Drogas Pesadas Seminario Psicodelicos Publicado
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DOI: http://dx.doi.org/10.18315/argumentum.v7i1.9053
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Argumentum, Vitria (ES), v. 7, n.1, p. 108-125, jan./jun. 2015.
Drogas pesadas em discusso no Primeiro Seminrio
sobre Psicodlicos do Rio de Janeiro
Hard Drugs under discussion at the First Seminar about Psychedelic Drugs in Rio de Janeiro
Sandro Eduardo RODRIGUES1
Fernando Rocha BESERRA2
Resumo: O artigo problematiza a produo de danos pelo modo como o proibicionismo vem abordando a
relao humana com substncias psicodlicas, que levou necessidade de promoo de um debate clnico-
poltico, realizado atravs do Primeiro Seminrio sobre Psicodlicos do Rio de Janeiro. Com base em tal de-
bate, o texto introduz uma terminologia sobre psicodelia e apresenta alguns aspectos da histria de dois
frmacos psicodlicos o LSD e o MDMA que colocam em xeque notcias de surgimento de novas drogas
pesadas ou perigosas em si mesmas. Apostando na reduo de danos como paradigma e diretriz das polti-
cas de cuidado, o seminrio ressaltou a necessidade urgente de se dar relevo aos aspectos pessoais (set) e
ambientais (setting) na determinao da qualidade das experincias de usurios de drogas.
Palavras-chave: Drogas psicodlicas. Reduo de danos. Polticas sobre drogas.
Abstract: The article examines the harms caused by the way how the prohibitionism has been approaching
the human relationship with psychedelic substances, which has led to the necessity of promoting a clinical
and political debate, carried out through the First Seminar about Psychedelic Drugs in Rio de Janeiro. Based
on such debate, the text introduces a terminology about psychedelia and presents some historical aspects of
two psychedelic drugs LSD and MDMA that raise doubts about reports regarding the advent of new
hard or inherently dangerous drugs. Relying on minimizing damages as a paradigm and guideline of care
policies, the seminar highlights the urgency of acknowledging the individual (set) and environmental (set-
ting) aspects when determining the quality of the drugs users' experiences.
Keywords:Psychedelic drugs. Harm reduction. Drug policies.
Submetido em: 30/01/2015. Aceito em: 28/04/2015.
1 Doutor em Psicologia pelo Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal
Fluminense (UFF, Brasil). Pesquisador do Ncleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP,
Brasil), integrante da Frente Estadual Drogas e Direitos Humanos do Rio de Janeiro (FEDDH-RJ, Brasil) e
organizador da Ala Psicodlica da Marcha da Maconha (RJ). E-mail: . 2 Mestre em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP, Brasil). Professor do
Instituto Superior de Educao do Rio de Janeiro (ISERJ, Brasil), pesquisador do Ncleo de Estudos
Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP, Brasil), integrante da Frente Estadual Drogas e Direitos Humanos
do Rio de Janeiro (FEDDH-RJ, Brasil) e organizador da Ala Psicodlica da Marcha da Maconha (RJ). E-
mail: .
ARTIGO
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Sandro Eduardo RODRIGUES; Fernando Rocha BESERRA
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Argumentum, Vitria (ES), v. 7, n.1, p. 108-125, jan./jun. 2015.
Introduo
m 26 de novembro de 2014 foi reali-
zado, no Instituto Superior de Edu-
cao do Rio de Janeiro (ISERJ), o I
Seminrio sobre Psicodlicos-RJ, com a pre-
sena de pesquisadores, profissionais e ati-
vistas do campo das drogas tornadas ilcitas
pelo proibicionismo. O evento contou com
uma abertura e duas mesas: a primeira, Psi-
codlicos e Reduo de Danos, teve a partici-
pao do msico e psiclogo Sandro Rodri-
gues e dos cientistas sociais e redutores de
danos Dnis Petuco e Tiago Coutinho, alm
dos fotgrafos do site Mundo Cogumelo,
Rafael Beraldo e Danyel Sylvestre; a mesa
Psicodlicos e polticas de drogas contou com a
presena do psiclogo Fernando Beserra, de
uma das organizadoras da Ala Feminista da
Marcha da Maconha do Rio de Janeiro,
Thamires Regina, do integrante da Frente
Estadual Drogas e Direitos Humanos do
Rio de Janeiro (FEDDH-RJ), Rodrigo Mat-
tei, e do vereador Renato Cinco (PSOL-RJ).
O evento, organizado pelos presentes auto-
res, foi motivado por notcias alarmantes na
mdia e polticas proibicionistas envolven-
do novas drogas sintticas.
Em 16 de fevereiro de 2014 foi transmitida
pela televiso uma reportagem sobre novas
drogas muito perigosas (BRECHA..., 2014),
comeando a circular no mercado ilcito
brasileiro como se fossem balas (compri-
midos de ecstasy, cujo princpio ativo o
MDMA) e doces (cartelas de cido, cu-
jo princpio ativo o LSD-25). Dois dias
depois o ttulo de uma matria da mdia
impressa anunciava: Anvisa probe a comerci-
alizao de 21 novas drogas(ANVISA, 2014),
dentre as quais a metilona, usualmente
vendida como MDMA, frmaco tornado
ilcito h cerca de trinta anos, e onze feneti-
laminas da famlia 25xNBOMe (25iNBOMe,
25cNBOMe, 25eNBOMe etc), usualmente
vendidas como se fossem o LSD, proscri-
toh cerca de quarenta anos. Em setembro
um estudante da Universidade de So Pau-
lo morreu afogado durante uma festa, ten-
do o laudo do Instituto Mdico Legal (IML)
identificado a presena, em seu sangue, de
um nanograma por mililitro de 25bNBOMe
(MAIS..., 2014). O momento se mostrou ur-
gente para a realizao de um seminrio,
visando levantar questes como a da abor-
dagem proibicionista que prevalece na
grande mdia, com foco exclusivo em danos
associados ao consumo e na represso ao
comrcio, causando grande desinformao
e a banalizao do tema (GORGULHO,
2006).
Levantamentos realizados nos ltimos dez
anos (BRASIL, 2005; RONZANI et al., 2009)
indicam uma incompatibilidade entre o
enfoque editorial predominante na impren-
sa brasileira e a realidade do consumo de
drogas ilcitas no pas, em que pese a in-
fluncia da mdia na produo no apenas
de crenas sobre as substncias, mas tam-
bm da poltica de drogas cunhada no le-
gislativo (VIANNA, 2014). Este problema
no de modo algum exclusivo da impren-
sa brasileira. Desde os anos 1960, a mdia
dos Estados Unidos, pas que declarou mais
de uma vez guerra mundial s drogas, se-
guida pela mdia dos demais pases signa-
trios dos acordos proibicionistas internaci-
onais capitaneados pelos norte-americanos,
tem, ainda que com altos e baixos, constan-
temente promovido um verdadeiro pnico
moral em relao a substncias especficas
como, por exemplo, a maconha, a cocana e
o crack, sendo que tal sensao, junto com
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as solues simplistas propostas, incita a
populao a pedir cada vez mais o endure-
cimento das leis de drogas (COSTA, 2015).
Embora raras excees demonstrem ser
possvel cobrir o tema na grande mdia sem
restringir-se a notcias alarmistas, a peda-
gogia do amedrontamento tipicamente
empregada, mostrando-se, no apenas uma
ttica ineficaz de preveno (MOREIRA;
ANDREOLI, 2006), como ainda instrumen-
to de reforo de esteretipos e estigmas
(GOFFMAN, 1988), alm de guiar polticas
pblicas sobre drogas sem o devido cuida-
do que a questo exige. Levando-se em con-
ta o aumento detectado no consumo de
substncias psicodlicas (UNODC, 2014),
urge pensarmos a respeito dos riscos de
serem veiculadas notcias que afirmem que
elas so muito perigosas e a respeito dos
danos produzidos pela proibio de frma-
cos ainda pouco pesquisados.
Colocando os termos
O que so drogas psicodlicas? Um sistema
simplista de classificao dos diversos tipos
de ao farmacolgica das drogas no Siste-
ma Nervoso Central (SNC) distingue trs
tipos de substncias (MASUR; CARLINI,
2004): h as chamadas psicoanalpticas, ou
estimulantes do SNC, como cocana, cafena
e anfetaminas, que aceleram as conexes;
h as psicolpticas, ou depressoras do SNC,
como a morfina e o diazepam, que retar-
dam as ligaes. Ambas so como pedais de
controle de velocidade das transmisses
sinpticas: as primeiras aumentam e as l-
timas reduzem a atividade cerebral; mas as
que aqui nos interessam so as classificadas
como psicodislpticas, que, por envolverem
efeitos mais complexos, foram tambm
chamadas de perturbadoras do SNC, como
o LSD, os cogumelos Psylocibe e Amanita
muscaria, a ayahuasca, a anahuasca, o
MDMA, os cactos com mescalina, o LSA,
encontrado em sementes de plantas como a
Ipomoea violcea, a Argyreia nervosa e a Tur-
bina corymbosa, alm dos 25x-NBOMe, o
AL-LAD, os DOx, etc. Mesmo a maconha
(plantas do gnero cannabis), o psicofrma-
co tornado ilcito mais utilizado pelo mun-
do afora (UNODC, 2014), possui algumas
propriedades que nos permitem inclu-la
neste grupo, no qual podemos tambm lo-
calizar ervas de efeito mais brando como a
Canavalia maritima e o Leonurus sibiricus (co-
nhecido como Marihuanila). Alm desses
frmacos sintticos e alcaloides semissint-
ticos e de origem vegetal (alcaloides so
compostos orgnicos cuja ingesto capaz
de produzir efeitos psquicos como torpor,
excitao, tremores, delrios, etc), podemos
ressaltar os de origem animal, como o
Kyphosus fuscus, o peixe dos sonhos
(GROF, 1997, p. 255), do Pacfico Sul, cau-
sador de poderosas vises de pesadelo e a
Phyllomedusa bicolor, secreo da r conhe-
cida como kampo ou kampu, embora seja
considerada discutvel a classificao desta
ltima como psicodislptico (LIMA; LA-
BATE, 2008), assim como discutvel toda
tentativa de classificar um psicodlico em
uma categoria que tente excluir dela quais-
quer caractersticas de outras (XIBERRAS,
1989). O prprio uso da cannabis, por exem-
plo, em funo no apenas da variedade e
qualidade da planta, mas tambm da cir-
cunstncia, de quem usa e como usa, pode
apresentar caractersticas ora relaxantes, ora
euforizantes, ora fantsticas e perturbado-
ras, ora mistas.
O termo mais comumente utilizado em re-
ferncia a tais drogas alucingeno, ligado
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noo de alucinao, que vem do campo da
psicopatologia, referida a quando notamos
algo, mas no existe um estmulo externo
que cause essa percepo. Ou seja, ouo
uma voz agora, mas ningum aqui compar-
tilha dessa voz que estou escutando. Con-
tudo, a ingesto de psicodlicos, produz
algo que seria melhor classificar como ex-
perincias visionrias, experincias de ima-
ginao ampliada, no sentido de intensifi-
cao de aspectos usualmente pouco nota-
dos nas imagens (sejam visuais, sonoras, de
si, etc). Afinal, a percepo se altera, mas o
usurio em geral permanece consciente do
uso de uma substncia que mudou seu es-
tado de conscincia, alm de a ingesto de
tais frmacos usualmente ser avaliada posi-
tivamente pelos usurios, muitos dos quais
consideram a experincia como promotora
de uma transformao de conscincia posi-
tiva em suas vidas (CASHMAN, 1970).
Um primeiro termo para nomear estas
substncias veio do farmaclogo do final do
sculo XIX, Louis Lewin (1924), que pesqui-
sou o cacto peiote, observando seu consu-
mo tradicional, tipicamente religioso. O
peiote tem como princpio ativo a mescali-
na, identificada quimicamente em 1897 por
Arthur Heffter (GROF, 1997). Lewin (1924)
chamou este tipo de substncia de phantas-
tica, por produzir efeitos estticos incrveis,
fantsticos. medida que alteram as for-
mas de nossa sensibilidade, de nossa per-
cepo de espao e tempo condies de
possibilidade de toda experincia sensvel
(KANT, 2000) , a ingesto de tais substn-
cias investe de desejo a percepo (DE-
LEUZE, 1997), podendo nos permitir, por
exemplo, ver as paredes se dissolvendo, o
cho granulando, notar o cintilar de mati-
zes e cores jamais vistos, ou j esquecidos,
ou mesmo notarmos uma ligao de tipo
muito profundo entre cada um de ns e
todo o cosmo, uma ligao de grande inten-
sidade entre corpos e almas, correntes de
energia, fluxos, vibraes, pulsaes, ondas.
Outros termos so tambm utilizados: subs-
tncias como a Salvia divinorum, planta pro-
ibida pela Agncia Nacional de Vigilncia
Sanitria (ANVISA), no Brasil, em 2013,
promoveriam um efeito denominado onir-
geno, termo que vem de genos, produo,
gerao, somado ao oniros, sonho, ento
tratar-se-ia de uma substncia geradora de
sonhos, tal como a Calea Zacatechichi, ou
erva dos sonhos mexicana. No final da d-
cada de1970 um conjunto de pesquisadores,
dentre os quais, um dos criadores da cha-
mada etnobotnica, Gordon Wasson, e o
qumico Jonathan Ott (2004), alm de al-
guns etimlogos, sugeriram o termo ente-
geno, que vem de en (interior), mais theos
(deus), mais genos, significando algo como a
produo do divino interior. Outro termo
enteodlico (delos, que vem de delein, signifi-
ca manifestao, revelao), referente a
substncias que, embora no o produzam,
tornam manifesto o divino interior (PIEI-
RO, 2000). Outro nome empatgeno, que
promove empatia (BRAVO, 2001), termo
muitas vezes associado a frmacos como o
Ecstasy, popularmente conhecido como a
droga do amor. O historiador e filsofo An-
tonio Escohotado (1994) chama tais subs-
tncias de visionrias e caracteriza seus usu-
rios como pessoas em geral insatisfeitas
com a realidade ordinria e seus limites,
tendo interesse de ir alm, buscando alter-
nativas e solues para estagnaes cultu-
rais, sociais e individuais. Podemos tam-
bm considerar estas substncias como psi-
coscpicas (CARNEIRO, 2005a), pois, tal
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como os telescpios e microscpios, que
tornam visveis coisas em escala bem dis-
tante de nossos limiares de percepo, elas
nos permitem um olhar mais aguado sobre
a mente humana.
Optamos, em nosso seminrio, pelo termo
psicodlico, de origem grega, que significa
tornar manifesta a mente, ou a alma. Psico-
dlicosso frmacos cuja ingesto altera
nossa percepo espao-temporal, reduzin-
do o papel do ego consciente na avaliao
da experincia subjetiva, e fortalece as ma-
nifestaes da imaginao, intensificando
aspectos celestiais e infernais da experin-
cia. O termo foi proposto em 1957 pelo psi-
quiatra britnico Humphry Osmond (1957),
a partir de uma rica troca de cartas com o
escritor Aldous Huxley (1983), tendo sido
posteriormente associado ao acid rock e
contracultura hippie dos anos 1960 (RO-
DRIGUES, 2014b), com cujas potncias ti-
cas, estticas e polticas temos afinidade.
Os psicodlicos produzem estados no ordi-
nrios, ou alternativos de conscincia. No
cotidiano, estamos acostumados a tomar a
realidade apenas a partir de uma modali-
dade de tempo, o tempo cronolgico, que
passa em intervalos regulares, iscronos
(RODRIGUES, 2011). Nos vemos diante
desse regime de tempo, por exemplo, ao
contarmos os minutos e segundos do rel-
gio, os dias do calendrio, os compassos em
uma partitura musical, assim como ao nos
remetermos a uma experincia particular
de mundo, uma experincia privada, pro-
duzida em uma histria pessoal, qual te-
mos acesso atravs de memrias com as
quais construmos nossa identidade. Mas o
uso de psicodlicos ajuda a experimentar-
mos outras modalidades de tempo, poden-
do nos levar a uma sensao de infinito,
parecendo ora que o tempo no vai passar,
ora vem voando voraz e veloz, ora passa
lento demais, ou mesmo jamais existiu. As
drogas psicodlicas promovem experin-
cias nas quais a mente no se orienta por
meio de conceitos ou significantes, nas
quais no h distino entre o que pensa-
mos, o que vivemos e como a realidade se
manifesta: tudo um e toda unidade ml-
tipla.
A experincia humana com substncias psi-
codlicas depende, de forma singular, de
consideraes no somente sobre o frmaco
utilizado (composio, armazenamento,
etc), mas tambm da preparao pessoal
para o uso, no que diz respeito alimenta-
o, ao sono, s expectativas, ao ambiente
(religioso, festivo, etc) no qual utilizado,
se o usurio est ou no sendo acompanha-
do por um cuidador, algum com experin-
cia em psicodelia (are you experienced?). A
possibilidade de o novato ser acompanhado
por algum em quem confia e que conhea
o uso de substncias psicodlicas pode re-
duzir drasticamente qualquer risco no uso,
a tal ponto que somos levados a crer que
apenas uns 10% dos riscos, se tanto, sejam
devidos ao consumo, em si, da substncia,
os outros 90%, pelo menos, parecem de-
pender do contexto e de quem est fazendo
uso. Estudos pioneiros sobre o uso do LSD
em psicoterapia observaram o surpreen-
dente poder de transformao pessoal en-
volvido, mesmo em experincias nas quais
foi utilizado placebo em lugar do frmaco
(STAFFORD; GOLIGHTLY, 1967).
No livro Psychedelic Experience: a manual
based on the Tibetan Book of the Dead, escrito
pelos psiclogos Timothy Leary, Richard
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Alpert e Ralph Metzner (1992) e publicado
originalmente em 1964, os autores subli-
nharam a importncia do que chamaram de
set e setting, ou seja, a preparao pessoal
(set) e a do ambiente (setting), para a redu-
o de danos e ampliao dos benefcios da
ingesto de psicodlicos, intensificando ao
mximo a experincia dos usurios. Tais
ideias foram estendidas a toda substncia
psicotrpica pelo psiquiatra Norman Zin-
berg (1984), no livro Drug, set and setting,
focado, sobretudo, nos usurios de drogas
injetveis.
A palavra psicotrpico advm da juno
dos termos psykh (alma, mente) e trpico
(de tropismo, capacidade que algumas
plantas e fungos apresentam de se move-
rem em direo a um estmulo atraente).
Psicotrpico o que se atrai pela mente.
Chamamos de psicoativa qualquer substn-
cia que tenha ao no sistema nervoso cen-
tral. O termo psicotrpico ressalta que essa
psicoatividade no se trata da ao exclusi-
va de um agente sobre um sujeito/objeto
passivo, mas de uma relao de afinidade
(RODRIGUES, 2014b). Na definio do Dic-
tionnaire de la Psychologie Larousse, psicotr-
pico toda [...] substncia natural ou sint-
tica, cuja ao sobre o sistema nervoso cen-
tral capaz de modificar a atividade mental
e a conduta do indivduo [...] (SILLAMY,
1996, p. 211), sem qualquer atribuio de
valor, positivo ou negativo, s alteraes
que esta capaz de fazer em quem ingere.
O uso de psicotrpicos pode produzir tanto
efeitos teraputicos quanto colaterais e o
termo utilizado tanto para os psicofrma-
cos prescritos em sade mental quanto para
substncias que, em razo da proibio, da
proscrio, so qualificadas como drogas
ilcitas, embora o uso corrente dos termos
frmaco e droga parea se dirigir a realida-
des totalmente distintas (RODRIGUES,
2014a).
A palavra droga porta uma ambiguidade,
pois tecnicamente sinnimo de frmaco,
tal como nos termos farmcia e drogaria.
Enquanto para os gregos antigos o termo
phrmakon significava ao mesmo tempo re-
mdio e veneno (DERRIDA, 2005), com a
diferena entre um e outro residindo, sobre-
tudo, na dose utilizada, hoje em dia o termo
frmaco costuma ser utilizado exclusiva-
mente para remdios, tidos como bons e
seguros. Apesar do sentido farmacolgico
do termo droga, sem qualquer valor positi-
vo ou negativo, a priori, em nossa cultura
predomina o uso da palavra droga ligado a
algo ruim (que droga!), o que no ocorre so-
mente em portugus, mas tambm em in-
gls, onde o termo junk se refere ora a lixo,
algo imprestvel, como na expresso junk
food, ora a psicotrpicos em geral, ora aos
injetveis em especial (herona, morfina,
cocana, etc), comumente chamados de dro-
gas pesadas (HARRIS, 2005).
Mas o que seriam drogas pesadas? A esse
respeito, o crtico musical Mikal Gilmore
tem uma frase particularmente interessante:
[...] no auge do vero de 1967, no Haight-
Ashbury, vendiam-se e se consumiam dro-
gas pesadas drogas que no eram o que
pareciam ser (GILMORE, 2010, p. 119).
Uma questo primordial para o Primeiro
Seminrio sobre Psicodlicos foi a possibi-
lidade de pensarmos a respeito da noo de
drogas pesadas como aquelas que no so o
que parecem ser; uma ideia simples, embo-
ra usualmente ignorada. Para tentar trans-
mitir essa ideia e, com isso, abordar a ques-
to urgente que mobilizou o debate, inte-
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ressa contar um pouco da histria de duas
dentre as mais incrveis substncias produ-
zidas pela humanidade.
Doce, cido; bala, ecstasy
O ano era 1929. Em Basel, na Sua, o re-
cm-doutor em qumica Albert Hofmann
(1980) comeava a trabalhar na companhia
de produtos qumicos Sandoz. O qumico
tinha especial interesse em plantas cuja po-
tncia e efeitos de seus princpios ativos
eram muito instveis, tornando difcil esta-
belecer uma dosagem segura. A equipe do
laboratrio, dirigido pelo professor Arthur
Stoll, tentava descobrir como fabricar pre-
parados farmacuticos estveis, no intuito
de estabelecer dosagens teraputicas segu-
ras de plantas como a Digitalis purpurea (co-
nhecida como dedaleira) e a Scilla maritima
(cebola martima). Nessa busca por domar
compostos instveis, o jovem doutor Ho-
fmann desenvolveu especial interesse no
estudo no exatamente de uma planta, mas
de pequenos cogumelos que crescem, so-
bretudo, em gros de centeio. O fungo
conhecido por nomes diversos, como cra-
vagem do centeio, esporo do centeio, ergot,
ou o nome que talvez nos soe mais elegan-
te, Claviceps purpurea. Um cogumelo mins-
culo que mostra em cores berrantes que a
diferena entre o remdio e o veneno est
bem mais na dose que no rtulo, pois no
basta rotular algo como remdio para tirar-
lhe os riscos, nem basta taxar algo de droga
para tirar-lhe os benefcios.
O ergot, por exemplo, em doses txicas, po-
de produzir intensas perturbaes mentais,
ou mesmo chegar a mutilar ou matar, atra-
vs da [...] constrio dos capilares da ex-
tremidade do corpo (CASHMAN, 1970, p.
36), produzida pelo chamado ergotismo, ou
Fogo de Santo Anto, conhecido h mais de
600 anos. O ergotismo se apresenta de dois
modos: o gangrenoso, que causa dor intensa
e queimao de mos e ps, podendo levar
necrose dos membros; o convulsivo, mar-
cado por espasmos musculares e convul-
ses, acompanhadas de alucinaes. Mas o
esporo no era s veneno, pois, em doses
precisas, podia ajudar a medicina como
pulvis parturiens, o p parturiente. No scu-
lo XIX, conta o historiador Henrique Car-
neiro (2005b),
[...] a Claviceps tornou-se uma matria-
prima farmacutica com importantes usos
como remdio auxiliar do parto ou para
dores de cabea. O princpio ativo mais
importante desse cogumelo, a ergotami-
na, foi isolada em 1818 (CARNEIRO,
2005b, p. 116-117).
Embora a ergotamina seja utilizada at hoje
para dores de cabea que acompanham a
enxaqueca, outro derivado da cravagem
que aqui nos interessa. Em 1938, com a in-
teno de produzir um estimulante circula-
trio e respiratrio, Albert Hofmann (1980)
combinou o cido lisrgico, derivado da
Claviceps purpurea, com uma srie de subs-
tncias chamadas, em qumica, dietilami-
das. Assim, a vigsima quinta dietilamida
do cido lisrgico, sintetizada em 2 de maio
de 1938, recebeu a sigla LSD-25. Testes logo
foram feitos, administrando doses diminu-
tas do frmaco em animais de laboratrio,
resultando em contraes uterinas, alm de
certa inquietao. A Sandoz no demons-
trou interesse e os testes foram descontinu-
ados. Uma boa sntese do LSD custosa,
exigindo mincia e cuidado. Qualquer pes-
quisa farmacutica sria custosa e de-
manda muito tempo, alm do risco de no
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se chegar a obter frmacos melhores que
aqueles j existentes (PIGNARRE, 1999).
Este um dos fatores pelos quais, quando
um laboratrio farmacutico se desinteressa
por uma substncia qualquer, abandona
toda pesquisa a respeito. Em geral, h ou-
tros fatores em conta, mercadolgicos, co-
mo a questo das patentes, cujo debate,
contudo, foge ao que queremos chamar
ateno agora.
Hofmann (1980) jamais abandonou o com-
promisso tico com a pesquisa e, ao longo
dos cinco anos seguintes, continuou a in-
vestigar o esporo do centeio, tendo chega-
do, com isso, a produzir frmacos impor-
tantes como o Hydergine, remdio para a
circulao perifrica e controle da funo
cerebral em desordens geritricas, que che-
gou a ser, por dcadas, oprincipal produto
comercializado pela Sandoz. Em 1943, to-
mado pelo peculiar pressentimento de que
o LSD-25 possua importantes caractersti-
cas, diferentes daquelas investigadas cinco
anos antes, Albert Hofmann, ento diretor
adjunto do laboratrio de pesquisas, voltou
a sintetizar o frmaco, sendo que, desta vez,
a droga entrou em contato acidental com
sua pele e o qumico acabou sentindo efei-
tos estranhos, embora em nada desagrad-
veis.
Na ltima sexta-feira, 16 de abril, tive que
interromper meu trabalho de laboratrio
no meio da tarde e ir para casa, pois fora
tomado de uma grande inquietao e
uma ligeira tontura. Em casa, deitei-me e
mergulhei num estado no desagradvel
de delrio, caracterizado por fantasias ex-
tremamente excitadas. Num estado semi-
consciente, de olhos cerrados (sentia a luz
como desagradavelmente ofuscante), fui
invadido por imagens fantsticas de ex-
traordinria realidade e com um intenso
jogo caleidoscpico de cores. Aps cerca
de duas horas este estado desapareceu
(HOFMANN, 1980, p. 12).
Hofmann (1980), homem de cincia, sentiu
sua imaginao superestimulada e, acredi-
tando ter em mos uma substncia de po-
der extraordinrio, decidiu ingerir uma do-
se experimentalmente, trs dias depois.
Conforme o relatrio de pesquisa, entregue
ao professor Arthur Stoll, consta que, numa
segunda-feira, 19 de abril de 1943, mais
precisamente s quatro horas e vinte minu-
tos da tarde, Albert ingeriu 250 microgra-
mas de LSD-25 no laboratrio da Sandoz.
Uma dose baixssima (um micrograma a
milsima parte do miligrama), embora dez
vezes maior do que aquela que viria a ser
considerada a mnima eficaz para se come-
ar a sentir os efeitos psicodlicos. Cerca de
quarenta minutos aps a ingesto, o qumi-
co precisou cessar as notas e ir para casa.
Como havia restrio no uso de automveis
por conta da guerra, foi para casa naquela
que talvez tenha sido a mais psicodlica
viagem de bicicleta de que se tem notcia,
com direito a mveis se movendo, bruxas
insidiosas, medo de enlouquecer, de mor-
rer, dificuldade em falar, paranoia, litros de
leite, seguidos, contudo, de uma sensao
duradoura de profundo bem-estar (RO-
DRIGUES, 2014c).
A concluso do autoexperimento de Ho-
fmann indicou o LSD como uma droga de
potncias e propriedades extraordinrias.
No se conhecia outro frmaco capaz de
produzir efeitos to intensos em doses to bai-
xas. Ele estava seguro de que a substncia
teria utilidade na farmacologia, na neurolo-
gia, na psicologia e na psiquiatria, embora
-
Drogas pesadas em discusso no Primeiro Seminrio sobre Psicodlicos do Rio de Janeiro
116
Argumentum, Vitria (ES), v. 7, n.1, p. 108-125, jan./jun. 2015.
no suspeitasse ainda, por um lado, de usos
espirituais e recreativos e, por outro, das
dores de cabea que as polticas insensatas
do proibicionismo e da guerra s drogas
tanto viriam a lhe causar poucas dcadas
aps sua descoberta. Na poca apenas en-
tregou o relatrio ao professor Stoll.
Em seguida, estudos de laboratrio na San-
doz indicaram a baixssima toxicidade da
substncia, apesar da intensidade e impre-
visibilidade de seus efeitos (embora fossem
comuns acidentes em meio a viagens de
LSD mal administradas, e ainda mais co-
muns as bad trips, viagens ruins, no h re-
latos de intoxicao por overdose da subs-
tncia). Observando que os efeitos persis-
tem mesmo quando a substncia no pode
mais ser detectada no organismo, os cientis-
tas lanaram a hiptese de que o
[...] LSD no ativo enquanto tal, mas de-
sencadeia certos mecanismos bioqumi-
cos, neurofisiolgicos e psquicos que
provocam a embriaguez e continuam
mesmo na ausncia do princpio ativo
(HOFMANN, 1980, p. 18).
Devido a esse efeito poderoso em doses
diminutas, o frmaco atraiu a ateno de
muitos psiquiatras e logo foi feita a primei-
ra investigao sistemtica em seres huma-
nos, na clnica psiquitrica da Universidade
de Zurique, com os resultados publicados
em 1947. Embora na ocasio no se tenha
proposto uma aplicao teraputica, pois os
efeitos eram mutantes e no previsveis na
remisso de sintomas especficos, a Sandoz
se convenceu de que tinha em mos uma
excelente ferramenta para a investigao da
mente humana e comeou a produzir o
LSD, enviando amostras para faculdades,
centros de pesquisa e terapeutas privados,
pedindo-lhes feedback sobre os resultados
das investigaes. As amostras do tartarato
dietilamido de cido D-lisrgico eram envi-
adas em tabletes de acar contendo 25 g
(microgramas) ou em ampolas com 100 g,
distribudas sob o nome comercial sugerido
por Hofmann, Delysid.
Milhares de pesquisas foram realizadas
com uso da substncia. Pesquisas cientfi-
cas, clnicas, militares, artsticas, sexuais,
msticas, etc., embora o que seja urgente
sublinharmos aqui que o LSD apenas de-
sencadeia certos mecanismos que j possu-
mos, podendo servir inclusive como uma
espcie de lente de aumento, um psicosc-
pio, para analisarmos com mais preciso o
funcionamento de tais mecanismos. Afinal,
como psiclogos, clnicos, afirmamos que o
principal no est mesmo nas substncias
em si, mas em quem as utiliza, como e em
que contexto, o que tambm no quer dizer
que no haja diferenas entre as substn-
cias, como se todas fossem placebos. a
que reside parte considervel do perigo que
a ignorncia produzida e propagada pelo
proibicionismo faz recair especificamente
sobre algumas drogas.
A histria do proibicionismo e sua poltica
de guerra s drogas, consagrada em trs
grandes convenes internacionais a
Conveno nica sobre Entorpecentes, de
1961, a Conveno sobre Substncias
Psicotrpicas, de 1971, e a Conveno
Contra o Trfico Ilcito de Entorpecentes e
Substncias Psicotrpicas, de 1988 ,
embora pretendesse se tornar a histria da
erradicao mundial de algumas drogas
(RODRIGUES, 2012), da realizao do
sonho de uma sociedade abstinente de
certas substncias e da experincia que
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Sandro Eduardo RODRIGUES; Fernando Rocha BESERRA
117
Argumentum, Vitria (ES), v. 7, n.1, p. 108-125, jan./jun. 2015.
envolve a ingesto dessas substncias,
acabou se tornando a histria de uma
constante criao de settings negativos,
favorecedores de bad trips e pesadelos,
conforme exemplificamos adiante. Pois, se
afirmamos que drogas pesadas so aquelas
que no so o que parecem ser, sabemos
que este no o discurso hegemnico, por
exemplo, na grande mdia, para a qual
haver sempre disponvel uma droga mais
sinistra, muito pesada, assustadora e
perigosa em si mesma: demonizam-se
certas drogas, sem levar em conta com
seriedade como os danos so produzidos.
Acontece que esta guerra s drogas,
declarada pelo proibicionismo, se configura
de fato como uma guerra a pessoas, a
classes sociais, etnias, minorias em geral.
Em sua dissertao de mestrado em
criminologia, o delegado da polcia civil do
Rio de Janeiro, Orlando Zaccone D'Elia
Filho (2007), secretrio-geral da Law
Enforcement Against Prohibition(LEAP) no
Brasil formada por profissionais
integrantes e ex-integrantes das foras
armadas e do poder jurdico que, perante o
fracasso da guerra s drogas, decidiram
lutar pelo antiproibicionismo, pela
legalizao e regulamentao de todas as
drogas classificadas hoje como ilcitas ,
mostrou bem como a grande mdia constri
a identidade social do traficante, como
sendo
Um homem ou mulher sem nenhum limi-
te moral, que ganha a vida a partir de lu-
cros imensurveis s custas da desgraa
alheia, que age de forma violenta e brba-
ra, ou seja, uma espcie de incivilizado,
aos quais a priso destinada como met-
fora da jaula. O traficante sempre um ser
perigoso e seu encarceramento se justifica
para alm da realizao do direito, como
uma verdadeira necessidade face sua
natureza de fera (D'ELIA FILHO, 2007, p.
118).
Essa imagem do traficante como ser perigoso
foi trazida por no ser to diferente da ima-
gem que a grande mdia tenta fazer dos
pesquisadores, criadores e estudiosos de
tais frmacos. Enquanto se probe uma
substncia, outras so criadas e o discurso
predominante tem o tom de Eles so to per-
versos que voc probe uma droga e eles tm a
maldade e a ganncia de criar outra mais poten-
te, como se no houvesse legitimidade em
se utilizar bem a inteligncia e a intuio
para criar novos meios de alterar a percep-
o. Agrava o problema a chamada [...]
antecipao do momento criminalizador da
produo e da distribuio das drogas qua-
lificadas de ilcitas (KARAM, 2008, p. 106),
presente em nossa legislao de drogas atu-
al, a Lei 11.343/06, que denomina trfico
todo porte, transporte ou expedio de pre-
cursores (matrias-primas, insumos) e torna
passiveis de serem indiciadas como trafi-
cantes pessoas que produzem ou pesqui-
sam psicotrpicos proscritos (BRASIL,
2006). Assim, quem cultiva maconha por
iniciativa prpria ou seja, sem a Autoriza-
o Especial, prevista apenas para institui-
es, no artigo 5 da portaria 344/98 da An-
visa, para [...] atividades de plantio, culti-
vo, colheita, preparo e extrao dos princ-
pios ativos (SANO, 2010, p. 6) , no intuito
de pesquisar, por exemplo, leos para aux-
lio a portadores de epilepsia refratria, cn-
cer, enxaqueca e outras enfermidades, pode
ser indiciado como traficante.
Aproveitemos, contudo, essa antecipao
para voltarmos no tempo novamente e co-
nhecermos mais um personagem dessa his-
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Drogas pesadas em discusso no Primeiro Seminrio sobre Psicodlicos do Rio de Janeiro
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Argumentum, Vitria (ES), v. 7, n.1, p. 108-125, jan./jun. 2015.
tria: o qumico e farmacologista Alexander
Sasha Shulgin, falecido h poucos meses,
aos 88 anos de idade.
Sasha conhecido como o pai do Ecstasy, a
denominao comum para o MDMA (Meti-
lenodioximetanfetamina), embora haja in-
dcios de que, atualmente, menos de cin-
quenta por cento das balas que circulam no
mercado tornado ilcito pela proibio con-
tenham de fato MDMA (um substituto que
vinha sendo bastante utilizado a metilona,
proibida pela Anvisa na mesma lista que
proscreveu os NBOMe). No foi Shulgin
quem produziu esta substncia pela pri-
meira vez, embora tenha sintetizado mais
de 200 substncias psicoativas (ALEXAN-
DER SHULGIN RESEARCH INSTITUTE,
[2014]). Sasha comeou a trabalhar com
qumica nos anos 1950 e iniciou pesquisas
de substncias psicodlicas nos anos 1960,
testando-as primeiro em si prprio e, em
seguida, em amigos. Em 1967, o cientista foi
apresentado ao MDMA, sintetizado origi-
nalmente em 1912 e patenteado em 1914
pela empresa alem Merck, voltado para
combater o sono e a fome de militares, em-
bora nos anos 1960 este j estivesse fora do
mercado dos psicofrmacos prescritos. Mas
Shulgin sintetizou o frmaco e em 1976
apresentou-a ao psiclogo Leo Zeff, tendo
este passado a utilizar pequenas doses co-
mo auxiliar em terapia, tendo divulgado
para outros psiclogos, entre os quais, a
terapeuta Ann, com quem Sasha se casaria
em 1981 (NOGUEIRA, 2009).
Nos anos 1990, o casal Shulgin publicou
dois romances qumicos, nos quais con-
tam sua histria de amor e listam um cat-
logo de frmacos psicodlicos, detalhando
sua sntese, dosagens e efeitos. O primeiro,
PiHKAL (SHULGIN; SHULGIN, 1992),
descreve a sntese de fenetilaminas psicod-
licas, como a mescalina e o MDMA; o se-
gundo, TiKHAL (SHULGIN; SHULGIN,
1997), descreve a sntese de triptaminas psi-
codlicas, como o LSD e a psilocibina. A
lista de substncias, sua sntese e avaliaes
so facilmente encontrveis na internet.
Sasha costumava testar as substncias que
sintetizava primeiro em si prprio, depois
ingeria com Ann e, em seguida, com ami-
gos, at partilhar com toda comunidade
cientfica, sem jamais se importar em paten-
te-las. Sasha viveu 88 anos, tendo se devo-
tado at o final da vida no ao enriqueci-
mento pessoal, mas criao, ao amor e
coletividade. Hofmann, por sua vez, viveu
102 anos, tendo conseguido criar, dentre
inmeras outras coisas, o LSD, sua criana-
maravilha; acompanhar as milhares de pes-
quisas realizadas com a molcula; ver o
desdobramento de usos diversos, conside-
rando alguns mais responsveis e outros
menos; testemunhar o desenvolvimento do
proibicionismo, a histeria miditica, a proi-
bio do LSD, inclusive das pesquisas, ten-
do passado o cientista quatro dcadas la-
mentando a proscrio de sua ento criana-
problema, mas vivendo ainda para o retorno
recente das pesquisas humanas com LSD na
Sua (GASSER et al., 2014). A relao de
Sasha e Hofmann com sua prole qumica
bem distante do que os grandes veculos de
comunicao buscam formar em nossas
mentes quando se remetem a pesquisadores
de novas substncias psicoativas como se-
res perigosos, destruidores e gananciosos.
Como dissemos, Sasha conheceu o MDMA
em 1967, ano emblemtico para o movi-
mento hippie de San Francisco, quando
ocorreu o famoso Vero do Amor. J na
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Sandro Eduardo RODRIGUES; Fernando Rocha BESERRA
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Argumentum, Vitria (ES), v. 7, n.1, p. 108-125, jan./jun. 2015.
primeira metade dos anos 1960, o LSD ha-
via ganhado as ruas como uma substncia
capaz de alterar a experincia esttica, alte-
rar a sensibilidade, modular os sentidos,
ampliar o intelecto e a criatividade, estimu-
lando tanto uma liberao de costumes se-
xuais conservadores quanto o crescente
apetite por uma espiritualidade, uma tica e
um modo de vida comum (XIBERRAS,
1989; MACIEL, 1987). O cruzamento das
avenidas Haight e Ashbury, em San Fran-
cisco, era o grande supermercado psicodli-
co mundial original, o lugar onde o cido
pela primeira vez era vendido e consumido
livremente em larga escala, graas princi-
palmente a Augustus Owsley Stanley, em-
preendedor independente que aplicava
grande parte do dinheiro obtidocom a ven-
da de cido para produzir os shows psico-
dlicosdo Grateful Dead (GILMORE, 2010).
Acontece, porm, que o proibicionismo vi-
nha avanando como poltica internacional
e grandes veculos da mdia haviam intensi-
ficado o sensacionalismo em torno do uso
do cido, com a divulgao de matrias
exagerando os efeitos e riscos das substn-
cias. Tais exageros acabavam incitando
modalidades mais perigosas de uso. Em
maro de 1966, a revista Life publicou uma
matria de capa que [...] descrevia a expe-
rincia psicodlica como uma roleta-russa
na qual se jogava com a prpria sanidade
(LEE; SHLAIN, 1992, p. 150) e, em abril, a
Sandoz recolheu todo LSD distribudo para
pesquisa ignorando os resultados j pu-
blicados e interrompendo inmeras pesqui-
sas em andamento , com a bizarra exceo
das remessas da droga destinadas aos estu-
dos militares e da CIA (atravs, sobretudo,
do projeto de lavagem cerebral MK-
ULTRA). Apesar de terem sido alertados de
que leis criadas em um ambiente ignorante
produzem mais problemas do que supem
resolverem e de que uma legislao repres-
siva seria mais onerosa e violenta que a Lei
Seca quando o lcool foi proibido nos Es-
tados Unidos, causando grande corrupo,
aumento na violncia, intoxicaes com
lcool metlico e a fundao do crime orga-
nizado, sem a esperada reduo do consu-
mo (ESCOHOTADO, 1997) , polticos se
pronunciaram contra o estatuto legal do
LSD, que se tornou ilegal na Califrnia em
1966, mesmo que alguns oficiais do gover-
no acreditassem que [...] medidas puniti-
vas iriam atualmente incentivar o cresci-
mento do mercado de drogas ilegais e foi
exatamente o que ocorreu (LEE; SHLAIN,
1992, p. 153).
Quando o ano de 1967 comeou, o uso do
LSD, proibido na Califrnia, havia se tor-
nado grande fetiche entre os hippies da
Haight. Quando teve incio de fato o vero,
havia muitas flores na cabea, como na ba-
lada pop de Scott McKenzie, mas nem tanto
amor no ar, pois um grande nmero de bad
trips vinha ocorrendo, com diversos frma-
cos sendo ingeridos em um meio hostil
(GILMORE, 2010). Nesse ambiente, foram
parar nas ruas, como que subitamente,
inmeros novos agentes sintticos. Um de-
les era o DOM (2,5-dimetoxi-4-metan-
fetamina), sintetizado pela primeira vez em
1963, por Sasha Shulgin, que testara em si
prprio doses de 1 a 12 mg, tendo conside-
rado esta ltima dose j muito alta (SHUL-
GIN; SHULGIN, 1992). A frmula dessa
fenetilamina psicodlica chegou ao amplo
conhecimento dos qumicos no incio de
1967 e como no perodo estava difcil de se
conseguir ergotamina, precursor essencial
para a produo laboratorial do LSD, Ows-
-
Drogas pesadas em discusso no Primeiro Seminrio sobre Psicodlicos do Rio de Janeiro
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Argumentum, Vitria (ES), v. 7, n.1, p. 108-125, jan./jun. 2015.
ley Stanley decidiu sintetizar o DOM e doar
cinco mil cpsulas para a celebrao do Ve-
ro do Amor. Essas logo circulavam em San
Francisco como STP, iniciais de Serenidade,
Tranquilidade e Paz, trs coisas que, infeliz-
mente, pouco conseguiram produzir.
Quando o STP chegou nas ruas de San
Francisco, foi em doses de 20 mg, bem aci-
ma daquelas testadas por Shulgin. Poucos
sabiam do que se tratava e durante trs dias
os prontos-socorros ficaram lotados de gen-
te se sentindo mal (GILMORE, 2010). A
droga comeava a mostrar os primeiros
efeitos aproximadamente ao mesmo tempo
em que surgiam os do LSD, embora os do
STP iniciassem mais leves que os da tripta-
mina e levassem mais tempo para atingir
seu auge, o que levou usurios desavisados
a tomar novas doses que provocaram um
nmero considervel de overdoses, embora
nenhuma fatal. Muitos mdicos, acreditan-
do se tratar de bad trips de LSD, prescrevi-
am o antipsictico Thorazine para acalmar
os usurios, pois funcionava como antdoto;
contudo, este potencializava os efeitos do
STP, o que veio a intensificar as bad trips,
que foram intensamente exploradas pela
mdia como se fossem efeito do LSD. O
frmaco, em 1971, foi includo na lista ofici-
al da ONU de substncias proscritas, tendo
sido considerado desde ento sem possibi-
lidade de uso mdico (CARNEIRO, 2005b),
interrompendo por dcadas um ciclo pro-
missor de pesquisas que, somente agora,
quando o mesmo pas que liderou a guerra
s drogas decide assumir que a guerra foi
um fracasso, tem conseguido retornar aos
planejamentos oficiais (MAPS, [2014]).
O que o episdio vem evidenciar que o
grande perigo das drogas est em ignor-
las. Drogas perigosas, drogas pesadas so
aquelas que no so o que parecem ser. A
proscrio de substncias psicodlicas pro-
duz uma restrio nas pesquisas que impe-
de que se estudem drogas que circulam li-
vremente no mercado e so amplamente
consumidas, quer a sociedade busque al-
guma regulamentao sobre sua produo,
circulao e consumo, quer se utilize de
uma estratgia equivocada de guerra pe-
rante algo que tem muita dificuldade em
compreender, que a experincia humana
com estados alternativos da mente. Essa
guerra faz muitas vtimas, diretas e indire-
tas. O que buscamos ressaltar, com o exem-
plo trazido dos anos 1960, que no faz
sentido, em pleno ano de 2014 quando,
felizmente, so divulgados resultados pro-
missores de uma pesquisa cientfica sua,
que o primeiro estudo controlado de tera-
pia com LSD em mais de 40 anos (GASSER
et al., 2014) , anunciar o NBOMe, por
exemplo, como uma droga em si mesma
perigosa, como a grande mdia alardeou no
movimento que antecedeu a proibio des-
sas substncias ainda pouco conhecidas que
haviam entrado recentemente no mercado
de drogas ilcitas. Acontece que todo psico-
trpico, mesmo o LSD, a maconha, a clor-
promazina, o caf, pode apresentar tanto
efeitos teraputicos como indesejveis, as-
sim como pode apresentar efeitos que, em-
bora desagradveis, so bem-vindos ex-
perincia (como o caso da nusea comu-
mente sentida na ingesto do ch da aya-
huasca, produzindo por vezes vmitos ex-
perimentados como processos de limpeza,
de purificao). Pesada e perigosa em si
mesma, sem qualquer eficcia teraputica,
, de fato, a abordagem proibicionista da
questo. Um dos maiores riscos na ingesto
do NBOMe, por exemplo, advm de esta
-
Sandro Eduardo RODRIGUES; Fernando Rocha BESERRA
121
Argumentum, Vitria (ES), v. 7, n.1, p. 108-125, jan./jun. 2015.
droga muitas vezes circular no mercado
negro como sendo LSD, o que por sua vez
ocorre apenas por conta de o LSD ter sido
proibido, num ciclo vicioso cronificante
(pois no podemos desconsiderar relatos de
usurios que preferem ingerir NBOMe a
LSD sem deixar de ser prudentes quanto a
riscos de superdosagem e interao com
outras substncias, acontecimentos e expe-
rincias). Todo frmaco guarda potncias e
perigos e preciso conhec-los para utiliz-
los com sabedoria, tanto para reduzir danos
quanto para ampliar benefcios. Demonizar
e proibir no diminui o consumo; ao con-
trrio, apenas estigmatiza comerciantes,
pesquisadores e usurios, alm de estimu-
lar modalidades mais danosas de uso.
Consideraes finais
O I Seminrio sobre Psicodlicos do Rio de
Janeiro fomentou dois grandes debates: o
da necessidade de legalizao e regulamen-
tao do uso de todas as substncias psico-
trpicas e da relao singular da reduo de
danos com as psicodlicas, devido a diver-
sos usos de tais drogas para ampliao de
benefcios. No contexto de um aumento
expressivo de novas drogas psicodlicas no
mercado, o seminrio pde constatar a ur-
gncia do incentivo a experincias de redu-
o de danos especificamente relacionadas
ao uso dessas substncias psicoscpicas,
que tanto chamam a ateno para a impor-
tncia do cuidado com o set e o setting, de
forma tanto a minimizar riscos quanto a
potencializar benefcios decorrentes de tal
uso. Com efeito, os maiores riscos e danos
no consumo de psicodlicos vinculam-se
diretamente a um efeito daninho da poltica
proibicionista de Guerra s Drogas: drogas
que no so o que parecem ser. Legalizao
e regulamentao so condies essenciais
para obtermos mais informao e controle.
O seminrio contribuiu tambm para a reu-
nio de pesquisadores e ativistas que se
puseram em contato para construir novos
espaos de mobilizao popular na temtica
e fortalecimento de alguns j existentes,
como a Ala Psicodlica da Marcha da Ma-
conha do Rio de Janeiro, que teve sua pri-
meira edio em 2014 e obteve um impacto
bem positivo junto aos coletivos antiproibi-
cionistas que se renem para organizar as
Marchas da Maconha.
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