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DO PARAÍSO TERREAL AOS CONFINS DO MUNDO: REPRESENTAÇÕES DA
AMÉRICA A PARTIR DO ESPELHO EUROPEU NOS SÉCULOS XV E XVI
Pepita de Souza Afiune1
RESUMO
Este artigo pretende discutir de que forma as concepções ocidentais cristãs da dicotomia entre
paraíso e inferno afetaram a visão dos viajantes a respeito do Novo Mundo. A América é
conquistada e interpretada sob o espelho ocidental. Um diálogo com o campo artístico permite-
se vislumbrar as representações de um período de transição entre o medieval e o renascentista.
Em alguns momentos manifesta-se um aspecto idealista e em outros degenerativo a respeito da
fauna, flora e habitantes da América. Estas concepções manifestam uma forma de imaginário
herdado de um processo histórico que perpassa pela antiguidade greco-romana até o período
das grandes navegações.
PALAVRAS-CHAVE: Imaginário.Representações.Renascimento.Cristianismo.Novo Mundo.
INTRODUÇÃO
Fonseca (1992) define o que é o maravilhoso para o homem medieval - reportar as
qualidades de algo pela sua capacidade de provocar admiração, relacionando-se ao fantástico
como representação imaginária de uma realidade ausente. O homem medieval desta forma, ao
definir conceitos de espaço conhecido e espaço desconhecido, acaba subalternizando o
desconhecido. Essa indeterminação de um espaço abre horizontes para a manifestação do
imaginário ocidental repleto de elementos míticos. A partir das próprias definições do Gênesis a
respeito do oceano, são ideias que começam a influenciar a mentalidade medieval desenvolvendo-se um
medo pelo desconhecido.
Deus colocou na Terra inúmeras espécies de animais, constituindo-se em todos os
seres que se movem sob o firmamento dos céus. Dentre eles, os monstros marinhos e todos os
seres vivos que habitam as águas. O mar a partir daí, passa a ser um local perigoso, cheio de
tempestades, como pode-se encontrar nas narrativas sobre o episódio de Jonas:
Porém, o Senhor fez vir sobre o mar um vento impetuoso e levantou no mar uma tão
grande tempestade que a embarcação ameaçava despedaçar-se. Cheios de medo, os
marinheiros [...] disseram-lhe [a Jonas]: Que te havemos de fazer, para que o mar se
nos acalme? Porque o mar se embravecia cada vez mais. Ele respondeu-lhes: Pegai
em mim e lançai-me ao mar e o mar se acalmará, porque sei que por minha causa é
que vos sobreveio esta grande tempestade [...]. Depois, pegaram em Jonas, e
lançaram-no ao mar, e a fúria do mar acalmou-se [...]. O Senhor fez que ali houvesse
um grande peixe para engolir Jonas: e Jonas esteve três dias e três noites no ventre do
1 Mestranda e bolsista do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado /
TECCER da Universidade Estadual de Goiás – UnUCSEH. [email protected]
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peixe. Jonas rezou ao Senhor, seu Deus, do ventre do peixe [...]. Então o Senhor
ordenou ao peixe e este vomitou Jonas na praia. (BÍBLIA apud FONSECA, 1992, p.
38)
No oceano o milagre possui um lugar para manifestar-se. Essa visão remonta não
apenas à Bíblia, como também às fontes mitológicas da antiguidade. Exemplo disso é a
“Odisseia” de Homero (1997), que relata a viagem de Ulisses após a Guerra de Troia, ao
retornar à sua terra natal Ítaca, passando por uma série de tormentos no mar, em busca da sua
sobrevivência e de seus homens. Encontrara muitos seres ou monstros mitológicos, como
sereias, ciclopes, lotófagos, dentre outros perigos.
Concomitantemente, as representações nas artes plásticas renascentistas
demonstram de forma muito expressiva fragmentos destas formas de imaginário, mostrando-se
uma fonte rica para análise. Desta forma, a metodologia empregada na presente pesquisa baseia-
se nas análises de relatos dos viajantes ultramarinos e de pinturas renascentistas.
Portanto, neste artigo, busca-se analisar a manifestação do imaginário europeu
proveniente das culturas da antiguidade, permeando as crenças cristãs e o imaginário
renascentista. Culturas estas, que constituem todo o contexto imaginário deste homem que se
lançou ao mar em busca de novas terras.
Dubois (1995) acredita que a Renascença foi um período em que o mito renasceu e
teve grande importância na sociedade. Ao desejo de se reavivar as mitologias greco-romanas,
carregadas de elementos simbólicos, percebe-se em Valverde que
O Renascimento não constituiu um mero retorno à Antiguidade, mas antes a
identificação de ideais clássicos favoráveis ao desenvolvimento burguês. E o
pensamento e a sensibilidade dos humanistas do Renascimento enraizaram-se tanto
na tradição judaico-cristã quanto sob uma nova visão dos ideários contidos na
cosmovisão greco-romana, porém em nova chave de análise e assimilação crítica.
(VALVERDE, 2007, p. 62)
DO PARAÍSO AO INFERNO
É importante adentrarmos a priori ao contexto histórico-cultural do homem
desbravador em seu grande empreendimento ultramarino. O contexto das navegações marítimas
no século XV é presenciado pelo Humanismo que estava dentro dos preceitos filosóficos da
Renascença2, que por sua vez tentaria compreender a humanidade em todas as suas facetas,
2 O contexto do navegador espanhol está relacionado ao movimento renascentista à medida que este movimento
repercutiu a partir da Itália a outros países da Europa, sendo uma expressão muito forte também nos Países Baixos,
na Alemanha, Portugal e Espanha.
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orientando o desenvolvimento das ciências, das artes, da religião e da política, que colocavam
o ser humano como o centro de sua atenção.
Esta base filosófica da Renascença não se fazia como oposição ao pensamento
religioso, e sim, colocava o homem como o grande empreendimento realizado por Deus. Sem
abandonar a fé, o homem renascentista não se sentia subjugado por Deus, e sim, iluminado.
Deus continua possuindo a sua importância, visão que encontramos nas obras de Pico della
Mirandola3, grande pensador do Renascimento na Itália, que coloca uma visão de conciliação
entre a religião e a filosofia e não como uma substituta da outra. Essa visão de Mirandola está
presente em um de seus escritos: “Ó, suprema liberdade de Deus Pai! Ó, suprema e admirável
felicidade do homem! Homem ao qual foi concedido obter aquilo que deseja e ser aquilo que
quer [...].” (PICO DELLA MIRANDOLA apud COSTA, 2011, p. 01)
De fato a figura humana desempenhou o papel central na filosofia e estética
renascentista, até mesmo no seu retorno aos padrões greco-romanos, o que marca também a
intensa volta dos mitos, em uma nostalgia às epopeias gregas. “A atitude dos humanistas para
com a Antiguidade greco-romana e o judaico-cristianismo fundava-se na procura de um lastro
comum entre ambos”. (VALVERDE, 2007, p.64)
As pinturas renascentistas, por estarem repletas de elementos cristãos, em um
período que ainda percebe-se intensa atuação da igreja católica, viu-se em suas grandes obras a
alusão às passagens bíblicas. “[...] A crença na missão da igreja, o reconhecimento da hierarquia
eclesiástica e a devoção religiosa tinham-se separado numa multiplicação de planos”. (Idem, p.
64).
Ares de uma nova relação entre homem e Deus, mais individualizada e mais
subjetiva, que inclusive abriu uma nova era de diferenças dentro da própria igreja, tendo como
pioneiro Martinho Lutero, um dos projetores do humanismo cristão em seu movimento
reformista.
E por outro lado, percebe-se uma estrita relação entre artista e igreja, sendo esta
última, uma nova portadora de um arsenal para lutar contra a própria Reforma Protestante. As
doutrinas cristãs poderiam ser mais facilmente difundidas ou compreendidas pela sociedade
através das pinturas, apesar de que alguns teóricos acreditam que há presença de simbolismos
que refutam preceitos cristãos, presentes nestas obras renascentistas, principalmente nas telas
3 Giovani Pico della Mirandola (1463 – 1494) foi um filósofo humanista do Renascimento italiano. Procurou em
seus estudos de teologia, conciliar religião e filosofia. Muitas de suas teses foram polêmicas e consideradas
heresias pela igreja católica. Defendia que Deus desejava criar uma nova criatura que viesse glorificar as suas
criações, sendo um ser dotado de capacidades intelectuais que lhe davam a garantia de livre-arbítrio.
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de Leonardo da Vinci. Isto entraria em outras discussões mais complexas que não fazem parte
desta proposta de pesquisa.
Colocando como exemplo o italiano Michelangelo Buonarotti em seu afresco “A
criação de Adão”4, no interior da Capela Sistina, representa um episódio do livro de Gênesis
acerca da criação do primeiro homem na Terra. Uma obra que mostra seu amplo conhecimento
em anatomia, a representação do corpo humano possui formas estéticas também pautadas nos
preceitos gregos. É uma forma de mostrar a religiosidade ainda presente no contexto do artista
renascentista, que muitas vezes, por questões de relações comerciais, políticas ou mesmo de
status, realizava esses tipos de obras para decoração de igrejas católicas.
A criação de Adão. Fonte: http://www.vatican.va/various/cappelle/sistina_vr/index.html?utm_source=Twitter
Hyeronimus Bosch, artista holandês do renascimento no século XVI, em sua obra
“O Jardim das Delícias”5, um tríptico que representa ao mesmo tempo uma espécie de Paraíso
Terreal, evoca um cenário de paraíso pecaminoso. Esta obra inicia em sua primeira parte com
a representação do Éden, que leva à segunda parte que refere-se ao pecado e posteriormente à
terceira parte, o inferno, como uma em consequência da outra. Holanda (2000) refere-se a um
cenário de delícias, como um local onde os amantes e as raparigas correm pelos campos livres,
4 A obra “A Criação de Adão” é um afresco de autoria do artista italiano Michelangelo Buonarotti, datada de 1512,
cujas dimensões estão entre 4,8 m x 2,30 m. O afresco é uma técnica de pintura em paredes ou tetos de construções
com o revestimento de argamassa, cal ou gesso, que ainda fresco, recebe a tintura, que é diluída na água e assim o
artista vai realizando a sua pintura. À medida que a superfície começa a secar, o desenho vai aderindo à parede ou
ao teto, passando a ser uma parte integrante de sua superfície. A obra pode ser vista em perfeito formato digital no
site do Vaticano, que disponibiliza uma visita virtual em 3D à Capela Sistina, disponível em:
http://www.vatican.va/various/cappelle/sistina_vr/index.html?utm_source=Twitter Acesso em: 01 de Agosto de
2014. 5 A obra “O Jardim das Delícias” de autoria do artista Hyeronimus Bosch, é datada de 1505, feita em óleo sobre
tela, cujas dimensões estão entre 2,20 m x 3,9 m. Está atualmente no Museu do Prado, em Madrid. Disponível em:
https://www.museodelprado.es/coleccion/galeria-on-line/galeria-on-line/obra/el-jardin-de-las-delicias-o-la-
pintura-del-madrono/. Acesso em: 14 de Agosto de 2014.
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cujo ardor fora atingido pela flecha do cupido, filho de Vênus, dançam e se divertem entre
carícias luxuriosas em meio à natureza.
Bosch foi mais além no campo dos prazeres. Sua obra é repleta de simbolismos,
mostrando-o como um exímio pintor das imagens mais intrigantes e ambíguas da História da
Arte. O florentino Ludovico Guicciardini referiu-se a Bosch como “o nobre e maravilhoso
inventor de coisas fantásticas e bizarras” (GUICCIARDINI apud ABRIL COLEÇÕES, 2011,
p. 10)
“O Jardim das Delícias”. Fonte: https://www.museodelprado.es/coleccion/galeria-on-line/galeria-on-
line/obra/eljardin-de-las-delicias-o-la-pintura-del-madrono/
O tríptico constitui-se em: O Jardim do Éden, o Jardim das Delícias e o Inferno
Musical, sendo até mesmo adquirido pelo rei Filipe II em 1591, era produto de uma mente
surpreendente, que mesmo sendo rotulada como herética, não deixou de tratar sobre o Paraíso
Terreal. Um paraíso dentro de uma vasta paisagem, repleto de simbolismos e pecado. Jovens
nuas se divertem entre frutas gigantescas, relacionando-se de forma lasciva entre exóticas
plantas, animais imaginários e homens. Tritões e sereias estão dentre as figuras que representam
a perdição do homem. Corvos simbolizam a incredulidade, os pavões representam a vaidade e
a íbis representa a nostalgia.
“[...] a ideia de uma natureza em declínio ou francamente corrupta pelo contágio do
Pecado Original pode sugerir, mesmo em obras de pura imaginação, que esse pensamento seria
largamente partilhado”. (HOLANDA, 2000, p. 231)
Na parte do Paraíso Terreal, Bosch representa a criação de Adão e Eva. A árvore
do conhecimento, na qual a serpente estava, dentre este cenário, vários animais e criaturas
fantásticas, como pássaros de tamanho anormal e peixes que estão fora da água. “Estando claro
que o Jardim das Delícias um paraíso para nudistas num gigantesco parque de atrações - longe
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de pensar o paraíso terrestre, evoca, sobretudo um mundo entregue a luxúria”. (DELUMEAU,
2003, p.456).
O paraíso de Bosch está repleto de pecado, o que gerou a própria queda do homem.
Assim, da mesma forma, o navegador europeu vê o homem encontrado no Novo Mundo, um
homem pecador. O nativo que realizava cultos ao demônio. É o que percebe-se a partir de
relatos de vários conquistadores europeus.
Os índios das ilhas adoravam o demônio, e estavam muito sujeitos a ele pelas grandes
ameaças que lhes fazia e por suas horrendas aparições [...] Em todo o México e em
todas aquelas províncias próximas aconteciam os sacrifícios, não só de ouro e prata e
dos frutos que colhiam e bens que possuíam, mas também de homens vivos que
matavam em grande número, e geralmente, com sangue que os homens tiravam de
seus próprios membros. (MEDEL, 2007, p. 204)
De certo modo, este pecado leva o homem à queda, à medida que evocamos o
aspecto cristão do castigo divino. A degeneração do homem e da natureza, uma esterilização
do mundo, uma consumação progressiva da vida no planeta. Essa concepção não se restringe à
concepção bíblica, familiarizando-se também às ideias preexistentes nas concepções greco-
romanas.
O Renascimento Humanista apesar de mostrar-se positivo no sentido de valorização
do homem, colocando-o como centro do universo – o Antropocentrismo – evoca os ideais
greco-romanos que corroboram com a ideia de decadência humana.
Compreende-se como os germes de pessimismo que já vinham no bojo da renovação
dos estudos clássicos e que, mesmo em momentos apoteóticos, não fora possível
dissimular de todo, conhecessem uma fase de expansão com o declinar do
Renascimento. (HOLANDA, 2000, p. 236)
Godfrey Goodman apud Holanda (2000) associa o pecado original à queda do
homem. O homem ao pecar afetou o macrocosmo. Como a natureza foi criada a favor do
homem, ela também será afetada. Exemplo disso seria a presença de animais peçonhentos, a
miséria, solos inférteis, enfermidades, rigidez dos variados climas, etc.
Visões estas, que corroboram com uma perspectiva conquistadora de cobiça, que
mescla motivações sagradas e profanas.
O IMAGINÁRIO DO NAVEGADOR
Uma aventura garantida aos corajosos e ambiciosos castelhanos, que por sua vez,
manifestaram um imaginário em busca do novo paraíso. Um Novo Mundo garantia a abertura
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das portas para uma nova era na história ocidental, pautada no desenvolvimento tecnológico,
pelas criações das caravelas, um meio de transporte rápido e resistente, que poderiam
transportar muitas mercadorias e homens, dentre outras inovações que facilitariam as
navegações.
Esta visão edênica castelhana refere-se ao fantasioso, o “Éden fantástico”. Já na
visão lusitana, apesar de também possuir uma mentalidade curiosa a respeito do maravilhoso,
mostra-se um caráter mais dominador, racionalista e prático.
É importante destacar que o gosto pela maravilha e mistério, característico dos escritos
dos viajantes e cronistas da era dos grandes descobrimentos marítimos, ocupa espaço
singularmente reduzido nos registros lusitanos do mesmo período. Neste sentido, ao
contrário dos espanhóis, encantados e maravilhados com a paisagem e o mistério do
Novo Mundo, os portugueses revelar-se-iam sobretudo práticos e, portanto, sem a
exacerbada fantasia edenizadora que marcara os navegadores hispânicos. (COSTA,
2001, p.118)
Para Oliveira (2012) as representações são uma forma de olhar para o mundo a
partir de sua própria vivência, cultura e de seu contexto. Estudar essas formas de imaginário é
analisar os aspectos simbólicos nas narrativas dos indivíduos.
Para Dubois (1995) o imaginário está presente dentro destes discursos ultra
marítimos do século XV, referentes a uma criatividade que extrapola os limites da realidade,
nas tentativas de apreender um objeto. “Chamaremos de ‘imaginário’ o resultado visível de uma
energia psíquica formalizada individual e coletivamente”. (DUBOIS, 1995, p. 21)
Este período é importante na história das utopias. As viagens imaginárias a lugares
exóticos, onde há uma natureza maravilhosa e habitantes extraordinários, são formas de
imaginário amplamente analisadas sob os pressupostos antropológicos de Durand (2004) que
afirma que a imaginação é uma atividade transformadora, criadora do mundo. É uma criação
de representações, à medida que toda criação de imagens agrega vários sistemas simbólicos
complexos.
Articula-se por meio de estruturas plurais e irredutíveis, limitadas a três classes que
gravitam ao redor dos processos matriciais do ‘separar’ (heroico), ‘incluir’ (místico)
e ‘dramatizar’ (disseminador), ou pela distribuição das imagens de uma narrativa ao
longo do tempo. (DURAND, 2004, p.40)
Surge na mentalidade do navegador ultra marítimo do século XV o medo acerca do
desconhecido, paralelamente a uma ótica cristã-conquistadora, uma busca ao Éden,
ocasionando várias rotas em busca da Terra sagrada. Iniciam-se os primeiros relatos em busca
do Paraíso Terrestre. É do próprio Éden que emanam as águas da fonte da juventude, os jardins
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maravilhosos, ideias que permeiam as descrições do Paraíso Terreal. Águas regeneradoras,
virtuosas, que até mesmo faziam os idosos retornarem à juventude, permaneceram nas
historietas contadas pelos aventureiros além mar.
De fato, o imaginário atlântico, na permanente oscilação que acompanha a
sensibilidade medieval perante a realidade oceânica, define-se agora a rota da
navegação imaginária, torna-se a via de acesso ao Éden. Para muitos, pode muito bem
ser o ponto onde deságuam alguns dos rios do Paraíso. (FONSECA, 1993, p.09)
Nos relatos de Colombo prevalecem ideais provenientes de uma mentalidade
medieval cristã, não tão obstante de seu contexto histórico, mostrando um desejo em expandir
a fé cristã e a guerra santa contra os infieis, é o que percebe-se em seus relatos:
[...] Vossas Majestades, como católicos cristãos e Soberanos devotos da santa fé cristã,
seus incrementadores e inimigos da seita de Maomé e de todas as idolatrias e heresias,
pensaram em enviar-me, a mim, Cristóvão Colombo, às mencionadas regiões da Índia
para ir ver os ditos príncipes, os povos, as terras e a disposição delas e de tudo e a
maneira que se pudesse ater-se para a sua conversão à nossa fé [...] (COLOMBO,
1998, p. 29)
Este homem que busca a racionalidade e a volta aos valores humanistas não deixa
de possuir um imaginário maravilhoso, pautado nas próprias admirações pelos mitos greco-
romanos mas paralelamente aos preceitos cristãos de medo do pecado, do desconhecido que
muitas vezes pode aparecer sob um aspecto fantasmagórico ou diabólico.
Através dos relatos deste navegador genovês, percebe-se a esperança pela busca do
Paraíso Terreal. Uma visão baseada nas narrativas bíblicas que vislumbram o Paraíso como o
Éden encantado, corroborando com a visão edênica castelhana. Bons ares, agradável clima,
terra fértil, a beleza natural, árvores frutíferas, belas flores, a presença das aves e os homens
que cantavam suavemente. São elementos que estavam presentes na paisagem do Éden, ideia
na qual este homem europeu se mostra preso. Ao encontrar novas terras, reconhece-as com os
próprios olhos que vislumbram os escritos bíblicos, uma realização de um imaginário coletivo.
Para Costa (2001) Cristóvão Colombo encontrou nas Antilhas a mesma paisagem
bíblica que ele conhecia e que era difundida por cronistas da época.
[...] não só porque parecia, ignorado, até então, das gentes da Europa [...] mas porque
parecia o mundo renovar-se ali, e regenerar-se, vestido de verde imutável, banhado
numa perene primavera, alheio à veracidade e aos rigores das estações, como se
estivesse verdadeiramente restituído à glória dos dias da Criação'". (HOLANDA apud
COSTA, 2001, p. 118)
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Ideias estas que corroboram com o próprio imaginário medieval a respeito do País
da Cocanha, um lugar utópico, com abundância de frutos da natureza, cereais e mel. Todos
esses elementos eram em grande quantidade, que não era necessário o trabalho do homem. Um
verdadeiro paraíso utópico.
A América já fazia parte do imaginário europeu, representando para Colombo apenas
a comprovação de tudo o que havia sido produzido pela sua imaginação e pela
imaginação de seus contemporâneos [...] A América surgiu primeiro pelo gosto, pelo
prazer de narrar, de expor os fatos com sutis matizes, capazes de restaurar o imaginário
do interlocutor, despertando nele o interesse pela aventura, pelo maravilhoso, pelo
conhecimento do desconhecido. (SILVA, 2010, p. 33)
A América desta forma é representada como uma terra imaculada, com adoráveis
frutos, o clima tropical exótico e atrativo ao europeu, que oscila entre as temperaturas quentes
e mais amenas. A diversidade de suas águas doces, também rejuvenescedoras, estão presentes
nos relatos acerca de Fontes da Juventude. O Éden bíblico significativamente se assemelha a
esses relatos.
O Éden como um lugar mágico, também traz o medo do espanto e perigo. Há uma
manifestação de seres mitológicos presentes nos locais desconhecidos ainda não desbravados,
sendo citadas sereias, amazonas, dentre uma série de monstros aquáticos. Esse imaginário é
marcado pelas narrativas de lugares exóticos, onde não encontra-se grupos civilizados e uma
natureza encantadora, intocada. É o que pode se perceber nas narrativas da Bíblia no livro de
Gênesis:
E o Senhor Deus fez brotar da terra toda a árvore agradável à vista, e boa para comida;
e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal. E
saía um rio do Éden para regar o jardim; e dali se dividia e se tornava em quatro
braços. [...] O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e
cultivá-lo. E o Senhor Deus ordenou ao homem: ‘Coma livremente de qualquer árvore
do jardim, mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia
que dela comer, certamente, você morrerá [...] (Gênesis 2:9-15. In: BÍBLIA
SAGRADA, 2000)
Nesta mesma passagem bíblica percebe-se a advertência dada por Deus a Adão,
para que não comesse do fruto da árvore proibida. Porque no próprio Éden o homem logo
encontraria a sua própria perdição. O paraíso torna-se velozmente o Inferno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O quadro paradisíaco do Novo Mundo não se restringe a motivos meramente
edênicos. É o que Holanda (2000) chama de atenuação plausível, que seria atenuar a noção de
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paraíso para justificar a colonização. As concepções negativas acerca do Novo Mundo
aparecem depois dos cansativos e excessivos contatos com a natureza até então desconhecida.
Para Lisboa (1997) se a natureza que até então mostrava-se um espetáculo a ser vislumbrado,
trazendo até mesmo uma elevação espiritual, traz um intenso envolvimento com o viajante, que
ameaça esta visão paradisíaca, à medida que este homem que se perde na mata e encontra
inimigos que o espreitam, dentre animais malignos ou monstruosos. “Ora tornando uma
encantadora paisagem de palmeirais num sítio perigoso por ser o habitat da gigantesca sucuriú”.
(LISBOA, 1997, p. 107)
Para Costa (2001) a ideia de uma natureza exuberante, seus frutos exóticos, animais
interessantes, o clima agradável, e seus habitantes como bons e inocentes selvagens, irão mudar
de forma à medida que o novo continente mostra uma nova face. A atitude de edenizar a
América foi diminuindo a partir do contato com plantas venenosas, ventos fortes, animais
perigosos. E é importante esclarecer que não existe uma sequência destes acontecimentos, o
importante é compreendermos que a visão edênica existiu mas que ela não foi exclusiva.
No caso da visão portuguesa, que não foi o foco desta pesquisa, mas que seria
interessante deixar claro a relação entre ambas as visões, para Oliveira (2012) a colonização no
Brasil além de toda a dominação política, econômica e cultural, existiu com o intuito iluminista
de se catalogar e estudar a sua natureza, mas embora inseridos nessa visão científica e
racionalista, acabaram mantendo resquícios desta visão edênica ou maravilhosa mais voltada
no sentido de curiosidade em relação ao desconhecido.
Há registros como por exemplo da carta de Pero Vaz de Caminha a respeito de uma
terra de bons ares, agradável clima, natureza, frutos e um lugar exótico, que muito se assemelha
à visão paradisíaca, que nesse caso específico, procura também tratar aspectos mais descritivos
da natureza. Entretanto, tanto os lusitanos quando os castelhanos em seus relatos representam
o universo no qual os mesmos estavam inseridos.
O objetivo desta discussão portanto foi mostrar este universo, de que forma o
contexto histórico-cultural do viajante europeu influencia no momento em que ele se depara
com o “outro”, realizando uma espécie de olhar para um espelho, pois ao dirigir o seu olhar
para o desconhecido, acabou por preenchê-lo de elementos próprios de sua cultura.
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