construir uma seqUencia tfpica de "impacto" (as estrelas - e Yesenin. Primeiro - urn. Depois. . 0 outro. Seguido pelo impacco de urn contra 0 outro.

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48 o sencido do filme

1. ~cuo (se fossemos filmar este "plano'\ enquadrarfamos as estrelas para enfatizar 0

vazio, mas aD mesmo tempo fazendo com que sua prescnc;a seja sentida). 2. J1ja nas alturas 3. E apenas no terceiro plano retratarnos claramente as conteudos do primeiro e

segundo pIanos nas circunsc1ncias de impacto.

Como podemos ver, e como poderia ser multiplicado com outros exemplos, a cria~ao de Maiakovski e impressionantemente gr:ifica nesta questao da montagelll. Em geral, porem, neste caso e mais excitante voltar aos cIassicos, porque eles pertencem a urn perIodo em que nem se sonhava com a "montagem" neste sentido. Maiakovski, afinal de contas, perrence ao perlodo no qual as reflexoes sobre a montagem e as princfpios de montagem se tornaram amplamente Correntes em todas as artes proximas da literatura: no teatro, no cinema, na montagem fotogdfi­ca, e assim por diante. Em conseqiiencia, exemplos de estilo realista de montagem tirados do tesouro de nossa heran~ classica, onde intera~oes desta natureza com campos proximos (por exemplo, com 0 cinema) eram poucas, ou totalmente inexistentes, sao as mais incensos e mais interessantes eJ talvez, mais instrutivos.

POf(!m, nao importa se na imagem, no som ou em combinac;6es imagem -SOID, se na criac;ao de uma imagem, de uma situac:rao, ou na "magica' encarnac;ao

diante de nossos olhos das imagens dos dramatis personae- seja em Milton ou em Maiakovski -J em coda parte enconCramos igualmente presence este mesmo meto­do de montagem.

Que conclusao podemos tirar sobre 0 que.foi dito ate agora? A conclusao e que nao hi nenhuma incompatibilidade entre 0 metodo pelo

qual 0 poeta escreve, 0 metodo pelo qual 0 ator forma sua cria~o dentro de si mesmo, 0 metodo pelo qual 0 mesmo ator interpreta seu papel dentro do enquadra­mento de um unico plano, e 0 metodo pelo qual suas a~oes e toda a interpreta~o, assim como as a~oes que 0 cercam, formando seu meio ambiente (ou todo 0

material de urn filme), fulguram nas maos do diretor atraves da media~o da exposi~o e da constru~o em montagem, do filme inteiro. Na base de todos estes metodos residem, em igual medida, as mesmas qualidades humanas vitais e fatores determinantes inerentes a todo ser humano e a toda arte vital.

Nao importa quao opostos sejam os polos nos quais cada uma dessas esferas possa parecer se mover, elas se encontram na afinidade e unidade final de urn metodo como 0 que agora percebemos nelas.

Essas premissas colocam diante de nos, com nova for~, a questao de que os profissionais da arte cinematografica devem nao apenas estudar 0 estilo dramatico e a mestria do ator, mas devem dar igual aten~o ao domlnio de todas as sutilezas da criao;:ao da montagem em todas as suas aplicao;:oes.

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Palavra e imagem 49

Notas

1. Montazh 1938. Escrito em 1937, retrabalhado emre marero e maio do ano seguinte e publicado apenas em parte na edicrao de janeiro de 1939 de Iskusstvo Kino (Arte do cinema). Vma ~utra vez retrabalhado para pubHcacrao como primeiro capItulo de 0 smtido do ji/me em 1941: Eisenstein mudou 0 dtulo (deMontagem 1938 paraPalavra e imagem) e ajustou 0 texto para 0 leitor de lIngua inglesa.

2. N.S.E.:John Livingston Lowes. The Road to Nmadu. 1930. 3. N.S.E.: Ambrose Bierce, The Monk and the Hangman's Daughter: Fantastic Fables, 1925. 4. N.R.: Chamavam-se malas portmanteau (literalrnente: "porta-casaco") as grandes valises muito

em voga na epoca aurea das viagens de trern e navio, que podiarn carregar varias roupas, penduradas

ern cabides, ao mesmo tempo. Palavras portmanteau sao as que carregam dois ou mais significados ao

mesmo tempo. 5. N.S.E.: The Complete Works of Lewis Carroll. !937 [0 texto original citado por Eisenstein usa

as palavras fUming e fUrious, e como montagem final fomious.~ 6. N.S.E.: Sigmund Freud, Der Wit.:: und seine Beziehung zum Unbewussten (0 chiste e, sua relafiio

com 0 incomcimte). Viena, 1905. 7. N.S.E.: Kurt Koflka. Principles of Gestalt Psychology. 1935. 8. N.S.E.: Leon Tolstoy, Anna Karenina. 9. N.S.E.: Mais tarde veremos que este mesmo principia dinamico esta na base de tadas as

imagens realmente vitais, mesmo num rneio aparenternente estatico e im6vel como, por exernplo, a pintura.

10. N.S.E.: Guy de Maupassant, Bel ami. [Traducrao brasHcira de Clovis Rarnalhete. Sao Paulo, Livraria Mattins, 1953.1

11. Eisenstein se ref ere aqui a seqUencia final de Outubro, onde 14 pianos deste rel6gio com varios mostradores indicando a hora em diversas cidades aparecem montados ao lado de pianos de maos que aplaudem e rostos quesorriem.

12. Nikolai Tchcrkasov (1903-1976). interprete de Port i Czar (0 porta e a tzar. 1927) de Vladimir Gardine (1877-1965), seu primeiro trabalho no cinema; Deputat Balti. (0 deputado do Bdltico. 1937) de Alexander Zarkhi (*1908) e IossifKheifits (*1905); e de dois filmes de Eisenstein.

Alexander Nevsky (Cavaldros de firro. 1938) e Ivan Grozny (lvii. a Terr/vel. 1944-1946) entre outros. 13. Nikolai Okhlopkov, interprete, cmre outros, de Lenin v Oktiabr (Lenin em outubro. 1937)

e Lenin v 1918 (Lenin em 1918) de Mikhail Romm (1901-1971); e de Alexander Nevsky (Cavaleiros deftrro, 1938) de Eisenstein.

14. Boris T chirkov, interprete. entre outros, de Utchitel (0 professor. 1939) de Sergei Guerassi· mov (1906-1985) e da Tn'fogia de Mdximo: /unost Maxima (A juventude de Mdximo. 1934), Vozvras­tchenie Maxima (A volta de Mdximo, 1937) e Vyborgskaia storona (0 bairro de ljtborg, 1938) filmes de Grigori Kozinncv (1905-1973) e Leonid Trauberg (*1902).

15. Lev Sverdlin, interprete de, entre outros. Volochayevskyi dni (A deftsa de VoIoChaievski. 1938) de Sergei (1900-1955) e Georgi (1899-1946) Vassiliev; e Vsadniki (Cavaldros. 1939) de Igor Savtchenko (1906-1950).

16. N.S.E.: George Arliss. Up the Years from Bloomsbury. 1927. 17. N.S.E.: Leonardo da Vinci, Trattato della pittura, citado em Leonardo da Vinci de A. Volinski,

Moscou, 1923. 18. N.S.E.: Leonardo da Vinci, Traite de fa peinture. Paris, 1921. Nota de pc de pagina de

Josephin Peladan.

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50 o sentido do filme

19. N.S.E.: Publicado em Literaturnaya Gazeta, Moscou, 26 de mar~ de 1938. 20. N.S.E.: Karl Marx. Bemerkungen ueber de neueste priissische Zensurinstruktion in WCrke und

Schrifien, Brieft und Dkumenten, Bedim. Marx-Engels Gesamrausgabe. vol.I. 2!. N.S.E.: E 6bv!o que 0 terna como tal e capaz de excirar emocionalmente. independente da

forma em que e aprescntado. Vma curta notlcia de jornal sobre a viroria dos republicanos espanh6is em Guadalajara c mais emocionante que urna ohra de Beethoven. Mas aqui estamos discutindo como. atravCs da arte. podemos elevar urn dererminaclo terna au assumo. que pade sec exchanre "em si mesmo". a urn grau maximo de eficlcia. E claro que a montagem, como tal. de modo algum e urn meio exaustivo neste campo, apesar de sec urn roeio tremenclamente poderoso.

22. N.S.E.: Alexander Sergeievitch Puchkin. Po/noye Sobraniye Sochinenil. Leningrado. 1936. 23. N.S.E.: Ibid. 24. N.S.E.: Ibid. 25. N.S.E.: Pedro I. guache de Valentin Serov. parte da cole~o da Galeria Tretiakov. de Moscou

[Valentin Alexandrovich Serov (l865-~911) pintor famoso por sew rerratos, professor de pintura em Moscou entre 1909 e 19! 1. No setimo capItulo de Cinematisme (Editions Complexe. Bruxelas. 1980) Eisenstein analisa longamente urn quadro de Serov, a retrato cia atriz Maria Nkolaieva Ermolova (!853-1928) pintado em 1908. No quarto capItulo de A natureza nao indiferente (La non-indiffirente nature. dais volumes. Union Generale d'Editions. Paris. 1978) Eisenstein analisa urn outro quadro de Serov, a retrato de Gorki feito em 1904].

26. N.S.E.: 0 teatro esta cheio. as camarotes resplandecem. As poltronas estao agitadas. a plateia ruge, A galeria bate palmas e sapateia excitadaj A cortina sussurra ao ser levantada; Uma luz fantistica em redor de sua danc;a. A magica da sauda~o obedecendo. Vma multidao de ninfas em volta dela ---veja! Istomina na ponta dos pes ... (Puchkin. obra citada). 27. N.S.E.: Viktor Maximovitch Zhirmunsky. Vvdeni v Metriku. teoriastikha. Leningrado. 1925. 28. N.R: Eisenstein cita diretamente 0 verbete do dicionario Webster's na versao preparada para

a edi~o de lCngua inglesa. 29. N.S.E.: Viktor M. Zhirmun,ky. obra citada. 30. N.S.E.: The WOrks of}ohn Milton, vol.U. Paradise Lost, The Verse. Columbia University Press.

1931. 31. N.S.E.: Hilaire Belloc. Milton. Lippincotr, 1935. 32. N.S.E.: John Milton. Paradise Lost [Para/so perdido. tradu~o de Concei~o G. de SQtro

Maior. Edi'roes de Ouro.livro VI, p.189.] 33. N.S.E.: Ibid., Livro I 34. N.S.E.: Ibid., Livro VI

35. N.S.E.: Ibid., Livro V

36. N.S.E.: Ibid., Livro VI

37. N.s.E.:A Sergei Yesenin [Este poema de Vladimir Maiakov,ki (1893·1930) foi publicado na revista LEFpouco depois da mane do poetaSergei Yesenin (1895-1925). que sc suicidou num hate! de Leningrado deixando urna ultima poesia escrita com 0 sangue dos pulsos cortados. Atl logo, atl logo, companheiro].

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II. Sincronizas:ao dos sentidos~

,., na realidadc. quanta mais as artes se desenvolvem, tanto mais dependem umas das Durras para se defini~ rem. Primeiro pediremos urn emprestimo a pintura. e chamaremos de forma. Mais tarde. pediremos urn em­prestimo a mUsica. e chamaremos de rirmo.

E.M. FORSfER2

Elc gradualmente dissolveu-se no Infinito - seus sen­tidos corporais ja haviam sido deixados para tcis. ou. de qualquer modo, escavam [odos misturados: de modo que as mesinhas verdes do cafe s6 0 atingiam como urn tilintante arpejo do sODaro conrrabaixo da luz do sol. no estrondeante Cell hi fora: enquanto 0

chocalhar de urn carro de hoi que passava era traduzi­do por urna serie de v!vidos clar6es de cor, e 0 descon­forto da cadeira desconjunrada onde ele se sentava tinha urn cheiro amargo em suas narinas ...

ruCHARD HUGUF.53

A montagem foi definida anteriormente aqui como: o fragmento A, derivado dos elementos do tema em desenvolvimento, e 0

fragmento B, derivado da mesma fonte, ao serem justapostos fazem surgir a imagem na qual 0 conteudo do tema e personificado de forma mais clara.

Ou: A representariio A e a representariio B devem ser selecionadas entre os muitos

poss(veis aspectos do terna em desenvolvimento l devern ser procuradas de modo que sua justaposiriio - isto el a justaposi~o destes precisos elementos e nao de elementos alternativos - suscite na percep~ao enos sentidos do espectador a mais completa imagem Mste tema predso.

51

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S2 o sencido do filme

Esra formula~o foi apresenrada desre modo, sem que fossemos limirados par qualquer renrariva de dererminar as graus qualitativos de A au B, au de fixar qualquer sisrema de mensura~o de A ou"B. A formula~o permanece, mas devemos desenvolver suas qualidades e proporfoes. "Entre os muitos posslv';s aspectos do tema em desenvolvimento." Esra frase nao foi inclulda na formula~o par acaso.

Tomando par base que a imagem unica, unificadora, dererminada par suas parres componenres, desempenha a papel decisivo na hora cinemarogdfica criari­va, queremos salienrar logo no inlcio desra parre da discussao que as meios de expressao podem ser rerirados de qualquer urn dos varios campos com objetivo de enriquecer ainda mais a imagem.

Nao deve haver limires arbirrarios 11 variedade dos meios expressivos que podem ser usados pelo cineasra. Gosraria de pensar que isro foi conclusivamenre demonsrrado pelos exemplos acima, de Leonardo da Vinci, Milron e Maiakovski.

Nas noras de Leonardo para 0 Diluvio, rodos as seus varios elemenros - as puramenre pl:isricos (0 elemenro visual), as que indicam a comporramenro huma­no (0 elemenro dramarico), e a barulho do desmoronarnenro e dos griros (0 elemenro sonoro) - rodos sao igualmenre fundidos numa imagem unica, unifica­dora, definiriva, de urn diluvio.

Tendo isro presenre, vemos que a rransi~o da monragem do cinema mudo para 0 cinema sonora, ou montagem audiovisual, nao muda nada quanto ao principio.

A concep~o de monragem apresenrada aqui engloba igualmenre a monragem do cinema mudo e do cinema sonoro.

Isto nao quer dizer, pon!m, que, ao trabalhar com 0 cinema sonora, nao somas confronrados com novas rarefas, novas dificuldades e are merodos roralmen­te novos.

Pelo conrr:lrio! Eis par que e rao necessaria fazermos uma analise global da narureza dos

fenomenos audiovisuais. Nossa primeira pergunra e: onde devemos procurar uma base segura de experi€ncia para comes:armos nossa an:ilise?

~ Como sem.£!-e, a mais rica fonre de experi€ncia e a pr6prio Homem. 0 esrud.Q ~ ... de sell comportamento e, particularmente neste caSQ, de SCJJS rnetodos de perceber ~ : realidade e de formar imagers da rralidade sera nosso determinante.

~ Posteriormente, em nosso exame de questoes estritamente de estilo, veremos que 0 Hornern e as rela¢es entre seus gest~s e entondfoes da voz, que surgem das mesmas emoc;6es, sao nossos modelos para determinar estruturas audiovisuais, que se desenvolvem de urn modo exaramenre id€nrico ao da imagem dominanre. Sabre isro· - mais rarde. Are enrrarmos em maiores deralhes sabre esre paralelis­

-ffiD, esra rese sed suficienre: ao selecionar a marerial de montagem a ser fundido nesra au naquela imagem parricular que deve ser manifesrada, devemos esrudar a n6s mesmos.

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Sincroniza~ao dos sen tid os 53

Devemos ter plena consciencia dos meios e dos elementos atraves dos quais a imagem se forma em nossa mente.

Nossas primeiras e mais espontdneas percep¢es sao freqiientemente nossas percep<;oes mais valiosas) porque estas impressoes intensas, frescas, vivas, in varia­velmente derivam dos campos mais amplamente variados.

Por isso, ao abordar os dassicos, e uti! examinarmos nao apenas obras acaba­das, mas tambem os esbo~s e notas em que os artistas esfor~aram-se para gravar suas primeiras impressoes vividas e imediatas.

Por esta razao, urn esbo~ e freqiientemente mais vivo do que a tela acabada - fato observado por Byron em sua critica de urn colega poeta:

... Campbell corrige demais: nunca esta satisfeito com 0 que faz; suas melhores coisas foram estragadas pelo excesso de polimento -a veemencia do esbo~o e jogada fora .. Tal como os quadros, os poemas tambem podem acabar muito retocados. A grande arte e efeito, nao importa como produzido.4

o Dilt1vio de Leonardo nao foi urn esbo~o no sentido de urn "esbo~o feito ao vivo", mas certamente urn esbo~o no qual e1e se esfor~ou para colocar todos os aspectos da imagem.como ela passava diante de seu olho interior. Isto e responsavel pela profUsao, em sua descri~ao, nao apenas de elementos gdficos e plasticos, mas tambem de elementos sonoros e dramaticos.

Examinemos outro esbo<;o, que contem tada a "palpita<;ao" de nossas primei­ras) imediatas impressoes.

E do Didrio dos Goncourt - - urna nota de pe de pagina, no registro de 18 de setembro de 1867:

Encontro uma descri~ao do Campo de Esportes no caderno de flotas para nossos foturos romances que nao foram realizados, viva!

... Na profunda sombra dos dois cantos da sala, a cintila~ao dos botoes e das copas das espadas dos policiais.

Os membros resplandecentes de, lutadores surgindo em plena luz. -, Olhos desafiadores. - Maos golpeando a, carne ao se agarrarem. - Su~r com cheiro de animal selvagem. - Palidez misturada a bigodes louros. - Carne machucada se. avermelhando. - Dorsos suando como as paredes de pedra de urn banho a vapor.­Avan,ando, arrasrando-se de joelhos. - Girando sobre as proprias cabe,as erc. etc.5

A cena. nos atinge atraves de uma combina~o de bern escolhidos "primeiros pianos", e pela imagem incomumente tangfvel que surge de sua justaposi~ao. Mas a que e mais notavel em tudo isso? E que, nestas poucas linhas descritivas) os diferentes planas - os "elementos de montagem" - atingem literalmente todos os sentidos - exceto, talvez, 0 paladar, que, porem, esta presente de forma implfcita:

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54 o sentido do filme

1. 0 seinido do tato (dorsos suando como as paredes de pedra de urn banho a,vapor) 2. 0 semido do o/foto (suor com cheiro de animal selvagem) 3. 0 sentido da visao, incluindo

/uz (a profunda sombra e 05 resplandecentes membros dos lutadores surgindo em plena luz; as haroes e copas das espadas dos policiais na sombra profunda) e cor {palidez misturada a bigodes touros, carne machucada se avermeihando}

4. 0 seneido da audifao (maos golpe.ndo a carne) 5. 0 seneido do movimento (avan,.ndo de joelhos. girando sobre as proprias cabe,as) 6. Pura emofao. ou drama (olhos des.fi.dores)

Incontaveis exemplos deste tipo poderiam ser citados. mas todos ilustrariam. num grau maior ou menor, a tese apresentada acima, a saber:

Nao h:i diferen~a fundamental quanta as abordagens dos problemas da mon­tagem puramente visual e da montagem que liga diferentes esferas dos sentidos -particularmente a imagem visual it imagem sonora - - no processo de cri.~o de

~ uma imagem tinica, unificadora, sonora-visual. r=-=-- Como urn principia. isto era conhecido par n6s desde 1 8 !luanda Pudov­

kin, Alexan rove ell anc;amos nossa "Dec ara 0 so re 0 cinema 5000ro.6

Mas urn prlnc pIa nao e mais do que urn principia. enquanto nossa tarefa atual e urgente e encontrar a correta abordagem deste novo tipo de montagem.

Minha busca desta abordagem esteve intimamente ligada a produ~ao de Alexander Nevsky. E este novo tipo de montagem. associado a este filme. eu chamei de:

montagem vertical Quais as origens deste termo - e par, que este termo em particular?

Todos estao familiarizados com a aspecto de uma partitura orquestral. Ha varias pautas. cada uma contendo a parte de urn instrumento au de urn grupo de instru­mentos afins. Cada, parte e desenvolvida horizontalmente. Mas a estrutura vertical nao desempenha urn papel menos importante. interligando todos as elementos da orquestra dentro de cada unidade de tempo determinado. Atraves da progressao da linha vertical. que permeia toda a orquestra. e entrela~do horizontalmente. se desenvolve a movimento musical complexo e harm<'>nico de coda a orquestra.

Quando passamos desta imagem da partirura orquestral para a da partitura audio-visual, verificamos ser necessaria adicionar urn novo item as partes instru­mentais: este novo item e uma "pauti' de imagens visuais, que se sucedem e que correspondem, de acordo com suas pr6prias leis, ao movimento da musica - e

vice-versa. Essa correspondencia. ou rela~o. poderia descrever de igual modo 0 que

ocorre se substituirmos a imagem da partitura orquestral pela estrutura de monta­gem do cinema mudo.

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$incronizas:ao dos sentidos 55

:?ara isso) terernos de extrair de nossa experiencia do cinema mudo urn exem­plo de montagem polifonica, na qual urn plano e ligado ao outro nao apenas atraves de uma indica~ao - de movimento, valores de ilumin~o, pausa na exposi~o do enredo) ou algo semelhante -, mas atraves de urn avanfo simultaneo de uma serie multi pia de linhas, cada qual mantendo urn curso de composi~o independente e cada qual contribuindo para 0 curso de composi~ao total da sequencia.

Urn exemplo como este pode ser encontrado na estrutura de montagem da "seqi.iencia da procissao" de 0 velho e 0 novo.

Nesta sequencia, as varias linhas interdependentes virtualmente parecem uma bola de fios multicoloridos, com as linhas se interligando digando toda a sequencia de pianos.

Estas foram as linhas da sequencia:

1. A linha do calor, crescendo de plano a plano. 2. A linha de primeiros planas variados, crescendo em intensidade p!astica. 3. A linha do crescente extase, mostrada atraves do conteudo dramatico dos primeiros

pIanos. 4. A linha das "vozes" das mulheres (rostos das cantoras). 5. A linha das "vozes" dos homens (rostas dos cantares). 6. A linha dos que se ajoelham diante dos leones que passaro (aumentando 0 dtmo).

Esta conrracorrente deu movirnento a uma corrente contraria maior. que foi tecida atraves do terna original- dos adoradores de leones. cruzes e bandeiras.

7. A linha do restejamento, unindo ambas as correntes ao rnovimento geral da seqUencia. "do ceu ao chao". Dos radiantes pin~kulos das cruzes e bandeiras contra o ceu ate as figuras proscradas batendo com a cabec;a no chao. Esce Cerna foi anunciado na abercura cia sequencia par urn plano "chave": urna rapida panorami­Ca baixando da cruz do carnpanario resplandecence no ceu para a base da igreja de onde a procissao se mOVe.

o curso geral da montagem foi urn entrela~amento ininterrupto dos diversos temas com urn movimento unificado. Cada unidade de montagem teve uma dupla responsabilidade - construir a linha total) assim como continuar 0 movimento dentro de cada um dos temas contribuintes.

Ocasionalmente uma unidade de montagem conteria todas as linhas, e algu­mas vezes apenas uma all duasJ excluindo as outras linhas par urn momento; algumas vezes urn dos temas dava urn passo para tras, necessario apenas para tornar mais efetivo seus dois passos para a frente, enquanto os outros temas prosseguiam em quantidades iguais, e assim por diante. Mas 0 valor de uma unidade de monta­gem era determinado nao apenas por um aspecIO, mas sempre pela sirie total de aspectos, antes que seu lugar na sequencia fosse fixado.

Uma unidade satisfat6ria em sua intensidade para a linha do calor ficaria deslocado no "coro" particular no qual cairia se medido apenas por sua intensidade.

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56 o sentido do filme

Enquanto as dimensoes de urn rasto em primeiro lana adem ca em urn lugar, a expressiio do rosto ficatia melhor em outro ugar da seqUencia. A dificuldade este trabaIho nao deveria surpreender ninguem, porque 0 processo e exaramente identi­co 11 prepara,ao da mais despretensiosa orquestra~ao. Sua principal dificuldade foi, e claro, 0 fato de a trabalho estar sendo feito com 0 material do cinema, muito menos f1exfvel, e de a quanridade de varia~ao ser limitada pelas exigencias desta seqiUncia particular:

Par outro lado, deveinos ter em mente que esta estrutura polifonica feita de muitas linhas independentes adquire sua forma final nao apenas a partir do plano para a qual foi determinada previamente. Esta forma final depende em igual medida do carater da seqUencia do filme (ou filme completo) como urn complexo - um complexo composto de tiras de filme contendo imagens fltogrdficas.

Foi exatamente este ripo de. "colagem", alem de tudo complicada. (au talvez simplificada?) por outra linha - - a trilha sonora -- ., que tentamos obter em Alexander Nevsky, especial mente na seqUencia dos cavaleiros alemaes que aracavam avan~ando no gelo. Aqui as linhas da tonalidade do ceu -_. nebuloso ou lim po, do ritmo acelerado dos cavaleiros, de sua direriio, do corte para mis e para a ftente dos russos para as cavaleiros, dos rosros em primeiro plano e dos pIanos de-conjunto, a estrutura tonal da musica, sellS temas, se!ls ritmos, seus tempi etc. - criaram uma tarefa nao menos diffcil do que a da seqUencia muda acima. Muiras horas foram gastas para fundir estes elementos num todo orgilnico.

Naturalmente e utit 0 fato de, sem contar com as elementos individuais, a

estrutura polifonica obter seu efeito total attaVes da sensariio de combinariio de totlas as peras como um todo. Esta "fisionomia" da seqUencia acabada e uma soma dos aspectos individuais e da semariio geral produzidos pela seqUencia. Por ocasiao da estteia de 0 velho eo novo escrevi sabre esta qualidade da montagem polifonica em rela~o ao "futuroU cinema sonorD.

Ao combinar a ffitisica com a seqUencia, esta semariio geral e urn fator decisivo, porque esta diretamente ligada a percepriio da imagem da musica assim como- dos quadros. lsto requer· constantes cone¢es e ajustamentos dos aspectos individuais para preservar a importante efeito geral.

Par fazermo m diagrama do que ocone na montagem vertical, devemos visualiza-Ia como duas linhas, ten a em mente ue cada uma essas In as re re--

7enta todo um complexo ;;-;;;;;; partitura e muitas vozes. A busca da conesponden­cia cleve aearrer a partir da intens:ao de combinar quadro e musica com a "imagem" geral, complexa, produzida pelo todo.

o Diagrama 2 revela 0 novo fator "vertical" da intercorrespondenda, q';!,e surge no momenta em que as unidades da mantagem sonora-visual sao conectadas.

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Sir.cronizas:ao dos sentidos 57

Diagrama 1

A B c Diagrama2

Do ponto de vista da estrutura da montagem, nao mais temos uma simples sucessao horizontal de quadros, mas uma nova "sllperestrutura' e erigida vertical­mente sobre a estrutura horizontal do quadro. Unidade a unidade, estas novas faixas da "superestrlltura' diftrem em comprimento das da estrutura do qlladro, mas, desnecess:lrio dizer, elas sao iguais no comprimento total. As unidades sonoras nao se encaixam nas unidades em ordem seqUencial, mas em ordem simultanea.

E interessante notar que, quanto ao princlpio, essas rela¢es sonoro-visuais nao diferem das rela~i5es dentro da musica, nem diferem das rela~i5es dentro da estrutu­ra da montagem do cinema mudo.

Colocando de lado, no momento, nossa discussao sobre relas:6es ffiusicais, analisemos primeiro a solu~o para a questao da correspondencia na montagem do cinema mudo. Aqui 0 efeito vern nao da simples seqiiencia das tiras de filme, mas de sua simultaneidade, que resulta da impressao derivada de uma tira mentalmente sobreposta a tira seguinte. A tecnica da "dupla exposi~o" apenas materializou.este fenomeno b:lsico da percep~ao cinematognifica. Este fenomeno existe nos mais altos niveis da estrutura cinematogr;Hica, assim como no limiar da ilusao cinemato­grifica, porque a "persistencia de visao" de urn fotograma sobre 0 fotograma seguinte da tira do filme e que cria a ilusao do movimento cinematogrifico.

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58 o sentido do filme

Veremos que uma superposi~o semelhante ocorre ate no estdgio superior do desen­volvimento da montagem - a montagem audiovisual. A imagem em "dupla exposic;ao" e uma caracterfstica tao inerente a montagem audiovisual quanta a todos os outros fenomenos cinematogr:ificos.

Muito antes de ate mesma sonharmos com 0 som, recorri a esta t<knica particular quando quis criar 0 efeito de som e musica atrav':s de meios puramente plasticos:

... eWa experiencias nesta direc;ao. Ha uma seqUencia curta mostrando uma assembleia de grevisras com a aparencia de urn passeio casual com urn acordeao.

Esta seqUencia termina com urn plano onde tentamos eriar- urn efeito sonoro atraves de meios puramente visuais.

As duas trilhas do futuro - visual e sonora - - eram, neste caso, trllhas visuals, uma dupla-exposic;ao. Na primeira exposi'tao, urn lago podia sec visto ao pe de uma montanha, pda qual subia, em direc;ao a camera, uma fila de artistas ambulances com seu acordeao. A segunda exposic;ao era 0 imenso acordeao em primeiro plano, en­chendo toda a tela com seu fole em movimento e suas teclas muito bri!hantes. Este movimento, visto de diferentes angulos, sobre a outra exposi'iao cont!nua, criou a sensa'flio de urn movimento mel6dico, que uniu. toda a seqUencia?

as diagramas 1 e 2 mostram como a jun~o compositiva de urn filme mudo (l) e diferente da de urn filme sonoro (2). Parece 0 diagrama de uma junfiio porque a montagem e na realidade urn amplo movimento temdtico em desenvolvimento. progredindo atraves de urn diagrama continuo de jun~es individuais.

A estrutura de composi<;'io dos movimentos relacionados como indicado pelo Diagrama 2 (AI - BI - .,CI) e familiar na m6sica.

E as leis do movimento de composi~ao (A- B·- c) evoluiram na pritica do cinema mudo.

a novo problema frente ao cinema audiovisual e encontrar urn sistema para coordenar A - . AI,AI BI CI,B - BI, C· - CI etc. - . urn sistema que determinara os complexos movimentos plasticos e sonoros de urn temaatraves de todas as diferen­tes correspondencias deA-AI· - BI- B ·-C- CI etc. (ver diagrama na pagina 57).

Nosso atual problema e encontrar a chave para estas recem-descobertas jun­

foes verucais. A - - AI. B - BI. aprendendo a reuni-las e separi-las de modo tao rftmico como e agora possivel pelos altamente desenvolvidos meios da musica. ou pelos altamente desenvolvidos meios da montagem visual. Ambos estes instrumen­tos da atividade cultural hi muito aprenderam a !idar com os comprimentos de AI. Bl etc., com total seguranc;a.

Isto nos leva it questao basica de encontrar os meios para se estabelecerem as prOp01foel entre imagem e lorn, e para aperfeic;oar os compassos, n!guas, instrumen-

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Sincronizas::ao dos sentidos S9

tos e metodos que tornado isso viavel. Esta 0 na realidade uma questao de encon­trar uma sincronizarao interna entre a imagem tang{vel e os sons percebidos de modo diferente. Ja dominamos 0 problema da sincroniza~o fisica, ao ponto de detectar­mos a discrepancia, em urn unico quadro, entre !:ibios e fala!

--- Mas esta coordena~o vai muito alom da sincroniza~ao externa, que combina a bota com seu rangido - estamos falando de uma sincroniza~ao interna "oculta", na qual os elementos p!:isticos e tonais encontram total fusao.

Para ligar tais elementos, encontramos uma linguagem natural comum a ambos - 0 movimento. Plekhanov disse que todos os fen6menos, na analise final, podem ser reduzidos a movimento. 0 movimento revelara todos os substratos da sincronizacrao incerna que queremos escabelecer. 0 movimenco nos moscrara de uma forma concreta.o significado e 0 metodo do processo de fusao. Passemos dos Cemas extedores e descritivos para temas de urn carater interior e mais prof undo.

o papel do movimento neste problema da. sincroniza~ao 0 auto-evidente. Examinemos varias abordagens diferentes da sincroniza~ao na ordem l6gica. E 0

ABC de todo tocnico de som, mas seu exame 0 essencial. A primeira sera na esfera da sincroniza~ao propriamente dita, fora do campo

da. preocupa~ao artlstica - uma sincroniza~ao puramente foctual: a filmagem sonora de coisas naturais (urn sapo coaxando, os acordes lamentosos de uma harpa quebrada, 0 rangido de rodas de carro~a no pavimento).

Neste caso, a arte s6 comecra no momento da sincronizacrao em que a conexao natural entre 0 objeto e seu som nao 0 apenas gravada, mas ditada pelas exigencias da obra expressiva em desenvolvimento.

Nas formas mais rudimentares de expressao, ambos os elementos (a imagem e seu som) serao controlados por uma identidade de ritmo, de acordo com 0 conteu­do da cena. Este 0 0 caso mais simples, mais facil e mais freqiiente de montagem audiovisual, que consiste em pIanos corrados e montados com 0 ritmo da musica da trilha sonora paralela. Se existe movimento nesse plano, nao tern conseqiiencias serias. Se 0 movimento esta presente, a unica exigencia e que ele se adapte ao dtmo fixado pela trilha paralela.

Porem, e evidente que, mesmo neste nivel comparativamente baixo de sincro­niza~ao, ha uma possibilidade de se criarem composi~6es interessantes e expressivas.

A partir destes casos mais simples -simples coincidencia "metriea" de caden­cia ("escansao" cinematografica) -, 0 posslvel organizar uma ampla variedade de combinac;:ao sincopadas e urn "contraponto" purarnente rftmico na execuc;ao con­trolada de ritmos livres, pIanos de diversas distancias, temas repetidos e repercuti­dos, e assim por diante.

Que passo se segue a este segundo nlvel de movimento superficial sincroniza­do? Possivelmente urn que nos capacitara mostrar nao apenas movirnento rftmico, mas tam bern movimento melOdico.

!..anz falou corretamente sobre a melodia quando disse:

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60 o sentido do filme

... no sentido exato da palavra. nao se "ouve" uma melodia. Somas capazes au incapazes de segui.la. 0 que significa que [emos au nao a capacidade de organizar as tons numa unidade superior ... 8

Entre todos os meios plasticos it nossa disposi~ao, certamente podemos en­contrar. aquele cujo movimento se harmoniza nao apenas com 0 movimento do padrao rltmico, mas tambem com 0 movimento da linha mel6dica. Ji temos alguma ideia sobre 0 que estes meios devem sec, mas, como estamo5 a ponto de !idar com esta questao em detalhe, mencionaremos neste momenta que podemos assu­mir que estes elementos provavelmente serao retirados basicamente de urn elemen­to "linear" das artes plasticas.

"A unidade superior" na qual somos capazes de organizar os tons independentes da escala de sons, pode ser visualizada como uma linha que os une atraves do movimento. As mudan;as tonais nesta linha tambem podem ser caracterizadas como movimento, nao mais como urn movimento entremescladoJ mas como urn movimento que vibra, cujas caracterlsticas podemos perceber como sons de diapa­sao e tom variaclos.

Qual 0 demento visual que eeoa este novo tipo de "movimento" introduzido em nossa discussao pelos tons? Obviamente sera urn elemento que tam bern se movimenta por vibra¢es (apesar de ter uma forma~o fisica diferente), e que e tam bern caracterizado pelos tons. Este equivalente visual e a cor. (Numa analogia rapida, diapasao pode corresponder ao jogo de fur, e tonalidade, a cor.)

Fazendo uma pausa para recapitular, demonstramos que a sincroniza~o pode ser "natural", metrica, rltmica, mel6dica e tonal.

Ao se combinar imagem e som, pode-se chegar it sincroniza~ao que preenche todas essas potencialidades (apesar de isto muito raramente ocorrer), ou ela pode sec construicla com base numa combina<.;ao de elementos nao afins. sem ten tar ignorar a dissonancia resultante entre as sons e as imagens. Isto ocorre freqUente­mente. Quando ocorrer, costuma-se explicar que as imagens "existem par si mes-

)J ,'" • • I) • d . d mas , que a muslca existe par SI mesma : sam e Imagem, ca a urn corre In e-pendentemente, sem se unirem num todo organico. E importante ter em mente que nossa concep~ao de sincroniza~o nao presume coincidencia. Nessa concep~o existem plenas possibilidades para a execu~ao de ambos, "movimentos" correspon­dentes e nao-correspondentes, mas em qualquer dos casos a rela~o deve ser contro­lada composicionalmente. E evidente que qualquer uma dessas abordagens de sin­croniza<;ffo pode servir Como 0 fator "principal", determinante da estruturaJ de­pendendo da necessidade. Algumas cenas requerem ritmo como urn fator determi­nante, outras sao controladas pelo tom, e assirn par diante.

Mas voltemos as varias formas ou, mais precisamente~ aos varios campos da sincronizacrao.

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Sincroniza~ao dos sentidos 61

Observamos que essas varias formas coincidem com as varias formas da montagem do cinema mudo estabelecidas em 1928-29, e que mais tarde inclufmos no programa de ensino de dire~ao cinematogrffica.9

Na epoca, estes "termos" devem ter parecido, a alguns de meus colegas, desnecessariamente pedantes ou analogias jocosas com outros meios. Mas mesmo entao saIientamos a importancia de uma abordagem como esta para os "futuros" problemas do cinema sonoro. Agora isto e 6bvia e concretamente uma parte sensivel de nossa experiencia com relac;6es audiovisuais.

Estas formas inclufam a montagem "atonal"·. Este tipo de sincroniza~ao foi mencionado acima com rela~ao a 0 velho e 0 novo. ?or este termo, talvez nao totalmente exato, queremos dizer uma complexa polifonia, e uma percep~ao das partes (tanto da musica quanta da imagem) como um todo. Esta totalidade torna-se o fatar de percep~ao que sintetiza a imagem original para cuja revela~o final toda a nossa atividade foi dirigida.

Isto nos traz a questao b;\sica e primaria que diz respeito a definitiva sineroni­zarao interna - aquela entre a imagem eo significado dos fragmentos.

o circuito foi completado. Pela mesma f6rmula que une a significado de todo a fragmento (seja todo a filme au uma unica sequencia) e a selerao meticulosa, hdbil dos fragmentos, surge a imagem do tema, fiel a seu eontetldo. Atraves desta fusao, e atraves da fusao da l6gica do tema do filme com a forma superior na qual distribui este tema, aparece a total revelarao do significado do filme.

Uma premissa como esta naturalmente serve como uma Fonte e urn ponto de partida para toda a serie de variadas abordagens da sincroniza~ao. Porque cada tipo "diferente" de sincroniza~o e englobado pelo todo organico, e personifica a ima­gem basica atraves de seus pr6prios limites especificamente definidos.

Comecemos nossa investigac;ao no campo da cor, nao apenas porque a cor e 0

problema mais imediato e estimulante do cinema hoje, mas principalmente porque a cor foi muito (e ainda e) usada para decidir a questao da eorrespondencia,piettfriea e sonora, seja absoluta ou relativa - e como uma indica~ao de emoroes humanas espedficas. Isto certamente sera de extrema importancia para os problemas e prin­dpios da imagem audiovisual. 0 desenvolvimento mais grafico e eficaz de urn metodo de investiga~ao estaria no campo da sineronizarao mel Mica devido a conve­niencia da an:ilise grffica e ao nosso campo b;\sico de reprodu~ao em preto e branco.

Assim, primeiro passamos para a questao de associar a musica a COf, 0 que nos levara, por seu turno, a considerar a forma de montagem que pode ser chamada de cromofonica, ou montagem colorida-sonora.

• Ver "Metodos de montagem" em A fonna do fi/me; ver tambem a nota que explica a tradu~ao da expressao usada por Eisenstein em ingles. "overtonal". por aconal.

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62 o sencido do filme

Remover as barreiras entre a visao e 0 sam, entre 0 mundo vista e 0 mundo ouvido! Realizar uma unidade e uma rela~ao harmoniosa entre estas duas esferas opostas. Que tarefa absorvente! Os gregos, Dideror, Wagner e Scriabin· . quem nao sonhou com este ideal? H:I alguem que nao tenha feito nenhuma tentativa de concretizar este sonho? Nossa pesquisa sobre sonhos nao pode come~ aqui, porem.

Nossa, pesquisa deve nos levar a algum metodo de fusao do som, 11 visao, a alguma investiga~ao das indica¢es preliminares que nos levem em dire~o a esta fusao.

Come~remos observando as formas, tomadas por estes sonhos, de uma fusao de imagem e som que perturbaram a humanidade por tanto tempo. A cor sempre recebeu mais do que uma parte media desses sonhos.

o primeiro exemplo, nao tao antigo, e tirado de uma epoca nao mais longln­qua do que, a fronteira entre os seculos XVIIl e XIX. Mas e urn exemplo muito grafico. Primeiro damos vez a Karl von Eckartshausen, autor de Revelaroes da mdgica a partir de experiencias testadas das ciencias filos&ficas ocultas e segredos escon­didos da natureza: 10

Ha muito [ento dererminar a harmonia de rodas as impress5es sensorials, para torni·la evidente e perceptive!.

Ate agora desenvolvi a ffiUska ocular inventada por Perc Castel. : I Construf esta maquina com toda a perfeilj3o, de modo que codos as acoedes de cor

passam sec produzidos exatamente COffiO acordes canais. Eis a desCrilj30 desre instru~ mento.

Peguei videos cillndricos, com ceeca de uma po!egada de diametro, de tamanhos iguais, e as enchi com cores qufmicas diluldas. Dispus estes videos como as teclas de um cravo) colocando os tons da cor como as notas. Atras desses vidros coloquei pequenos 16bulos de bronze, que cohrem os vidros de modo que nenhuma cor possa ser vista. Esses 16bulos faram ligados por fios ao tedado do cravo, de modo que 0

16bulo e levantado quando uma tecla e batida, tornando a cor visivel. Exatamente como uma nota se esvai quando 0 dedo e. retirado de uma tecla, do mesmo modo a cor desaparece quando 0 16hulo de metal cai rapidamente par causa de seu peso, cohrindo a cor. 0 cravo e iluminado por tras com velas de cera. A beleza das cores e indescridvel, superando as mais esplendidas j6ias. Nem se pode expressar a impressao visual despertada pelos varios acordes de cor ...

UMA TEORIA DE MUSICA OCULAR

Exatamente como os tons da mdsica devem se harmonizar com as palavras do dramatur­go em urn drama musical, do mesmo modo as coces devem corresponder as palavras.

DOll urn exemplo para tornar isto mais compreenslvel. Escrevi urn pequeno poema, que acompanho com minha musica colorida. E!e diz:

PALAVRAS: Tristemente ela vagava, a mais adoravel das donzelas ... MUS!CA: As notas de uma flauta, plangentes.

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Sincronizas:ao dos sentidos

COR: Oliva, misturado com rosa e branco. PAlAVRAS: .•. em planlcies floridas-· MUSlCA: Alegre, tons crescentes. COR: Verde, misturado com violeta e amarelo-bonino PAlAVRAS: Cantando uma cans;ao, feliz como uma cotovia.

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MLTSlCA: Notas suaves, crescendo e gentilmente decrescendo em rapida sucessao. COR: Azul marinho listrado com escarlate e verde-amarelado. PALAVRAS: E Deus, no templo da crias;ao, a ouve. MUSICA: Majestos'l, grandiosa. COR: Uma mistura das cores mais esplendidas - azuL vermelho e verde-,

glorificada peIo amareIo do amanhecer e purpura -- dissolvendo-se,em verde claro e amarelo palido.

PAlAVRAS: 0 sol nasce sobre as montanhas ... MLTSICA: Urn baixo majestoso, cujos tons medIos elevam-se imperceptivelmente! COR: Amarelos brilhantes, misturados com a cor do amanhecer- dissolvendo-se

em verde e amarelo esbranquis;ado. PALAVRAS: E brilha sabre a violeta no vale ... MUSlCA: tons decrescendo suavemente. COR: Violeta, alternando com verdes variados. 1sto deveria ser suficiente para provar que as cores tambem tern a poder de

expressar as emos;oes da alma ...

Se esca cica~ao soa muito pouco familiar, escolhamos em seguida um dos mais conhecidos exemplos - 0 famoso soneto "colarido" de Rimbaud, Voyelles, cujo esquema de correspondencia cor-som perturbou muitos cerebros:

Voyelles

A nair, E blanc_ I rouge, U vert, 0 bleu: voyelles, Je dirai quelque jour vas naissances latentes: A, nair corset velu des mouches eclatantes Qui bombinent autour des puanteurs cruelles,

Gaffes d' ombre: E, candeur des vapeurs et des tentes, Lances des glaciers fiers, rois blancs, frisson d'ombellesj I, pourpres, sang crache, rire des levres belles Dans la colere au les ivresses penitentes;

U, cycles, vibrements divins des mers virides, Paix des paris semes d' animaux, paix des rides Que l'alchimie imprime aux grands fronts studieux; 0, supreme Clairon plein des strideurs etranges, Silences traverses des Mondes et des Anges: o l'Omega, rayon violet de 5es Yeux!"

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64 o sentido do filme

o esquema de Rimbaud ocasionalmente se aproxima do de Rene Ghil,12 apesar de na maior parte as dais divergirem daramente:

au, OU, Qui, iou. aui 0.0,10, io a, a, a"i, ai eu, eu, ieu. cui, cui u, ll, IU, uI, ui e, C:, e, ei, e"! ie. ie. hi. 1, i, i. ii

Bruns, nairs a roux Rouges Vermillons Oranges a ors, verts Jaunes. ors, verts Blanes, a azurs pales Bleus. a azurs nairs··

Foi depois que Helmholtz pubJicou os resultados de suas experiencias com a correlac;ao dos timbres das vozes e instrumentos13, que GhiJ "aperfei~oou" seu pr6prio grafico, introduzindo nao apenas consoantes e timbres instrumentais, mas tam bern todo urn caralogo de emo~6es, premissas e hip6teses que deveriam manter uma correspondencia absoluta.

Numa anilise do romantismo, Max Deutschbein concluiu que "a slntese das varias sensa¢es" e urn dos indlcios fundamentais de uma obra de arte romantica. 14

Em total harmonia com esta defini~ao esra 0 grafico de correspondencia entre vogais e cores determinado por A.W. Schlegel (!767-1845):

A representa 0 vermelho claro, luminoso (das rote lichthelle A), e significa Juventude. Arnizade e Esplendor. I e azul-celeste, simbolizando 0 Arnor e a Sinceridade. 0 e purpura; U e violeta. e 00 e enfeitado de azul-marinho.15

* Em f~a-nces ~~ original. Texto do autografo dado a Emile Blemont. conservado na Maison de fa Poesie e atualmente pane do acecvo da Bibliotheque Municipale de Charleville:

Vogais A negro, E branco, I vermelho, U verde. 0 azul, vogais: Qualquer dia ainda digo de que fomes brotais: A, negro corpete felpuda de mascas cefulgentes Que esvoa~am em tarna de fedaces crueis, Golf os de sombca; E, alvura das nevoas difusas e das dosseis. Lan~ das geleiras aldvas. brancas rainhas. medusas frementes; J, purpuras. sangue escarrada. risa daqueles labias Beios na calera. au nos extases peniremes; U. cielas. vibrat;oes divinas das mares virentes, Paz. das pastos pootilhados de animais. e paz, nos s:ibias. Das rugas que a alquimia imprime as frandes tamanhas; 0, supremo clarim, cheio de esrridencias estranhas. Silencias trespassados de Anjos e de Mundos: 0-0 Omega. luz viaieta de sellS ollias profundos! (Tradufao de Eduardo Francisco Alva) ** Em frances no original: Martons. preros ate vinhos/vermelhas/vermelhoes/Aiaranjadas ate dourados, verdes/Arnarelos. dourados, verdes/Brancos. ate azuis claroslAzuis. ate azuis escuros.

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Si!1croniza~ao dos sentidos 65

Posteriormente, neste seeulo, outro romandeD deu muita aten<;ao a este pro­blema. Lafcadio Hearn, porem, nao tenta fazer qualquer "classifica~ao", e ate critica o abandono de uma abordagem espontanea no que se refere a um sistema como este, como podemos ver em sua carta de 14 de junho de 1893,:6 na qual desaprova o recentemente publicado In the Key of Blue, de Addington Symonds. .

Mas nessa mesma carta, escrita a seu amigo, Basil Hall Chamberlain, de diz:

... voce imediatamente ilustrou os valores para mim. Quando escreveu sabre "0

profundo baixo" daquele verde, pude ver, sentir, cheirar, provar, rnastigar a folha; era bastante amarga, e densa, e fracamente perfumada ... Tenho pensado sabre cores sopranos, altos, contraltos, tenores e baritonos ...

Alguns dias antes de explodira num acesso apaixonado por causadisso:

Reconhecendo a feiura das palavras, porem, voce tambern deve reconhecer sua beleza fision6mica ... Para mim as pa!avras tern cor, forma, carater; elas tern rostos, partes, modos, gestos; elas tern temperamentos, humores, excentricidades -- elas tern rnati­zes, tons, personalidades ... !7

Mais tarde, num ataque aos editores de revistas que nao concordam com um estilo como este, diz que des afirmam:

"Os leitores nao sentem como voces no que diz respeito as palavras. Nao se pode supor que eles saibam que voces pensam que a letra A e rosa-carmesim, e a letra E azul-ceu palido. Nao se pode supor que eles saibam que voces acham que KH usa uma barba e urn turbante, que a inicial X e urn grego velho com rugas ... "

Aqui Hearn d;( sua resposta a estas crlticas:

Porque as pessoas nao podem ver a cor das palavras, os matizes <las palavras, os secretos movimentos fanrasmag6ricos das pa!avras:

Porque elas nao podem ouvir a sussurro das pa!avras, 0 murrnurio da procissao de letras, as f1~utas sonhadoras e os tam bores sonhadores que sao suave e estranhamente tocacios pelas palavras:

- Porque elas nao podem perceber 0 amuo cias palavras, 0 franzir das sobrance­lhas das palavras e a irritac;ao das palavras, 0 lamento, a raiva, 0 clamor e a revolta das palavras:

- Porque elas sao insensfveis a fosforescencia das palavras, a fragrancia das palavras, ao Fedor das palavras, a ternura au a aspereza, a secura ou a. doc;ura das palavras - a intere;a,mbio de va!ores do ouro, prata, latao e cobre das palavras:

- E esta uma razao pela qual nao devernos ten tar faze-las ouvir, ver e sentir? ...

Em cutra parte de fala da variabilidade das pa/avras:

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66 o sentido do filme

Ha muito tempo disse que as palavras sao como camale6es, com seu pader de mudar de cor de acordo com a posi~ao.18

Este requinte de Hearn nao e acidental. Pode ser parcialmente explicado por sua miopia, que intensificou sua perceps:ao destas questaes. Uma exp1icas:ao mais satisfat6ria esra no longo tempo em que morou no Japao, onde sua faculdade de encontrar correspond~ncias audiovisuais foi desenvolvida com especial intensidade.

Lafcadio Hearn nos levou ao Oriente, onde rela<;6es audiovisuais nao sao apenas parte do sistema educacional chin~, mas na realidade estao incorporadas ao c6digo legal. Elas derivam dos princfpios de yang e yin, sobre os quais se baseia todo o sistema filos6fico e de visao do mundo dos chineses.19 De acordo com a tradis:ao Sung, esta lei (ho t'ul foi entregue ao mundo na forma de urn diagrama (logo adiante reproduzidol, trazido encharcado do rio pela boca de urn cavalo-dragao.20

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Sincroniza~ao dos ser.tidos 67

Ainda mais interessante do que a correspondencia entre determinados sons e cores e 0 reflexo analogo das tendencias artlsticas de certas "epocas" na estrutura tanto da mUsica quanto da pintura.

Da crescente e interessante literaturaneste campo, mapeada pela primeira vez por WCilillin, escolhemos urn artigo de Rene Guillen' sobre "a era do jazz", II ny a plus de perspective (Nao ha mais perspectival:

Outrora a ciencia da estetica enconrrava conteudo no prindpio dos elementos fundi­dos. Na musica - na linha meJ6dica continua costurada atraves dos aJ:ordes harmo­nicos; na Eterarura - na fusao dos elementos de uma sentenlia atraves de conjunlioes e transilioes; na arre - numa condfluidade de formas pMsticas e estruturas de combinalioes dessas formas.

A esretica moderna e construfda tenco como base e desun!ao dos elementos, aumentando 0 contraste de cada urn deles: repetir;ao de elementos identicos, que serve para forta!ecer a intensidade do contraste ... 21

Urn comentario necessario sobre esta opiniao e,o de que a repeti,ao pode muito bern desempenhar duas fun~6es.

Uma fun~o e facilitar a cria~o de urn todo orginico. Outra fun~ao da repeti~ao cO servir como urn meio para desenvolver a crescente intensidade que Guillere menciona. Nao precisamos procurar longe por exemplos de ambas as fun~6es. Ambos podem ser encontrados em filmes.

A primeira fun~o e encontrada em a~ao em Potemkin ' - na repeti~o de "Irmaos!", que ocorre pela primeira vez no tombadilho antes de os fuzileiros se recusarem a atirar; em seguida, nao como urn letreiro, mas como a seqi.iencia dos barcos a vela que fundem cais e navio, e, finalmente, de novo em forma de letreiro, "Irmaos!", quando a esquadra, permite. que 0 Potemkin passe sem ser atacado.

Alexander Nevsky contem urn exemplo da segunda fun~ao da repeti~ao -crescente intensidade. Em vez de repetir urn mesmo compasso da musica quatro vezes, como escrito na partitura, multipliquei isto por tres, conseguindo doze

repeti¢es exatas. Isto ocorre na seqUencia em que a milfcia camponesa corta a retaguarda da cunha alema. 0 efeito resultante, de crescente excitayao, nunca deixa de conquistar a aprovayao do espectador.

Continuando com 0 artigo de Guillere:

... na forma do jazz, se olharmos para seu demento musical e para seu metodo de composiliao -- . encontramos uma tIpica expressao desta nova estetica.

Seus componentes basicos~ a sincopado eo dominio do ritmo. Isto eliminalinhas suavemente curvas _. rabiscos. frases na forma de urn tufa de cabdo encaracolado, caracterfsticos de Massenet, e codos as arabescos lentos. 0 ritmo e afirmado pelo angulo - extremidade saliente, perfil afiado. Tern uma estrutura rfgida - firme-

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68 o sentido do filme

mente construfd •. Esfor~-se em direc;ao a plasticid.de. 0 j.zz procur. volume de som. volume de, frase. A musica clissica baseou-se em pIanos (nao em volumes) -pIanos ordenados em camadas, pianos colocados urn em cima do Dutro, pianos horizantais e verticais, cciando uma arquitetura de propor'i0es verdadeiramente no­bres: palacios com sacadas. colunatas. escadarias com degraus monumenrais - codas com uma profunda perspectiva. No jazz. codos as elementos sao levados para 0

primeiro plano. Esta e uma lei importance que pade ser enconrrada na pineura, no desenho de cenarios, em filmes. e na poesia deste pedodo. A perspectiva convencio­nal, com seu foeo fIxa e sell ponto de fuga gradual. foi abandonada.

Tanto na aree quanta na literatura, a cria¢o ocorre atraves de varias perspectivas, usadas sirnultanearnente. A otdern do dia e urna slntese complexa_- reunindo vis6es de urn mesmo ohjeto, tomadas tanto de baixo quanto de cima.

A antiga perspectiva nos apresentava conceitos geometricos de objetos - como des s6 podiam ser vistas por urn olho ideal. Nassa perspectiva nos mostra ab;etos como as vemos ambos os olhos - andando despreocupados. Nao mais consrrulmos o mundo visual com urn angulo agudo, convergindo no horizonte. Abrimos este angulo, colocando a representa'iaO contra n6s, sobre n6s, em dire~ao a n6s .•• Fazemos parte deste mundo. Eis por que nao temos medo de usar primeiros pianos nos fiimes: para retratar urn homem como ele algumas vezes e para n6s, fora das propor<;6es naturais, de repente cinqiienra cendmetros afastado de n6sj nao temos medo de usar metafora5, que escapam dos versos de urn poema, ou de.permitir que 0 sam penetran­te de urn trombone se sobressaia na orquestra agressivamente.

Na antiga perspectiva, os planas se comportavam muito como os bastidores de urn palco - recuando num funil em dire~ao a profundidade, onde a vista se firma numa colunata au numa monumental escadaria. De modo semelhante, na musica, os bastidores teatrais formados pelos duplos baixos, as violoncelos e os violinos sao modelados como planas, urn ap6s 0 outra, como as escadas de uma grande avenida. com 0 olha sendo levado para as sacadas em dire~ao ao triunfante irromper das metais. Na literarura, a mesma estrutura dominou 0 milieu - canstruldo com elegantes alamedas de uma arvore para a seguintci cada personagem descrito minu­ciosamente - da cor do seu cabelo ...

Em nossa nova perspectiva, nao ha degraus, nem alamedas. 0 homem entra em seu mdo ambiente- 0 mdo ambiente e visto atraves do homem. Ambos funcionam urn atraves do outro.

Em outras palavras, em nossa nova perspectiva - nao ha perspectiva. Os volumes nao mais sao criados atraves da perspectivaj intensidades diferentes, variadas satura­'ioes de cor agora criam os volumes. 0 volume musical nao mais e criado atraves de pIanos recuados, com urn evidente primeiro plano e recessos apropriados. Seu volu­me agora e criado pelo volume do som. Nao ha mais grandes telas pintadas com som a maneira dos panos de fundo dos cenarios teatrais. 0 jazz e volume. Nao usa vozes como acompanhamento, semelhantes a figura5 contra urn fundo. Tudo trabalha. Cada instrumento faz seu solo enquanto participa do todo. A orquestra perdeu ate suas divisoes impressionistas - com todos os- violinas, par exemplo, tocando ° mesmo tema com notas harmonicas para criar maior riqueza de sons.

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Si!1cronizas:ao dos senddos 69

No jazz, cada homem toea para si mesmo num eonjunto geral. A mesma lei se apliea a arte: 0 fundo e em si rnesmo urn volume.

o trecho acima e interessante por causa da imagem que proporciona de estruturas equivalentes nas artes musical e gdfica, particularmente na arquitetura, apesar de as questaes levantadas aqui dizerem respeito principalmente aos conceitos espacial e proporcional. Porem, temos apenas de dar uma olhada num grupo de pinturas cubistas para nos convencermos de que 0 que ocorre nessas pinturas ja foi ouvido na mtisica jazzCstica.

Esta rela~ao e igualmente evidente na paisagem arquitet6nica - a arquitetura classica tinha a mesma rela~ao com os classicos da c~mposi~o musical que a moderna paisagem urbana com 0 jazz.

Na realidade, pra~as e cidades romanas, os parques e sacadas de Versailles podem ser "prot6tipos" da estrutura da musica.classica.

A moderna cena urbana, especialmente a de uma grande cidade a noite, cO

claramente 0 equivalente plastico do jazz. Particularmente evidente e a caracteristi­ca apontada por Guillere, isro e, a aus€ncia de perspectiva.

Todo 0 senso de perspectiva e de profundidade realista e apagado pelo mar noturno de anuncios luminosos. Perto e longe, pequenas (no primeiro plano) e grandes (no segundo plano), voando nas alturas e apagando-se: correndo e andan­do em drculos, iluminando-se e desaparecendo - estas luzes tendem a abolir todo o senso de espa~o real, que finalmente se dissolve num unico plano de pontos luminosos coloridos e em linhas de neon movendo-se sobre a superficie do ceu prero, de veludo. Era deste modo que as pessoas costumavam pintar estrelas -como pregos resplandecentes pregados no ceu!

Far6is ,dos carros velozes, pontos mais luminosos dos trilhos que somem da vista, reflexos tremeluzentes nas ruas molhadas· . todos espelhados em po~as que destroem nosso senso de dire~ao (onde fica 0 topo? onde fica a base?), complemen­tando a miragem acima com uma miragem abaixo de nos, e, correndo entre esses dais mundos de sinais luminosos, nao mais as vemos como urn simples plano, mas como urn sistema de bastidores de teatro, suspensos no ar, atraves dos quais 0 fluxo noturno das luzes do tdfego flui.

Isto nos lembra urn outro ceu estrdado acima e abaixo, porque os personagens de' :lm conto de Gogol, Uma terrivel vinganra, achavam que 0 mundo flutuava ao longo do Rio Dnieper entre 0 ceu estrelado real acima deles e seu reflexo na agua.

Essas foram as impressaes de pdo menos urn visitante das ruas de Nova York durante a tarde e a noite.22

o artigo de Guillen, causa mais interesse devido a sua descri~o nao apenas da correspond€ncia entre as artes musical e grifica, mas tambem devido a sua apresen-

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70 o sentido do filme

ta~ao da ideia de que essas artes, fundidas, correspondem 11 propria imagem de uma Ipoca e a imagem do processo de raciocinio daqueles vinculados 11 epoca. Este quadro nao nos soa familiar? - com esta "ausencia de perspectiva', que reflete a falta de perspectiva historica na maior parte do mundo de hoje, ou a imagem de uma orquestra onde cada mu.ico esd por sua propria conta, esfor~ndo-se para quebrar este todo inorgi2nico de muitas unidades tomando urn curso independente _. mas ligados num conjunto apenas pela necessidade ftrrea de urn ritmo comum?

E interessante notar que todos os tra~os mencionados por Guillere foram encontrados antes no curso da historia da arte. Toda vez que estes tra~s reaparecem na historia, considera-se que eles aspiram a um todo unificado, uma unidade supe­rior. E apenas em epocas de decadencia das artes que este movimento centrlpeto muda para urn movimento centrifUgo, separando todas as tendencias unificadoras­tendencias incompatfveis com uma epoca que coloca uma enfase exagerada no individualismo. Lembramos de Nietzsche:

... 0 que e caracterCstico, em qualquer dccadencia literdria? E que a vida nao esd mais no todo. A palavra levanta e salta para fora da senten<;a, a sentenc;a se alonga muito e obscurece. 0 significado da pagina, a pagina adquire vida a custa do conjuoto - 0

conjunto nao mais e urn todo ... 0 todo deixou de viver completamentej e composeo, somado, artificial, urn produco nao-natural. 23

o aspecto fundamental e caracterfstico reside principalmente nisto e nao nas particularidades isoladas. Nao sao os baixos-relevos eglpcios obras validas, apesar de terem sido feitos sem urn conhecimento de perspectiva linear? DUrer e Leonardo nao usam simult:1nea e deliberadamente varias perspectivas e varios pontos de fuga quando convem a seus propositos?24 E em seu quadro de Giovanni Arnolfini e sua mulher, ;an van Eyck usou claramente tres pontos de fuga. Em seu caso, este deve ter sido urn metodo inconsciente, mas que maravilhosa.intemidade de profondidade este quadro ganhou com isso!

. plao e totalmente legltimo para as pinturas de paisagem chinesas evitar levar o olho a uma Linica profundidade, ampliando a visao ao lange de todo 0 panorama, de modo que todas as suas montanhas e cascatas parecem estar se movendo em nossa direc;ao?

As gravuras japonesas nao usaram 0 primeiro plano em primeirissimo plano, e caracterfsticas efetivamente desproporcionais dos rostos em primeirissimo plano?

Pode-se objeta( que nossa tarcfa nao consiste em revelar as tendencias de epocas anteriores em dire<;lio 11 unidade, mas apenas em demonstrar urn diapasao menos importante e unicamente suplementar de nossa comparas:ao com uma epoca decadente.

Onde, por exemplo, podemos encontrar tambem no passado urn tal grau de simultaneidade de vis6es de cima e de baixo, de pIanos verticais e horizontais

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Sincronizafao dos sen tid os 71

misturados, como encontramos quando analisamos as exemplos de "sfntese com­plexau acima?

as modernos cenarios teatrais "simult:1neos" tern seus ancestrais, tambem, tal como os desenhados por Yakulov,25 na "tradi~ao cubista", que junta locais de a~ao totalmente dCspares, insere interiores sem exteriores. Seus prot6tipos identicos podem ser encontrados na tecnica teatral dos seculos XVI e XVII, onde podemos ver desenhos de cenarios unicos contendo urn deserto, urn palacio, a caverna de urn eremita, a sala do trona de urn rei, 0 quarto de vestir de uma rainha, urn tumulo e varios ceus - tudo pelo pre~o de urn! Tal ingenuidade imediatamente lembra algumas obras de Picasso, tanto em seu perfodo cubista quanto nos perfodos mais recentes, onde urn rosto ou uma figura sao apresentados de multiplos pontos de vista, e em varios estagios de uma ayao.

A gravura em cobre no frontispicio da biografia espanhola, do seculo xv:r, de San Juan de la Cruz, mostra 0 santo no momento em que contempla 0 milagroso aparecimento do crucifixo. Com efeito, surpreendente, consta da mesma gravura uma segunda visao em perspectiva do mesmo crucifixo - como visto pelo santo.

Se esses exemplos sao especiais demais, entao passemos para EI Greco. Ele nos proporciona urn exemplo do ponto de vist:l do artista saltando furiosamente para frente e para mis, fixando na mesma tela detalhes de uma cidade vistos nao apenas a partir de varios pontos fora da cidade, mas ate de varias ruas, alamedas e pra~as!

":"udo isto e feito com a plena consciencia de seu direito de trabalhar deste modo, e ele ate registrou, num mapa inserido na paisagem com este prop6sito, uma descri~o deste procedimento. Provavelmente tomou essa providencia para evitar qualquer incompreensao por parte das pessoas que conheciam a cidade de Toledo muito bern e podiam considerar sua obta apenas como uma forma de "esquerdis­rna" exd:ntrico.

o quadro e Virta c planta dc Tolcdo, terminado em algum momento entre 1604 e 1614 e atualmente no Museu EI Greco de Toledo. Contem uma vista geral de Toledo feita a uma distincia de aproximadamente urn quilometro a leste. A direita urn jovem mostra 0 mapa da cidade. Neste mapa, EI Greco instruiu 0 filho a escrever estas palavras:

Foi necessario colocar 0 Hospital de Don Juan Tavera na forma de uma maquete [aquela na nuvem] porque nao apenas chegava a cobrir 0 portao Visagra, mas seu domo au cupula subia de tal modo que sobrepujava a cidade; uma vez colocado como maquete, e mudado de lugar, achei que assim se via a fachada antes de qualquer outra parte; como 0 resto dele se relaciona com a cidade. sera vista no mapa ... 26

Que diferen~ isto fez? Proporracs rcalistas foram alteradas, e enquanto parte d:lcidade e mostrada de uma dire~ao, urn detalhe e mostrado cxatamentc cia dircriio oposta!

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I I

72 o sentido do filme

Eis por que insisto em incluir EI Greco entre os antepassados da montagem cinematografica. Neste caso particular ele aparece como urn precursor do cinejor­nal, porque sua "remontagem' e mais informativa do que seu outro quadro Virta de Toledo (pintado no mesmo perlodo). Neste ultimo trabalho, ele. realizou uma revolufao de montagem da paisagem realista nao mesmo radical, mas 0 fez atraves de uma tempestade emodonal, que imortalizou 0 quadro.27

EI Greco nos leva de volta ao nosso tema principal, porque sua. pintura tern urn equivalente musical preciso em uma.parte da.variada musica folcl6rica da Espanha. EI Greco refletiu sobre nosso problema da montagem colorido-sonora, porque teria sido impossfve! para e!e nao ter conhecido esta hatmonia - ja que sua pintura esti tao pr6xima, em espfrito, das caracterlsticas do chamado cante jondo. 28

A afinidade espiritual (naturalmente sem referencia 11 cinematografia!) e le­vantada por Legendre e Hartmann na introdu~o de seu monumental cat:ilogo das obras de El Greco.

Eles comec;am citando 0 testemunho de Jusepe Martinez sobre 0 fato de EI Greco freqiientemente convidar musicos 11 sua casa. (Martinez criticava tal compor­tamento como urn "Iuxo desnecessario".) Nao podemos deixar de imaginar que uma afinidade. da musica com a pintura seria natural na obra de urn artista que tinha urn amor tao pessoal pela mUsica.

Legendre e Hartmann declararam abertamente:

... acrediramos realmente que El Greco amava 0 cante jondo, e tentaremos explicar como sua ohra representa, na pintura, a contraparte que 0 cante jondo representa na ffitisica.29

Ao procurar uma descri~o eanalise do cante jondo, encontramos a esplendida brochura sobre 0 assunto, publicada anonimamente. por Manuel de Falla por ocasiao do festival de cante jondo organizado em Granada pelo compositor e Federico Garda Lorca.30 Esta brochura foi resumida e reproduzida na obra de J.B. Trend sobre Falla. Depois de descobrir os elementos do canto bizantino, da can~o irabe e da musica cigana no cante jondo ...

... Falla encontra analogias com alguns tipos de melodia encontrados na fndia e em Dutros lugares do Oriente. As posir;6es dos inter:valos menaces na escala naD sao invarhiveisj sua prodw;ao depende do levanramenro ou abaixamento da voz devido a expressao dada a letra que esta sendo cantada ... ; alem disto, cada uma das flOras

suscedveis de alterar;ao e dividida e suhdividida, resultanclo, em certos casos, na alcerac;ao das nocas de ataque e na resoluc;ao de alguns fragmencos da frase. A isto deve-se acrescentar 0 portamento da voz - a maneira de cantar que produz as

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Sincroniza~ao dos sentidos 73

infinitas gradac;6es de diapasao que existem entre duas notas. estejam eIas pr6ximas ou distantes. "Resumindo 0 que.foi dito. devemos afirmar. em primeiro lugar. que no cante hondo (como nas meIodias primirivas do Oriente) a escala musical e a conse­qiiencia direta do que poderia ser chamado de escala oral... Nossa escala temperada s6 nos permite mudar as func;6es de uma notaj enquanto na "modulac;ao enarmoni­ca", assim apropriadamente chamada. este tom e modificado de acordo com as necessidades naturais de suas func;oes .....

Outra peculiaridadedo cante hondo e 0 uso de compassos que.raramenre excedem os limites de uma sexta. "A sexta. e claro. nao e composta apenas de nove semitons. como no caso de nossa escala temperada. PeIo uso da ordem enarrnonica. ha urn consideraveI aurnento do numero de tons que 0 cantor pode produzir."

Em terceiro !ugar. cante hondo proporciona exemplos de repetic;ao da mesma nota - ao ponto da obsessao - freqiientemente acompanhada de uma appoggiatura acima au abaixo ...

Apesar de a melod!a cigana ser rica em ornamenrac;oes. estas (como na musica oriental primitiva) so sao empregadas em determinados momentos como expansao Urica ou como explosoes apaixonadas sugeridas peIas forces emoc;oes descritas no rexro. "Elas podem ser consideradas. por !sso. inflexoes vocais ampliadas. em vez de ornamenrac;oes. apesar de assumirem estas ulrimas, ao serem traduzidas nos interva­los geometricos da escala temperada.,,31

Legendre e Hartmann nao deixam duvida no leitor quanto a sua analogia entre cante jondo e EI Greco .

... quando conremplamos os sutis "intervalos" subdivididos de cor. onde as modula­c;oes dos elementos essenciais se prolongam infiniramenre. esses violenros pontos de vista. estes gesros explosivos. esras violentas contorc;oes que tanto chocam as mentes mediocres e sem vivacidade - ouvimos 0 cante jondo da pintura - uma expressao da Espanha e do Leste - do Ocidente e do Oriente ... 32

Outros especialistas em EI Greco, com Maurice Barres, Meier-Graefe, Kehrer, Wilhumsen e ourros, sem na realidade se referirem a musica, descreveram porem quase que com estas mesmas palavras este efeito das pinturas de EI Greco. Quao afortunados aqudes que podem confirmar estas impress6es com os pr6prios olhos!

Ulna evidencia nao-sistematizada e muito curiosa desta questao e proporcio­nada pdas mem6rias de Yastrebtzev sobre Rimsky-Korsakov. No registro de 8 de abril de 1893 lemos:

Durante a noire a conversa passou para a questao da tonalidade e Rimsky contou como as harmonias em sustenidos funcionavam pessoalmente nele como corell en­quanta harmonias em bemois criavam nele estados de esplrito de "majores au meno­res graus de entusiasmo". 0 do sustenido menor seguido do re bemol maior da cena "eg!pcia" de Mlada foram deliberadamente introduzidos para criar uma sensafiio de

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entmiasmo, assim como a cor vermelha gem sensafoes de calor, enquanto azul e purpura sugerem ftio e escuridiio. "Possivelmentee por isso" J disse de, "que a estranha tonalidade {mi menor} do inspirado Preludio de Das Rheingold {O aura do Reno} sempre (eve urn efeito tao depressivo sobre mim. Eu ceria transcrito este Preludio na chave de mi maior."33

Rapidamente, devemos lembrar as "sinfonias coloridas" de James McNeil Whistler - Hannonia em verde e azul, Notumo em azul e prata, Notumo em azul e Duro e suas Sinfonias em branco.

Associa~6es :iudio-coloridas preocuparam ate uma figura tao pouco respeita­da como Bocklin:

Para de, que sempre refletiu 0 segredo das cores, todas as cores falavam -'como relata Floerke - c, por sua vez, tudo que, de percebe, tanto internamente quanta externamentc, e, traduzido por cor. Estoll convencido de que, para de, 0 toque de uma trombeta, por exemplo, e vermelho-canela.34

Considerando 0 predomfnio deste fenameno, a reivindica~o de Novalis e bastante relevante:

Ohras de artes plisticas nunca deveriam ser vistas sem Muska; ohras muskais, por sua vez, deveriam ser ouvidas apenas em sal5es magnificamente decorados.35

Quanto a urn "alfabeto da cor" absoluto, infelizmente devemos concordar com Fran~ois Coppee, filisteu que desprezo completamente, quando escreve:

Rimbaud, fumiste reuss:, - Dans un sonnet. que je deplore­Veur que les letres O.E.!. Formende drapeau trkolore. En vain Ie Decadent perore ... 36'

A questao porem deve ser estudada, porque 0 problema de se obter uma correspondencia tao absoluta ainda preocupa muitas mentes, mesmo as dos produ­tares cinematogd.ficos norte-americanos. Ha apenas alguns anos passei as olhos, numa revista norte-americana) em especulac;6es bastante serias quanta a absoluta correspondencia do tom da flanta piccolo com - 0 amarelo!

Em frances no origina!: "Rimbaud. mistificador bem-sucedido.l- Num soneto que eu deploro-1 Quer que as tetras O.E.1.1 Formem a bandeira tricolor. 1 Em vao 0 Decadtnte perora ... "

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S1neronizas:ao dos sentldos 75 '

Mais deixemos esta cor amarela, supostamente produzida pelo piccolo, servir para n6s de ponte para os problemas, nao de uabstra~6es nao objetivas", mas dos problemas encontrados pelo artista em seu trabalho criativo com a cor.

Notas

1. Eserito em 1940 e publicado na revista Iskusstvo Kino de setembro deste mesmo ana com 0

dtulo de Montagem vertical. Primeiro de tres ensaios - . as duas parces seguintes foram publicadas nas edi¢es de dezembro de 1940 e janeiro de 1941 da mesma revista.

2. N.S.E.: E.M. Forster, Aspects of the Novel, Nova York, 1927. 3. N.S.E.: Richard Hugues, A Moment ofTtme. Londres, 1926. 4. N.S.E.: Thomas Medwin, Journal of the Conversations of Lord Byron: Noted during a residence

with his Lordship at Pisa. in the years 1821 and 1822. Baltimore, 1825. 5. N.S.E.:Journal des Goncourt, vo1.3, Paris, 1888. 6. "0 Futuro do Filme Sonoro", declarac;ao assinada par Eisenstein, Pudovkin e Nexandrov,

publicada em agosto de 1928 nas revistas Zhizn Iskusstva (Vitlu tlu artes) de Leningrado e Sovietski Ekran (Tela sovi!tica) de Moscou. Ver apendice de A forma do ii/me.

7. "Nao Colorido, mas em Cores", texto eserito em 1940 para a revisraKino de maio do mesmo ano. Publicado com 0 dtulo de "A Cor no Cinema ou 0 Cinema em Cores?" na eoletanea Re exaes de um cineasta, Zahar Editores, Rio de Janeiro. 19 9. ~

.. 8. N.S.E.: Henry Lanz, The Physical Basis of Rime. Stanford University Press, 1931. 9. Em abril de 1936 Eisenstein publicou na revista Iskusstvo Kino (A Arte do Cinema) urn texto

com 0 titulo "Programa para 0 Ensino da Teoria e da Pratica da Dires:ao de Filmes", versao ampliada do projeto de programa publicado em 1933. em tees panes. nos numeros 5/6. 7 e 8 da revista Sovietskoie Kino, poueo antes do autor iniciar 0 seu curso de dires:ao no Instituto Superior de Cinema de Moscou. 0 VGIK. Este primeiro projeto intitulava-se "0 Granito da Ciencia do Filme". No livro Lifaes com Eisenstein. de Vladimir Nizhny, transcris:ao das anotas:6es estenogni.ficas do curso de Eisenstein em 1934. editado em Moscou em 1957. editado em Londres em 1962. em tradus:ao de Ivor Montagu eJay Leyda, 0 "Programa" esta publicado em apendice, paginas 143 a 177. (Lessons with Eisenstein, George Allen & Unwin Ltd. 1962). Outras aulas de Eisenstein encontram-se transcritas no Volume IV dos textos selecionados pubHcados em Moscou em 1966.

10. N.S.E.: Karl von Ekartshauscn, Aufichliisse zur Magie aU! geprliften Erfohrungen aber verboge­ne philosophische Wissenschaften und verdeckte Geheimnisse der Natur. Munique, 1791.

11. N.S.E.: Louis-Bertrand Castel. Esprit. saillies et singularitls du P. Castel, Amsterda, 1763. 12. N.S.E.: Rene Ghil. "En methode a l'oeuvre", in Oeuvres completes. Paris. Alberr, Messein.

1938. 13. N.S.E.: Hermann L.F. Helmholtz, Physiological Optics. Rochester, 1924. 14. N.S.E.: Max Deutschbein, Das WCsen des Romantischen, 1921. 15. N.S.E.: Citado em Henry Lanz, 0p. cit., p. 167. 16. N.S.E.: Th~Japanese Letters ofLafcadio Hearn. organizas:ao de Elizabeth Bisland. Nova York.

1910. 17. N.S.E.: Ibid., carta de 5 de junho de 1893. 18. N.S.E.: Ibid., carta de 14 de junho de 1893.

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19. Em dois ensaios escriros em 1940, "0 desdobramento do unico" e «Par~Impar". partes da colecanea Cinmuztisme. editada em frances, em 1980, em Bruxelas. pela Editions Complexe. Eisens­tein parte da oposiif3.o entre yin e yang na filosofia chinesa para estudar a forma de composilj3:o das obras de arte.

20. N.S.E.: Reproduzido do Til Shu Chi Cheng. edi~o resurnida da encidopedia Kang Hsi. Yol.i.116, cap.51.

21. Rene Quillen!, "n fir a Plus de ?erspectiyc", U Cahier Bku, 4, 1933. 22. N.S.E.: Impress6es semelhantes foram registradas por Antoine de Saint-Exupery ao descrever

uma lura aerea com urna ternpestade: "Horizonte? Nao hav!a mais horizonte. Eu esrava nos bastido­res de urn rearro atravancado com pedas:os de cenarios. Vertical, oblIquo. horizontal. [udo da geomerria plana rodopiava. Centenas de vales transversais se confundiam numa mistura de perspec­tivas .•. Por apenas urn segundo. numa paisagem valsante como esra. 0 aviador foi incapaz de distinguir montanhas verticais de planlcies horiz.ontais (lfnto, areia ~ eJtrelas. 194!).

23. N.S.E.: "The Works of Ftiedrich Nietzsche", vol.J(], The Case of Ifflgner, 1896. 24. N.S.E.: No conhecido quadro A ultima ceia. de da Vinci, os objetos da mesa tern urn ponto

de fuga diferente do ponto de fuga da sala. E em inumeras gravuras de Durer encontramos 0 uso da perspecc!va dupla.

25. Georgi Bogdanovich Yakulov (1884·1928). pintor e cenografo russo. 26. N.S.E.: 0 texto completo como aparece no quadro: "Ha sido for~oso poner el hospital de

Don Joan Tauera en forma de modelo porque no solo venia a cubrir la puena de visagra mas subia el cimborrios 0 copula de manera que sobrepujaua 101 ~iudad y asi una va puesto como modelo y mouido de su lugar me pare~io mostrar 101 hazantes que otra parte y en los demas de como viene con Ja ~iudad se vera en la planta.

Tambien en la historia de Nra. Senora que trahe 101 casuUa a S. IlIefonso para su ornato y hazer las figuras grandes me he valido en ~iena manera de ser cuerpos ~elestiales como vemos en las lu~es que vistas de lexos por pequefias que sean nos pare~en grandes."

27. Eisenstein desenvolve as ideias aqui esboc;adas sabre as rela~6es entre a pintura de El Greco eo cinema num longo ensaio que escreveu entre 1940 e ! 941. Com urn titulo original em espanhol. "El Greco y el Cine". este texto faz parte da coletane01 Cinematum~. oito ens01ios sobre cinema e pintura cdirados em frances. Editions CompIexe. Bruxelas, 1980.

28. N.S.E.: Ou cante hondo, que poderia ser traduzido por mwica (canto) grave, funda. profun-da.

29. N.S.E.: Maurice Legendre e A. Hartmann, Domenikos Theotokopoulos, El Greco, Paris, Editions Hyperion. 1937.

30. N.S.E.: El "Cante jondo" (Canto primitivo andaluz), de Manuel de Falla e Federico Garda Lorca. Granada. Editorial Urania. 1922.

31. N.S.E.: John Btande Ttend, Manuel de Fal,", and Spanish Music, K.~opf. 1929. 32. N.S.E.: Legendre e Hartmann, op. cic. 33. N.S.E.: Vasili V. Yastrebtz.ev, Moi vospominaniya 0 Nikolay~ Andreyvich~ Rimskom-Korsakove.

Pettogrado, 1915. 34. N.S.E.: Max Schlesinger, Geschichte des Symbols. ein ~rsuch, Berlim, Leonham Simian, 1921.

Citat;ao de Gustav Floerke, ZehnJahre mit Biick/in. Munique. 1902. 35. N.S.E.: Friedrich Leopold Hardenberg. Novalu Schriftm, vol.II, Berlim. G. Reimer, 1837. 36. N.S.E.: FranifOis Coppee, "BalI01de". Cirado in u Sonnet us Voyelles. de R. Edemb!e. Revue

de Littlrature Comparl~, abril-julho de 1939.

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III. Cor e sign ificadol

Formas, cores, densidades, adores - 0 que ha em mim que corresponde com eles?

WALTWHITMAN2

No capitulo anterior, fizemos urn exame bastante completo da questao de como encontrar "absolutas" entre som e cor. Como esclarecimento adicional, examinemos outro problema ligado a isto, a sabet: a questao das rela¢es "absolutas" entre emo~5es particulares e cores particulares.

Em beneflcio da variedade, abordemos esta questao menos atraves das "auto­ridades" J com sellS raciodnios e opinioes, e mais atraves das emoc;6es e impress6es vivas que as artistas nos deixaram sabre 0 assunto.

E em beneflcio da conveni~ncia, limitemos nossos exemplos a uma tonalida­de. Vamos campor nossa propria "raps6dia em amarelo".

Nossa primeiro exemplo e urn caso extrema. Quando falamos de "tonalidade interior" e "harmonia interna de linha, forma

e corl), temos em mente llma harmonia com algo, uma correspondencia com algo. A tonalidade interna deve contribuir para 0 significado de urn sentimento interno. Por mais vago que seja esse sentimento ele avan~ sempre em dire~ao a algo concreto, encontra sua expressao externa em cores, linhas e farmas.

Existem porem os que reivindicam que uma abordagem como esta nega a "liberdade" do sentimento. Em contraposi'rao a nossos pontos de vista e opinioes, prop5em uma tonalidade interna (der innere Klang) sem objetivo, vaga, absoluta­mente livre, nem como uma direcrao, nem como urn meio, mas como urn fim em si mesmo, como 0 auge da realiza~ao, como finalidade.

Urn ponto de vista de "liberdade" como este s6 nos liberta da razao. Esta e real mente uma liberdade rara, singular, a unica absolutamente atinglvel entre nossos vizinhos fascistas.

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Urn importante expoente e defensor vitalkio do ideal adma e 0 pintor Kandinsky- . a fonte das primeitas medidas de nossa "raps6dia em amatelo".

o que se segue e urn trecho de "0 som amatelo"3, uma composic;ao teatral de Kandinsky, que conclui 0 volume intitulado Der Blaue Reiter· . praticamente urn manifesto do grupo de mesmo nome - e de consider:lvel influenda nas tendendas subseqiientes da atte modema europeia.

Este "sam amarelo" eJ na realidade, urn "programa" para urna apresenta<;ffo cenica dos sentimentos de seu autor com relac;ao ao jogo de cores como se fosse de musica, do jogo de musica como se fosse de cotes, do jogo de personagens de urn modo au de outro, e assim por diante.

Em sua obscuridade e desconcertante indefinic;ao, sente-se eventualmente a ptesenc;a de alguma "semente" mlsrica - apesat de ser muito difldl chegat a qual­quet definic;ao clara. Finalmente, na sexta cena, e revelada, quase religiosamente:

Opaco fundo azu! ... No centro do palco ha urn grande gigante. amarelo forte com urn rosto braneD

toldado e olhos negros grandes, redondos ..• Elc levanta vagarosamenrc as hralios na hOr!zontal (palmas para baixo), aumen­

cando de tamanho ao faze-Io. No momento em que acinge a altura (otal do palco, e que,sua figura parece uma

cruz, 0 palco e repentinamente escurecido. A musica e expressiva, seguindo a 3\5:0 no palco.

Os conteudos desta obra nao podem ser sarisfatoriamente discemidos, devido a ausenda total de conteudo - . assim como de tema.

o maximo que podemos fazer pelo autor e apresentar alguns exemplos de seus sentimentos, que envolvem as "sons amareios":

Cma2 A neblina azul gradualmente da lugar a luz, que e completa e cruelmente branca.

No fundo do palco, uma colina. completamente redonda, de urn verde tao brilhante quanto possive!.

o fundo e violeta. bastante brilhante. A musica e rCspida. violeta. recorrendo constantemente aos la's e si's bem6is. Estas

notas individuais sao finalmente engolidas pda barulhenta tempestuosidade. De repente silencio total. Uma pausa. Novamente la e si gemem.lamentave!mente. mas de modo definido e seguro. Isto dura algum tempo. Entao, novamente uma pausa.

Neste momenta, 0 fimdo de repente se torna marrom~escuro. A colina se torna verde-escura. E no centro da colina uma mancha,preta indefinida e formada. alterna~ damente se tornando mais clara e entao cinza-manchado. A. esquerda da colina uma grande flor amarda de repente se torna vis{vel. Lembra remotamente urn grande pepino torto e constantemente se torna mais clara. Sua haste e longa e fina. Urna

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Cor e significado 79

unicaJolha pontuda, estreita, cai do meio da haste, e se vira para 0 lado. Uma longa pausa.

Mais tarde, em silencio mortal, a flor muito vagarosamente balan,? da direita para a esquerda. Mais tarde ainda, a folha se junta na oscilaljao, mas nao em unCssono como a flor. Mais tarde ainda, ambas oscilam num ritmo desigual. Entao das nova­mente balanljam para Ia e para ca, separadamente, urn si muito suave soando com 0

movimento da flor, e urn Id muita grave com 0 movimento da folha. Entao, ambas oscilam em unissono, com ambas as notas soanda com elas. A flor treme violenta­mente e para. As duas notas musicais continuam a soar. Ao mesma tempo, muitas pessaas entram da esquerda com roupas deslumbrantes, longas, so:tas {uma toda em azul, outra em vermelha, a terceira em verde etc. - s6 falta 0 amarelo}. Elas tern enormes flores brancas nas maos, semelhantes a flor da colina. Executam urn recita­tivo com as vores misturadas ...

Prirneiro, todo 0 palco de repente se obscurece com uma opaca luz vermelha. Em segundo lugar, uma escuridao total se alterna com violenta luz branca. Em terceiro lugar, tudo de repente se torna cinza~desmaiado (todas as cores desaparecem). Apenas a flor amarela brilha ainda ma!s!

o orquestra gradualmente comec;a e cobre as vozes. A musica torna-se agitada, indo do fortissimo ao pianIssimo ... No momento em que a primeira figura se torna visCvd, a flor amarela (rerne como se com caibra. Entao, de repente, desaparece. Tambem de repente, todas as flores brancas se tornam amarelas ...

Finalmente todos jogam fora as flores, que parecem estar encharcadas de sangue, e, forc;osamente se libertando de sua rigidez, correm em direljao a ribalta, apertados ombro a ombro. Olham em volta sem parar. Subita escuridao.

Cena3 Fundo do palco: duas grandes pedras em marrom-avermelhado, uma delas pon­

tuda, a outra redonda e maior do que a primeira. Segundo plano: preto. Os gigantes {da Cena I} estao entre as pedras e silenciosamente sussurrarn_ urn para 0 outro. Algumas vezes des sussurram juntos, outras aproximam as cabec;as. Seus corpos permanecem im6veis. Em clpida sucessao, caem de todos os lados raios de lez violentamente coloddos (azu!, vermelho, violeta, verde - alternando-se varias ve­zes). Esses raios encontram-se no centro do pako, onde se misturam. Tudo esta im6vel. Os gigantes estao quase totalmente invisCveis. Subitamente todas as cores desaparecem. 0 palco fica preto por urn instante. Entao uma opaca luz amarela inunda 0 palco, tornando-se gradual mente rnais intensa, ate que todo 0 palco e banhado por amarelo-limao berrante. Enquanto a luz se intensifica, a musica se torna mais profunda e cada vez mais lugubre (esses movimentos lembram 0 do pr6prio caracol em sua concha). Durante estes dois movimentos, nada, exceto a luz, cleve ser vis!vel no palco - nenhum objeto ...

Etc. etc. o metodo usado aqui e clata - abstrair "tonalidade internas" de qualquer

materia "externa".

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Urn metodo como esse tenta conscientemente divorciar todos os elementos do contetido; tudo 0 que diz respeito a tema ou assunto e dispensado, deixando apenas os elementos extremamente formais, que) na obra criativa nonna/, desempenham apenas urn papel parcial. (Kandinsky formula sua teoria em outra parte do volume citado.)

Nao podemos negar que as composi~6es deste tipo evocam sensa~6es obscura­mente perturbadoras - mas nada alem disso.

Mas ate hoje continuam a ser feitas tentativas de,organizar estas sensa~6es subjetivas e muito pessoais em rela~6es significativas, que sao, francamente, igual­mente vagas e remotas.4

o que vern a seguir demonstrara como Paul Gauguin trabalhou com "tonali­dades internas" semelhantes, como registrou num caderno de notas intitulado Genese d'un tableau (G~nese de urn quadro)5, com rela~o a seu quadro Manao Tupapau. ,0 esplrito dos mortos vela:G

Uma jovem taitiana esra deitada de barriga para baixo, revelando parte de seu rosto assustado. Ela repousa numa carna, coberta com urn parea azul e urn lenc;ol amarelo­eromo claro. Hoi. urn fundo violeta-purpura estampado com flores semelhantes e faCscas eletricasj uma figura bastante estranha esra junto a cama.

Cativado por uma forma, urn movimenro, pinto isto scm nenhuma,outra preoell­pa~o senao a de fazer urn nu. Como esta agora, e urn escudo ligeiramente inde­pendente de urn nu. 0 que quero fuzee, porem, e uma pintura casta, expressando 0

espfrito taitiano, seu car-her e sua tradierao. Uso 0 pareo como colcha porque ele esta intimamente ligado a vida de urn

taitiano. 0 lenerol, com uma textura de casca de arvore, deve ser amarelo - porque esta cor sugere algo inesperado ao observador; e tambem porque sugere luz de lampHio, 0 que me economiza 0 trabalho de criar este efeito. Deve ter urn fundo ligeiramente aterrorizante. 0 violeta e obviamente necessario. 0 arcabouero da har­monia do quadro esta armado.

Nesta pose, de certa forma ousada, 0 que uma,jovem taitiana pode estar fazendo, completamente nua numa cama? Preparando-se para 0 amor? Isto seria tfpico dda, mas e indecente, e nao quero ism. Dormindo? - ·0 am de amor reria terminado, 0

que ainda e jndecente. S6 vejo medo. Certamente nao 0 medo de alguma. Suzana surpreendida pelos anciaos. Este medo e desconhecido no Taiti.

o tupapau (espfrito dos mortos) e a resposta que estou procurando. Eo uma fonte de. constante medo dos taitianos. A noite, uma lampada e sempre mantida acesa. Quando nao ha lua, ninguem anda pelas euas sem uma lanterna, e mesmo assim sempre andam em grupo.

Tendo encontrado meu tupapau, fiquei totalmenre ligado a de e fiz dele 0 motivo de meu quadro. 0 nu ganha uma importancia secundaria.

Como uma morta taitiana imagina urn fantasma? Ela nunca foi a urn teatro, nem leu romances e, quando pensa numa pessoa morta, s6 pade pensar em alguem que ja

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t

Cor e sigr!!ficado 81

viu. Meu fantasma s6 pode ser uma vdhinha. Ela estica as maos, como que para agarrar sua vitima.

Urn sensa de decora<;ao me leva a espalhar flares no fundo. Sao flores tupapau, fosforescentes. indicando que a fantasma esta pensando em voce. As cren<;as dos taitianos.

o drulo Manao tupapau tern dais significados: ela pode estar pensando no fanras~ rna, au 0 fantasma esta pensando nda.

Resumindo. 0 demenro musical: linhas horizontals onduladas; harmonia de laranja e azul enrrda<;ados pdos amardos e violetas e suas derivadas, rodas iluminadas por centdhas esverdeadas. 0 demento Hterario: a EspCriro de uma mo<;a preso ao EspCrito dos mortos. Noite e Dia.

Esta genese e escrita para as que sempre insistem em saber os porques e os para quCs.

De resro. e simplesmente urn estudo de nu taidano.

Aqui esea tudo 0 que ptocuramos: "0 arcabous:<> da harmonia do quadto esta armado"; uma avaliacrao dos valores psico16gicos das cores - 0 "aterrorizante" uso da violeta, assim como do nosso amarelo, aqui calculado para sugerir "algo inespe­rado para 0 observador".

Um amigo Intimo de Gauguin registtou uma avalia~ao semelhante de nossa cor. Vincent van Gogh descreve seu Cafo noturno, que acabara de terminar, para seu irmao:

Ern rneu quadro Cafe noturno, tentei expressar a ideia de que 0 cafe e urn lugar onde alguem pode se arruinar. ficar louco au cometer urn cdme. De modo que renrd expressa-Io como se de encarnasse as poderes da escuridao. urn bar vulgar verde Luls XV suave e cobre, contrastando com verde-amardado e fortes vecde-azulados. e tudo isto numa armosfera como a de uma focnalha do diabo. enxofce-palid07

Eis outto artista que fala do amarelo -Walther Bondy, ao escrever sobre seus desenhos para a ptodu~iio de Brott och Brott (Hi crimes e crimes)"' de Strindberg, em 1912:

Ao encenar a pe<;a de Srrindberg. flzemos uma tentativa de levar os cenarios e a figurino a participar diretamente da a<;ao.

Para isso. era necessaria que cada detalhe do milieu expressasse algo e desempe~ nhasse seu papd especifico. Em muitos casos. par exemplo. cores particulares sedam usadas devido a seu efdto diceto no especrador. Havia varios /eit-motifS. descritos pda cor. a fim de mostrar uma rda<;ao mais profunda entre momentos isolados da pe<;a. Assim. na terceira cena (a(O II. cena 1) urn tema amardo foi introduzido na a<;ao. Maurice e Henriette estao sentados no "Auberge des Adrets"; 0 tom gera! da cena e preto, com uma cortina preta cobrindo quase compleramenre uma enorme janda de video colorido; sabre" a mesa esta urn canddabra com treS ve!as. Na gravara-borboleta

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e nas luvas que ganhou de Jeanne. sendo desembrulhadas por: Maurice, a cor amarela aparece pela primeira vez. 0 amarelo torna-se 0 Cerna colarida do "mergulho no pecado" de Maurice (atraves deste presente ele esta inexoravelmente ligado a Jeanne eAdolphe).

Na quinta cena (ato Ill, cena 2), quando Adolphe deixa 0 palco e Maurice e Henriette. tornam consciencia de seu crime, grandes buques de flares amarelas sao levados para 0 palco. Na setima cena (ato IV, cena 1), Maurice e Henriette estao sentados nos Jardins do Luxemburgo. 0 Cell esta amarelo brilhantc, e, como silhuetas contra de, as finDS galhos peetos desfolhados, 0 banco e as figuras de Maurice e Henriette ... Deve-se notar que 0 tratamento de coda a produc;:ao se deu flum plano m!stico.

A premissa aqui e que "cores particulares exercem influencias espedficas" no espectador. Isto e "substanciado" pela rela~o do amarelo com 0 pecado, e pela influencia dest. cor na psique. 0 misticismo tambem e mencionado ...

£. interessante ver a mesma usa associativo feito com esta cor par T.5. Eliot, particularmente em seus primeiros poemas:

No leito posta de traves, Teus pap~lotes retiravas, Ou com as maos sujas agarravas A planta amarela dos pes.9

Bern! e dar se ela deve morrer uma tarde, dessas, Tarde cinza e esfumas:ada, tarde amarela e rosa. .. 10

A neblina amarela que esfrega 0 dorso nos vidros da janda, A neblina amarela que esfrega 0 focinho nas vidra~, A l!ngua insinuou nos recantos da tarde, Demorou~se nas po<;as das satjetasoo.11

o uso do amarelo por Eliot estende-se ate as substancias e objetos desta cor. Em Sweeney entre as rouxin.is:

... 0 homem de olhos pesados Recusa 0 gambito: fadigaj

Da sala sai mas reaparece De fora, a janda, inclinado. Por entre_ramos de glicinia Enquadra~se, urn rictus dourado ...

E Mr. AppollinllX termina com:

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Cor e significado 83

Eu me lembro de uma fada delimao, e urn biscoito mordida.

Para tornar a cor amarela tatalmente "aterrorizante") escolhemos outro exemplo.

Ha poucos escritores tao intensamente senslveis a cor quanto Gogo!. E tam­bern poucos sao as escritores da nossa epoca que entendem Gogol tao intensamente como Andrei Belyi.

Em sua exaustiva analise da arte de Gogol,12 Belyi sujeita as mudanc;as da paleta de Gogol, ao longo de sua carreira criativa, ao mais minucioso exame no capitulo, "0 espectro de Gogol". 0 que e revelado? Seguindo 0 gdfico amarelo dos mapas de Belyi, vemos nossa cor crescendo estavelmente a partir de Noites na aldeia, atraves de Taras Bulba, e dando seu maior saito quantitativo para cima no segundo volume de Almas mortas.

De todas as cores usadas por Gogol em suas primeiras obras, a media de referencias ao amarelo e de apenas 3,5%.

No segundo grupo (dos romances e comedias), esta media sobe para 8,5%, e no terceiro grupo (volumeldeAlmas mortas) a1cans:a 10,3%. E finalmente (volume II de Almas mortas), 0 amarelo ocupa 12,8% da aten,ao dada it cor por Gogo!' Sendo proximo do amarelo, 0 verde se compocta de modo an:ilogo: 8,6 -7,7-9,6-21,6%. Juntas, estas duas cores ocupam mais de um terfo da paleta de Gogol em sua ultima obra.

1sto nao inclui os 12,8% de referencias ao "dourado", Belyi salienta:

•.. 0 ouro no volume II (de Almas mortas) nao e 0 ouro da baixela e fios de ouro, mas o ouro das catedrais e cruzes, que intensifica 0 papel influence da Igreja Orrodoxa; a ressonancia do "ouro" e balanceada com a "ressonancia vermelha" da gloria cossaca; corn 0 grafico vermelho declinado e os gclficos amarelo e verde elevando~se, este segundo dirige~se a urn mundo colorido muito distante do espectro de Noites na

aldeia ...

Ainda mais aterrorizante parece 0 tom "fatal" do amarelo quando nos lembra­mas que esta e exatamente a escala cromatica que domina outra obra de arre, criada num tdgico lusco-fusco - 0 auto-retrato de Rembrandt aos 55 anos.

Para evitar acusac;6es de preconceito pessoal ao descrever a cor desta pintura, cito aqui nao a minha, mas a descriC;ao de Allen desta obra, como ele escreveu em seu artigo que relaciona os problemas da estetica aos da psicologia:

... as cores sao codas escuras e nebulosas, iluminadas apenas no centro. Esce centro e urna combina¢o de verde~escuro e cinza~amarelado, misturado com marrom~des~ maiado; 0 resto e quase preto ...

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84 o sentido do filme

Esta escala do amarelo, fimdindo-se em verde-escuros e marrom-desmaiados, e enfatizada pelo contraste com a parte mais baixa da tela:

... apenas em baixo alguns tons avermelhados podem servisros; rampados e sobrepos. ros, mas, ajudados pda densidade e intensidade comparativamente grande, des eriam urn contraste daramente evidente com 0 testa da pintura ...

Com rela~ao a isto, e imposslvel omitir uma referencia 11 infeliz imagem do envelhecido Rembrandt apresentada por Alexander Korda e Charles Laughton em Rembrandt. 13Laughton foi para as cenas finas vestido e maquiado cuidadosamente, mas nenhuma tentativa foi feita para espelhar esta tnlgica escala cromdtica, tao tCpica de Rembrandt, atraves de uma equivalente escala de iluminafao cinematognifica.

Toma-se evidente que muitas caracterfsticas que atribulmos 11 cor amarela derivam de sua vizinhan~ imediata no espectro - 0 verde. 0 verde, por outro lado, e diretamente associado aos slmbolos da vida - . jovens brotos de folhas, folhagem e a pr6pria "verdura" - de modo tao firme quanto 0 e com os slmbolos da morte e decadencia - musgo, limo, e as sombras no rosto de um cadaver.

Nao ha limite para as evidencias que poderlamos trazer a esta corte, mas ja nao temos 0 suficiente para nos perguntarmos, "Talvez haja algo sinistro na natureza de cor amarela?" Isto diz respeito a algo mais prof undo do que 0 mero simbolismo convencional e as assodac;6es habituais ou acidentais?

Para respostas a estas perguntas devemos nos voltar para a histrJria da evolufao dos significados simbrJlicos de determinadas cores. Existe, felizmente, um trabalho muito completo sobre este assunto, de Frederic Portal, publicado pela primeira vez em 1857: Des couleurs symboliques dans l'antiquite, Ie Moyen Age et les temps moder­nes (As cores simb6licas na Antiguidade, na Idade Media e nos tempos modernos).

Esta autoridade no "significado simb6lico" da cor teve 0 seguinte a dizer sobre a cor que nos interessa aqui - 0 amarelo - e sobre as ideias deperftdia, traifao e pecado foram associadas a ela:

As linguagens divina e sagrada designavam pelas cores ouro e amarelo a uniao da alma a Deus e, por oposic;ao, 0 adulterio flum senudo espiritual. No discurso profano, era urn emblema material representando 0 arnor legCcimo, assim como 0 adulterio carnal que rompe as elos do casamento.

A mas:a doutada era, para as gregos, a sCmbolo do amor e cia conc6rdia, mas, por oposic;ao. representava a disc6rdia e todas as desgrar;as em conseqih:ncia; 0 julgamen­to de Paris prova ism. Do mesmo modo, Atalanta, enquanto redne as mar;as douradas colhidas no Jardim das Hesperides, e vencida na corricia e se torna a premia do vitoriosa. 14

De particular interesse e a evidencia de Portal de um aspecto encontrado em toda questao mitol6gica ligada a esta cor: os significados ambivalentes dos quais se

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Cor e significado 85

exttai urn senrido nao-expHcito. Este fenomeno pode ser explicado pelo fato de que, nos estagios primitivos da evolus:ao, 0 mesmo conceito, significado ou palavra representa igualmente dois opostos mutuamente exclusivos.

o amarelo, ele mostra, tern liga~5es igualmente fortes tanto com "uniao de arnor" quanta com "adulterio".

Havelock Ellis nos da uma convincente explicas:ao deste fenomeno, isto e, do caso particular do amarelo:

Foi claramente 0 advento do cristianismo que introduziu urn novo sentimento em rela'iao ao arnarelo. Em grande medida, sem duvida, foi clararnente 0 in!cio de toda a rea'iao crista contra ° rnundo clissico e a rejeic;ao de tudo a que era sfrnbolo da alegria e do orgulho. 0 arnor ao verrnelho estava tao firmemente- enraizado na natureza humana que conquistou ate a cristianismo, mas 0 amarelo era ° ponto de menor resistencia e aqui a nova religiao rriunfou. 0 amarelo tornou-se a cor da inveja,

o amarelo tornou-se a cor do ciume, da inveja, da traic;ao. Judas foi pintado com roupas amarelas e em alguns parses as judeus foram obrigados a se vestir de amardo. Na Franc;a, no seculo XVI, as porras dos traidores e ddinqUentes eram caiadas de amardo. Na Espanha, as hereticos quese retratavam eram obrigados a usar uma cruz amarda como penitencia e a Inqu!sic;ao exigia que des aparecessem em autos daft publicos em roupas de penitencia e carregando uma vela amarda,

Ha uma razao especial para 0 cristianismo ver a amardo com suspeic;ao, Fora a cor associada ao arnor libertino, No infcio, a associac;ao foi com 0 arnor !egitimo .. , Mas na Grecia, e ainda mais marcadamente em Roma, a cortesa comec;ou a tirar vantagem desta associac;ao, 15

Em uma das conferencias a que assisti, dadas pelo academico Marr,16 ele ilustrou 0 fenomeno basico da ambivalencia com 0 radical "kon", que e uma raiz tanto da palavra russa jim, "kon-yecz", quanto de uma das mais antigas palavras russas que significavam in/cio, "is-kon-i".

o antigo idioma hebraico contem urn exemplo semelhante na palavra t:>"Ip "Kadish", que tern 0 significado de "sagrado" e "profano". 0 significado "lim po" e "sujo" da palavra tabu ja nos e familiar. E Gauguin ja mencionou que "Manao tupapau" tern urn significado duplo: "ela esc;[ pensando no fontasmd', e "0 fontasma esra pensando nela".

Permanecendo no drculo de nosso interesse atual pelas ideias de amarelo e ~Uro, podemos citar outro caso de ambivalencia: ~Uro, urn sfmbolo de valor supe­rior, tam bern serve como uma popular metafora que significa - . corrups:ao. Isto e verdadeiro nao apenas de urn modo gera!, como nos exemplos da Europa Ocidental abaixo, mas tambem no idioma russo, que contem a termo "wlotar" ("wIota", a raiz-ouro), cujo significado espedfico e "limpador de fassas".

Veremos tambem que uma interpretaliao "positivi' (numa "chave maior") deste dourado ou amarela cantem uma base diretamente sensual, e que nela estao entrelac;adas associalioes inteiramente marginais (sol, aura, estrelas).

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86 o sentido do filme

Ate.Picasso notou estas associas:6es particulares:

Hoi pintores que transformam 0 sol num ponto arnardo, mas hoi DUCroS que, com a ajuda de sua arte e sua inteligencia, transformam urn ponto amarelo em urn solo 17

E Van Gogh, para quem a cor amarela tinha yitalidade especial, coloca de lado as associa~6es diabolicas que ele explorou em seu Cafe naturna, e toma a palayra peJos pintores que "transformam urn ponto amarelo em urn sol":

... em Vc:L de ten tar reproduzir exatamente 0 que. tcnha dianre de mcus alhos, usa a cor arbitrariamente, de modo a expressar a mlm mesmo, obrigatoriamente. Bern, iS50

eo suficientc quanta a (eo ria; YOU dar~lhes urn exemplo do que quero dizer com i550.

Gostaria de pintar 0 retraro de urn amigo artist3, urn homem que sOP..ha grandes sonhas, que trabalha como a cotovia canta, porque c. de sua natureza. Ele secl urn homem born. Quero calocar no quadro minha estima, a arnar que since por de. Assim, pinto-o como de e, 0 mais fidmente poss{vd, para come~o de conversa.

Mas 0 quadro ainda nao esra terminado. Para termimi-loJ agora.serei 0 colorista arbitrario. Exagero a laura do cabelo, chego a usar tons de laranja, cromo e amarelo­limao claro.

Atcls da cabeli3, em Vel. de- pintar a costumeira parede do quarto s6rdido pinto 0

infinitoJ urn fundo liso do mais rico e intenso azul que eu invento, e pda simples combinaliao da clara cabec;a contra 0 fundo azul forte, consigo urn efeito misteriosoJ como uma estrda nas profundezas do Cell azulado ... 18

A fonte positiya do amarelo no primeiro caso foi 0 sal (Picasso), e no segundo - uma estrela.ryan Gogh).

Vejamos outra imagem do matiz dourado do amarelo - - encontrada em "urn homem que sonha grandes sonhos" - 0 proprio Walt Whitman, "correndo atraYes do espa~. correndo atray':s do ceu e das estrelas":

Os pintores plntaram seus fervilhantes grupos com uma figura central. Da cabe~a da figura central espalha-se uma aureola de,luz. colorida de dourado. Mas ell pinto rnidades de cabeliasJ mas nao pinto nenhuma cabec;a sem sua

aureola de luz colorida de dourado. De minha mao, do cerebro de tado homem e mulher fIui, refulgentemente,

flutuando infinitamente. 19

Whitman deve ter amado. a cor, mas amou-a 0 suficiente para nao limitar sua aplica~o a apenas urn uso. Suas descri~6es da natureza estao cheias de, urn uso "positivo" do amarelo, que surge em maravilhosas, vigorosas, "positivas" paisagens:

Rebentos agarram e proliferam, presentes na sarjeta, prolIficos e vitaisJ Paisagens projetadas masculinas, amplas e douradas.20

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Cor e significado

Vejo as tetras a[tas da Abissfnia, Vejo os rebanhos de cabras pastando, e vejo aJigueira, a tamarineira, a tamareira, E vejo campos de edgo africano e regioes de verdor e ouro.21

A Calif6rnia recebe uma especial aten~ao "dourada":

87

Sempre as colinas e vales dourados da California, e as montanhas argenteas do Novo Mexico ... 22

a cemido flamejante e dourado da California, a drama repentino e deslumbrante, as ensolaradas e amplas terras ... 23

Entre as importantes associac;oes positivas que Whitman faz com 0 arnarda, hi uma com 0 tema que 0 preocupou ainda mais do que a natureza - ·0 tema do trabalho:

No meio-fio, na beira da calc;ada. Urn arnolador trabalha em sua rno afiando uma grande faca, Inclinando-se cuidadosamente, entrega-se a pedra, com 0 pe e 0 joelho, Com urn movimento uniforrne, gira-a rapidamente, enquanto pressiona a faca com a mao leve e firme. Em seguida, jorram em copiosos jatos dourados Chispas da mo.24

e da Canriio do machado:

As lascas cor de manteiga voarn em grandes Hocos e pedac;os ...

Apesar da poderasa clave maior na qual essas referencias ao amarelo sao toeadas, hi tam bern uma clave menor - ouvida pela primeira vez nas passagens do por-do-sol rural, das quais a transi~ao para a morte e a velh!ce despontam atraves de imagens diretas:

hradiada pdo inclinado e l!mpido par-do-sol amarelo, Musica, musica italiana em Dakota.25

Quadros da nascente primavera eJazendas e lares, Com 0 creptisculo do quarto IDeS, e a fumac;a cinza lucida e brilhante, Com torrentes de ouro amarelo do resplandecente, indolente, declinante sot quei­mando, expandindo 0 ar ... 2G

Passando pelas espigas de trigo amarelas, cada grao de sua mortalha nos campos marrOID-escuros despontado.

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88 o sentido do filme

.Passando pelas florescencias da madeira em beaneo e rosa nos pomaces, Carregando urn cadaver para onde de repousacl no tumulo, Noire e ella viaja urn caixao.27

e de Os picos bruxuleantes da velhice:

A visao mais calma - 0 cenario dourado, claro e amplo ...

E finalmente 0 amarelo se torna a cor dos rostos dos homens feridos, das velhas - e e acrescentado it escala de cor da mortal decadencia:

Limpo uma ferida do lado, profunda, profunda Mais urn diaou dais, para ver 0 coepo gasto e em declfnio, Ever as feicroes azul-amareladas.2B

E mcu rosto amarelo e enrugado em vez do da velha, Scnta-me numa cadeira de palhinha e cuidadosamente cirzo as meias de meu neto.29

e em A pdlida grinalda:

De algum modo, nao possa deixar ir ainda, apesar de sec 0 funeral, Deixe-o permanecer Ii em seu crava suspenso, Com rosa, azul, arnardo, todo esbranquicrado, e 0 beanco agora cinza e adnzentado ...

Mas pode-se detectar mesmo entre 0 uso amplo, variado, desta cor por Whitman, que ele faz distins:ao entre sutis diferensoas de matizes do amarelo -abrangendo toda a escala do dourado ao "amarelo, todo esbranqui~do".

Voltando 11. nossa autoridade, Portal nos revela urn esdgio da evolus:ao das "tradi~6es do amarelo" na Idade Media. A cor unica, que na antiguidade fora urn sCm bolo de dois opostos simultaneamente, passou por urn "processo de racionaliza­c;ao" e emergiu como dais tons distintosJ cada urn representando urn lado da anriga dupla significa,ao:

... as mouros diferenciavam as dais sCmbolos usando dais matizes diferentes: amarc­Io-dourado significava conselho sdhio e born, e amarelo palido significava trai'iao e falsidade ... 3o

as rabinos cultos da Espanha medieval deram uma interpretas:ao de interesse adicional:

... as rabinos sustentavam que 0 feuto da afVore proibida era urn limao, opondo sua cor, palida e sua acidez a cor dourada e, a dOliura da laranja ou da malia dourada, de acoedo com 0 [ermo ladno.

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Cor e significado 89

Esta subdivisao continua:

Na heraldica, 0 ouro e 0 emblema do amor, da constancia e da sabedoria, e, por oposiC;ao, 0 amarelo denora ainda, em nossa epoca, inconsrancia. ciume e adulrerio.

Assim nasceu a tradis:ao francesa, mencionada por Ellis, de caiar com tinta amarela as portas dos traidores (como a de Carlos de Bourbon por sua trai~ao durante 0 reinado de Francisco O. 0 traje do carrasco na Espanha medieval era caracterizado por duas cores, amarelo e vermelho: amarelo para simbolizar a trai~ao do acusado; vermelho, 0 castigo.

Estas sao as fontes "misticas" das quais os simbolistas tentaram extrair signifi­cados "eternos" da cor, e determinar as irrevogaveis influencias das cores na psi que humana.

Mas que tenacidade houve na preservas:ao de tradi~6es neste campo! Foram exatamente estes os significados preservados, por exemplo, pela giria

parisiense, a "argot" - . uma linguagem cheia de ironia e fantasia popular. Abra urn dos muitos dicionarios desta giria e procure a palavra "jaune":

AMARELO - a cor destinada aos maridos tra!dos: cf. Sa femme Ie peignait en jaune de fa tete aux pieds (sua mulher 0 pintava de amarelo da cabec;a aos pes) -- sua mulher 0

corneava completamentej un baljaune (urn baile amarelo) - urn bai!e no qual todos os homens sao cornos.31

Isto nao cO tudo. A interpretas:ao de trai~ao vai alom.

(c) AMARELO -urn membro de urn sindicato anti-socialista.

Este uso do termo e encontrado em muitos parses. Freqiientemente ouvimos a Segunda Internacional ser mencionada como a "Internacional amareli'. "Sindi­catos amarelos" 0 urn termo familiar em muitos lugares, enquanto os Estados Unidos conhecem 0 "vi! contrato amarelo". Amarelo como a cor da trai~ao foi preservado ao ponto de estigmatizar traidores da classe operaria! Atraves da midia do cinema, Alberto Cavalcanti trouxe para 0 usa corrente urn epiteto para urn dos mais despreziveis desses traidores - 0 Cisar amarelo.32

Primos pr6ximos da gfria parisiense, 0 jargao e 0 "calao" dos Estados Unidos e Inglaterra preservaram as mesmas associa<;6es com rela<;ao ao amarelo.

o New Canting Dictionary (Novo dicionario da gfria) de 1725 afirma que 0

amarelo, significando ciumento, foi originalmente urn termo do submundo londri­no.33

Em Slang and Its Analogues Past and Present (Girias e seus an,\logos passados e presentes), 0 pai de todos os modernos dicionarios de gfria, os autores encontram interpreta~6es mais antigas, mais amplas desta cor:

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90 o sentido do filme

AMARELO subS[. (coloquial antigo). (I) generico de dume. inveja. melancolia ... tam­bern em freqiiente Frase proverbial: p'CX' J to wear yellow hose. or breeches or stockings (usar, ceroulas. culotes. au meias amarelas) -- ter chimes; ... to wear yellow stockings (usar meias amarelas) -- sec corneado ... 34

Os autores pegam Shakespeare como testemunha:

... como uma laranja de Sevilha. e exatamente da mesma cor. (Muito barulho por nada. ate II, cena,1)

'0' palida e amarelada pda melancolia ... (Noite de reis. ate II. cena 4)

... nao foras que 0 amarelo Entre em SUM cores, a fim de que ela nao smpeite. como fez ele. de que seusjilhos nao silo de StU espoIo! (Urn conto de inverno. ate II, cena 3)

A glria I\orte-americana e particularmente piraresca a este respeira:

Yellow-livered (de ffgado amarelo) _. Covarde Yellow streak (listra amarela) - Covardia. pessoa nao confiivel Ytzller dog (Cachorro amarelo) - Pessoa traic;oeira. pessoa covarde.35

Outro significado e encontrado para a amarelo no termo "yellowstuff"(coisa amarela) - dinheiro (au. algumas vezes. dinheiro falso). Uma fusao deste signifi­cado com a significado mais tradicional gerou a inspirada frase. formada a partir de "comprada" e "trai<;oeira" - "the yellow press': 3G

Porem, 0 mais interessante com relac;:ao a estes "significados simb61icos" do amarelo e que, essencialmente, nao foi 0 amarelo, como cor, que os determinou.

Mostramos que. na Antiguidade. esta interpreta~ao surgiu como a antlpoda auto matico do tom positivo do amarelo do sol.

Sua "reputas:ao" negativa na idade Media foi formada pela soma de alusoes associativas e niio mais estritamente pela cor. as arabes viam nesta cor "lividezu ao inves de "brilho". Os rabinos consideravam 0 amarelo "palidez" ao inves de "vivaci­dade", e privilegiavam as associa<;6es com a sentido do gosto: 0 gosto "trai<;oeiro" do limao. diferente da do~ura da laranja!

Este usa tambem foi preservado pela glria. Hi uma popular expressao france­sa - rire jaune (sorriso amarelo). No Paris marie' de Balzac. a capitulo 1II e intitulado "Les risettes jaunes" (Os sorrisos amarelos). Pierre Mac Orlan da a titulo de Le Rire jaune a um romance. A expressao tambem pode ser encontrada no dicionario (Parisisms) citado acima. Qual.seu significado?

Um correlara identico pode ser encontrado tanto no idioma ingles quanto no russo: um sorriso amargo (no alemao tambem: ein saures Lacheln). 0 fato interes-

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Cor e significado 91

sante e que, onde a frances usa a identifica~ao da cor, essas outras IInguas usam uma designa~o correspondente de paladar. Aqude limao dos rabinos espanh6is nos di a chave do c6digo.

A tradi~o de dividir as significados do amardo de acordo com as associas:aes foi continuada par Goethe. A maioria de suas associa~6es concretas sao feitas com texturas, mas de introduz uma abordagem psicologica atraves de uma nova dupla de conceitos: "nobre" (edell e "vulgar" (unedell, que ate acena com temas sociais!

Na parte IV, intitulada "0 efeito da cor com relac;ao as associac;oes morais", do Farbenlehre (Teoria da carl, de Goethe,lemos:

AMARELO

765. Esta e a cor mais proxima da luz ... 766. Em sua mais alta pureza, sempre carrega a natureza da claridade, e tern urn

carater sereno, alegre, suavemente excitante. 767. Neste estado, usado para roupas, cortinas, tapetes etc., e agradavel. Oouro

em seu estado perfeitamente puro, especialmente quando 0 efeito do polimento e acrescentado, nos da uma nova e superior ideia desta cor; do mesmo modo, urn amarelo forre, como aparece no cetim, tern urn magnifico e nobre efeito ...

770. Se, porem, esta cor em seu estado puro e brilhante e agradavel e deleitavel, e, em sua melhor forma, serena e nobre, par outro lado e extremamenre suscerivel a contamina~ao, e produz urn efeito muito desagradavel se maculada, au de cerro modo tende ao lado negativo. Assim, a cor enxofre, que tende ao verde, tern alga de desagradavel.

771. Quando uma cor amarela e colocada em superficies escuras e vulgares, como tecido ordinaria, felteo, au alga parecido, nas quais nao aparece com intensidade plena, 0 desagradavel efeito insinuado e aparente. Mediante uma pequena mudan~a, quase irnpercepdvel, a bda irnpressao de fogo e ouro e teansformada em uma que nao desmerece 0 epCteto de viI; e a cor da honra e da alegria se transforma na cor da ignornCnia e da aversao. A esta impressao devem sua origem talvez os chapeus amare­los dos falidos e os drculos arnarelos dos mantas dos judeusoo.37

Antes de prosseguirmos em nosso "caminho amarelo" (que parece rer-nos colocado no meio do renascimento nazista da escuridao medieval!l, observemos alguns aspectos do verde, a vizinho, no espectro, do amardo. 0 mesmo quadro aparece neste caso. Se 0 verde, em sua interpretac;ao posiriva, coincide plenamente com a imagem inicial conjecturada acima, sua interpretac;ao "sinistra" tarnbem e determinada, como 0 lado "negativo" do arnarelo, nao par associac;oes diretas, mas pda mesma ambivalencia.

Em sua prirneira interpretac;ao, 0 verde e urn sCm bolo da vida, regenerac;ao, primavera, esperanc;a. Nisto as religioes crista, chinesa e muc;ulmana concordam. Maome, acredita-se, foi auxiliado em todos os momentos crCticos de sua vida por "anjos com turbantes verdes", e assim uma bandeira verde se tornau a bandeira do Profeta.

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Ao lado disto, inumeras interpreta~6es contraditorias evolufram. A cor da esperan~ era tambem a cor da desesperan~ e do desespero: no teatro grego a cor verde-escura do mar dnha um significado sinistro sob certas circunsrancias.

Este tom de verde contem um azul forte. E e interessante a faro de, no teatro japones, onde a simbolismo da cor e tao "intimamente" ligado it imagem particular, a azul ser a cor. usada pelas figuras sinistras.

Em uma carta que me escreveu (31 de ourubro de 1931), Masaru Kobayashi, autor da obra definidva sabre. a "kumadori" (maquiagem no teatro kabuki), escre­veu:

... as cores basicas usadas no kumadori sao 0 vermelho e 0 azul. 0 vermelho e quenrc e atraentc. 0 azul, 0 oposto. e a cor dos vil6es e, entre as criaturas sobrenaturais, a cor dos fantasmas e dem6nios ...

E Portal tem isto a dizer sabre a verde:

o verde, como Durcas corcs, teve urn significado nefando; assim como foi 0 sImbolo da regenerac;ao da alma e da sabedoria, tambem significou, por oposir;:ao, degradac;ao moral e loucura.

o tcosofista sueeD, Swedenborg, da olhos verdes aos louc05 do inferno. Urn vitral cia catedral de Chartres descreve a tenta~ao de Jesus - Sata, tern pele verde e grandes olhos verdes ...

a alha, na erudic;ao do simbolismo, significa inceligencia, a lUI da mente; 0

homem pade vicl-Io em direc;ao ao bern au ao mal; Sara e Minerva, insensarez e sabedoria, foram ambos represenrados com olhos verdes.38

Abstraindo 0 verde dos objetos verdes ou a a!"arelo dos objetos desta cor, elevando 0 verde a urn "verde eterno" e 0 arnarelo a urn "arnarelo simb61ico", a simbolista que realiza este feito e impressionantemente semelhante aD louco sobre o qual Diderot escreveu em carta a Madame Volland:

.. , uma unica capacidade ffsica pode levar a mente preocupada com isro a urna infinita variedade de coisas. Peguernos urna cor, 0 arnardo por exernplo: 0 aura e arnardo, a seda camarda, a ansiedade e amarela, a bile e amarela, a palha e amarela; a quanros outros encadearnenros esre nao esra ligado? Insanidade, sonhos, conversas incoeren­res consisrem em passar de urn assunro para 0 seguinre arraves de alguma capacidade comurn.

o louco e incapaz de fazer a transi~o. Ele segura urn peda~o de palha amarela brilhanre na mao e grira que pegou urn raio de so1.39

Este louco era um uhraformalista, que via apenas a Janna do raiD de sol e a qualidade do amarelo como cor, via apenas linha e cor. E a esta cor e linha, comple-

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tamente independentes do. conteudo concreto do objeto, de di urn significado., deter­minado unica e exclusivamence por de.

NistD de se parece com seu ancestral do. perfDdD das cren~as magicas. EntaD, tambom, DS significadDs eram determinadDs peiD amardD "em si mesmD":

as antigos hindus realizavam uma sofisticada cerimonia, baseada na magica homeo­patica, para a cura da icterfda. Seu principal objetivo era eliminar 0 arnardo. passan­do-o para as criaturas e coisas amardas, como 0 sol, as quais pertence verdadeiramen­te, e obter para 0 paciente uma saudavd cor verrndha, pegando-a de uma fonte vigorosa, viva, a saber. urn touro verrnelho. Com esta intenc;:ao, urn sacerdote recitava as seguintes palavras magkas: "Para 0 sol,ira vossa dor no corac;:ao e vossa icterfcia: na cor do touro verrndho vos embrulharnos! N6s vos embrulhamos com tons verme­lhos, para a vida longa. Que essa pessoa possa ficar inc61urne e sec libertada da cor arnare1aL." Entao, para que 0 paciente se restabe1ecesse e se erradicasse completa­mente a infccc;:ao amare1a, de procedia do seguinte modo: primeiro 0 pintava da cabe~a aos pes com uma mistura feita de a~afrao-da-{ndia ou curcuma (uma planta amarela), colocava-o numa cama, prendia tres passaros, a saber, urn papagaio, urn tordo c uma pastorinha arnarela, com uma linha amare1a aos pes da camaj depois, despejando agua no pacicnte, de retirava a mistura amarda c, com isso, scm duvida, a icterfcia dele passava para os passaros ... Os andgos acreditavam que se uma pessoa, sofcendo de ictedcia, olhasse firmemenre para urn mac;:arico, e 0 passaro o!hasse fixamente para de, de se curava da doenc;:a. "Assim e a criatura", diz Plutarco, "e assim e 0 temperamento da criatura quc extrai e recebe a doen~a, que sal, como urn jato, atraves do olhar." ... A virtude do passaro reside nao em sua cor, mas em seu grande olho dourado, que extrai naturalmente a ictericia amarda. PICnio ... menciona tam­bern uma pedra que curava a ictericia porque sua cor se parecia com a da pde com ictedcia. Na Grecia moderna a ictericia e chamada de Doenc;a Dourada, e. pode ser curada, naturalmente, com ouro.40

NaD devemDs cair no. erro nem do. IDUCD, nem do. magicD hindu, que cDnside­ra que 0. sinistro pDder da dDen~ DU 0. grande pDder do. so.l residem apenas na CDr dDurada.

AtribuindD a uma CDr significado.s tao. independentes e autD-suficientes, abs­traindD a CDr do. [mommo concreto quefo; a unica fante do con junto resultante de conceitos e associafoes,

procurandD as cDrrda,oes absDluras de cor e sDm, CDr e emD~aD, abstraindD a qualidade CDncreta da CDr de urn sistema de cDres que agem "pDr

sua pr6pria co nta" , nao chegaremos a lugar nenhuffiJ teremos 0 mesmo destino dos simbolistas

franceses da ultima metade do. SOCUID XlX, sDbre DS quais GDrki escreveu:

... Devemos, des nos dizem, ligar a cada letra uma sensa~ao particular, especifica­A a frio, 0 a sauclade. U a medo etc.; entao devemos pintar estas letras com cores,

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94 o sentido do filme

como Rimbaud 0 fez. depois dar~lhes sons, tarnando-as vivas, transformando cada letra flum minusculo organismo vivo. Ista fcico, podemos come~ar a combimf.-Ias em

, 41 pa,avras ...

o dano resultante de urn metodo como este, de jogar com correspondencias absolutas, e auto-evidente.

Mas se olharmos mais cuidadosamente para os esquemas das "rela~6es" abso­lutas citadas no capitulo anterior, descobriremos que em quase todas as cita~6es 0

autor fala nao de " correspondencias absolutas", mas de imagens as quais ele ligou conceitos pessoais de. cor. Foi a partir destes varios conceitos de imagem que evolui­ram os varios "significadosu

J atribuldos peIos diferentes auto res a mesma COf.

Rimbaud come~a decidido: "A, preto; E, branco", e assim por diante. Mas no verso seguinte promete:

Algum dia nomearei 0 ber~ do qual nasceis ...

E, ao prosseguir, ele revela este "segredo", nao apenas 0 segredo da forma~o de suas pr6prias correspondencias pessoais de som e cor, mas do pr6prio princlpio pelo qual qualquer autor determina estas rela~6es.

Cada. vogal, como urn resultado de sua vida pessoal e de suas experiencias emocionais particulares, pertence, para Rimbaud, a urn grupo definido de conjun­tos de imagem, cada urn dos quais se baseia em uma cor.

"I" nao e apenas colorido de vermelho, mas:

I. purpuras, sangue espirrado. risada de Iabios tao Adoraveis. com caiva ou em extase penitence ...

"un nao e apenas verde, mas:

U, cielos. vibrac;oes divinas de mares verdes; A paz dos pastas de animais. paz das Linhas impressas pda alquimia nas grandes frontes do sabia ...

(Lembremos que, de acordo com Lafcadio Hearn, cicado anteriormente, uma figura semelhante, de "velho grego com rugas", e indicado pela inicial "x" e assim por dianee.)

Neste caso, a cor age como nada mais do que urn esdrnulo, como urn reflexo condicionado, que lembra todo urn conjunto, do qual fez parte, da mem6ria e dos sentidos.

Porem, costuma-se dizer que Voyelles de Rimbaud foi inspirado pelas lem­bran~as da cartilha que usou quando crian~. Tais cartilhas, familiares a todos n6s,

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Cor e significado 95

consistem em gran des letras do alfabeto, perto das quais aparece 0 retrato de algum objeto ou animal cujo nome come,? com a mesma letra. Seu objetivo e fixar a letra na memoria atraves do objeto ou animal. As "vogais" de Rimbaud provavelmente nasceram desta "imagem e semelhanc;a". A cada letra Rimbaud associou 0 "quadro" que, para ele, se ligava it letra. Esses quadros sao de cores variadas, de modo que as cores estao, em conseqiiencia, ligadas a letras particulares.

Isto e exatamente 0 que ocone com outros escritores. Em geral a interpretas:ao "psicologid' da cor qua cor e uma questao muito

enganosa. Torna-se mais absurdo quando este sistema de interpretaqao come,? a reivindicar "associac;6es sociais".

Como seria gratificante, por exemplo, encontrar nas cores pastel e nas perucas ernpoadas da aristocracia francesa do seculo XVUI urn reflexo, "por assim dizer", do "declfnio da for,? vital da camada superior da estrutura social, cujo lugar na hist6ria as classes medias e a burguesia estao prestes a assurnir". Como esta escala pastel de delicadas (superdelicadas!) cores dos trajes aristocr:iticos ecoa,Cao perfeitamente esta formulas:ao! Porem, hi uma explica~ao muito mais simples para esta escala de cores pastel: 0 po que cala das peru~as nos trajes que na realidade tinham cores fortes. Assim J essa "escala de cores pastel" penetra na inteligencia, sendo entendida quase como "funcional". Isto e, "coloraC;ao protetora" significando tanto quanto 0 ca­qui;42 0 p6 nao mais e uma "dissonancia", mas simplesmente nao e notado.

As cores vermelho e branco hi muito t~m sido consideradas rivais tradicionais (e muito antes da Guerra das Rosas). Mais tarde essas cores se movem em direqao a tend~ncias sociais (ao lado da representas:ao das divis6es, em situaq6es parlamenta­res, entre "direita" e "esquerda"). Brancos foram os emigrados e legitirnistas tanto na Revolu~ao Francesa quanto na Russa. Vermelho (a cor favorita de Marx e Zola) e associado it revolus:ao. Mas mesmo neste caso hi "violaq6es tempor:irias". No final da Revoluc;ao Francesa, os sobreviventes da aristocracia, os mais violentos repre­sentantes da reaqao, iniciaram a moda de usar lenqos e gravatas vermelhos. Poi tambem nessa epoca que a aristocracia francesa adotou um penteado que mostrava a nuca. Este penteado, lembrando remotamente 0 do Imperador Tito, foi chamado de "it !a TIto", mas sua origem real nada tinha a ver com Tito, alem de uma semelhan~a acidental. Essencialmente, era um sfmbolo do implac:ivel odio contra­revolucionario, porque tinha a intenc;ao de lembrar constantemente as nucas rasp a­das dos aristocratas condenados it guilhotina. E tambem os len~os vermelhos, em memorias aos lenqos de pesco~o que enxugavam 0 sangue das "vftimas da guilhoti­ni' - uma lembranqa que gritava por vingan,? por parte de todos os usuarios simpatizantes.

Assim, quando qualquer segmento do espectro da cor vira moda, podemos procurar atr:is dele a anedata, 0 episodio que liga uma cor a ideias especificamente associadas.

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96 o sentido do filme

Pode ser recompensador lembrar ouera terminologia da cor na Fran~ pre-re­volucionaria - particularmente a matiz marrom que virau moda na epoca do nascimento de urn dos ultimos Lulses - 0 matiz que nao deixa duvida quanto 11 sua origem: "caca Dauphin (coc" [caquil Delfim). Uma variante era chamada de "caca d'oie" (coc" de gansa). Quera palavra auto-reveladora e "puce" (cor de pulga). A popularidade, entre os cortesaos de Maria Antonieta, da combinas:ao do amarelo com 0 vermelho tinha pouca relac;ao com os trajes dos carrascos espanhois que mencionamos acima. Esta combinas:ao era chamada de "cardinal sur paille" (car­deal sobre palha), e era urn slmbolo do protesto da aristocracia francesa contra a prisao, na Bastilha, do Cardeal de Rohan, em relas:ao ao famoso "caso do colar da rainha'J.

Em exemplos como esses, que sao inumedveis, reside a "origem aned6tica' que esta na base das interpretac;oes "especiais" dos significados da cor nas quais Cantos autores se viciaram. As anedotas sao muito mais descritivas e expressivas do

que os significados mlsticos dados as cores! Podemos, com base em toda esta evidencia apresentada, negar totalmente a

existencia de relac;oes entre emoc;oes, timbres, sons e cores? Se nao sao relac;oes convincentes para todos os homens, podem pelo menos ser considerados comuns a grupos especiais?

Seria imposslvel negar tais relac;oes. As proprias estatCsticas frias negariam tal conclusao meclnica. Sem nos referirmos a literatura estadstica especial neste cam~ po, podemos citar novamente 0 artigo de Gorki:

... E estranho e diflcil emender fa atitude de Rimbaudl, ate nos lembrarmos da pesquisa realizada em 1885, por urn eminence oculista, entrc.os alunos da Universi­dade de Oxford. Quinhentos evince e seis desces estudantes pintavam sons com cores e vice-versa - des decidiram-sc. por unanimidadc, por uma equivalencia entre 0

Marcom e a nota do trombone, entre 0 verde e 0 tom da corneta de ca'ia. Talvez este soneto de Rimbaud tenha base psiquiatrica ... 43

Esta claro que, em estados puramente "psiquiatricos" J estes fenomenos seriam muito mais exacerbados e evidentes.

Dentro destes limites, e posslvel falar das ligac;6es entre algumas cores e algumas emoc;6es "definidas". Nas investigac;6es sobre a cor de Havelock Ellis, ele menciona algumas predilec;6es por cor estabelecidas por sua propria conta:

... na acromatopsia do histerico, como mostrou Charcot e como Parinaud confir­mou, a ordem pela qual as cores em geral desaparecem e violeta, verde, azul, verme­lho: ... esta persistencia da visao do vermelho no histerico e apenas urn caso de predile'iao felo vermelho, fieqUentemente notada como rnuito marcante entre os histericos.4

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~ Cor e sigr.:ficado 97

Essas rea<;oes a cor por pessoas histericas interessaram a outros pesquisadores, cujos resultados nos interessam apesar da terminologia antiquada:

As experiencias de Binet mostraram que as impressoes transmitidas ao cerebra pelos nervos sensoriais exercem uma influencia importante nos tipos e intensidades da excitac;:ao distribu!da peIo cerebro para os nervos motores. Muitas impressoes senso­riais agem debiHtando e inibindo os movimentos; outras, peIo contnirio, as cornam poderosos, rapidos e ativos; eIas sao "dinamogenicas" ou "produtoras de energia".

Como uma sensa'fao de prazer esta sempre ligada a dinamogenia, au a produ'fao de energia, toda coisa viva, em conseqiiencia. instintivamente procura impressoes senso­riais dinamogenicas e evita as que enfraquecem all inibem. Assim, 0 vermeIho e especialmente dinamogenico. "Quando", diz Binet num reIatorio sobre uma expe­riencia com uma paciente histerica que ficou paralisada num lado do corpot "coloca­mas urn dinamometro na mao rureita anestesicamente,insens{veI de Amelie ele - a pressao da mao chega a doze quilos. Se. ao mesmo tempo, a fazemos olhar para 0

disco vermelho. 0 numero que indica a pressao em quUos imediatamente dobra ... Se. 0 vermeIho e dinamogenico, 0 violeta, inversamente, enfraquece e inibe. Nao

foi par acaso que 0 violeta foi escolhido par muitos paises como a cor exclusiva do luto ... A visao desta cor tern urn efeito depressivo, e a desagradavel sensac;ao gerada par ela induz a tristeza uma mente inclinada ao sofrimento ... 45

Qualidades semelhantes sao atribuldas por Goethe a cor vermelha. Estas qualidades levaram-no a dividir as cores entre grupos ativo e passivo (plus e minus). Tal divisao esra ligada 11 popular classifica~ao de cores "quentes" e "frias".

Quando William Blake procurou dar instru~5es ironicas em seu Advice to the Popes who succeeded the Age of Raftel (Conselho aos Papas que sucederam 11 Era de Rafael)46, ele usou tal classifica~o:

Contrate idiotas para pintar com lUI fria & cores quentes ...

Se esta documenta~ao e talvez insuficiente para a formula~o de um convin­cente "c6digo cientIfico", no entanto a arte ha muito 0 adotou de urn modo totalmente empfrico e 0 usou impecavelrnente.

Apesar de as reas:5es de urna pessoa normal serem logicamente muito menos intensas do que as de Amelie Cle - ao olhar para um disco vermelho -, 0 artista confia bastante nos efeitos que pode suscitar com sua paleta. Para obter a tempestade dinamica de seu quadro Mulheres camponesas, Malyavin47inundou nao poracaso sua tela com uma exuberancia de vermelho vivo.

Goethe tem algo a dizer tambem sobre isto. Ele divide 0 vermelho em tres matizes: vermelho, vermelho-amarelo e amarelo-vermelho. A este ultimo matiz, nosso iaranja, ele atribui a "capacidade" de exercer influencia psfquica:

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98 o sentido do filme

AMARELO-VERMELHO

775. a lado ativo. oeste casa, encontra sua plenitude. e oao e de espantar. 0 faro de as homens impetuosos. robustos. incultos. gostarem especialmente desta COf.

Entre as na'ioes selvagens. a inclinas:ao por ela foi universalmente notada. e quando criancras, deixadas a vontadc. come~m a usar cores, nunca deixam de lado 0 tubra­escarlate e 0 zarcao.

776. Ao olharmos flXamente para uma superfIcie perfeitamente amarelo-verme­lha. a cor realmente parece enttar no corpo ... Urn tecido amarelo-vermelho perturba e lccita as animais. Conheci homens educados nos quais seu efeiro era intolcnivel se por acasa viam uma pessoa vestida com urn casaco escarlarc num dia cinzento. nuhlado ... 48

Com rela~o ao nosso interesse principal, a correspondencia de sons e sensa­¢es nao apenas com emo<;oes, mas tambem um com 0 outro, tive a oportunidade de testemunhar um faro interessante fora dos ttabalhos dentlficos ou semicientlficos.

Sua fonte pode nao ser exatamente "legal", mas foi direta e bastante logica­mente convincente para mim.

Tenho um conhecido, S., ao qual fui apresentado pelo Professor Vygotsky e pelo Professor Luriya.49 S., incapaz de encontrar qualquer outro uso para suas faculdades incomuns, trabalhou durante anos no teatro de vaudeville, surpreenden­do as pessoas com sua mem6ria. Apesar de ser um homem com um desenvolvimen­to perfeitamente normal, manteve ate a maturidade todos os tra~os dos processos sensoriais primarios, que os seres humanos perdem com a evolu~o de seu raciod­nio 16gico. Em seu caso, particularmente, era a ilimitada capacidade de memorizar objetos concretos atraves da visualiza~o de seu ambiente, assim como do que e dito sobre eles (na evolu<;ao da capacidade de generalizar, esta primitiva forma de raciodnio, ajudada por fltores particulares acumulados, retidos pela memoria, se atrofia).

Assim, S. podia, ao mesmo tempo, se lembrar de qualquer numero de figuras ou palavras colocadas juntas sem significa~o. Ele podia entao recita-las do infcio ao fim - do fim ao infcio - pulando cada segunda ou terceira palavra, e assim por diante. Alem disso, podia, um ano e meio depois, repetir 0 feito, e sem erro. Podia repetir todos os detalhes de qualquer conversa que ouvira, e podia recitar de mem6ria todas as experiencias das quais parricipara (e os quadros usados nessas experiencias em geral continham milhares de palavras!). Em resumo, era 0 prot6ti­po vivo, e naturalmente mais espantoso por isso, do Sr. Mem6ria de as trinta e nove degraus de Hitchcock.50 A "eid"tici' tambem figurava entre seus talentos, isto e, a capacidade de fazer uma reprodu~o exata, nao conscientemente, mas automa­ticamente, de qualquer desenho de qualquer complexidade (esta capacidade nor­malmente desaparece com a evolu~o da compreemao das relarifes nos desenhos ou quadros, e do exame consciente dos objetos descritos neles).

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Cor e signif:cado 99

Repito que todos esses tra""s e habilidades foram preservados em S., ao lado dos tra~os absolutamente normais adquiridos atraves de urn desenvolvimento ple­no da atividade<consciente e dos processos de racioclnio.

S., e claro, possula, muito mais do que qualquer outro a quem eu conhecera, o poder da sinestesia, ou da produ~ao, a partir de uma impressao sensorial de urn tipo de imagem mental associada, de uma impressao sensorial de outro tipo. Os exemplos particulares citados acima se limitavam a capacidade de ver sons em termos de cor e ouvir cores como som. Certa vez tive oportunidade de discutir isso com de. o fato mais interessante. para autenticar 0 que eu flcaria satisfeito em atestar. era que a escala de vogais era vista por de nilo como cores, mas como uma escala de variados valores de iluminafilo. A cor, para de, era suscitada apenas pdas consoantes. Isto me parece muito mais convincente do que todos os calculos citados acima.

Podemos dizer sem medo de nos cont;adizermos que existem rda<;6es pura­mente flsicas entre som e vibra~5es de cor.

Mas pode-se dizer tambem, de modo igualmente categ6rico, que a arte tem pouquissimo em comum com tais relttroes puramente ftsicas.

Mesmo se uma absoluta correspondencia entre cores e sons Fosse revelada a n6s, urn tal controle, na produ~ao de filmes, nos levaria, sob as mais perfeitas condi~5es, ao mesmo curioso destino do joalheito descrito por Jean d'Udine:

Conhec;o urn ourives que, apesar de muho inte~igente e culto, certamente e urn artista medIocre. Ele esta determin~do a desenhar vasos e j6ias originais a qualquer custo. Por nao ter genu{no impulso criativo, veio a acredirar que tadas as formas naturais sao belas (0 que, por sinal. nao e verdade). Para conseguir as formas mais puras. con ten· ta·se em copiar exatamente as curvas produzidas pelos instrurnentos usados no estudo da Hsica com 0 objetivo de analisar os fenomenos naturais. Seus principais modelos sao as curvas leves produzidas numa tela pelas vibrac;6cs, num plano perpen· dicular, dos diapas6es, com espelhos nos extremos, usadas na fIsica para estudar a complexidade relativa dos varios :ntervalos musicais. Por exemplo, ele copiara numa fivda de cinto a figura oito, com contornos mais ou menos elegantes. produzida pelos diapasoes s:ntonizados na oirava. Acho que seria difIcil convence·lo de que os harmo­niosos tons em oitava, que na musica formam urn acorde perfeitamente simples. nao transmitem uma emoc;ao comparavel quando vistas. Quando de desenha urn broche cinzelando a cueva particular produzida par dois diapas6es soando com nove interva· los entre cada urn, acredira firmemenre que esta criando. atraves dOl arte pl:istica, uma emoc;ao que corresponde ~ harmonias que 0 Sr. Debussy inrroduziu na arte musi­cal.51

Na arte, nilo silo as relafoes absolutas as decisivas, mas as rda~5es arbitrdrias dentro de urn sistema de imagens ditadas pda obra de arte particular.

o problema nao e, nem nunca sera, resolvido por urn catalogo fixo de slmbolos de cor, mas a inteligibilidade emocional e a fonfilo da cor surgirilo da ordem

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natural de apresentafiio da imagem colorida da obra, coincidente com 0 processo de moldar 0 movimento vivo de toda a obra.

Mesmo dentro das limital;6es de urn raio de cor branco e preto, no qual a maioria dos filmes ainda e produzida, urn desses tons nao apenas se recusa a receber urn unico "valor" como uma imagem absoluta, mas po de ate assllmir significados absolutamente contradittfrios, dependendo apenas do sistema geral de imagens pelo qual se optou para 0 filme em particular.

Sen. suficiente observar 0 papel tematico desempenhado pelas cores branco e preto em 0 velho e 0 novo e em Alexander Nevsky. No primeiro filme, 0 preto foi associado a tudo reacionario, criminoso e ultrapassado, enquanto 0 branco foi a cor que representava felicidade, vida, novas formas de administra~ao.

Em Alexander Nevsky, os trajes brancos do teutonico Ritter eram associados aos temas da cruel dade, opressao e morte, enquanto a cor preta, ligada aos guerrei­ros russos, descrevia os temas positivos de herolsmo e patriotismo. Este desvio da imagem em geral aceita para essas cores teria sido menos surpreendente para os crltkos e a imprensa estrangeira (cujas obje~6es foram interessantes em si mesmas) se eles tivessem se lembrado de uma espantosa e poderosa passagem da literatura­o capitulo "A brancura da baleia", de Moby Dick, de Melville.

Hi muito tempo introduzi esta questao das relafoes entre imagem e cor ao analisar a questao das relafoes dentro da imagem da montagem em geral. 52

Mesma se (emos esta scqiUncia de fragmentos de montagem:

Urn velho grisalho, Urna velha grisalha, Urn cavalo branco, ,Urn telhado coherto de neve)

ainda estamos lange de saber se esta seqUencia diz respeito a "velhicc" ou a "brancura", Uma seqUencia como esta de tiras de filme continua por algum tempo antes que

possamos finalmente descobrir a pC'ia-guia do filme, que imediatamenrc "identifica" toda a seqUencia de urn modo ou de autro.

Eis por que e aconselhavel colocar esta pec;a "identificadora" 0 mais perto poss!vel do in!cio da seqUencia (nurna estrutura "ortodoxa"). Algumas vezes se tocna necessa­rio ate faze-Io atraves de urna legenda.

Isto significa que niio obedecemos a nenhuma ''lei abrangente" de "significados" absolutos e correspondencias entre cores e sons - relafoes abJolutas entre estes e emofaes especificas, mas significa que decidimoJ quais as cores e sons que adequariio melhor it dada tarefo ou emofiio que queremOJ.

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Cor e significado 101

Obviamente, a interpretac;ao "geralmente aceita" pode servir como urn im­pulso, e bern eficiente, para a construc;ao da imagem colorida do drama.

Mas a lei impllcita aqui nao legalizara nenhuma correspondencia absoluta "em geral" J mas exigira que a consistencia, numa chave de' tom-cor definida, permeando coda a obra, deve ser dada por uma estrutura de imagem em estrita harmonia com 0 tema e a id"ia da obra.

Notas

1. Esccito ern 1940, e publicado na revista Iskusstvo Kino, de dezemhro desse mesmo ano. com o t!culo de "Montagem Vertical". Segundo de tres ensaios. 0 primeiro publicado em setembro daquele mesmo ano, 0 terceiro em janeiro de 1941. Pequenas modificaC;6es foram feitas para a publicac;ao em 0 sentido do fi/me. Neste mesmo perlodo. final de 1940 e comec;o de 41, Eisenstein escreveu urn texto sobre urn projero que prerendia realizar em cores. "Esrudo sobre a Cor no Filme '0 Arnor do Poeta .... biografia de Puchkin. Nao pub:icado na epoca, 0 texro encerra 0 terceiro volume das Memorias de Eisenstein: e a ultima das Trer cartas sobre a cor (S.M. Eisenstein. Mlmoircs / 3 Oeuvres 6. Union Generale d'~ditions, Pacis, 1985). Dois outros rextos de Eisenstein sobre a cor fazem parte da coleranea Reflexoes de um cineasta (Zahar Editores. Rio de Janeiro. 1969): "Nao colocido, mas em cores", feito em 1940 para a revista Kino, e "Da Cor no Cinema", texto inacabado feiro para Lev Kulechov, que preparava nova edic;ao de seu Tratado gera/ de realizafiio cinematogrdfica. As ultimas linhas do rexro estao datadas de lOde fevereiro de 1948, vespera da morte de Eisenstein.

2. N.S.E.: Walr Whitman, Leaves o/Grass. "Locations and rimes", Doubfeday, Doran. 3. "Der gelbe Klang. Eine BUhnenkomposition von Kandinsky", in Der Blaue Reiter. almana­

que do grupo de artistas expressionistas criado em julho de 1911. Publicado em Munique em 1912, pela R. Piper por ocasiao da segunda exposic;ao coletiva do grupo. Editado por Wassily- Kandinsky (1866-1944) e Franz Marc. Der Blaue Reiter. alem da composic;ao reatcal de Kandinsky. trazia colaborac;oes de Arnold Schonberg, Anton von Webern e Alban Berg, e colocava desenhos de Picasso e Matisse ao lado de desenhos de ccianc;a, foros de escu!turas africanas e ilustralioes do pimor russo David Bourliuk. Dergelbe Klangfoi em seguida. neste mesmo ano, publicado pela mesma edirora em separado.

4. N.S.E.: Ambos, Remy de Gourmont e Humpty-Dumpty. adotaram este caminho. Urn diz: "transformar em lei as impressoes pessoais. este e 0 grande esforc;o de urn homem se ele e sincer~". 0 ourro: "quando eu uso uma palavra cIa significa apenas 0 que eu escolhi que significasse- nem mais nem menos".

5. N.S.E.: Paul Gauguin, "Notes eparses: Genese d'un rab!eau". In Paul Gauguin de. Jean de Rotonchamp. Weimar, Grafvon Kessler. 1906, pp. 218-20.

6. N.S.E.: Pintado em 1892 e pertencente a coles:ao A Conger Goodyear, Nova York. 7. N.S:E.: Further Letters o/Vieent van Gogh to his Brother, 1886-1889. Houghton Miffiin. 1929,

carta 534. 0 quadro pertence a colec;ao Stephen C. Clark, Nova York. 8. N.S.£.: In August Strindberg, ThereAre Crimes and Crimes. Scribner's, Nova York, 1912. 9. N.S.E.: T.5. Eliot, Collected Poems. "Preludes: Ill", Harcourt Brace [Poemas. "Preludios 3",

rradus:ao de Idelma Ribeiro de Faria, Sao Paulo, Hucitec, 1980]. 10. N.S.E.: Ibid., "Portrait of a Lady",

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102 o sentido do filme

11. N.S.E.: :bid., "The Love Song of aJ. Alfred Prufrock" [Poemas, "Can,ao de amor de J. Alfred Prufrock", op. cit.].

12. N.S.E.: Andrei Belyi (Boris Nikolayevich Bugayev). Masterstvo Gogolya. Moscou.. 1934. 13. Rembrandt, filme ingle.. realizado em 1936 por Alexander Korda (1893-1956, cineasta

ingles de origem hungara cujo verdadeiro nome era Sandor Laszlo Korda) com 0 atar Charles Laughton (1899-1962) no papel principal.

14. N.S.£.: Frederic Portal, Des coukurs symboliques dans lantiquitl, Ie Moyen-Age. et leI temps modernes. Paris. Trettel et Wurtz. 1857 (Cicada a partir de Georg Friedrich Creuzer, Religions de l'Antiquitl, voI.U).

15. N.S.E.: Havelock Ellis, "The Psychology of Yellow", Popular Science Monthly, maio de 1906. 16. Nikolai Yakovlevich Marr (1864-1934). 17. N.S.E.: Carra publicada em Ogoniok. em Moscou, em 16 de maio de ! 926. 18. N.S.E.: Van Gogh, op. cit., carta 520. 19. N.S.E.: Walt Whitman. Leaves afGrass. "To You", 20.N.S.E.: Ibid., "Song of Myself". 21.N.S.E.: Ibid., "Salut au monde". 22.N.S.E.: Ibid., "Our Old Feuillage" [Paul Zweig, Walt Whitman, a flrmaflio do poeta, rradu,ao

do texto de Angela Melim e traduc;ao dos poemas de Eduardo Francisco Alves. Rio de ;aneiro. Jorge Zahar Editor, 1988, p.292 "Nossa velha folhagem"].

23.N.S.E.: Walt Whitman. uaves of Grass. "Song of the redwood-tree". 24.N.S.E.: Ibid., "Sparkles from the Wheel". 25.N.S.E.: Ibid.. "Icalian Music in Dakota", 26.N.S.E.: Ibid., "When Lilacs Last in the Dooryard Bloom'd". 27.N.S.E.: :bid. 28.N.S.E.: Ibid .• "The Wound-Dresser", 29.N.S.E.: !bid .• "The Sleepers". 30.N.S.E.: Portal. op. cit. 31.N.S.E.: Parisismen: Alphab~tisch g~ordn~t~ Sammlung tier eigenartigsten Amdrucksweisen des

Pamer Atgot von Professor Dr. elsa;re Villatte. Berlin-Schoneberg. Langenscheidtsche Verlagsbuch­handlung, 1888.

32. Yellow Caesar, filme ingle.. realizado em 1940 pelo brasileiro Alberto Cavalcanti (1897-1982). documer..cario de montagem de cenas de cinejornais sobre Mussolini.

33. N.S.E.: Citado in Eric Partridge. A Dictionary of Slang and Unconventional English. Londres. Routledge, 1937.

34, N.S.E.: John S. Farmer e W.E. Henley. Slang and its Analogues. Past and Present. voLVII. Londres, 1890.

35. N.S.E.: Maurice H, Weseen.A Dictionary of American Slang. Crowell. 1934. 36. N.T.: Traduzido literaImente. "imprensa amarela". 0 que nOs cosrumamos chamar de

"imprensa marrom", 37. N.S.E.: Johann Wolfgang von Goethe, Farbenkhre. 38. N.S.E.: Portal, op. cit. p.212. 39. N.S.E.: Denis Diderot. Lettres a Sophie Volland, Paris, Gallimard. 1930. Vol. I. Carca XLVII.

20 de outubro de 1760. 40. N.S.E.: James Frazer. The Golden Bough. a study in magic and religion. MacmiUan. 1934. Parte

I. "The Magic Art and the Evolution of Kings", p.15-6. 41. N.S.E.: Maximo Gorki. "Paul Verlaine e os Decadences". Smarskaya Gazeta (Samara) m'ime­

ros 81. 85,1896.

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Cor e significado 103

42. N.S.E.: The Oxford Dictionary: caqui. Cor de poeira. amarelo-escuro ... Hindustani. poeiren-co.

43. N.S.E.: Maximo Gorki, op. cit. 44. N.S.E.: Havelock Ellis, "The Psychology of Red". Popular Science Monthly, agosto-setembro

de 1900. 45. N.S.E.: Max Nordau, Degeneration. App:eton. 1895. Livre I. Fin de Siecle (Citado a partir de

Alfred Binet, "Recherches sur les ain!rations de la conscience chez les hysteriques", in Revue Philosop­hique. vol.XVII. 1889; e Ch. Fen!, "Sensation et mouvement", Revue Philosophique, 1886. pp.28-29.)

46. N.S.E.: Poetry andProse ofWilliam Blake. Random House. 1939. Anotaljoes para os discursos de Sir Joshua Reynolds. p.770.

47. N.S.E.: Filipp Andreyevich Ma!yavin. 0 quadro pertence a coleljao da Galeria Tretiakov, Moscou.

48. N.S.E.: Goethe. op. cit. 49. N.S.E.: Lev Semyonovich Vygocski (1896.1934); Alexander Romanovich Lurya, autor de

The Nature of Human Conflicts (Liveright. 1932) e professor visitante da Columbia University. 50. Thirty-Nine Steps. filme ingles realizado em 1935 por Alfred Hitchcock (1899-1980). Ivor

Montagu e Michael Balcon foram as diretores de produc;ao. 0 Senhor Memoria foi interpretado por Willie Watson.

51. N.S.E.: Jean d'Udine (Albert Cozanet). DArt et Ie geste. Paris, Alcan. 1910. 52. ''A Quarta Dimensao no Cinema". originalmente publicado na revisra Kino em agosro de

1929 e posreriormente selecionado par Eisenstein para 0 livro Afonna do fi/me.

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IV. Forma e conteudo: onitica1 I

, .. se. a uma composic;ao ja interessante devido a esco­Iha do rerna, voce acrescenta uma disposic;:ao de linhas que aumente 0 cfdro. acrescenta 0 chiaroscuro que atraia e prenda a imaginac;ao. e a cor adequada as suas caractedsticas, resolveu urn problema muiro difIcil­entrou no Icino das ideias superiores. fazendo 0 que 0 mtisico faz quando. a urn tinieo rema, acrescenta 05

recursos da harmonia e de suas combina~es. EUGENE DELACROIX2

Sempre pegava a parritura e a lia cuidadosamente du­rante a intcrpreta¢o, a fim de que, ao mesmo tempo, reconhecesse 0 sam - a voz- de cada instrumento e a parte que Ihe correspondia ••• Ouvindo atentamentc, cambem descobri. sozinho. a intangevelliga¢o entre cada instrumento e a verdadeira exprcssao musical.

HECTOR BERLlOZ3

Urn poema de Shakespeare ou Verlaine. que parece tao livre e vivo e tao distame de qualquer objetivo cons­ciente como a chuva que cai sobre urn jardim. ou as luzes do entardecer, revela-se 0 discurso ritmico de uma emocrao incomunicaveI de outro modo. pelo me­nos tao adequadamente.

JAMES JOYCE4

No capitulo II discutimos a nova questao colocada pelas combina~6es audiovisuais - a de solucionar urn problema de composi~[o totalmente novo. A solu~[o deste problema de composic;:ao reside em encontrar a chave para a igualdade rftmica de uma faixa de musica e uma faixa de imagem; tal igualdade rCtmica nos tornaria

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106 o sentido do filme

capazes de unir ambas as faixas "verticalmente" au simultaneamente: igualando cad. frase musical condnua a cada fase das contlnuas faixas de imagem paralelas - -nossos planas. Isto sera condicionado par nossa adesao a lei que nos permite combinar "horizontalmente" ou "continuamente": plano apcs plano, no cinema mudo - frase ap6s frase de um tema em desenvolvimenta na musica. Fizemos, com relar;ao a esta questao, uma analise das teacias existentes sobre as correlac;6es gerais entre fenomenos sonoras e visuais. Tambem examinamos a questao de se correlacionarem fenomenos visuais e sanoras com emoc;6es especfficas.

Com estes problemas em mente, discutimos a questao da correla~ao entre musica e cor. E conclulmos que a existencia de equivalentes absolutas de sam e cor - encontrados na natureza - nao podem desempenhar um papel decisivo numa obra criativa, exceto de urn modo ocasional, "complementar".

o papel decisivo e desempenhado pela estrutura da imagem da obra, nao tanto usando correla~6es geralmente aceitas, mas estabelecendo nas imagens de uma obra criativa especifica quaisquer correla¢es (de sam e enquadramenta, sam e cor etc.) que sejam ditadas pela idiia e tema da obra particular.

Passemos agora das premissas gerais para as mitodos concretos de constru~o de relacroes entre ffitisica e quadro. Esses metodos nao vao variar na essencia, nao importa quao variadas sejam as circunsrancias: nao faz diferen~ se 0 compositor escreve a musica para a "ideia geral" de uma seqUencia, ou para a montagem provis6ria au final da seqUencia; au se amerada e organizado numa dire~o contriria, com a diretor construindo a mont.gem dos planas de acordo com a musica ja escrita e gravada na trilha sonora.

Gosraria de salientar que em Alexander Nevsky literalmente tadas essas abor­dagens posslveis foram usadas. Hi seqUencias nas quais os planas foram montados de acordo com a trilha musical previamente gravada. Hi seqUencias para as quais a pe~ musical inteira foi escrita de acordo com a montagem final dos planas. Hi seqUencias que contem ambos as metodos. Hi ate seqUencias que fornecem mate­rial para as humoristas. Um exemplo e a cena de batalh., onde gaitas e tam bores sao tocados pelos soldados russos vitariosos. Nao consegui achar um modo de explicar a Prokofiev qual a efeito preciso que deveria ser "vista" em sua musica neste alegre momenta. Venda que nao estavamos chegando a lugar nenhum, mandei que fossem fabricados alguns instrumentos "adere~os", filmei-os sendo tocados visual­mente (sem sam), e projetei as resultados para Prokofiev - que quase imediata­mente entregou-me um exato "equivalente musical" daquela imagem visual de gaitas e tam bores que eu the mostrara.

De modo semelhante foram produzidos as sons das gran des trombetas SDpra­das pelas fileiras alemas. Do mesmo modo, mas inversamente, se~6es inteiras da pacrimra algumas vezes sugeriam solu~6es visuais plasticas que nem ele nem eu havlamos vislumbrado antes. FreqUentemente essas se~5es se adequavam tao perfei­tamente ao "sam interior" uniflcado da seqUencia, que agora parecem "concebidas

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Forma e conteudo: pradca 107

previamente:', Poi 0 caso da cena de Vaska e Gravilo Olexich se abrac;:ando antes de partirem para seus poscos, assim como de uma grande parte da seqUencia dos cavaleiros galopando para 0 ataque - ambas as seqii~ncias tiveram efeitos que nao esperavamos absolutamence.

Esses exemplos citados a fim de confirmar a declara~ao de que 0 "metodo" que estamos propondo aqui foi testado "de tras para a frente" para verificarmos todas as suas possfveis variac;6es e matizes.

Entao, 0 que e este metodo de constru~ao de correspond~ncias audiovisuais?

Dois dos planas de Alexander Nevsky mostrados a Prokofiev par Eisenstein (ver paginas 106-7) para os quais

o compositor escreveu seu jjequivalente musical".

Uma resposta ingenua a esCe problema seria enconCrar equivalences para os elementos puramente pldsticos da mUsica, '

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108 o sentido do filme

Tal resposta nao seria apenas ingenua, mas infantil e sem semido, levando inevitavelmente as confus6es de Shershavin, personagem do romance de Pavlenko, Avioes vermelhos voam para 0 Leste:

De sua balsa ele droll urn caderno com uma capa de oleado descascada, com a inscric;ao Mtlsica ...

"0 que e isto?" J perguntou ela. "Minhas impress6es sabre mUsica. Cerra vez telleei reduzir tuda 0 que ouvia a urn

sistema. para en tender a 16gica da musica antes de entender a pr6pria mUsica. Encantei-me com urn cerro velho, urn pianista de cinema, urn ex-coronel da Guarda. "Como scam as instrumentos?". 'Como coragem', disse 0 velho. 'Por que coragem?' J

perguntei. Ele deu de ombros. 'D6 maior. si bemal maior. fa bemal maior sao tons

firmes. resolutos. nobres', de explicou. Habituei-me a ve-Io antes de 0 filme comes:ar. conquistei-o com minha ras:ao de cigarros - ja que eu nao fumava - e perguntava­lhe como a ffiUsica devia ser entendida ...

Continuei a visitoi·Io no cinema, e em papeis de bala ele escreveu 0 nome das obras que toeava e seu efeito emocional. Abra 0 eaderno de anota'r0es e riremos juntos" ...

Ela leu: "'Can'rao das donzelas', de Demonio, de_Rubinstein: tristeza. Fantasiestiicke (Pe,a de Fantasia) nO 2 de Schumann: inspira,ao. Barcarola dos Contos de Hoffinan de Offenbach: amor. Aberrura deA dama de espadas, de Tchaikovski: doen",." Ela fechou 0 caderno. "Nao posso continuar a Ier", disse. "Estou envergonhada de voce.)I

Ele corou, mas nao se rendeu. "E, sabe, escrevi e escrevi, ouvi e tomei notas, comparei, confrontei. Urn dia 0

velho estava toeando algo grandioso, inspirado, alegre, animador, e eu irnaginei irnediaramente 0 que denotava: significava arrebatarnento. Ele terminou a pe'ra e me jogou uma nota. Acontece que ele estava tocando a Danca macabra, de Saint-Sacns, urn terna de terror e horror. E eu percebi tees coisas: prirneiro, que meu coronel flao entendia nada de mtisicaj segundo, que era burro como ele s6, e terceiro, que apenas forjando alguern se. torna ferreiro."j

Aiem de defini~6es tao patememente absurdas como essas, qualquer definis:ao que se aproxime. deste metodo de compreemao limitadamente representativa da mt1sica inevitavelmeme leva a visualiza~6es de carater muito banal .- se, por qualquer razao, forem exigidas visualiza,6es:

"Arnor": urn casal se abras:ando. ":Joenc;a": urna velhacorn urn saco de agua quente no estornago. Se ainda acrescemarmos as imagens evocadas pela "Barcarola" uma serie de

cenas venezianas, e a Abertura deA dama de espatlas varias visitas de Sao Petersbur-

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Forma e conteudo: pratica 109

go -- 0 que acontece? A "ilustrac;ao" dos amantes e a "ilustrac;ad' da velha sao descruldas.

Mas retiremos destas "cenas" venezianas apenas os movimentos de aproxima­fao e afastamento da agua, combinamos com 0 jogo de luzes correndo e retrocedendo sobce a superflcie dos canais, e imediacamente nos afascamos, pe!o menos urn grau, da serie de fragmencos de "iluscra~ao", enos aproximamos de uma resposca para 0

movimento de uma barcarola sentido interiormente. o mlmero de imagens "pessoais" que surgem a partir deste movimento inter­

no e ilimitado. E todas irao refletir este movimento interno, porque todas se basearao na

mesma sensa~ao. Isco inclui ace a iluscra~ao engenhosada "Barcarola" de Offenbach pe!as maos de Walt Disney,Gonde a solu?o visual e urn pavao cuja cauda reverbera "musicalmente", e que olha para a lago para la encontrar as contornos identicos das penas opalescences de sua cauda, reverberando de cabe~ para baixo.

Todas as aproxima~oes, retrocessos, ondula~oes, reflexos e opalesc~ndas que vieram a mente como uma ess~ncia adequada a ser retirada das cenas venezianas foram preservadas por Disney de acordo com 0 movimento da musica: a cauda aberta e seu reflexo se aproximam e se afastam de acordo com a proximidade, do lago, da cauda aberta em :eque - . as penas tremulam e reverberam - e assim por diante.

o importante neste caso e que a imagern de modo algum contradiz 0 "terna do arnor" da "Barcarola". Apenas neste caso ha urna substituic;ao dos "supostos" arnantes por urn trac;o caracteristico dos amantes - uma opalescencia sernpre em muta~ao de aproxima~ao e afastamento urn do outro. Em vez de urn retrato literal, este tra~o tornou posslve! uma base de compositao tanto para 0 estilo de desenho de Disney nesta seqUencia, quanto para a movimento da musica.

Bach. par exemplo, construiu sua musica sobre esta mesma base, procurando eternamente os modos de movimento que expressavam 0 movimento fundamental que caracterizava seu tema. Em sua obra sobre Bach, Albert Schweitzer fornece inumeras citac;6es musicais para prova-Io, inclusive a curiosa circunstancia encon­trada na Cantata de Natal nO 121:7

Ate onde ele ousara ir na musica e revelado pela cantata de Natal Cristum wei sollen loben schon (no 121). 0 texto da aria "Johannis freudenvolles Springen e,kannte dich mein Jesu schon" se ref ere a passagem do Evangelho de Sao Lucas. ICE aconteceu que. quando Isabel ouviu a sauda~o de Maria. 0 bebe deu saltos no utero.» A musica de Bach e sirnplesmente urna longa serie de violentas convulsoes.

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110 o sentido do filme

Violino I ~ k '¥J1nW tD'EJ' J3 .i I;. JI£~j% Continuo ~ill.O j J ; J1oiJlltlFfj,J]I £l10 WI

Uma busca semelhante, ainda que mais involuntaria, foi confessada por urn tipo bern diferente de compositor, Giuseppe Verdi, em carta a Leon Escudier:

Hoje enviei a Ricordi 0 ultimo ate de Macheth terminado e revisto ... Quando olivi-Io. observani que escrevi uma fuga para a baralha!!! Uma fUga? Eu,

que detesto tuda 0 que cheira a academia e que nao faero uma coisa assim ha quase uinta anos!!! Mas digo-lhe que, neste casa, essa forma musical e a idea!. A repeti~o do terna e.do contratema. 0 choque das dissonancias. os sons entrechocantes. expres­sam a baralha bastante bem ... 8

As imagens musicais e visuais na realidade nao SaO comensuraveis atraves de elementos estritamente "plasticos". Se falamos de rela~6es verdadeiras e profundas e propor~6es entre a musica e 0 quadro, s6 po de ser com refer~ncia as rela~6es entre os movimentos fondamentais da musica e do quadro, isto e, elementos estruturais e plasticos, ja que. as rela¢es entre os "quadros", e os "quadros" produzidos pelas imagens musicais em geral sao tao individuais, quanto 11 percep~ao, e tao pouco concretas que nao podem sec inseridos em nenhum "regulamento" estritamente

metodol6gico. 0 exemplo de Bach e prova eloqUente disto. Podemos falar apenas do que e realmente "comensudvel", isto e, movimento

na base tanto da lei estrutural da pe~a musical determinada, quanta da lei estrutural da representa~o pict6rica determinada.

Neste casa, uma compreensao das leis estruturais do processo e do fiemo que estao na base da estabiliza~ao e desenvolvimento de ambos proporciona 0 unico fundamento firme para 0 estabelecimento de uma unidade entre os dois.

15to ocone DaD apenas porque esta compreensao do movimento regulado e "materializada" em igual medida atrave. da especificidade particular de qualquer arte, mas e principalmente porque a lei estrutural.e geralmente 0 primeiro passo em dire~ao 11 personifica~ao de urn tema, atraves de uma imagem ou forma da obra criativa, nao importa 0 material no qual 0 tema e modelado.

Isto fica claro contanto que. trabalhemos com tearia. Mas 0 que acontece na pratica?

A pratica revela este principio com uma simplicidade e clareza ainda maio res. A pratica e construfda, de certo modo, de acordo com as seguintes Iinhas:

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Forma e cor.teudo: pratica 111

Todos nos referimos a pec;as musicais parriculares como "transparentes", ou "dinamicas", ou que tern urn "padrao definido", ou "contornos indistintos".

Fazemos isso porque a maioria de n6s, ao ouvir musica, visualiza alguns tipos de imagens pl:isticas, vagas ou claras, concretas ou abstratas, mas de algum modo peculiarmente rdacionadas e correspondendo as nossas proprias perceproes da mu­sica em questao.

No caso mais raro de uma visualizac;ao abstrata ao inves de conereta ou dinamica, urn epis6dio que alguem registrou a respeito de Gounod e significativo. Ao ouvir urn concerto de Bach, Gounod subita e ponderadamentedeclarou: "Sinto algo octagonal nesta musica ... "

Esta declara¢o e menos surpreendente quando nos lembramos que 0 pai de Gounod era "urn pintor de grande merito" e sua av6 materna era "musicista e poetisa". 9 Ambas as correntes de impress6es foram tao vIvidas em sua infancia, que de gravou na memoria as possibilidades igualmente atraentes de trabalhar no campo das artes plasricas assim como na musica.

Mas, numa analise final, tal "geometrismo" pode nao ser tao excepcional. Tolstoi, por exemplo, faz a imaginaqao de Natasha retratar urn conjunto

muito mais intricado - a imagem completa de urn homem - atraves de uma figura geometrica. Natasha descreve Pierre Bezukhov 11 sua mae como urn "qua­drante azul". 10

Dickens, outro grande realista, ocasionalmente mostra as imagens de seus personagens exatamente atraves deste "meio geometrico", e e bastante provavel que~ nestes casos, seja apenas atraves deste meio que possa revelar 0 personagem "profundamente". ,

Vejamos 0 Sr. Gradgrind na pagina de abertura de Hard Times (Tempos diflceis) - urn homem de paragrafos, cifras e fatas, fatos, fatos:

o cenoirio era abobada simples despojada, monotona de uma sala de aula, eo dedo indicador quadrado do orador enfatizava suas observac;oes sublinhando cada senten­c;a com uma linha fcita na manga do professor. A enfase era ajudada pela parede quadrada da testa do orador, que tinha as sobrancelhas como base, enquanto seus olhos encontravam comoda instalac;ao em duas escuras cavernas, sombreadas pela parede ... 0 porte obstinado do orador, casaco quadrado, pernas quadradas, ombros quadrados -- mais ainda, seu proprio cachecol, trcinado para rodear sua garganta sem dar urn aperto incomodo, como um fata obstinado t 0 que realmente era -, tudo aumentava a enfase.

"Nesta vida, so 0 que queremos sao Fatos, senhorj nada alem de Fatos!"

Outro exemplo de nossa visualiza¢o da musica e a capacidade de cada urn de nos, naturalmente com varia¢es individuais e com urn grau maior ou menor de expressividade, de "descrever", com 0 movimento das maos, 0 movimento percebi­do por nos em alguma nuanqa da musica.

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112 o sentido do filme

o mesmo e verdadeiro quanto a poesia. onde"o ritmo e a metrica sao seneidos pda poeta, originariamente, como imagens de movimenco.

Puchkin expressou claramente como a pacta se sente quanta a esta identifica­<;3.0 entre metrica e movirnento, em uma estrofe ironica, a sexta de 0 chale em Kolomma:

Pencametros exigem uma cesura para descanso Depois do segundo pet concordo. Se nao, voce oscila entre fossa c.cumc. Mesmo que eu esteja reclinado num sofa, Sinto-me como se um cocheiro embriagado Estivesse me sacudindo sabre cam pas de milho numa carro~a. 11

E e Puchkin que proporcion. alguns dos melhores exemplos de tradu,ao do movimento de urn fenomeno para verso.

Por exemplo. 0 b.ter de urn. onda. 0 idioma russo nao tern urn. palavr. que descrev. adequada e sucintamente todo 0 movimento de uma onda. subindo numa curv. e espirrando agua quando cai. A lingua alema e mais afortunada: tern urn. palavr. compost. - Wellemchlag - que descreve este quadro din:lmico com absoluta exatidao. Em algum lugar Dumas. pai.lamenta 0 fato de a lingua francesa obrigar seus autores a escreverem: "0 som da agua bateode contra a superffcie", enquanto urn autor ingles tern a sua disposic;ao a palavra unica. rica. "splash" 0

Porem. duvido que a literatura de qualquer pals tenha mais brilh.nte tradufiio para 0 movimento da poesia. da dinamica das ondas batendo. do que a passagem da enchente em Cavaldro de bronze, de Puchkin. Em seguid. ao conhecido dlstico:

Vejam Petropol como flucua, Como Tritao no fundo, ate a cintura!

prorrompe a enchente:

Urn cerco! as petigosas ondas, atacando, Sobem como ladtoes pelas janelas; refluindo, As duras praas dos barcos golpeiam 0 vidra; Tinas. cheias de panos ensopados, passam boia.1Jdo; E toras, telhados e chos:as. tudo despedafjadoo Espalhadas as rnercadodas dos pr6speros negociantes E as mIseras quinquilharias do esmoler, Pontes varridas pelas rajadas de vento, Caixoes arrancados dos tumulos alagados - . tudo Nadando nas ruas!12

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Forma e conteudo: pratica 113

A parrir do material apresentado acima, podemos formular um metodo sim­ples, pratico, de combina~6es audiovisuais.

Devemos saber como apreender 0 movimento de uma determinada pefa musical fixando seu caminho (sua linha ou forma) como a base da composifiio pldstka que deve corresponder it mUska.

]a ha exemplos deste metodo, de construiruma composi~o plastica com base em linhas musicais firmemente determinadas, no campo da coreografia do bale, onde ha uma total correspondencia entre 0 movimento da partitura e 0 da mise-en­scene.

Porem, quando temos diante de nos varios pIanos com "independencia" igual,13 pelo menos no que diz respeito a sua f1exibilidade original, mas diferindo na composi~o, devemos, mantendo a musica diante de nos, selecionar e organizar apenas os pIanos que demonstrem corresponder a musica de acordo com as condi­¢es acima citadas.

Um compositor deve agir do mesmo modo quando pega uma seqiiencia cinematografica previamente montada: ele e obrigado a analisar 0 movimento visual tanto atraves de sua constru~ao abrangente de montagem, quanto da linha estiHstica desenvolvida de plano a plano - ate as composi~6es dentro dos pIanos. Ele tera de basear sua composi~ao da imagem musical nesses elementos.

o movimento que reside na base de uma obra de arte nao e abstrato ou isolado do tema, mas a personifica~ao plastica sintetica da imagem arraves da qual o tema e expressado.

"Sb'd"" d'd "" bd""b al'h d"IC d" u In 0, expan In o-se J que ra 0, em In ava 0, mancan 0,

"desenvolvendo-se suavemente" J "remendado", "ziguezagueando" - sao termos usados para definir este movimento nos casos mais abstratos e generalizados. Vere­mos em nosso exemplo como uma linha como esta pode canter nao apenas as caracterlsticas dinamicas, mas tambem todo um conjunto de elementos fundamen­tais e de significados peculiares aquele tema e aquela imagem. Algumas vezes a personifica~ao primaria da furura imagem sera encontrada na entonafiio. Mas isto nao afetar:i as condi~6es basicas - porque a entona~ao e 0 movimento da voz que f1ui do movimento da emofiio, que deve servir como um fator fundamental para se esbo~ar toda a imagem.

t. exatamente este fato que torna tao facil descrever uma entonac;ao com urn gesto, assim como com urn movimento da pr6pria musica. A partir do movimento da musica, todas estas manifesta~6es brotam com for~ igual- a entona~o da voz, o gesto e 0 movimento do homem que executa a musica. Em outra parte analisare­mos este ponto mais deralhadamente.

Aqui queremos salientar que a linha pura, isto e, 0 esbo~o especificamente "gnifico" de uma composic;ao, e apenas urn dOl rnuitos meios de se visualizar a carater de um movimento.

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114 o sentido do filme

Esta "Iinhi' _. 0 caminho do movimento - . sob diferentes condi~6es e em diferentes obras de artes plasticas -- pode ser obtida de. outros modos alem dos puramente lineares.

Por exemplo, 0 movimento pode ser obtido com 0 mesmo sucesso atraves de matizes diferentes dentro da estrutura imagfstica de cor ou de luz, ou pelo sucessivo desdobramento de volumes e distancias.

Em Rembrandt, a "Iinha de movimento" e descrita pelas densidades cambian­tes de seu chiaroscuro.

Delacroix encontrou sua Iinha atraves do caminho seguido pelo olho do espectador ao se mover de forma para forma, do modo como as formas sao distri­bufdas ao longo do volume da pintura. Ele registrou em seu Didrio sua admira~o pelo uso, por Leonardo, do "systeme antique du dessin par boules" (sistema antigo de desenho por bolas),14 urn metodo que, de acordo com seus contemporineos, 0

pr6prio Delacroix usou durante toda a sua vida. Numa repeti~ao impressionantemente pr6xima das ideias de Delacroix sobre

linha e forma, 0 Frenhofer de Balzac (em Le ehefd'oeuvre ineonnu) diz que 0 corpo humano nao e feito de Iinhas e, falando estritamente, "II ny a pas de !ignes dans la nature, ou tout est plein' (Nao existem Iinhas na natureza, onde tudo e pleno).

Em oposi~o a tal ponto de vista, podemos invocar Urn entusiasra do "contor­no", William Blake, cujo patetico apelo,

() querido Pai contornOJ

sabia entre as sabios ... 15

po de ser encontrado entre suas mais asperas polemicas com Sir Joshua Reynolds, e contra a preocupa~o insuficiente de Sir Joshua com a firmeza do contorno.

Deve ficar claro que nosso argumento nao diz respeito ao fato do movimento na obra de arte, mas aos meios'pelos quais este movimento e personificado, que e 0

que caracteriza e distingue a obra.dos diferentes pintores. Na obra de DUrer, tal movimento e freqUentemente expressado pela alterniln­

cia de formulas matemdtieas preeisas atraves das proporfifes de suas figuras. :Sto nao esta muito distante da expressao deoutros pintores, Michelangelo em

particular, cujo ritmo £lui dinamicamente dos musculos ondulantes e turgidos de suas figuras, servindo assim para dar voz nao apenas ao movimento e a posi~o dessas figuras, mas basicamente para dar voz a todo 0 extase das emo~6es do artista. 16

Piranesi revela urn extase nao menos emocional com sua linha particular -uma linha construfda a partir dos mavimentas e. varia¢es de "eontravolumes" . - as arcos e ab6badas quebradas de seus Careed, com suas linhas entrela9adas de movi­mento, entretecidas com as Iinhas de suas interminaveis escadas - rompendo a ponto de foga espacial acumulada com urn ponto de foga linear.

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Forma e contetldo: pratica 115

De modo semelhante, Van Gogh expressa 0 movimento de sua linha com sucessivas e espessas pinceladas de cor, como que num esfor~o desesperado para fundir-o extase de sua linha a uma extasiante explosao de cor. A seu modo ele usava uma lei de Cezanne que nao poderia conhecer· . uma lei usada de urn modo inteiramente diferente pelo proprio Cezanne:

Le dessin et fa cou/eur ne sont point distincts ... (0 desenho e a cor nao sao absolutamen­te discintos ... )17

AMm disso, qualquer "comunicador" percebe a existencia de tal "linhau• Urn

especialista de qualquer meio de comunica~o tern de construir. sua linha, se nao a partir de elementos pIasticos, certamente a partir de elementos "dramaticos" e tem:iticos.

Neste caso, devemos ter em mente que, no cinema, a seleC;ao de "correspon­dencias" entre quadro e musica nao deve satisfazer-se com nenhuma dessas "li­nhas", ou mesmo com uma harmonia de varias usadas juntas. Alem dos elementos formais gerais, a mesma lei tern de determinar a sele~o das pessoas certas, dos rostos certos, dos objetos certos, das aroes certas e das seqii§ncias certas, diferente de todas as sele~6es igualmente poss(veis dentro das circunstancias de uma dada situa~ao.

Na epoca do cinema mudo, falavamos de "orquestra~ao" da tipagem de ros­tos18 em repetidos casas (par exemplo, na produ~ao da "linha" ascendente de tristeza, atraves de primeiros planas intensificados, na seqUencia do "veloria de Vakulinchuk", em Potemkin).

De modo semelhante, no cinema sonoro surgem momentos como os mencio­nados acima: a abraro de adeus entre Vaska e Gravrilo Olexich em Alexander Nevsky. Isto s6 poderia ocorrer em urn momenta preciso da partitura musical, do mesmo modo que as primeiros planas dos elmos dos cavaleiros alemaes nao podiam ser usados antes do momenta em que 0 foram na seqUencia do ataque, porq~e apenas naquele momento a musica muda de carater, de urn carater que pode ser expresso par planas gerais e medias do ataque para um outro que demanda batidas visuais rftmicas, primeiros planas do galope e recursos semelhantes.

Ao lado disto, nao podemos negar a fato de que a impressao mais surpreenden­te e imediata sera obtida, e claro, a partir de urna coincid;ncia do movimento da mmica com 0 movimento do contorno visual- com a composi~ao grafica do quadro; porque este contorno, esboc;o ou linha e a mais vivido "enfatizador" da propria ideia do movimento. Mas passernos ao objeto de nossa an:ilise e tentemos, atraves de urn fragmento do inkio do rolo 7 de Alexander Nevsky, demonstrar como e par que uma determinada serie de planas numa determinada ordem e de urn determi­nado comprimento foi relacionada de urn modo espedfico, em vez de em qualquer outro :nodo, com uma determinada pe~a da partitura musical.

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116 o sentido do filme

Tentaremos descobrir neste caso a "segredo" das correspondencias verticais seqiienciais que, passo a passo, relacionam a musica com as pIanos atraves de um movimento identico, que esta na base do movimento musical, assim como do pict6rico.

De interesse particular, neste caso, eo faco de que a musica foi composta para o elemento pict6rico ja inteiramente montado.

o movimento visual do tema foi cotalmente apreendido pelo compositor, na mesma medida em que 0 movimento musical acabado foi apreendido pelo diretor na cena subseqUente do ataque, onde as pIanos foram montados de acordo com uma trilha musical previamente gravada.

No entanto, urn metoda exatamente identico de unir organicamente atraves do movimento e usado em ambos os casas. Em conseqUencia, metodologicamente, nao tern nenhuma importancia 0 elemento a partir do qual come~a a pracesso de determinar combina~6es audiovisuais.

o aspecto audiovisual de Alexander Nevsky alcan~ sua mais completa fusao na seqUencia da "batalha sabre a gelo" - particularmente no "ataque. dos cavaleiras" e na "puni~o dos cavaleiras". Este aspecto tamb':m se torna urn fator decisivo porque, entre codas as seqUencias de Alexander Nevsky, a ataque pareceu a mais comovente e memo ravel para as crlticos e espectadores. 0 mecodo usado nele de correspondencia audiovisual e a mesmo de todas as outras seqUencias do filme. Assim, para nossa analise, escolheremos urn fragmento que pode ser, de certo modo, satisfatoriamente repraduzido numa pagina impressa - urn fragmento onde coda urn conjunto e resolvido atrav':s de quadros qu.ase imoveis, no qual urn minimo se perde quando seus planas sao mostrados numa pagina em vez de em uma tela. Foi tal fragmento que escolhemos para analise.

Sao os 12 planas da "espera ansiosa ao amanhecer" que precede 0 inCcio do ataque e da batalha, e que se segue a uma noite cheia de inquieta~ao e ansiedade, nas vesperas da "batalha sobre 0 gelo". 0 conteudo tematico desses 12 quadras tern uma unidade simples: Alexandre na Montanha do Corvo e as trapas russas no sope da montanha as margens do Lago Chudskoye congelado, perscrutando a distancia, de onde a inimigo aparecera.

Urn diagrama (nas paginas 118 e 119) mostraquatra divis6es. As duas primei­ras descrevem a sucessao de pIanos e as compassos musicais que, juntos, expressam a situa~ao. XII pIanos; 17 compassos. (Esta disposi~o particular dos pIanos e dos compassos sed. explicada no pracesso de analise; esta disposi~o esta ligada aos principais componentes internos da ml1sica e do plano.)

Imaginemos estes XII planas e estes 17 compassos musicais - . nao como os Vemos no diagrama, mas como as sentimos venda-os na tela. Que parte desta seqUencia audiovisual exerceu a maior impacto sabre nossa atenc;ao?

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Forma e conteudo: pnitica 117

A impressao mais forte parece vir do plano III, seguido do plano IV. Devemos levar em conta que uma ral impressao nao resulra apenas dos pianos fotografados, mas e uma impressiio audiovisual criada pela combina~ao desses dois pianos com a musica correspondente - que e 0 que se experimenta na plateia. Esses dois pianos, III e IV, correspondem a estes compassos da musica- 5,6 e 7,8.

Que este e 0 grupo audiovisual mais imediato e mais comovente, pode-se verificar tocando-se os quatro compassos ao piano, "acoffipanhados" por reprodu­~iies dos dois pianos correspondentes. Esta impressao foi confirmada pelo elogio desse trecho do filme durante a exibi~ao para os estudantes do Instituto Estatal de Cinema.

Tomemos estes quatro compassos e tentemos deserever no ar, com nossa mao, a Hnha de movimento sugerida pelo movimento da mUsica.

o primeiro acorde pode ser visualizado como uma "plataforma de lan~amen-to".

As cinco semlnimas seguintes, desenvolvendo-se numa escala ascendente, encontrariam uma visualiza~ao gestual natural numa linha ascendente tensa. Em conseqnencia, em vez de descrever esta passagem com uma simples linha ascenden­te, inclinaremos levemente em area nosso gesto correspondente - ab:

d

Figura 1

o acorde seguinte (no inlcio do compasso 7), precedido por uma semicol­cheia bastante acentuada, nessas circunstftncias criani a impressao de uma queda abrupta - bc.19 0 seguinte grupo de quatro repeti¢es de uma unica nota - em colcheias, separadas por pausas _. pode ser descrito naturalmente por urn gesto horizontal, no qual as colcheias sao indicadas por acentos uniformes entre c e d.

Desenhemos esta Iinha (na Figura 1: be e cd) e coloquemos este grafico do movimento da ffilisica sobre os compassos correspondentes da partitura.

Agora descrevamos 0 grdfico do movimento do olho sobre as linhas principais dos pianos III e IV que "correspondem" a esta musica.

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Page 118: EISENSTEIN Sentido Do Filme

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L L I I I L I I , , , , , ,

A, 14 I 15 16 I I; '" ,.

.. ,~

PLANO X

PlANO XL I

... ti! ~

B, 17

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,---

120 o sentido do filme

:sto tam bern pode ser descrito por urn gesto de nossa mao, que nos apresenta­ra 0 seguinte desenho representando 0 movimento dentro da composic;ao linear dos dois quadros:

a l

Figura 2

De a abo gesto "arqueia" para cima - - desenhando urn arco atraves da escura nuvem delineada, que pende sobre a parte inferior mais clara do ceu_

De b a c- . uma queda abrupta do olho: da margem superior do enquadramen­to do plano III quase ate a margem inferior do enquadramento do plano IV - a maxima queda posslve! nesta posic;ao vertical.

De c a d- uniformemente horizontal- sem nem urn movimento ascendente, nem urn descendente, mas duas vezes interrompido pe!as pOntas dos estandartes que ficam acima da linha horizontal das nopas.

Agora juntemos os dois graficos. 0 que verificamos? Ambos os graficos de movimento correspondem-se absolutamenteJ isto cJ verificamos uma completa cor­respond~nciit entre 0 movimento da mt1sica e 0 movimento do olho sobre as linhas da composifiio pldstica.

Em outras palavras, exatamente a mesrna movimento esca na base de ambas as estruturas, a musical e a plastica.

Acredito que este movimento tam bern pode ser ligado ao movimento emo­cional. 0 tremolo crescente dos violonce!os na escala de d6 menor acompanha claramente a excitac;ao cada vez mais tensa, assim como a·crescente atmosfera da expectativa. 0 acorde parece romper esta atmosfera. A serie de colcheias pareee deserever a linha im6ve! das tropas: os sentimentos da tropa disseminados ao longo de coda a frente; urn sentimento que cresee novamente ao plano VJ com tensao renovada no plano VI.

E interessante notar que 0 plano IV, que corresponde aos eompassos 7 e 8, contem dois estandartes, enquanto a musica contem quatro colcheias. 0 olho parece passar sobre estes dois estandartes duas vezes, de modo que a frente de

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Forma e conteudo: pratica 121

batalha parece duas vezes mais ampla do que a que na realidade vemos diante de nos no plano. Indo da esquerda para a direita, 0 olho "liga" as colcheias aos estandartes e as duas notas restantes levam a percep~ao para fora, alem da margem direita do enquadramento, onde a: imagina~ao faz. continuar indefinidamente a linha de frente das tropas.

Agora se torna claro por, que esses dois pIanos justapostos atrafrarn particular­mente nossa aten~ao. 0 elemento plastico do movimento e 0 movimento musical coincidem, aqui, em urn maximo de descri~ao.

Prossigamos, pOf<!m, para verificar 0 que atrai nossa "segunda" atenc;ao. Pas­sando esta seqiiencia novamente, somos atrafdos pelos pIanos I, VI-VII, IX-X.

Observando mais arentamente a mdsica desses pIanos, veremos urn estrutura semelhante It da mdsica do plano III. (Falando resumidarnente, a musica de todo este fragmento consiste, na realidade, em duas frases de dois compassos, A e B, alternando-se de urn determinado modo. 0 fator distintivo aqui e que, enquanto elas pertencem estruturalmente It mesma. frase A, variam em tonalidade: a mdsica dos pIanos I e III pertence a uma tonalidade [do menor], enquanto a musica dos pIanos VI-VII e IX-X pertence a outra [do sustenido menor]. Arela~ao desta mudan­~ tonal com 0 significado tem,hico da seqiiencia sera levantada na analise do plano v.)

Assim, a musica dos pIanos I, VI-VII. e IX-X duplicari 0 grafico do movimento que encontramos no plano III (ver Figura 1).

Mas, ao olharmos para os proprios pIanos, encontramos 0 mesmo grafico de composi~o linear que, com a linha do movimento musical, "uniu" os pIanos III e IV It sua musica (compassos 5, 6,7, 8)r

Nao. E no entanto a sensa~o de uma unidade audiovisual parece tao poderosa

quanto nessas combina~5es. Porquer A explica~o pode ser encontrada em nossa discussao anterior sobre. as varias

express5es possfveis da linha de movimento. 0 grafico de movimento que encon­tramos para os pIanos III e IV nao precisam ser confinados It linha a-b-c apenas, mas devem ser expressados atravls de qualquer meio plastico It nossa disposi~ao. Assim constatamos na pritica os casos hipoteticos sugeridos acima.

Complementemos nossa discussao anterior com a ajuda de tres novas casas - I, VI-VII, IX-X.

CASO 1. A fotografia nao pode exprimir a sensa~o total do plano J, porque este plano torna-se vis/vel gradualmente: surgindo da escuridao, primeiro vemos It esquerda urn grupo escuro de homens com uma bandeira e em seguida, gradual­mente revelado, urn ceu manchado, com nuvens espalhadas irregularmente.

Podemos ver que 0 movimento dentro deste plano e absolutamente identico It nossa descri~o do movimento dentro do plano III. A unica diferen~. reside no

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122 o sentido do filme

fato de que 0 movimento do plano [ nao e linear, mas e urn movimento de i1umina~o gradual do quadro - . urn movimento de grau crescente de claridade.

De modo que nossa "plataforma de lanS"'mento" a, que correspondia ao acorde inicial do plano III, aqui e encontrada na escuridao antes que 0 fade in (surgimento gradual) comece - uma "linha d' agua" de escuridao a partir da qual os graus de ilumina~o gradual do quadro podem ser contados. 0 "arqueamento" aqui e formado a partir da progressiva cadeia de pianos diferentes - cada urn dos quais e mais claro do que 0 anterior. 0 arqueamento do plano III e refletido aqui por uma curva de ilumina~ao gradual de todo 0 quadro. Os est:lgios individuais sao marcados pelo aparecimento de manchas de nuvens maiores e mais claras. Ao surgir o quadro totalmente iluminado, a mancha mais escura (a do centro do quadro) aparece primeiro. Seguida por uma mais clara acima. Depois tomamos consciencia de tado 0 Cell de urn tom claro geral - com urn "carneirinho" mais escuro no centro inferior direito e no canto superior esquerdo.

Vemos que a linha curva de movimento e duplicada aqui, ate nos detalhes, mas nao e expressa atraves do cantorno da composi~o plastica, e sim atraves de uma "linha" de tonalidade clara.

Podemos assim declarar exiscir uma correspondencia entre 0 plano leo plano In, de identico movimento basico, uma correspondencia, no primeiro caso, de tom.

CASO 2: Examine a dupla de pianos - VI-VII. Eles devem ser examinados como uma dupla, porque a frase musical A que cai totalmente dentro do plano I (sobre uma imagem), aqui cobre totalmente duas imagem. A varia~o da frase A que esd sobre os pIanos VI-VII pode ser identificada como AI. (Ver 0 diagrama geral de todo 0 fragmento.)

Verifiquemos esta combina~o de acordo com nossa percep~ao da musica. Eis 0 que vemos no primeiro dos dois pianos: quatro guerreiros com escudos

e lan~ eretas estao de pe a esquerda; atras deles, mas na extremidade esquerda, 0

contorno da alta montanha pode ser visto; mais distante ainda, mas em dire~o it extremidade direita - filas de guerreiros espalhando-se ao longe.

Sem verificar as rea~6es dos outros, a impressao causada em mim pelo primei­ro acorde do compasso 10 e de uma pesada massa desom, rolando ao lado dalinha de lan~as, do topo do enquadramento para a base (ver a pagina ao lado).

(Por mais subjeciva que esta impressao possa ser, foi exatamente grac;as a ela que senti a necessidade de dar a este plano urn lugar particular na montagem.)

Atras do grupo de quatro lanceiros, a linha de guerreiros espalha-se em estagios de profundidade, a direita. 0 "est:lgio" mais proeminente e a transi~ao da totalidade do plano VI para a totalidade do plano VII, que continua a linha dos guerreiros na mesma dire~o, para longe. As dimens6es dos guerreiros no plano VII sao de certa forma maiores, mas 0 movimento geral para 0 fundo (em est:igios) prolonga 0 movimento do plano VI. No segundo plano ha urn outro estagio claramente definido: a linha branca do horizonte vazio na extremidade direita do

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Forma e conteudo: pratica 123

, I ~ +

Figura 3

enquadramento. Este demento do plano VII quebra a linha contfnua dos guerreiros enos introduz numa nova esfera - em dire~ao ao horizonte, onde 0 ceu se funde com a superffcie congdada do Lago Chudskoye.

Fa~amos urn grafico deste movimento bisico de ambos os enquadramentos por meio de est:lgios:

a

Figura 4

MI I

Diagramamos os agrupamentos de tropas como se des fossem bastidores recuando ate 0 fundo de urn cenario teatral- 1, 2, 3, 4. Nossa supetjlcie inicial e formada pdos quatro lanceiros do plano VI. Esses coincidem com a superflcie de nossa tda, de que se origina todo 0 movimento para 0 fondo. Desenhando uma linha para unificar esses "bastidores teatrais", obtemos uma determinada curva a, 1,

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124 o sentido do filme

2, 3, 4. Onde vimos uma curva espantosamente semelhante? Esta ainda e a mesma linha curva de nosso "areo" J mas agora encontrada nao ao longo da superflcie vertical do quadro, como no plano JII, mas movendo-se em perspectiva horizontal para 0 fundo do quadro.

Esta curva tern exatamente a mesma superflcie initial, nosso bastidor de quatro guerreiros de pe. Alem disto, as varias fases tern limites definidos, dando extremidades bern definidas aos bastidores sucessivos, que podem ser encerrados dentro de quatro linhas verticais: as tres figuras de guerreiros que ficam afastadas da linha da tropa no plano VII (x, y, z)·- . e a linha que separa 0 plano VI do plano VII.

Podemos encontrar uma correspondencia musical para este corte de horizonte vislumbrado no vII?

Urn fato a ser considerado com rela~o a isro: a musica da Frase Ai n[o se estende sobre a totalidade dos pianos VI e VII, de moqo que a Frase BI come~a a ser ouvida durante 0 plano VII. Este inlcio inclui tres quartos do compasso 12.

o que estes tres quartos contem? Exatamente aquele acorde antecedido por uma semicolcheia fortemente

acentuada, que no plano III correspondeu a sensa~o de uma queda abrupta do plano II para 0 plano IV.

No primeiro caso, todo 0 movimento foi colocado ao longo de uma superflcie vertical, e a pausa musical abrupta foi visualizada como uma queda (do canto superior direito do enquadramento JII para 0 canto inferior esquerdo do enquadra­mento IV). Aqui, todo 0 movimento e horizontal - para 0 fundo do quadro. Pode-se assumir, sob estas condi~6es, que 0 equivalente plastico de uma pausa musical cao aguda apare~ como urn solavanco analogo - agora nao do topo para a base, mas em perspectiva, para. dentro. 0 "solavanco" no plano VII, da linha dos guerreiros para a linha do horizonte e exatamente deste modo. Novarnente obtemos uma "pausa m:lxima', ja que na paisagem 0 horizonte representa 0 limite de profundidade!

Temos razao em considerar. esta faixa do horizonte a direita do plano VII como urn equivalente visual do "solavanco" musical entre 0 compasso 11 e as tres quartos do compasso 12.

Acrescentarlarnos que, de urn ponto de vista puramente psicologico, esta correspondencia audiovisual transmite urn sentimento pleno e preciso para a pla­teia, cuja aten~o e levada para alem do horizonte, a algum ponto invislvel do qual ela espera que 0 inimigo ataque.

Assim, vemos como faixas de ffiu.sica - tal como a "solavanco" no infcio dos compassos 7 e 12 - podem ser resolvidas plasticamente variando-se 0 usa da pausa pUistica.

Em urn caso e uma pausa ao longo da linha vertical. durante transi~o de plano a plano - III-IV. No ~Utro caso - uma pausa ao longo de uma linha horizonta£ dentro do quadro do plano VII no ponto M. (Ver Figura 4.)

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Forma e concelido: pnicica 125

Mas isto nao e tudo a que pode ser encontrado nessas duas duplas de planas. No III, nosso "area" saltou cruzando a superficie. No VI-VII saltau para dentro em perspectiva, isto e, espacialmente. Ao lado deste segundo "area" foi arrumado em serie nosso sistema de bastidores ceatraisJ revelando-se no espac;o. Esce recesso J da superflcie da tela (bastidor a) para 0 espa~ da tela, acompanha a escala de sons ascendentes.

Assim, no caso de VI-VII podemos salientar outro tipo de correspondencia entre mUsica e quadro - resolvida atraves do mesmo gnifico e com 0 mesmo movimento. Isto e - correspondencia espacial.

Desenhemos urn grafico geral desta nova variante da correspondencia entre musica e representa~ao pict6rica. Para completar nosso quadro deverlamos termi­nar a Frase B da partitura (acrescentando urn compasso e uma semlnima). Ista nos dara uma total repeti~o da Frase musical que examinamos nos pianos III e IV. Mas nossa linha pict6rica exigid a adi~ao do plano VII ao VI-VII - porque esta repeti~ao da Frase B (na realidade Bl aqui) termina com 0 final do plano VIII.

Assim, 0 plano VIII exige nosso exame neste momento. Plasticamente pode ser dividido em tres partes. Antes de mais nada nossa

aten~ao e atralda pelo primeiro primeiro plano a aparecer nesta sequencia de oito planas - Vasilisa com urn elmo. Isto ocupa apenas uma parte do enquadramento, deixando a resto para a linha de frente das tropas, enquadrada quase do mesmo modo como nos enquadramentos anteriores. 0 plano VIII serve como urn plano de transi~o, ja que contem, primeiro, urn acabarnento plastico do motivo do VI-VII.

(Nao devemos esquecer que 0 recuo para 0 fundo do plano VII teve 0 efeito de urn aLtrgamento-comparado com 0 tarnanho relativo do plano VI, proporcionando uma oportunidade para a posterior mudan~ no plano VII para urn primeiro plano.) Os tres pianos -- V-VIIcVIII - sao posteriormente ligados organicamente par sua correspondencia com a sequencia musical Al_Bl. Os extremos mais afastados

desses quatro compassos 10, 11, 12, 13 coincidem com as extremidades mais afastadas da dupla de pianos - VI-VII, apesar de dentro deste agrupamento as divisaes entre os pianos VII e VIII nao coincidirem com as divisaes entre os compas­sos 11 e 12. (Ver 0 diagrama geral.)

o plano VIII completa a Frase dos pLtnos medios das tropas (VI- VII-VIII) e introduz a Frase dos primeiros pLtnos (VIII.IX.X), que agora aparece.

Oeste mesmo modo a Frase do principe na montanha foi :evada atraVes dos planas I-II-III, e seguida por uma nova Frase de pLtnos gerais de guerreiros no sope da montanha. Esta segunda Frase foi introduzida nao por urn cruzamento num unico plano, mas atraves de urn cruzamento de montagem.

Em seguida ao plano III vern a Frase "as tropas", mostrada num plano geral (IV), seguida do "principe na montanha" novamente - tambem mostrada num plano geral (V).

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126 o sentido do filme

Essa transic;ao essencial do "principe" para as "tropas" e marcada por mudanc;a musical essencial- uma transi~ao de uma tonalidade para outra (do menor para do sustenido menor).

Uma. transi¢o menos importante - nao de um tema (principe) para outro (tropas), mas dentro de urn tema - - de urn plano medio dos guerreiros para primeiros pianos dele. - nao e resolvida atraves de urn cruzamento de montagem (como em m.IV-V-VI), mas dentro de um plano - plano YIU.

Esta solu~ao e alcan~da pela composi~ao que contem dois planos: 0 novo tema e mostrado em primeiros pianos, enquanto 0 tema que gradualmente se afasta (0 plano geral da linha de frente) retrocede para 0 segundo plano. Deve-se notar, alem disso, que 0 "afastamento" do tema anterior tambem e expressado filmando-se as tropas (no segundo plano do quadro) com um abandono deliberado da profun­didade de foco, de modo que esta linha recessiva levemente fora de foco proporcio­ne urn fundo para 0 primeiro plano de Vasilisa.

Este primeiro plano de Vasilisa introduz os outros primeiros pianos Ignat e Savka (lX-X) que, unidos aos dois ultimos pianos deste fragmento (XI-XU), nos dado uma nova interpretariio pldstica de nosso gdfico de movimento.

Mas esta parte de nossa analise tern de esperar nosso proximo passo. !)e nosso exame do plano YIU depende a conclusao de nosso gr:ifico do grupo

de pianos (YI-VU-YIU). As tres divis5es do plano YIU podem ser desctitas assim: No primeiro plano do enquadramento - 0 rosto de Vasilisa em primeiro

plano. Mais para a direita hi uma longa fila de tropas - fotogtafada sem urn foco claramente definido, que resulta na enfase dos pontos mais luminosos de seus capacetes. Na estreita se¢o entre a eabe~ de Vasilisa e a extremidade esquerda do enquadramento pode ser vista parte da Hnha das tropas, coroada por urn estandarte.

o que corresponde a isso na partitura musical? Este plano e coberto por urn compasso musical completo e uma semfnima-·

o fim do compasso 12 e rodo 0 compasso 13. Este fragmento musical contem tres elementos distintos, dos quais o.do meio - 0 acorde que abre 0 compasso 13-vern para 0 primeiro plano. Este acorde tern 0 "imp acto" de uma fusao total com 0

primeiro plano de nosso plano. Do meio desse compasso partem quatro coleheias, interrompidas por pausas.

Exatamente como este movimento musical horizontal uniforme foi acompanhado pelas minl1sculas bandeiras do plano IV, os pontos mais luminosos dos capacetes, movendo-se levemente da Hnha da tropa do plano YIU, acompaobam estas notas como pequenas estrelas.

Apenas nessa extremidade esquerda nao hi "correspondencia" musical. Mas - esquecemos a coleheia, que permaneceu como sobra do compasso 12 anterior, e que" it esquerda" precede 0 a,corde de abertura do compasso 13; e esta coleheia que "corresponde" a estreita faixa do quadro it esquerda da eabe~ de Vasilisa.

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Forma e conteudo: pnitica 127

Esta anilise do plano VIIl e seu correspondente movimento musical pode ser diagramada assim:

Figura 5

Neste ponto espero ouvil' uma exclamaorao bastante natural _. "Espere all Nao e urn pouco exagerado combinar uma linha de musica tao exatamente com uma representaorao pict6rica? A esquerda de urn compasso musical e a esquerda de urn enquadramento nao significam coisas absolutamente diferentes?"

Urn quadro imovel existe espacialmente, isto e, simultaneamente, e nao se pode pensar que e sua esquerda ou sua direita, ou seu centro, que ocupam qualquer ordem no tempo, enquanto a pauta musical contem uma definida ordem movendo-se no tempo. Na pauta a esquerda significa "antes", enquanto a direita significa "depois".

'l"odas as objec;6es acima seriam vilidas se nosso plano condvesse elementos que aparecessem sucessivamente, como indicado pelo diagrama a seguir.

As obje~6es, inicialmente, parecem bastante razoaveis. Mas entao percebemos que urn fator extremamente importante foi ignorado,

isto e, que 0 con junto imovel de um quadro e suas partes nao entram na perceprao simultaneamente (com exceorao dos casos nos quais a composi~ao e calculada para

.criar exatamente urn efeito como este). A arre da composi~ao plistica consiste em levar a aten~ao do espectador

atraves do caminho certo e na sequencia certa determinados pelo autor da compo­si~ao. Isto se aplica, ao movimento do olho sobre a superflcie de urn quadro se a composi~ao e expressada pictoricamente, ou sobre a superflcie da tela se estamos trabalhando com urn quadro cinematografico.

E interessante notar aqui que, num esragio anterior da arte grafica, quando 0

conceito de "trajet6ria do olho" ainda era diflcil de separar de uma imagem flsica-

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128 o sentido do filme

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Figura 6

os caminhos foram introduzidos na pintura como trajettfrias do olho. ilustra;oes eoneretas de eaminhos, ao longo das quais eram distribufdos os eventos que 0 artista desejava retratar em uma seqiiencia particular. Urn dos mais dramaticos (e cinema­tognificos) de todos os manuscritos ilustrados com iluminuras e 0 manuscrito grego do seculo VI conhecido como Genesis de Viena20 - no qual este recurso e usado repetidamente. Ele se preocupou apenas com uma seqiiencia de cenas que, freqiien­temente, naquele perfodo, eram descritas em uma pintura. 0 desenvolvimento

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Forma e conteudo: pnitica 129

deste recurso prolongou-se ate a era da perspectiva, onde as cenas eram colocadas nos diferentes pianos de urn quadro, com urn efeito semelhante ao de urn caminho. Assim, 0 quadro de Dirk Bouts, 0 sonho de Elias no deserto, mostra Elias dormindo no primeiro plano, enquanto outro Elias parte num caminho que serpenteia no fundo do quadro. EmA adorariio dos pastores, de Domenico Ghirlandaio, 0 Menino cetcado pelos pastores ocupa 0 ptimeiro plano, e numa estrada que serpenteia a partir do segundo piano aparecem os Reis Magos; de modo que a estrada une eventos que, no tema, estao separados por 13 dias (24 de dezembro -- 6 de janeiro).

Memling USDU este mesmo recurso, mas numa composic;:ao muito mais com­plexa (e excitante), ao distribuir todas as sucessivas Esta~6es da Paixao atrayes das ruas de uma cidade, em sua.Paixiio de Cristo, hoje em Turim.

Mais tatde, quando rais saltos no tempo desaparecem, a estrada [{sica, como urn dos meios de dirigir a visao do espectador diante de. urn quadro, tambem desaparece.

A estrada e transformada na trajet.ria do olho, transferida de uma esfera de representariio para uma de composiriio.

as meios usados neste estigio posterior do desenvolvimento sao variados, apesar de terem caracterfsticas comuns: hi, geralmente, num quadro algo que atrai a aten~ao antes de todos os outros elementos. A partir deste ponto a aten~ao movimenta-se de acordo com a trajet6ria desejada pelo artista. Esta trajet6ria pode ser descrita ou por uma linha de movimento, ou por urn caminho de tons gradua­dos, ou ate pe/o agrupamento ou pelo "jogo" dos personagens do quadro. Urn caso clissico de interpreta¢o neste sentido e a analise de Rodin sobre L'Embarquement pour Cythere, de Watteau, que nao posso deixar de reproduzir:

Nesta obra de arte, a ayao, se voce observar, comec;a no primeiro plano a direita e termina no segundo plano a esquerda.

o que voce primeiro nota na frente do quadro, na fresca sombra. perto de urn busto enfeitado com guirlandas de rosas, e urn grupo composto de uma jovem mulher e seu enarnorado. 0 hornern usa uma capa bordada com urn corayao trans­passado, simbolo gracioso da viagem que faci.

Ajoelhado a seus pes, ele suplica ardenternente que sua dama se entregue. Mas ela reage a suas suplicas com uma indiferenya talvez fingida. e parece absorvida no estudo dos desenhos de seu leque. Proximo a eles ha urn pequeno cupido. sentado seminu sobre sua aljava. Ele acha que a jovem demora muito. e puxa sua saia para sugerir que ela seja menos teimosa. Mas 0 bastao do peregrino e a carta de amor ainda estao no chao. Esta e a primeira cena.

Eis a segunda: a esquerda do grupo sabre a qual falei ha urn outro casal. A_dama aceita a mao de seu amante. que a ajuda a levantar-se. Ela esta de costas para nos, e tern uma daquelas nucas louras que Watteau pintava com grac;a tao voluptuasa.

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130 o sentido do filme

Urn pOlleD mais distante esta a terceira cena. 0 amance co!oca 0 brac;o em redor: da dntura da amada para atraC·la para si. Ela se vira em direc;ao aos companheirosJ

cuja demora a inquieta, mas permite-se sec levada passivamente.para longe. Agora os amantes descem para 0 cais e codos riem indo em direc;ao ao barco; as

homens na.o mais precisam suplicar. as mulheres jogam-se em seus brac;os. Finalmente as peregrinos a;udam as namoradas a subirem no pequeno navia, que.

decorado com flores e bandeirolas de seda vermelha ao vento, balanc;a como urn sonha dourado sabre a agua. Os marinheiros. inclinados sabre as remos, se preparam para partir. E. levados pela brisa, pequenos cupidos voarn na frentc. para guiar as viajantes em dirc'lao a ilha az.ul no horizonte.21

Teremos 0 direito de afirmar que nossos "quadros" cinematograficos tambem podem determinar 0 movimento do olho sabre uma trajet6ria determinada?

Podemos dar uma resposta afirmativa, e acrescentar-- que nos 12 pIanos que estamos analisando, este movimento ocarre precisamente da esquerda para a direita, atraves de cada um das 12 planos de modo identico, e corresponde plenamente, em seu carater pict6rico, ao carater do movimento da mtlsica_

Dissemos que a m6sica tern duas frases --A e B - que se alternam ao longo da dura,ao de todo 0 fragmento_

A e canstrulda assim:

Figura 7

B e construlda assim:

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Forma e contelldo: pnitica 131

-----Figura 8

Primeiro, urn acorde. Depois, contra a segundo plano da ressonancia do acorde, ha urna escala ascendenteJ 22 rnovendo-se em urn "arco", ou entao uma repeti¢o de uma nota num movimento horizontal.

P!asticamente, todos as enquadramentos sao eonstruldos do mesmo modo (exeeto VI e XU, que nao funcionam realmente como planas independentes, mas como continua¢es do movimento dos planas anteriores).

Na realidade cada urn deles tern a esquerda urn "acorde" mais pesado, mais s6lido, muito pIastico, que atrai a aten~[o do olho em primeiro lugar.

Nos planas 1·Il-III este "acorde" e urn grupo de figuras escuras, colocado na pesada massa da montanha. Elas atraem nossa aten<jao par outra razao: sao os unicos seres vivos do quadro.

No plano V - essas figuras, mas com a massa maior da montanha. No plano VI - as quatro laneeiros no primeiro plano. No plano VII - a massa das tropas, e assim par diante. E em cada urn desses planas hi alga a direita do enquadramento que ocupa a

aten<jao secundaria: alga leve, estereoJ "movendo-se" sucessivamente, que, induz 0

olho a segui-Io. No plano III - 0 "area" ascendente. Nos planas VI-VII - as "bastidores teatrais" das tropas, para 0 fondo. De

modo que, em todo a sistema phistico dos enquadramentos, a lado esquerdo esta "antes", enquanto a direito esra "depois", porque a olho foi dirigido de urn modo particular da esquerda para a direita atraves de cada urn desses quadros im6veis.

No processo de dividir as composi~6es do enquadramento ao longo de uma linha vertical, isto nos da a direito de marcar nossas batidas e compassos musicais entre os varios elementos plasticos que comp6em esses enquadramentos.

Poi em nossa percep~o desta circunstancia que baseamos a montagem desta seqUencia particular - e tornarnos nossas correspandencias audiavisuais mais precisas. Esta analise, certarnente taa meticulosa para a lei tar quanta 0 foi para 0

escritor, s6 poderia ser feita, e clara, post factum, mas vale a pena para pravar quanta

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132 o sentido do filme

o grau de "intui~ao" de composi~ao e responsavel pelas corretas estruturas audiovi­suais - e como "instined' e "sensac;:ao" podem materializar a montagem sonqro-vi­sual. Parece desnecessario salientar que essas saO premissas baseadas totalmente num desejo da verdade na escolha do tema, e urn desejo de vitali dade na forma de trara-Io.

De enquadramento a enquadramento de nossa seqUencia, 0 olho se acostuma a "!er" a imagem da esquerda para a direita.

Ao mesmo tempo, esta continua leitura horizontal da seqUencia induz a leitura horizontal em geral, de modo que os enquadramentos sao percebidos psko­logkamente, como se colocados lado a lado sobre uma linha horizontal na mesma dire~ao esquerda-direita.

1sto e 0 que nos permite nao apenas dividir cada enquadramento "no tempo" sobre nossa linha vertical, mas tambem colocar enquadramento apos enquadramento sabre uma linha. horizontal, e descrever sua correspondencia com a musica exata­mente deste modo.

Continuemos a drar vantagem desta circunstancia descrevendo com urn gesto

a sucessao dos pIanos VI-Vll-VIII, ao lado do movimento da musica que e fundida a esses pIanos, eo movimento daquele impulso plastico total no qual ambos, imagem e mUsica, se baseiam. ever diagrama geral.) Este e 0 mesmo movimento que passa pela combina~ao dos pIanos III-IV. Uma distin~ao interessante aqui, entre 0 movi­mento atraves dos dois pIanos eo mesmo movimento atraves de tres pIanos, e que o efeito de uma "queda" e, no ultimo caso, colocado dentro do enquadramento (plano VII), em vez de na transifiio entre dois pIanos (pIanos III e IV).23

Sabre este gni.fico, e acrescentando-se as enquadramentos restantes, podemos

construir 0 diagrama grafico geral de todo 0 fragmento. Comparando 0 grafico III-IV com 0 VI-Vll-VIll, podemos ver como 0 desenvolvimento audiovisual das "varia~6es" sobre uma linha basica de movimento e muito mais complicado no segundo caso.

Observamos que 0 movimento da esquerda para a direita atraves de cada enquadramento sugeriu psicologicamente que os enquadramentos estao na realida­de colocados urn em seguida do outro sobre uma linha horizontal que corre em uma direc;ao - para a direita. Esea peculiaridade permitiu a organizayao no nosso diagrama do modo como 0 vemos.

Ligado a isso, outro fator muito mais importante, de urn tipo diferente, cO

agora revelado. 0 efeito psicol6gico da esquerda-para-a-direira associa a seqUencia total a uma forma concentrada de aten~o, dirigida de algum lugar a esquerda em dire~ao a algum lugar a direira.

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Forma e conteudo: pr.itica 133

Isto salienta nosso "indicador" dramatico ... que a dire~ao dos olhos de todos os personagens desses pIanos para urn ponto - com apenas urna exce<?oJ 0

primeito plano de :gnat no IX. No plano IX, Ignat olha para a esquerda, mas exatamente por causa disso a

dire~o geral de nossa aten~ao para a direita e fortalecida. Este primeiro plano enfatiza nossa dire~ao geral, que e desenvolvida pelo "som

triplo" dos primeiros pianos VIII-IX-X, onde mantem uma posi~o media no menor espa~o de tempo ._. apenas tn,s quartos de urn compasso -, enquanto os pianos VIII e X ocupam urn compasso mais uma colcheia e urn compasso mais uma semfnirna1 respectivamente.

Este movimento em dire~o a esquerda substitui 0 que teria sido uma serie mon6tona

Figura 9

por uma serie nervosa:

~' - ·~L

-~-. _.< ~-

Figura 10

na qual 0 terceito primeito plano (plano X) adquire, em vez de uma dire~o geral, vagarnente expressiva, que a primeira arrurna<;5o teria produzido 1 urna enfase ainda maior de sua dire~ao para a direita, como se fotografado com uma lente de 180 graus.

Exemplos podem ser encontrados na adesao de Puchkin a uma constru~ao semelhante. Em Ruslan e Ludmila ele fala dos que morreram na batalha contra os habitantes de Pechenga: urn atingido por uma f1echa, outro esmagado por uma clava, e urn terceiro pisado por urn cavalo.

Uma'seqiiencia de jlecha, clava e cavalo corresponderia a urn crescendo direto. Puchkin, no entanto, d:i uma ordem diferente. Ele distribui 0 "peso" do

choque nao numa simples linha ascendente, mas com urn "recuo" do elo medio da cadeia:

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134 o sentido do filme

niio: Recha - clava - cavalo, mas: clava - . flecha - cavalo.

Este, derrubado por urn golpe de clava, E aquele - . atingido por uma flechaj Ourro, prensado por seu escudo, Esmagado por urn cavalo enfurecido ... 24

Assim, esses movimentos isolados do olho, da esquerda para a direita, atraves da seqiiencia, aumentam a sensas:ao de haver algo 11 esquerda, lutando "com todas as suas forqas" para dirigir-se a algum lugar 11 direita.

Esta e exatamente a sensas:ao que todo 0 conjunto de doze pIanos procurava: o principe na montanha, 0 exerdto ao pe da montanha, a atmosfera geral de espera - todos dirigidos aquele ponto, a direita, ao fundo, a algum lugar alem do lago, do qual a inimigo ainda invislvel aparecer:l.

Neste ponto 0 inimigo e mostrado apenas atraves da espera do exercito russo. Depois desses 12 pIanos h:I tres quadros vazios da deserta superflcie gelada do

lago. No meio do segundo desses tres pIanos a inimigo aparece "com uma nova

qualidade". . atraves do sam de sua trombeta. 0 som da trombeta termina em urn plano dq grupo de Alexandre - para dar a sensa~ao de que "veio de longe" (a serie de paisagens desertas), e finalmente "alcan~ou Alexandre" (au "invadiu a imagem dos russos").

o som entra no meio de urn plano de paisagem vazia, de modo que e ouvido como se salsse do centro do quadro - de fente. E entao ouvido de fente, no plano do grupo de russos (que esta frente a frente com 0 inimigo).

o plano seguinte mostra a distante linha da cavalaria alema, movendo-se de fente, parecendo fluir do horizonte com 0 qual a inlcio parecia estar fundi do. (Este tema de urn ataque fontat e preparado muito antes pelos pIanos IV e XlI . - ambos pIanos fontair. seu papel principal na seqiiencia, alem de sua fun~ao como equiva­lentes plasticos da mUsica nesses pontos.)

'A tudo 0 que foi dieo uma ressalva basica deve ser acrescentada: Esea perfeitamente evidente que uma leitura horizontal de uma seqiiencia de

enquadramentos, ligados urn ao outro par uma conceps:ao horizontal, nao e sempre pertinente. Como mostramos, neste caso ela flui totalmente da sensa~ao da imagem total exigida pela seqiiencia: uma sensas:ao determinada pela dire~ao da aten~ao da esquerda para a direita.

Este aspecto particular da imagem por n6s desejada e obtido plenamente tanto pelo enquadramento quanto pela musica, e pela genulna sincronizas:ao de ambos. (Ate a musica parece expandir-se, afastando-se dos pesados acordes do lado "esquerdo". 7entemos imaginar por urn momento as efdtos resultantes desses

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Forma e conteudo: pr~tica 135

acordes colocados a "direita", isto c!, das frases terminando com acordes; nao haveria a sensa.,ao de "v6o" a!em dos espa,os do :.ago Chudskoye, como a obtida.)

Ao trabalhar para obter outras imagem - " em outros casos --, a composi.,ao dos quadros pode "treinar" 0 olho para uma leitura plastica totalmente diferente.

o olho po de ser treinado nao para ligar urn enquadramento a outro como em nosso fragmento, mas para colocar enquadramento sobre enquadramento - como camadas.

Isto produziria ou a sensa.,ao de ser levado para 0 fundo, ou a sensa.,ao de imagens correndo em dire.,ao ao espectador.

Imaginemos, por exemplo, uma seqli~ncia de quatro primeiros pIanos de tamanho crescente, cada urn de uma pessoa diferente, cada urn colocado no meio de seu enquadramento. Uma percep.,ao natural desta serie de pIanos nao seria como a diagramada no desenho de cima, mas COmo no de baixo:

I" • L 1 2 3 4

~ -.

Figura 11

Este nao seria urn movimento em frente do olho - da esquerda para a direita, mas urn movimento afastando-se do olho numa seqli~ncia de 1, 2, 3, 4 - ou em dire,ao ao olho, 4, 3, 2, 1.

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136 o sentido do filme

o que acabamos de observar e urn segundo tipo de movimento em nossa analise do som da trombeta e a mudans;a para urn movimento frontal em dire~o ao fundo - que se segue 11 nossa primeira seqUencia.

o som cai num plano semelhante ao plano XII - urn plano como este poderia set lido do mesmo modo ("pela inercia") da esquerda para a direita, assim como em dire~o ao fundo:

• 1------,----1

Figura 12

Mas duas coisas nos ajudam a desviar a aten~o em dire~o ao fundo. Primeiro, 0 som irrompe do centro temporal do plano, de modo que nossa

percep~o, guiada pela analogia e por urn senso de espa~o, coloca 0 som no centro espacial do plano.

Segundo, 0 movimento, como urn degrau, da camada branco-acinzentada de neve indo para cima a partir da margem da base do enquadramento.

t::;;;--~~~J:

Figura 13

2 1

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Forma e conteudo: pnitica 137

Esta "camada" leva 0 olho para cima, mas este movimento ascendente sobre a superflcie e ao mesmo tempo uma aproxima~ao do horizonte; pode entao ser lido psicologicamente como urn movimento espacial em dire~o ao horizonte, ou para o fundo, que e exatamente do que precisamos neste caso. Este movimento e em seguida fortalecido polo plano seguinte, que tern uma composi~ao quase identica, mas com uma Iinha do horizonte mais baixa - de modo que 0 aumento do ceu leva 0 olho a perceber uma distincia ate maior. Mais tarde esta dire~o condiciona­da do olho e materializada- primeiro auditivamente (com urn som se aproximan­do), e depois concretamente (com as cavaleiros galopando), quando a momento do ataque se aproxima.

Com uma distribui~o sistematica de formas, Iinhas au movimentos, e igual­mente poss(vel treinar a olho para fazer uma leitura vertical, ou em qualquer dire~ao desejada.

Hi mais urn pouco a acrescentar a nossa analise dos planas IX-X e XI·XII. Como ja mencionado, as pianos IX-xlan~m-se sobre a fraseAI (igual aA, mas com uma nova ronalidade). Devemos observar que os pianos XI·XII caem sabre a Frase BI do mesmo modo.

o diagrama geral mostra que, diferente dos pianos III e IV, onde urn enqua­dramento cobre cada dais compassos das frases A e B, dois enquadramentos cobrem cadadois compassos das frasesAI eBI.

Vejamos se as pianos IX·X-XI-XII repetem 0 grafico de movimento que deter­minamos para os planas III-IV. Se sim, em que aspecto novo? Os primeiros tres quartos do primeiro compasso caem no primeiro plano, IX. Esses tres quartos incluem a acorde introdut6rio - "a plataforma de lan~mento", como a chama­mos em outras ocasioes. 0 enquadramento que acompanha este acorde parece quase uma amplia~ao de parte do plano VI: 0 primeiro plano de urn homem com barba (Ignat) contra urn fundo cheio de lan~s poderia ter sido tomada com a clmera mais pr6xima dos quatro lanceiros do plano VI. OS restantes cinco quartos da Frase caem sobre 0 plano X - cujo fundo est:! relativamente livre de lan~as, comparado com a fundo do plano IX. Esta "simplifica~ao" se assemelha 11 do plano VI, se comparamos a lado esquerdo do quadro com seu lado direito. Nosso "sola­vanco" tambem pode ser encontrado neste primeiro plano - mas neste caso expressado de urn modo inteiramente novo - como baforadas no ar frio, exaladas por uma garganta nervosamente tensa. 0 "areo" neste caso e eonstrufdo sobre urn demento principal de crescente suspense, agora "interpretado" -_. aumentando a excita~o.

Vma nova personificac;ao do nosso "movimento" e' revelada - urn fator psicol6gico que atua, interpreta - tecido na crescente emo~o.

Ao lado deste fator, devemos visualizar a plano X como tendo volume. Na transi~ao do plano X para a plano XI, analogo a "queda" de III-IV, temos urn salco nao menos abrupto de urn volume redondo - 0 rosto jovem de,Savka em primeiro

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138 o sentido do filme

plano. . para um plano geral de pequenas figuras, de costas para a camera, vislumbradas ao longe. Este salto e produzido nao apenas atraves de uma diminui­s;ao brusca das dimens6es, mas tambem atraves de uma meia-volta completa dos personagens.

Esses dois pianos -- X e XI - . sao anilogos aos lados direito e esquerdo do plano VII. Cada metade do plano VII ganha aqui um enquadramento inteiro, que produz seu pr6prio efeito. Naturalmente des sao enriquecidos e recebem mais peso (comparemos VII eXI, ou a faixa.do horizonte do VII com 0 enquadramento inteito do lago congelado desetto do plano XII).

Vestlgios dos outros elementos podem set encontrados aqui tambem. 0 esvoac;:ar dos estandartes que salientamos no plano IV, e os pontos mais luminosos m6veis do plano VIII aqui aparecem como raias verticais, alrernando branco e cinza, espalhando-se pela superflcie gelada.

Assim podemos enCOntrar a mesmo grafico de movimento que determinou a sincroniza~o do movimento interno da musica e da imagem, que reaparece atraves de variados meios pl:lsticos:

Tonalmente (plano I) Linearmente (plano III) Espacialmente (os bastidores dos pianos VI-VII) Dramatica e substancialmente (pela interpreta~ao dos pianos IX-X e pela

transi~ao pl:lstica do volume do primeiro plano do plano X para os volumes reduzidos do plano XI).

E, tambem, a espera ansiosa do inimigo foi expressada atraves de varios tipos de variafioes: por meios vagos, insinuados, "geraisU

J atraves da Iuz do plano I; depois a linha do plano III; depois pela mise-en-scene e 0 agrupamento de pianos VI-VII; e finalmente por uma integras;ao totalmente montada dos pianos VIII-IX-X.

Ha um plano no qual ainda nao tocamos em nossa anilise - plano V. Ao nos referirmos a de acima, nos 0 chamamos de um plano "de transis;ao". Tematicamen­Ie, esta e uma descris;ao exata: uma transi~ao do principe na montanha para as tropas a seus pes.

Este plano tambem contem uma transis;ao musical- e sua mudan~a de uma tonalidade para Dlltra e consistence com sua fun~o tematica, e com a carater pl:lstico do plano. Este e 0 unico enquadramento da.seqii~ncia no qual 0 "arco" e transposto da direita do quadro para 0 lado esquerdo. Neste caso, serve.para.esbo~ nao a parte aerea do enquadramento, mas a parte pesada, s6lida: aqui 0 arco nao se move para cima, mas para baixo - tudo esta em total correspondencia com a ffillsica: urna clarineta na set?0 grave expressando urn movimento descendente contra um fundo de violinos em tremolo.

Apesar dessas diferenc;:as, este plano nao pode ser visto como totalmente libertado de suas responsabilidades com relas;ao 11 seqii~ncia como um todo. Quan­to ao tema, este plano esta totalmente ligado aos outros pianos.

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Forma e conteudo: pratica 139

o carater diferenre deste plano poderia ser explicado sem qualquer hesitas:ao se de contivesse algum elemento antagonico - se, por exemplo, os cavaleiros alemaes aparecessem, de algum modo, neste plano. Urn corte tao evidente, que quebrasse ddiberadamente a textura geral da seqiiencia, seria, num caso como este, nao apenas "desejavel", mas na realidade necessario. 0 tema do inimigo realmente irrompe deste modo, com urn som duro, novo, alguns pIanos adianre, como descrito acima. Mais tarde, os temas "discordantes" dos dois adversarios se cruzam num combate de pIanos discordantes: numa discordancia de faixas de monragem, diferindo claramenre quanro a composis:ao e estrutura - cavaleiros alemaes bran­cos - tropas russas pretas; tropas russas im6veis - cavaleiros galopando; rostos russos expostos, emocionalmente vivos - rostos alemaes escondidos pelas viseiras das mascaras de ferro.

Este anragonismo dos dois adversarios e mosrrado pela primeira vez como urn anragonismo de pIanos reunidos por meio do conrraste - que resolvem a fase inrrodut6ria da batalha sem ainda. colocar as tropas em conrato. Uma batalha fflmica ji comes:ou, porc,m, atraves deste antagonismo dos elemenros plasticos que caracterizam os antagonistas.

Mas urn anragonismo total como este nao ocorre enrre 0 plano V e os omros pIanos. Apesar de haver uma diferensoa enrre as caracterlsticas do plano V e as dos outros pIanos, V nao se afasta de sua unidade.

Como isto e obtido? ~a que vimos que as caracterlsticas do plano V sao muito diferenres das

caracterlsticas dos outros pIanos, aparentemente teremos de olhar alem dos limites de apenas este enquadram~nro para obtermos a resposta.

Examinando toda a serie de enquadramentos, logo descobriremos dois que, num menor grau, descrevem 0 mesmo arco curvo inverrido que caracteriza a linha descendenre da montanha do plano V.

Vemos que 0 plano V e colocado aproximadamenre no meio do caminho entre estes dois.

Urn plano prepara 0 aparecimenro do plano v. 0 outro 0 fecha. Esses dois pianos, por assim dizer, "amortecem" 0 aparecimento e desapareci­

mento do plano v, cujo surgimento e desaparecimento, sem eies, teria sido muito abrupto.

Esses dois pIanos sao II e VIIl. Na realidade, se desenharmos uma linha direcional das duas principais mas­

sas, podemos ver uma coincidencia no contorno da monranha do plano V: o plano V difere dos pIanos II e VIIl porque a linha nao e fisicamente desenha­

da, e funciona como uma linha de construs:ao ao longo da qual surgem as formas principais de II e VIII.

Alem desta ligas:ao mais fundamenral do plano V com os outros pIanos, h:i tambem curiosos "grampos" que unem V a seus vizinhos imediatos -IV e VI.

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140 0 sentido do filme

Plano II Plano VIII

l

Figura 14

E ligado ao plano IV pela minUscula bandeira esvoac;:ando acima da monta­nha, continuando 0 jogo de bandeiras sobre a linha da tropa do plano lV; a ultima !llodula~o dtmica musical das bandeiras na realidade coincide com 0 aparecimen­to da bandeira no plano V.

o plano V e ligado ao plano VI pelo contorno negro da montanha, cuja base ocupa a esquerda do quadro VI.

Esta base da montanha tern uma importlncia que ultrapass. as considera~es de seus elementos de composi~o plastica. Encerra informa~ao topografica . -provando que 0 exercito realmente esta no sope da Montanha do Corvo. A falta de tais "informa~6es insignificantes" muito freqiientemente leva a uma falta de l6gica topografica e estrategica definida, que permite que a maioria das batalhas cinema­tograficas seja fundid. num caos histerico de escaramu~ atraves das quais e impossivel discernir 0 quadro geral de codo 0 evento em desenvolvimento.

Nem desses elementos, devemos notar aqui outros meios de se obter unidade de composi~o - atraves de urn tipo espelhado de contraste. A mesma unidade pode ser vista no plano V, pode.ser sentida quantitativamente pela.representa~ao da mesma quantidade com urn sinal de mais ou menos.

Nossa percep~o deste plano seria totalmente diferente se, por exemplo, 0

plano V contivesse nao apenas a mesma (apesar de invertida) curva do arco, mas tambem uma linha quebrada ou reta. Entao tedamos procurado suas rela~6es entre elementos tao oposcos como preto-branco, im6vel-m6vel etc., onde estadamos tratando com qua/idades, que sao diametralmente opostas, em vez de com quanti­dades iguais equipadas com indicaroes diferentes.

Porem, tais considera~6es gerais poderiam nos levar muito longe. Em vez disso, exploremos nosso fato estabelecido - que podemos desenhar

urn diagrama geral de correspondencia audiovisual e urn grafico de movimento dessa correspondencia atraves de toda a seqiiencia analisada. (Durante esse resumo

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Forma e conteudo: pratica 141

de nossa analise e aconselhavel seguir 0 argumento enquanto mantemos urn olho no diagrama gera!.}

Nesse esdgio da discussao, deixaremos de lado os detalhes de como as repeti-" <;6es e varia<;6es sao entrela~adas harmoniosamente. A este respeito 0 diagrama e bastante claro, tanto atraves de seu espa~mento, quanto de suas figuras.

Ha uma ourra questao que ainda nao foi abordada por nossa analise. No in!cio do capitulo II, falamos de urn principio geral, de acordo com 0 qual

a unidade e a correspondencia audiovisuais sao obtidas. N6s 0 definimos como uma unidade de ambos os elementos em uma "imagem" J isto e, atraves de uma imagem unificadora.

Acabamos de descobrir que 0 "unificador" dos elementos plastico e musical e o impulso de urn movimento que freqUente e repetidamente passa atraves de toda a constru~ao da seqUencia. Nao e uma contradi~o? Ou devemos, por outro lado, manter que dentro de nossa tlpica figura linear (isto e, tipica"de uma determinada parte da obra) ha uma "imagem" definida, e que esta imagem esti firmemente ligada a urn "tema" da parte?

Isto aparece em nosso grafico geral do movimento, como mostrado na :Iustra­~o I?

Se tentamos ler este gdfico emocionalmente, junto Com a questao tematica da seqUencia, comparando urn com 0 outro, podemos descobrir uma curva "sismo­gr:ifica" de urn determinado processo e ritmo de desagraddvel espera.

Come~ando com urn estado de relativa calma, desenvolve-se para urn crescen­te movimento ascendente - que pode ser lido como urn periodo de tensao -espera.

Perto do auge desta tensao, ha uma sdbita descarga, uma completa queda -como urn suspiro de allvio.

Esta semelhan~ nao pode real mente ser considerada' acidental, porque a estrutura aparentemente semelhante do grafico emocional e na realidade 0 prot6ti­po do pr6prio grafico do movimento, que, como cada gdfico de composi~ao vivo, e urn fragmento da atividade do homem, iluminado por uma emo~ao determinada - . urn fragmento da regularidade e do ritmo desta atividade.

A linha a-b-c da Ilustra~ao 1 reproduz muito claramente 0 estado de "segurar a respira~ao", segurando-a ate que 0 pulmao esteja pronto para explodir - explodir nao apenas devido a crescente tomada de ar, mas tam bern devido a crescente emo~o que esta ligada ao ate fisico.· . "A qualquer momento 0 inimigo aparecera no horizonte." E entao: "Nao, ele ainda nao esta a vista." Ese respira aliviado: 0

pulmao, expandido de repente, entra em colapso com a exala~o profunda ... Mes­mo aqui, numa simples descri~ao, involuntariamente colocamos depois dessa a~ao ... - reticencias: as reticencias de uma pulsa~ao anticlimax, uma rea~o a previa hipertensao.

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142 o sentido do mme

Aqui algo mais prende nossa atenyao no gr:Hico. Uma repetida sensayao estadonaria. combinada com 0 acorde intradut6rio da nova Frase musical antes de novamente aumentar 0 suspense· . entao uma queda - e assim por diante. E assim todo 0 pracesso vai em frente. ritmicamente. invariavelmente repetindo-se com a mesma monotonia que torna 0 suspense tao insuportavel para quem 0

experimenta ... Decifrado deste. modo. nosso gr:ifico das curvas ascendentes. quedas e resso­

nmcias horizontais pode ser imediatamente considerado como a meta a ser a1can­s:ada. a personificafiio gdfica da imagem. que representa 0 pracesso de urn determi­nado estado de suspense angustiante.25

Jma construyao como esta pode. obter plenitude realista e a plena imagem do "suspense" apenas atraves da plenitude dos planos-quadras - apenas quando esses quadras sao cheios com uma representafiio plastica composta de acordo com 0

gdfico mais generalizado do nosso tema. Junto com urn firme grdfico generalizado do conteudo emocional da sequenda

que se escuta varias vezes na partitura musical. 0 elemento das representofoes pictori­cas m6veis carrega a responsabilidade pelo aumento do tema de suspense.

Em nossa seqUencia, vemos uma crescente intensidade de variadas repre-sentafoes passando consecutivamente atraves de uma serie de variadas dimens6es:

1. Tonal I. 2. Linear III-IV. 3. Espacial VI-VII-VIII. 4. Substandal (as massas dos primeiras pIanos) e ao mesmo tempo: Dramati­

co (0 jogo desses primeiras pIanos atraves de IX-X-Xl-XlI).

A pr6pria ordem na qual essas dimens6es mudam forma uma Hnha definida­mente crescente - de urn insubstandal. vagamente alarmante "jogo de luzes" (0 fode-in). para a clara e concreta <1fiio humana. a atividade dos personagens realistas. realisticamente esperando por urn adversario realista.

Uma questao permanece sem resposta - uma questao levantada por todo ouvinte ou lei tor que con temple pela primeira vez urn quadra de regularidade das estruturas de composi~ao: "Voce sabia disto tudo previamente? Voce antecipou isto previamente? Voce realmente calculou isto com todos estes detalhes previamente?"

Este tipo de pergunta em geral revela uma ignorancia de quem a faz quanto ao verdadeira modo pelo qual 0 pracesso criativo se verifica.

£. urn erro achar que, com a composic;ao de urn rordeo de filmagem - . e nao importa se se trata de urn detalhado "cateiea de ferro" au "a prova de erro" -'J 0

processo criativo terminou. Infelizmente esta e uma opiniao ouvida com muita frequencia - que 0 trabalho criativo termina assim que as f6rmulas de compo­si~ao sao estabelecidas. e que e nelas que todas as sutilezas da construyao sao determinadas.

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Forma e contetido: prat:ca 143

1sto esta longe de ser urn panorama real do processo - no maximo, e apenas ate urn certo ponto, " uma imagem aceirivel.

Esri especialmente longe da verdade com relas:ao as cenas e sequencias de uma construc;ao "sinfonica", onde os pIanos sao ligados por urn processo dinamico, que desenvolve urn tema amplamente emocional, mais do que de uma sequencia da fase do enredo, que pode desenvolver-se apenas naquelas ordem e sequencia.definidas, ditadas pelo born senso.

1sro esri ligado a outra circunstincia - a de que durante 0 periodo de trahalho raramente se flrmulam estes "comos" e "por quesJ), que determinam esta ou aquela escolha de "correspondencia". No periodo do trabalho, a seles:ao basica e transformada nao em avaliafiio Ugica, como a uma p6s-analise deste tipo, mas em afiio direta.

Construir nossa ideia niio atraves da inferencia, mas colocd-la diretamente nos quadros e no cur so da composifiio.

1nvoluntariamente me lembro que Oscar Wilde negava que as id"ias de urn artista nascessem "nuas", para apenas mais tarde serem vestidas com marmo~e, dnta esom.

o artista pensa diretamente em como manipular seus recursos e materiais. Seu pensamento " transformado em as:ao direta, expressada nao por uma f6rmula, mas por uma forma.

Mesmo nesta "espontaneidade", as leis, bases, motivac;6es necessarias para exatamente esta e niio outra distribuis:ao dos elementos de alguma coisa passam atraves da consciencia (e algumas vezes sao reveladas em voz alta, mas a consciencia niio pdra para explicar essas motivafoes- ela corre em direfiio a finalizafiio da propria estrutura. 0 prazer de decifrar estas "bases" fica para uma analise posterior, que algumas vezes ocorre anos depois de passar a "fehre" do "ato criativo"· . este "ato" ao qual Wagner, no auge.de sua ascensao criativa, em 1853, se referiu aD recusar-se a colaborar numa revista dedicada it teoria musical que estava sendo organizada por seus amigos: "Quando voce cria - . voce nao explica,"26

As leis que governam os frutos do "ato" criativo nao sao de modo algum relaxadas ou.reduzidas por isso -·como procuramos demonstrar na analise acima.

Notas

1. Escrito em 1940 e publicado na revista fskusstvo Kino (Arte do Cinema) em janeiro de 1941 com 0 dtulo de "Montagem vertical". Ultimo de, uma serie de tees ensaios. Os dois antedores foram publicados nas edis:6es de setembro c dezembro desta mesma revista. Pequenas modifica¢es no texto original foram feitas para sua utiliza¢o como capitulo final de 0 smtido do filme.

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Nota biografica

SERGEI MIKHAILOVITCH EISENSTEIN nasceu a 23 de janeiro de 1898 em Riga. Seu pai, Mikhail Ossipovitch Eisenstein, judeu de origem alema, era engenheiro­arquiteto. Sua mae, Julia Ivanovna Konietskaia, pertencia a uma familia da burgue­sia local- era herdeira de uma companhia de navegaqao. Seus pais separam·se em 1909, a mae de Eisenstein deixa Riga para estabelecer-se em Sao Petersburgo, e tres anos depois se divorciam. Eisenstein permanece com 0 pai ate 1915, quando passa a morar com a mae em Sao Petersburgo. Na escola e em casa aprende frances, ingles e alemao, e mais tarde, depois da Revoluqao, depois de desmobilizado do Exercito Vermelho, estuda japones. Em 1920 reencontra em Moscou urn amigo de inH.ncia, Maxim Strauch, que se tornara ator de teatro, e decide abandonar os estudos de arquitetura para se dedicar ao teatro ao lado do amigo. Entre 1921 e 1923 entra para 0 Primeiro Teatro Opedrio do Proletkult, segue as aulas de direqao de Vsevo­lod Meyerhold e participa com Sergei Yutkevitch e Leonid Trauberg da fundaqao do FEKS, a Fibrica do Ator Excentrico. Entre 1923 e 1924 dirige urn grupo de teatro e monta, com a colaboraqao de Sergei Tretiakov, tres espetaculos: a sdbio; Moscou, estd ouvindo? E Mtiscaras de gtis. Depois, 0 cinema: A greve, Potemkin, Outubrol 0 velho e 0 novo, e ais urn sem-numero de textos te6ricos, uma extensa atividade diditica, e inumeros desenhos, feitos alguns para orientar montagens de teatro, outros para orientar a realizaqao de filmes, outros como ilustraqaes traqadas livremente. E ainda muitos projetos cuidadosamente anotados mas nao realizados. Uma adaptaqao de Benia Kriks, urn dos "Contos de Odessa" de Isaac Babel; uma adaptaqao de a capital de Marx; uma outra de Ouro, de Blaise Cendrars; uma de as irmiios Karamazov, de Dostoievski; e de Uma tragedia americana, de Theodore Dreiser, estao entre os projetos nao realizados de Eisenstein. Quatro filmes entre 1924 e 1929. Depois, somente mais tres filmes inteiramente acabados, Alexander Nevsky e as duas partes de lvii, 0 Terrlvel, sao apenas a face mais vislvel de uma atividade cinematogd.fica intensa, ainda nao conhecida de todo. Grande parte dos roteiros nao filmados e dos textos te6ricos que Eisenstein escreveu em sellS u.ltimos anos de vida permanece desconhecida ou pouco divulgada. Ele morreu em 11 de fevereiro de 1948, vltima de urn ataque cardfaco, enquanto trabalhava num texto

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L

148 o sentido do filme

sal>re a cor no cinema, com as negativas de seu Que viva Mexico! ainda retidas nas maas das pradutares narte-americanas, com a segunda parte de seu [vii, 0 Terrlvel ainda praibida, antes do aparecim~nta, nos £otadas Unidas e na Inglaterra, de seu A forma do filme.

J.C.A.

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Filmografia

o diario de Glumov (Dnievnik Glumova). Filme de curta metragem com cerca de einco minutos de dura¢o feito para apresenta¢o durante a representa¢o de 0 sdbio, pe", de Ostrovski que teve dire¢o, cenarios e figurinos de Eisenstein. Fotografia de Boris Franrzisson. Interpretes: Gregori,Alexandrov, Maxim Shtrauch, Vera Yanukova, Ivan Pyriev, Alexander Antonov, Vera Muzikant, Ivan Iazykanov e Mikhail Gomorov. Depois da estreia da pe"" em abril de 1923, Dziga Vertov incluiu 0 didrio de Glumov na edi¢o mimero 16 de Kino Pravda, em maio do mesmo ano, com 0 titulo Sorrisos primaveris tW Proletkult (~sennie Ulibki Proletkulta).

A greve (Statchka). Dire¢o de Eisenstein. Roteito de Valeri Pletniev, Grigori Alexan­drov, :van Kravchunovsky e Eisenstein. Fotografia de Eduard TIsse. Montagem de Eisenstein. Interpretes: Alexander Antonov (opecirio membro do comite de greve), Gregori Alexandrov (contramestre), Maxim Shtrauch (policial), Mikhail Gomorov, I. Kiiukvine, Boris Yourrzev, Judith Glizer, I. Ivanov, A. Kurbatov, Vera Yanukova, A.!. !"..evchine e P. Beliaev. Filmado entre julho e outubro de, 1924, terminado de montar em dezembro deste mesmo ano. A greve teve suas primeiras exibi~6es publicas em mar~ de 1925.

o encoura~ado Potemkin (Bronienosets Potemkin). Dire¢o de Eisenstein. Roteiro de Eisenstein, com a colabora¢o de Nina Agadjanova-Shutko. Fotografia, de Eduard '!isse. Montagem de Eisenstein. Assistentes de dire¢o: Gregori Alexandrov, Alexander Antonov, Mikhail Gomorov, Maxim Shtrauch e Aiexander Levchine. Letreiros escritos por Sergei Tretiakov e desenhados por Nikolai Asseiev. Interpretes: Alexander Antonov (Vakulintchuk), Vladimir Barski, Gregori Alexandrov, Mikhail Gomorov, Julia Eins­tein, Alexander Levchine, Beatrice Vitoldi, Maxim Shtrauch, Konscantin Feldman, Andrei Fait e N~ Poltavtseva. Filmado entre julho e agosto de 1925 em Moscou e Leningrado, e entre agosto e novembto em Odessa e Sebastopol. Terminado de montar em dezembro de 1925, estreia no dia 21 deste mesmo mes e tern exibi~6es publicas a partir de janeiro de 1926.

Outubro (Oktiabr) ou Dez dias que abalaram 0 muntW (Dieciat dniei kotorie potriasli mirY. Dire¢o e roteiro de Eisenstein. Assistentes de realiza¢o: Gregori Alexandrov,

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150 o sentido do filme

Maxim Sht<auch, Mikhail Gomorov e llya Trauberg. Fotografia de Eduard TIsse. Montagem de Eisenstein. Cenografia de Vladimir Kovriguine. Interpretes: Vassili Nikolaievich Nikandrov (Lenin), Nikolai Popov (Kerenski), Boris Livanov (Minimo Terechtenko), Eduard TIsse (urn soldado alemao), e milhares de figurantes escolhidos entre soldados, marinheiros e a populac;ao de Leningrado. Roteiro escriro entre novem­bro de 1926 e mar~o de 1927; filmagens entre abril e setembro de :927 em Leningra­do, e em outubro em Moscou. Terminada a montagem em janeiro de 1928, Outubro teve uma pre-estreia neste mesmo m~ em Leningrado e exibi~5es publicas a partir de mar~o.

o velho e 0 novo (Staroie I Novoie) ou A linha geml (Gueneralnaia Liniia). ::lirec;ao e roteiro de Eisenstein. Assistentes de direc;ao: Gregori Alexandrov, Maxim Shtrauch, Mikhail Gomorov, Alexander Antonov e Alexander Gontcharov. Forografia de Eduard TIsse. Cenografia de V. Kovriguine, V. Rakhals e Andrei Bourov. Montagem de Eisens­tein. Interpretes: Marfa Lapkina (Marfa), M. Ivanine (seu filho), Vassia Bouzenkov, Nejnikov, Kostia Vasiliev, E. Sukhareva, Mikhail Gomorov e Gregori Marvej. a pri­meiro roteiro deste filme foi escrito entre maio e junho de 1926 e com 0 titulo de A linha geral come~u a ser filmado em novembro de 1926. Em janeiro seguinte a filmagem foi interrompida para que Eisenstein se dedicasse inteirarnente a realizac;ao de Outubro. a trabalho foi retomado em junho de 1928 e as filmagens concluidas em novembro. Filmagens complementares foram feitas em abril e maio de 1929, depois de uma entrevista de Eisenstein e Alexandrov com Stalin, que os aconselhou a mudar 0

final do filme. Primeira exibic;ao publica em outubro de 1929.

Tempestade sobre La Sarraz (Tempetesur LaSarraz). Pequena satira filmada durante o Congres Internationaldu Cinema Independant realizado no Castelo de La Sarraz, na Sui~, entre 3 e 7 de setembro de 1929. ::lirigido por Eisenstein, Hans Richter e Ivor Montagu, forografado por Eduard TIsse, 0 filme foi todo realizado em urn dia, e nao chegou a ser montado. as interpretes eram Janine Boussinouse, que fazia 0 "Esplrito do filme artlstico", Leon Moussinac, Jack Isaaks, Hans Richter, Rela Ralazs, Walter Ruttman, Alberto Cavalcanti, Eisenstein, Jean George Auriol e outros participantes.

Miseria das muiheres, fe!icidade das mu;heres (Frauennot, Frauengliick). Roteiro de Lazar Wechsler, Eduard TIsse e Emil Berna. Direc;ao de Eduard TIsse, com a participa­c;ao de Eisenstein eAlexandrov. Fotografia de Emil Berna. Filmado em Zurich, entre 23 de agosto e 3 de setembro de 1929, e montado em Paris, 0 filme discure a questao do aborto e foi proibido em diversas cidades sul~ depois de sua estreia em mar~o de 1930.

Romance sentimentale. Filme de curta metragem experimental dirigido por Gregori Alexandrov. Fotografia de Eduard TIsse. Montagem de Eisenstein e Alexandrov. Inter­prete: Mara Giry. MUsica de Arkhangelsky. Filmado entre dezembro de 1929 e mar~o de 1930 em Paris.

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Filmografia 151

Que viva Mexico! (Da Zdravystvouiet Mexika). Direc;ao e roteiro de Eisenstein. Assis­tente. de direc;ao: Gregori Alexandrov. Fotografia de Eduard 'TIsse. Assistente de foto­grafia: Gabriel Figueroa. Interpretado por atores nao profissionais e habitantes de diversas regi6es rnex!canasJ 0 filme teve seu roteiro preparado entre novernbro de 1930 e janeiro de 1931 e a filmagem se realizou daI ate janeiro de 1932, quando foi interrompido por determinac;ao de Upton Sinclair, que produzia 0 filme. 0 projeto se dividia em quatro partes, precedidas de urn pr610go e seguidas de urn ep(]ogo. As duas primeiras partes ja tinham sido inteiramente filmadas, Sandunga e Maguey. A terceira, FiestaJ estava pela rnetadeJ e a quartaJ SoldaderaJ nao se iniciara ainda. Eisenstein jarnais teve acesso aos negativos do filme, que foram usados para a realiza~ao dos seguintes filmes: Thunder over Mexico (Tempestade sobre 0 MIxico, 1933) longa metragem produ­zido por Sol Lesser e montado por Don Hayes e Howard Aices; Death Day (Dia dos mortos, 1933) curta metragem produzido por Sol Lesser com montagem de D. Antho­ny; S.M Eisenstein in Mexico, curta metragem produzido ainda em 1933 por Sol ~ser; Time in the Sun (Tempo ao sol, 1939) media metragem produzido por Marie Seton; Mexican Simphony, serie de seis filmes didaticos produzidos pela Bell & Howell Company com montagem de W. Kruise; Eisensteins Mexican Project(O projeto mexica­no de Eisenstein, 1955) longa metragem de estudo que reune na Integra os pIanos filmados para uma dezena de sequencias, organizado por Jay Leyda; Eisenstein, Mexico 1931, documendrio sovietico de curta metragem realizado por Yakov Mirimov em 1968. E, finalmente Que viva MIxico! montagem realizada em 1981 por Gregori Alexandrov.

o prado de Bejin (Bejin Ioviz). Direc;ao de Eisenstein. Roteiro de Alexander Rze­chevski baseado no texto de Ivan Turgueniev e na hist6ria real de Pavel Morozov. Assistentes de direc;ao: Pera Attacheva, Mikhail Gomorov, Fiodor Filipov, Jay Leyda e N. Maslov. Fotografia de Eduard 'TIsse. Montagem de Esfir Tobak. Som de Leonid Obolenski e Bogdankevich. Musica de Gavril Popov. Interpretes: Vitia Kartachov, Boris Zakhava, Elena Telecheca, N. Maslov, R Filipov, V. Orlov, Nikolai Oklopov e Stanislav Rostotski. Filmagem entre maio"de 1935 e abril de 1936, quando os trabalhos foram interrompidos por ordem da Direc;ao Geral de Cinema. Eisenstein decide filmar urna nova versao da mesma hist6ria e reescreve 0 roteiro com a colabora~o de Isaac Babel. As filmagens recome~am com N. Khemelev e P. Arjanov como interpretes principais em agosto de 1936 mas sao nova e definirivamente interrompidas em marc;o de 1937. Os negativos arquivados em Moscou foram destruldos durante a Segunda Guerra Mundial, masJ usando os fotogramas conservados por EisensteinJ urn de cada plano que filmara, Sergei Yutkevich e Naum Kleiman montararn duas versoes de 0 prado de Bejin em 1967, uma com 30, outra com 60 minutos.

Cavaleiros de ferro (Alexander Nevsky). Dire~ao de Eisenstein. Roteiro de Eisenstein e Piotr Pavlenko. Co-diretor: Dimitri Ivanovich Vassiliev. Assistentes de dire~ao: Niko­lai Maslov e Boris Ivanov. Fotografia de Eduard 'TIsse. Som de V. Bogdankevich. Montagem de Eisenstein e Esfir Tobak. Cenarios de Iossif Chpinel e Nikolai Soloviev,

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152 o sentido do filme

e figurin~s de,Konstantin Eliesseiev a pattir dos desenhos feitos por Eisenstein. Musica de Sergei Prokofiev. Interpretes: Nikolai Tcherkasov (Alexander Nevsky), Nikolai Okhlopov (Vassili Buslai), Alexander Alrikosov (Gavrilo Olexich), Dmitri Orlov (Ig­nar), Vasili Novikov (Parasha), Vera Ivacheva (Olga), Anna Danilova (Vassilia), Varvara Massilitinova (Amelfa TImofeievna). Roteiro escrito entre agosto e setembro de 1937. Filmagem entre maio e novembro de 1938. Primeiras apresenta~6es publicas em dezembro de 1938.

o grande car.al de Fergana (Bolcho; Ferganskii Kanal). Roteiro de Piotr Pavlenko e Eisenstein. Fotografia de Eduard TIsse. MUsica de Sergei Prokofiev. Iniciado em junho de 1939,0 trabalho foi iilterrompido em oucubro do mesmo ano devido a guerra.

Iva, 0 Terrfvel (Ivan Grozny). Dire~o e roteiro de Eisenstein. Assistentes de dire~o: Boris Svechnikov, Lev Aronovitch Indenbom, Vera Kouznetsova, I. Bir e B. Bounieev. Fotografia de Eduard TIsse (exteriores) e Andrei Moskvine (interiores). Som de V. Bogdankevitch e B. Volsky. Montagem de Eisenstein. Assistentes de montagem: Esfir Tobak e 1. Indenbom. Cenarios de Iossif Chpinel e figurinos de Leonida Naoumova a partir dos desenhos de Eisenstein. MUsica de Sergei Prokofiev. Interpretes: Nikolai Tcherkasov (Ivan), Ludmila Tselikovskaia (a czarina Anastasia), Seraflma Birman (Efrosinia Staritskaia), Pavel Kadotchnikov (Vladimir Andreievitch Staritski), Mikhail Nazvanov (Principe Andrei Kurbski), Andrei Abrikossov (Principe Fedor Kolytchev), Alexandre Mguebrov (0 boiardo Kolchein), Mikhail Jarov (Maliuta), Ambroise Butch­ma (Alexei Basmanov), Mikhail Kousnerzov (Fedor Basmonov), Vladimir Balachov (Piene Volynites), Vsevolod Pudovkin (Nikolai Bolchoi Kolpak), S.TImochenko (Em­baixador da Livonia). 0 projeto come~ou a ser preparado por Eisenstein em setembro de 1940, e um primeiro tratarnento ficou pronto quase urn ano depois. Entre janeiro e julho de 19420 diretor desenvolveu 0 roteiro e fez pouco mais de 2.000 desenhos para preparar a filmagem, que, iniciada em abril de 1943, estendeu-se ate junho de 1944. A montagem da primeira patte foi feita entre agosto e outubro de 1944 e a primeira apresenta~o publica do filme foi em,janeiro de 1945. Em abril deste mesmo ano 0 diretor anuncia 0 projeto da segunda patte de lvii, 0 Te"lvel. Muitas cenas a serem usadas na segunda patte ja haviam sido filmadas durante a prepara~o da primeira parte. E, deste modo, as filmagens complementares se realizararn entre setembro e dezembro de 1945 (e tarnbem neste perlodo foram feitas cenas para serem aproveitadas na terceira parte, que nao chegou aser realizada). Ao e1enco foram acrescentados Erik Pyriev (Iva quando menino), Pavel Massalsky (Rei Sigismundo, da Polonia) e Anna Golshansky (uma darna polonesa). 0 filme foi montado entre janeiro e fevereiro de 1946, mas sua exibi~o foi proibida e as cenas filmadas para a terceira parte, confisca­das. A primeira apresenta~o publica da segunda patte de lvii, 0 Te"lve/ s6 se realizou emsetembro de 1958.

J.e.A.

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Sugestoes de leitura

Textos de Eisenstein

La non-indifftrente nature II. Tradu~ao de Luda e Jean Schnitzer. Prefacio de Pascal Bonit­zero Union Generale d'Editions, 444 paginas. !'aris, 1976.

La non-indifftrente nature 12. Tradu¢o de Luda e Jean Schnitzer. Prefacio de Fran~ois Albera. Union Generale d'Editions, 374 paginas. Paris, 1978.

Au-delil des .toiles. Tradu~ao de Jacques Aumont, Bern~rd Eisenschitz, Sylviane Masse, Andree Robel, Luda e Jean Schnitzer. Apresenta~ao de Jacques Aumont. Union Generale d'Editions, 314 paginas. Paris, 1974.

Memoim II. Tradu~ao, prefacio e notas de Jacques Aumont. Union Generale d'Editions, 444 paginas. Paris, 1978.

Memoim 12. Tradu~ao de Jacques Aumont, Michele Bokanowski e Claude Ibrahimoff. Prefacio de Bernard Eisenschitz. Union Generale d'Editions, 318 paginas. Paris, 1980.

Memoires 13. Tradu~ao de Jacques Aumont, Michele Bokanowski e Claude Ibrahimoff. Prefacio de Barthelemy Amengual. Union Generale d'Editions, 248 paginas. Paris, 1985.

Cinematisme. Peinture et cinema. Tradu~ao de Anne Zouboff. Introdu¢o e noras de Fran~ois Albera. Editions Complexe, 312 paginas. Bruxelas, 1980.

Le mouvement de l'art. Tradu~ao de B. Epstein, M. Iampolski, N. Noussinova eA. Zouboff. Organiza~ao de Fran~ois Albera e Naoum Kleiman. Prefacio de Barthelemy Amengual. Les Editions du Cerf. 288 paginas. Paris, 1986.

Film Essays and a Lecture. Organiza~ao e prefacio de Jay Leyda. Introdu¢o de Gregori Kozinrsev. Tradu~ao de Leyda, Joseph Freeman, Winifred Ray, Bernard Katen e Herbert Marshall. Princeton University Press, 236 paginas. Nova Jersey, 1982.

Lessons with Eisenstein. Organ;za~ao de Vladimir Nizhny. Tradu~ao e ncras de !vor Monra­gu eJay Leyda. George Allen & Unwin Ltd, 182 paginas. Londres, 1962.

With Eisenstein in Hollywood, de Ivor Montagu, com os roteiros de Sutter} Gold e An American Tragedy. International Publishers, 356 paginas. Nova York, 1969.

153

Page 151: EISENSTEIN Sentido Do Filme

154 o sentido do filme

The Making and Unmaking o/Que \1va Mexico! A correspond~ncia entre Upton Sinclair e Sergei Eisenstein, editada e comentada por Harry M. Geduld e Ronald Gottesman. Tha­mes and Hudson, 450 paginas. Londtes, 1970.

Textos sobre Eisenste:n

Shklovsky, Viktor: Eisenstein. Tradu~ao deJoaquinJorda. EditorialAnagrama, 202 paginas. Barcelona, 1973.

Barna, Yon: Eisenstein. Tradu~o de Lise Hunter, prefacio de Jay Leyda. Little, Brown and Company,.288 paginas. Boston, Toronto, 1973.

Swallow, Norman: Eisenstein, a Documentary Portrait. E.P. Dutton & Co., Inc., 156 pagi­nas. Nova York, 1977.

Seton, Marie: Sergei M Eisenstein, a Biography. Dennis Dobson, 534 paginas. Londres, 1972.

Thompson, Kristin: Eisenstein's Ivan the Terrible. A neoformalist analysis. Princeton Un!ver­siry Press, 358 paginas. Nova Jersey, 1981.

Fernandez, Dominique: Eisenstein. Bernard Grasset, 272 paginas. Paris, 1975.

Amengual, Barthelemy: Que Viva Eisenstein!, Editions l'Age d'Homme, 726 paginas. Paris, 1980.

Carasco, Raymondc:: HOTs-Cadre Eisenstein. Macula, Pierre Brocher, 134 paginas. Paris, 1979.

Sorlin, Piene e Ropars, Marie Claire: Octabre, ecriture et ideologic. Editions Albatros, 178 paginas. Paris, 1976.

Lagny, Michel; Ropars, Marie Claire e Sorlin, Pierre: La Revolution Figuree. Editions A1batr~s, 220 paginas. Paris, 1979.

Leyda, Jay e Voynov, Zina: Eisenstein at W0rk. Pantheon Books, The Museum of Modern Att, 162 paginas. Nova York, 1982.

De Santi, Pier Marco: I disegni di Eisenstein. Editori Laterza, 336 paginas. Roma, !981.

Desdouits, Philippe; Lagny, Michele; Made, Michel; Moreau, Frederique; Nesrcrenko, Genevieve; Ropars, Marie Claire; Sorlin, Pierre: Octabre: continuite photogrammatique integra/e. Cinematheque Universitaire. 31 pranchas mais urn caderno de, 12 paginas. Paris. 1980.

J.C.A.

Page 152: EISENSTEIN Sentido Do Filme

fndice de nomes e assuntos

abstra,ao.93. 11. 113 Alexander Nevsky (Cavaleiros de ferro). 9. 49n.12,

54.56.67.100. 116-28. 130-43. 152 Alexandrov, Gregori. 54. 75n.6 Allen, 83 ambivaiecia, 83-5 analise, 17. 116-43 analogia.67-70 Arliss. George. 24, 49n.16 arquitetura, 68-9 arte, 10. 21, 51. 69. 99. 113. 114; ver tambem

musica; pintura assimilaC;3o,20-1 associaC;3o, 93-6

Bach. Johann Sebastian, 109, 110; Cantata de Na-talnol21.109

Baleon. Michael. 103n.50 bale. 41. 113 Balzac. Honore: Le chefdoeuvre inconnu, 114: Pa-

ris marie, 90 Barres. Maurice. 73 Beethoven, Ludwig van, 50n.21 Bejin Lovii ver Prado de Bejin, 0 Belloc, Hilaire: Milton. 43-4 Belyi, Andrei (Boris Nikolayevich Bugayev):A arte

de Gogol. 83. 102n.12 Berlioz. Hector, 105 Bierce, Ambrose: Fdbulas flntdsticlU, 14. 49n.3 Binet. Alfred. 97. 103n.45 Blake. William. 97. 114 Blaue Reiter; Der., 78, 101n.3 Bocklin, Arnold, 74 Bondy, Wather. 81 Bouts. Dirk: a sonho de EliaJ no deserto, 129 Bronienosets Potemkin ver Encourtlfado Potemkin. 0 Browning, Robert: Abt Vc1gler, 13 Bugayev ver Belyi

Byron, George Noel Gordon, 53

Campbell, Thomas, 53 canC;3o arabe. 72 cante hondo (tambem cante jondo). 72-3, 76n.28 canto bizantino, 72-3 Carrol, Lewis, 15. 49n.15;A cafa aoSnark, 15 Castel. Louis-Bertrand (Pere Castei), 62, 75n.ll Cavalcanti,Alberto, 89, 102n.32 Cavaleiros de ferro ver Alexander Nevsky Cisar amarelo. a (Yellou Caesar), 89. 102n.32 cezanne. Paul, 115. 144n.17 Chamberlain, Basil Hall, 65 Chaplin, Charles, 24 Charcot, Jean Martin 96 Chartres, catedrai de, 92 Chenier. Andre, 43 China, 66 dnejornal, 72, 89, 1020.32 cinematisme 11. 620.19. 76n.19, 76n.27. 155,

50n.25 Coleridge, Samuel Taylor,13 composic;ao. 139 conflito, 64 consoantes,74 Copple, Fran,"is, 74 cor, 60, 61-6, 73-4, 77-101; amarelo, 63, 75, 78-

93: azul. 63-4. 74, 80. 92; branco, 63-4, 74. 80.92; dqui, 95. 96. 103n.42; laranja, 81. 97; marrom. 96: preto. 63, 94, 100: verde, 63, 83-4, 91-2, 94, 96; vermelho, 63, 80, 97; violeta, 59-60, 105-6, 109, 127-30, 139, 142

cubismo. 69. 71

Debussy, Claude-Achille, 99 decadencia. 70. 87-8 Delacroix. Eugene, 7. 105. 114

155

Page 153: EISENSTEIN Sentido Do Filme

156 o senddo do filme

D,putado do Bdltico. O. 49n.12 desenho de cen:irio, 71 Deurschbein, Max: Das Wtun cUs Romantischtn,

64. 75n.14 Didrio d~ Glumo~ 0, 149 Dickens, Charles: umpoJ diftctis, 111 Diderot. Denis, 62, 92~ 1020.39 dire~ao dnematografica, 61. 750.9 diretor. 31. 36 Disney. Walt: Birds ofa Fwhtr. 10. 144n.69 dissonancia,60 Dumas pai, Alexandre, 112 dupla exposi~o. 57 DUrer. Albrecht. 70. 76n.24. 114

Eckartshausen, Karl von. 62 edi~o. 39. 40. 41-2. 47-8. 55-6 eidetica.98 Eliot. Thomas Stearns, 82 Ellis. Havelock. 85. 89. 96. 103n.44 EncOUrtlfadoPottmkin. 0,67.115, 149 mjam6tmtnt.42·3 Escudier. Uon. 110, 1440.8 esculmra egCpcia (baixos-relevos), 70 espectador. 3D, 31. 35. 81.114 estetica. 67-8, 83-4 exposi~o. 36 exposi)5o-testemunho. 3D-I. 36 Eyck. Jan van. 70

Falla. Manuel de. 72 Pedin. Konstantin. 28-9 Fete. Chades. 103n.45 Floecke, Gustav, 74 Forster, E.M.: AtpUts of the Nova. 51, 750.2 fotomonragem.48 Francisco I. 89 Frazer.James: Th, Gold,. Bough.102n.40. 93 Freud. Sigmund: 0 chist~ ~ sua rela;iio com 0 incons·

cient~, 15. 49n.6 fuga,forma de. ! 10. 114-5

Gauguin. Paul. 80·1, 85. 101n.5 Genesis de Viena. 128. 144n.20 gesto.52. 113 Ghil. Rene. 64 Ghirlandaio, Domenico: A adora;iio dos pastores,

129 gltia. 89-91

Goethe, Johann Wolfgang von: Die Farbenkhre (Teori. da COt). 91. 97. 102n.37. 103n.48

Gogh, Vincent van. 81, 86,110n.7.115 Gogol, Nikolai: Almas.' mortas 83; Arabesques,

144n.16; Noites na aUein. 83; Tarus Bulba, 83: Uma terrivel vingan;a. 69

Coneourt, Edmond eJules de: Didrio.53. 75n.5 Gorki. Maximo. 28-9. 50n.25. 93. 96 Counod, Charles, 111 Courmont, Remyde. 101nA Grande canal de Fergana. 0, 152 gravuras japonesas, 70-3 Greco. El. 11.71. 76n.27; Vista eplama d, Toledo.

71. 76n.26 Greve, A, 58, 149 Guadalajara. batalha de,'50n.21 Guillere. Rene. 67-70

Hearn. Lafcadio. 65-6. 94 Helmolrz. Hermann Ludwig Ferdinand von.

64 hindus. 93 Hitchcock. Alfred. 98. 103n.50 Hotu.60 Hugo, Victor, 43 Hugues. Richard: A Moment of Time, 51,750.3

imagem, 17-25.27.31'135.36-8; imagem sono-ra.22-4. 36-7. 39. 41

imaginar;ao. 32-6 Inquisi~o, 85 Instituto £Statal de Cinema (Moscou). 119 interpretaljao, 24-5. 28. 31.2. 33-6, 42·3. 48 inrerpretaljao da cor. 61-2, 63-6, 73-4, 77·10 1 Ivan Grozny ver lvii, 0 Ter,r1vel Iva. 0 Te"ivtl. 9. 49n.12. 147-8. 152

" Japao. 66. 70 jazz. 68-9 Joyce, James: Emaio sobre James Clarence Mangan,

105. 144n.4; Finnegam Iffzke. 15 Juan de la Cruz. 71 justaposi~o. 14-9.28.34.36.51.53

Kabuki, teatro, 92 Kandinski, Wassily: Der gethe Klang, 78-80,

IOln.3 Keats,lohn. 43: Endymi~n, 42 Kehrer. Hugo, 73 Kobayashi. Masaru. 92

Page 154: EISENSTEIN Sentido Do Filme

fndice de names e assuntos 157

Koflka. Kurt: Principles of Gural Psychology. 16. 49n.7

Korda, Alexander, 84, 102n.13 Kumadori, 92

Lanz. Henry: The Physical Basis of Rime. 59-60. 75n.8

Laughton, Charles, 84, 102n.13 Legendre. Maurice, 72-3 unin em 1918ver Lenin v 1918 Lenin em outubro ver unin v Oktiabr Lenin v 1918. 49n.13 Lenin v Oktiabr, 49n.13 Leonardo da Vinci. 25-8, 30. 52, 53, 70, 76n.24.

114 lingua: alema, 90, 112; francesa. 89; hebraica, 85;

inglesa, 90; russa. 85. 90, 112 Linha geral. Aver VeJho e 0 novo. 0 linha. 55-6. 60. 92-3. 113-5 Larca. Federico Garda. 72 Lowes, John Livingstone: The Road to Xdnadu, 13,

49n.2 LufsXVI.96 Luriya. Alexander, 98. 1030.49

Macbeth (Verdi). 110 MacOrlao, Pierre. 90 magica homeopatica. 93 Maiakovski. Vladimir. 47-8. 50n.37. 52 Malyavin. Filipp. 97. 103n.47 Maome,91 Maria Antonieta. 96 Man", Nikolai Yakovlevich. 85 Martinez, Jusepe, 72 Marx. Karl. 29. 95 Massener, Jules. 67 Maupassant. Guy de: Bel ami, 23, 25. 30.

49n.l0 Meier-Graefe, Julius, 73 melodia. 59-60 Melville. Herman: Moby Dick. 100 Memling, Hans, 129 mem6ria, 20-1. 98 metrica, 42-3. 47. 50n.27 Michelangelo. 114. 144n.16 Milton, John, 43-7. 50ns.31 e 32,52; Paralso per-

dido. 43-7. 50n.32 e 36 Mislria da.t mu/heres. [e/icidade da.t mu/heres, 1 SO misticismo, 78. 82. 89 modula~o, 72-4

monragem. 13-9. 24. 27-31. 34-7. 40. 47-8. 50n.21, 100,115; atonal. 61; audiovisual, 25, 41-2.44.52.54.57-60.61.106-7.113.116-43; cramofonica, 61-2; fatogclfica, 48; poll­fOnica, 54-7; vertical, 54, 56-8. 75n.l

Montagu, Ivar, 75n.9 movimemo. 27. 54-5. 59-60.70.109-43 Mozart, Wolfgang Amadeus, 145n.25 musica. 51. 54-5. 56-9. 62-3. 67-9. 72.106-12: e

cor, 61-2, 106; de cinema, 105-7, 115-44; e imagem visual. 108-15; musica cigana. 72, 73; mtisica colorida, 61-3

Musset, Alfred de. 43 Mussolini. Benito, 89, 102n.32

Nietzsche, Friedrich, 70 Nordau, Max: Degeneration, 1030.45 Nova York. 20. 24. 69 Novalis (Friedrich Leopold Hardenberg), 74.

76n.35

Offenbach, Jacques: Contos de Hoffinann, 108, 109

Okhlophov. Nikolai. 24. 49n.13 Oktiahr ver Outuhro 6pera.41 otquestra, 54. 67-8 Gutubro. 23-4. 25. 49n.ll. 149-50 Oxford Dictionary. The, 103n.42 Oxford, Universidade de, 96

palavras portmanteau. 15, 49n.4 palavr ... 62-3. 65. 70 Parinaud, Henri. 96 Pavlenko, Pyotr: Aviijes venneJhos voam para 0 Les-

teo 108. 144n.5 Pedro I, 50n.25 Pedro, a Grande, 38-41 peladan. Josephin, 27 persistencia de visao, 57 perspecciva, 67. 68-70 Picasso, Pablo, 71, 86 pintura. 49n.9. 51. 67-73. 80-2. 85-6.127-30 pintura chinesa, 66 Piranesi, Giovanni Battista, 1.14 Plekhanov, Georgi, 59 PUnio, 0 Velho, 93 Plutarca.93 Poeta e tzar, O.49n.12 ponto de fuga. 70. 76n.24

I I

I

Page 155: EISENSTEIN Sentido Do Filme

\

158 o sentido do filme

ponco de vista, 71. 77 Ponal, Frederic, 84, 88, 92,102ns.14 dO PradodeBtjin,9,I51 primeiro plano, 26, 36, 37-8, 53-4, 69-71,115 Prokofiev, Serguei. 106 Puchkin. Alexander, 36·42, 43. 101n.l; Cavakiro

tkBronu.112; o chait em Koloma. 1 12; Euge­ne Oneguin, 40, 500.26; Poltava, 36-42, 45. Rmlan .Ludmila, 133

Pudovk.in. Vsevolod, 54, 750.6

Que viva Mlxico!, 151

Rembrandt, 83-4,144 R.mbramdt, 84, 102n.13 repetic;ao. 67-8 representac;ao, 18-20, 22-4. 28-9. 51 Revoluc;ao Francesa, 95 Reynolds, Joshua, 103n.46, 114 Rimbaud, Arthur. j1;gair, 63-4, 74, 93-4, 96 Rimsky-Korsakov. Nikolai. 73 ritmo, 38-9, 51, 56, 59-60, 67-8,105-6 Rodin, Auguste, 129-30, 144n.21 Rohan, Louis Rene Edouatd de (cardeal), 96 Romanu smtimtntalr. 150-1 romantismo.64 "coteiro de filmagem'\ 25-8, 30. 36, 39. 45-7.

192-3 Rubinstein. Anton: Demonio, 108

Saint-Exuperv. Antoine de: lfnto. areia e estrew, 76n.22

Saint-Saens. Camille: Danf4 macabr4, 108 Schlegel, August Wilhelm von, 64 Schumann. Robert: Fantasiestiicke n02, 108 Schweitzer,Albett:J.S. Bath,109,144n.7 Scriabin. Alexander, 62 Segunda Internacional. 89 semidos, 51, 53-4, 61-2, 97-9 Secoy. Valentin: Pedro. 40. 500.25 Shakespeare, William, 43, 90, \05 Shelley, Percy Bysshe: Julian e Maddala, 43 simbolismo. 84, 92. 1020.14 simultaneidade. 70·1 sincroniza~o. 59-61 sinestesia, 97-9

, sfncese. 67. 70-1 Staroie i Novoie ver Velho e 0 novo, 0 Statchka ver Grroe, A Srrindberg. Augwr: Brott oeh Brott, 81

Sverdlin, Lev, 24, 59n.15 Swedenborg, Emanuel, 92 Symonds,Addington,65

Taiti.86-7 Tchaikovski. Pyotr Ilich: A dama de espadas,

108 Tchetkasov, Nikolai, 24; 49n.12 Tchirkov, Boris, 24, 490.14 Tearco de Arte de Moscou, 31 tema, 18,27,35-7, 50n.21, 51-2, 55, 61, 79-80,

116,141-2 Tempestade soh« La Sa"az, 150 ThmrNine Steps ver Trinta e nove degraus, as Thompson. James. 0 Velho, 43 dpagem. 115. 1440.18 ' Tolstoi, Leon: Ana Karenina, 19.490.8; Guerra e

paz. Ill. 144n.lO;'Oquelaarte?40 tonalidade interior, 61, 77, 79 (opografia. 140 transiCjio. 126, 137-8 Trilogia de Mdximo,49n.14 Trillta e nove tkgram Os, 98. 103n.50

Udine, Jean d' (Albert Gozan"), 99 unidadelunificae;ao, 17-8

velhoeo novo. 0, 55. 56, 61,100,150 Verdi. Giuseppe, 110 Verlaine, Paul. 105 vogais, 63-4, 93-4, 98-9 voz, 52, 64, 72. 113-4 Vygorski, LevSemyonovich, 98, !03n.49

Wagner, Richard, 62, 143; 0 ouro do R.no 74 Warson, Willie, 1030.50 Watteau, Ancoine: L'Emharquement pour Cyth?re.

129-30 Mhsurs Dictionary. 42 Whisder.James McNeill. 74 Whicman. Walt: Leaves of Grass, 77. 86-8,101n.2,

102ns.19 e 29 Wilde, Oscar. 143 WtUumsen.lens Ferdinand, 73 Winchell, Walter, 15 Wolffiin. Heinrich. 67

Yakulov, Georgi, 71, 76n.25 Yang c Yin. princlpios de. 66, 76n.19 Yastrebczev, Vasili. 73

Page 156: EISENSTEIN Sentido Do Filme

Yellow Caesarver Cisar amartlo. 0 Yesenin. Sergei, 50n.37

(ndice de nomes e assuntos 159

Zhirmunsky. Viktor: Uma introdufiio a mltrica, 42. 50ns.27 e 29

201 •• Emile. 95