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33 REVISTA Conatus Conatus Conatus Conatus Conatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 3 - NÚMERO 6 - DEZEMBRO 2009 JOSÉ SOARES DAS CHAGAS * * Mestrando em ÉTICA FUNDAMENTAL E FILOSOFIA SOCIAL E POLÍTICA do CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – CMAF/UECE. Bolsista da FUNCAP e membro do GT BENEDICTUS DE SPINOZA. A POSTULAÇÃO DA IMANÊNCIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO ÉTICO E NO HERMENÊUTICO, EM BENEDICTUS DE SPINOZA 1.0 APRESENTAÇÃO O nosso escopo é evidenciar o conceito de imanência, em Spinoza, como princípio princípio filosófico gerador de uma nova concepção da realidade e, por conseguinte, de um novo modo de conceber os princípios que devem reger o agir humano. Com efeito, a partir deste filósofo inaugurar-se-á, de uma maneira rigorosa, um sistema filosófico cuja base será o pressuposto de que não há duas substâncias distintas, mas tudo decorre da necessidade de uma única realidade, que recebe o nome de Deus. A postulação imanentista de Spinoza será o solo fértil para a sua Ética e para a elaboração de um novo tipo de abordagem das Escrituras presente no Tratado Teológico-Político. Ao escrever aquela, ele dedicava-se ao que havia descoberto como o único objeto capaz de dar ao homem um gozo pleno e permanente e de lhe garantir a serenidade em meio às vicissitudes da vida. E ao iniciar a redação do Tratado Teológico-Político, longe de estar abrindo um parêntesis no conjunto de sua obra, está na verdade se engajando em um embate intelectual, no qual desafia os seus adversários (os teólogos de seu tempo) e os combate em seu próprio território (o teológico), reduzindo a munição deles (o sagrado) a um simples instrumento para instrução daqueles incapazes de chegar à virtude pela luz natural. Com isso, defende a libertas philosofandi contra a perseguição daqueles que querem instaurar um Estado absolutista-aristocrático. A seguir, perseguiremos o nosso objetivo tratando primeiramente da Ethica ordine geometrico demonstrata e, depois, do Tractatus theologico-politicus. 2.0 IMANÊNCIA NA ETHICA ORDINE GEOMETRICO DEMONSTRATA Spinoza vai demonstrar na sua Ética, a partir do rigor do procedimento lógico- matemático, que tudo tem a ver com tudo, que nada é aleatório, pois tudo decorre de uma única Substância, a saber, Deus. 1 Nada está fora dele e nem ocorre em oposição à sua necessidade imanente. Muito embora a noção de Deus seja o conceito que abarca toda a realidade e, portanto, se constitui o bem maior ao qual se deve dirigir a mente humana, a Ética se inicia com a definição de causa sui. “Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou por outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente”. 2 Tal cuidado em colocar esta noção em primeiro, na ordem expositiva, se esclarece se levarmos em conta que das oito (8) definições notae per se (na qual se inclui também a de causa de si), todas se referem a Deus, seja como critério (Substância; Atributo; e Modo), seja como propriedade (as outras). No entanto, de todas as primeiras sentenças universais e auto-evidentes, somente a de Deus será demonstrada no decorrer da I Parte. Não porque ela não pertença ao grupo das notions communes, antes pela constatação dos preconceitos daqueles que confundem as modificações com a própria substância e que querem dá-la um princípio criador. A noção de causa sui, portanto, faz-se mister como antecedente do conceito maior da Ética e do sistema spinozano, porque a partir 1 E1P5. Para as referências da Ética no corpo do texto, utilizaremos a versão de Joaquim de Carvalho, presente em: ESPINOSA, Baruch de. Ética. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores). 2 E1Def.1.

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  • 33REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 3 - NMERO 6 - DEZEMBRO 2009

    JOS SOARES DAS CHAGAS *

    * Mestrando em TICA FUNDAMENTAL E FILOSOFIA SOCIAL EPOLTICA do CURSO DE MESTRADO ACADMICO EM FILOSOFIA DAUNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR CMAF/UECE. Bolsista daFUNCAP e membro do GT BENEDICTUS DE SPINOZA.

    A POSTULAO DA IMANNCIA E SUAS CONSEQUNCIAS NO TICOE NO HERMENUTICO, EM BENEDICTUS DE SPINOZA

    1.0 APRESENTAO

    O nosso escopo evidenciar o conceito de imanncia, em Spinoza, como princpio princpio filosfico gerador de uma novaconcepo da realidade e, por conseguinte, deum novo modo de conceber os princpios quedevem reger o agir humano. Com efeito, a partirdeste filsofo inaugurar-se-, de uma maneirarigorosa, um sistema filosfico cuja base ser opressuposto de que no h duas substnciasdistintas, mas tudo decorre da necessidade de umanica realidade, que recebe o nome de Deus.

    A postulao imanentista de Spinoza ser osolo frtil para a sua tica e para a elaborao deum novo tipo de abordagem das Escrituras presenteno Tratado Teolgico-Poltico. Ao escrever aquela,ele dedicava-se ao que havia descoberto como onico objeto capaz de dar ao homem um gozo plenoe permanente e de lhe garantir a serenidade emmeio s vicissitudes da vida. E ao iniciar a redaodo Tratado Teolgico-Poltico, longe de estar abrindoum parntesis no conjunto de sua obra, est naverdade se engajando em um embate intelectual,no qual desafia os seus adversrios (os telogos deseu tempo) e os combate em seu prprio territrio(o teolgico), reduzindo a munio deles (o sagrado)a um simples instrumento para instruo daquelesincapazes de chegar virtude pela luz natural. Comisso, defende a libertas philosofandi contra aperseguio daqueles que querem instaurar umEstado absolutista-aristocrtico.

    A seguir, perseguiremos o nosso objetivotratando primeiramente da Ethica ordinegeometrico demonstrata e, depois, do Tractatustheologico-politicus.

    2.0 IMANNCIA NA ETHICA ORDINE GEOMETRICODEMONSTRATA

    Spinoza vai demonstrar na sua tica, apartir do rigor do procedimento lgico-matemtico, que tudo tem a ver com tudo, quenada aleatrio, pois tudo decorre de uma nicaSubstncia, a saber, Deus.1 Nada est fora dele enem ocorre em oposio sua necessidadeimanente.

    Muito embora a noo de Deus seja oconceito que abarca toda a realidade e, portanto,se constitui o bem maior ao qual se deve dirigira mente humana, a tica se inicia com a definiode causa sui. Por causa de si entendo aquilocuja essncia envolve a existncia; ou por outraspalavras, aquilo cuja natureza no pode serconcebida seno como existente.2 Tal cuidadoem colocar esta noo em primeiro, na ordemexpositiva, se esclarece se levarmos em contaque das oito (8) definies notae per se (na qualse inclui tambm a de causa de si), todas sereferem a Deus, seja como critrio (Substncia;Atributo; e Modo), seja como propriedade (asoutras). No entanto, de todas as primeirassentenas universais e auto-evidentes, somentea de Deus ser demonstrada no decorrer da IParte. No porque ela no pertena ao grupodas notions communes, antes pela constataodos preconceitos daqueles que confundem asmodificaes com a prpria substncia e quequerem d-la um princpio criador.

    A noo de causa sui, portanto, faz-semister como antecedente do conceito maior datica e do sistema spinozano, porque a partir

    1 E1P5. Para as referncias da tica no corpo do texto,utilizaremos a verso de Joaquim de Carvalho, presenteem: ESPINOSA, Baruch de. tica. 2 ed. So Paulo: AbrilCultural, 1979. (Os Pensadores).2 E1Def.1.

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    CHAGAS, JOS SOARES DAS. A POSTULAO DA IMANNCIA E SUAS CONSEQUNCIAS [...], EM BENEDICTUS DE SPINOZA. P. 33-40.

    dela se poder demonstrar a existncia de umasubstncia nica como necessria. Todascomprovaes oferecidas no interior da I parteda obra mxima partir basicamente, ou doprincpio de que a existncia o atributo de umser mais perfeito: A substncia no pode serproduzida por outra coisa [...]; por conseguinte,ser causa de si mesma [...];3 ou do pressupostobsico de que a perfeio determina a existncia:Se negais isso, concebe, se te for possvel, queDeus no existe e, portanto [...], a sua essnciano envolve existncia. Ora, isso [...] absurdo;por conseguinte, Deus existe necessariamente,portanto4. No primeiro caso, a causa de si comopropriedade da Substncia rejeita como falsaqualquer afirmao de algo que anteceda ou aproduza, deixando patente, por esta feita, queno possvel a criao. No segundo caso, aprova de que Deus , se d pela demonstraode que a afirmao contrria evidentementeabsurda. O Deus spinozano , portanto,substncia nica e necessariamente existente.Fica para ns a pergunta pelo sentido dado idia de Substncia.

    Inserindo-se em uma tradio filosfica,que remonta a Aristteles, Spinoza retoma umconceito caro histria do pensamentoocidental. Analisando-o e depurando-o chega concluso de que s a Deus se pode atribuir adefinio de Substncia. E isso porque s delese pode dizer que existe e concebido por simesmo.5 As outras coisas so pensadas comoconstitutivas de um substrato infinito a partirdas noes de extenso e pensamento, queDescartes (a quem o nosso autor dedicouprofundos estudos), chamava de atributosprincipais. E tal afirmao parte exatamente dacontraposio ao pensamento cartesiano que, nadesesperana de falar do que a coisa em simesma, reduziu a noo de substancialidade

    res cogitans (coisa pensante) e res extensa (coisaextensa), mantendo o dualismo herdado daEscola. Esta afirmao ontolgica redundaria emum gnosticismo.

    Safando-se da aporia cartesiana, quepressupunha uma realidade no possvel de serconcebida e, ao mesmo tempo, dizendo ser elaas suas manifestaes atributivas, o nosso autorpostula a Imanncia como pressupostoinevitvel de considerao da realidade comoaquilo na qual no pode haver contradio eque no pode ser concebido seno pelaevidncia de seu prprio conceito. Por isso,reserva o conceito de Substncia somente aDeus, enquanto o de atributo deixadosobretudo para as noes de extenso epensamento, as quais so pressupostos de todasas multiplicidades de entes percebidos pelosnossos sentidos, designados modos. Todas ascoisas seriam, nesse sentido, nada mais do queuma expresso modal dos atributos da nicasubstncia, e cuja designao se confundir coma de Natureza (Deus sive Nature) a partir daproposio vinte e nove (29), da parte I da tica.

    Desta concepo imanentista e monista,decorre como conseqncia necessria apossibilidade do propsito estabelecido porSpinoza para a Filosofia, a saber, a unio damente humana de Deus, o que o fundamentoda beatitude ou da vida do sbio, enquanto aqueleque alcanou o conhecimento pleno e neleencontrou fora para os seus esforos, serenidadepara suas aes e um contentamento interiorinabalvel.6 Ora, ao eriar a Causa sui comopropriedade fundante de sua ontologia, Spinozaacaba por estabelecer a identidade entre arealidade e o pensamento; em outras palavras,o entendimento finito do homem, sendo parteou expresso modal do pensamento infinito nose distingue deste seno no aspecto quantitativoe, por isso, pode conceber da coisa o que ela em si mesma. Isso significa que no existemidias falsas, apenas inadequadas; ou, por outra,podemos conhecer Deus porque no somostotalmente diferentes dele, ou mesmorelacionados a ele como uma imagem ao seureferente, mas somos constitutivos dele mesmo,enquanto manifestao singular e finita.

    3 Substancia non potest produci ab alio[]; erit itaquecausa sui [...]: E1P7Dem. O texto, no original, foi extradoda edio bilnge (latim-portugus) de Tomaz Tadeu:SPINOZA, Benedictus de. tica. 2 ed. Belo Horizonte:Autntica, 2008.4 Si negas, concipe, si fiere potest, Deum non existere.

    Ergo [...] eius essentia non involvit existentiam. Atquehoc [...] est absurdum. Ergo Deus necessrio existit:E1P11Dem.5 E1Def3. 6 TIE [10]-[11].

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    CHAGAS, JOS SOARES DAS. A POSTULAO DA IMANNCIA E SUAS CONSEQUNCIAS [...], EM BENEDICTUS DE SPINOZA. P. 33-40.

    [...] Por ser a causa imanente, no spinozismoo entendimento humano uma parte doentendimento divino, ainda que se mantenhaa distino quantitativa entre os entendimentos:o entendimento divino (que tudo entende) tudoconhece e o entendimento humano (que recaiapenas nos eventos e nas coisas que lhe sodados) no pode e nunca poder conhecertudo o que Deus conhece; ou seja, a distinono aspecto quantitativo apenas na capacidadede possuir idias adequadas, que limitada nohomem e infinita em Deus.7

    A concepo monista de Spinoza, acercada Natureza e do homem como parte constitutiva,e no apenas imitativa, d razo a responsabilidadede ser o expediente capaz de conformar o indivduocom a ordem do todo, garantindo-lhe abeatitude, enquanto uma vida plena de alegria.Esta viso imanentista presente na tica coroa opensamento do nosso autor ao delinear ocaminho para o summum bonum, como a via parao sbio, cuja vivncia baseia-se unicamente nosditames de sua conscincia. Fica para ns aquesto de como poder se dedicar busca daFelicidade ou do verdadeiro filosofar, se no meioem que se vive, a liberdade de pensar restringida. Este problema nos remete aocontexto de produo de nosso autor.

    3.0 DA ETHICA AO TRACTATUS

    A postulao imanentista de Spinoza sero solo frtil para a sua Ethica e para a elaboraode um novo tipo de abordagem das Escrituraspresente, no Tractatus Theologico-Politicus. Tantoum como o outro tero grande influncia para odesenvolvimento da filosofia moral e dahermenutica. Contudo, para ns, bastaentender que ambas as obras formam umaunidade e que h uma rigorosa coerncia dentrodo todo do pensamento spinozano. Deve-se dizertambm, ao bem de uma boa compreenso, queo nosso autor escreveu com mpeto vivencial.Quero dizer: engana-se quem v a friezamatemtica em sua obra e pensa que apenas

    uma fruio intelectual de mais uma mentebrilhante na histria.

    O prprio fato de ser a tica a sua obramxima, e de t-la interrompido na terceira parte(1665) para defender a liberdade de pensamentoe expresso atravs do Tractatus Theologico-politicus, mostra como a sua atividade intelectualfoi acompanhada de paixo (e perseguies!).Com efeito, ao escrever aquela, ele dedicava-seao que havia descoberto como o nico objetocapaz de dar ao homem um gozo pleno epermanente e de lhe garantir a serenidade emmeio as vicissitudes da vida.

    Assim, parecia claro que todos esses malesprovinham disto que toda felicidade ouinfelicidade reside s numa coisa, a saber,na qualidade do objeto ao qual nosprendemos pelo amor. De fato, nunca surgemdisputas por coisas que no se amam; nemh qualquer tristeza se elas se perdem; neminveja, se outros a possuem, nenhum dio e,para dizer tudo, numa palavra, nenhumaperturbao da alma (animus). Ao contrrio,tudo isso acontece quando amamos coisasque podem perecer, como so aquelas queacabamos de falar. Mas o amor das coisaseternas e infinitas nutre a alma (animus) depuro gozo, isento de qualquer tristeza; isso que de desejar-se grandemente, e se devebuscar com todas as foras.8

    A busca da beatitude ou a fruio dosummum bonum como a consecuo daquilo quepode garantir a maior perfeio do homem,fazendo-o encontrar-se no mximo de suapotencialidade juntamente com os outros que ocircundam, que dar azo redao da tica jque nela onde se v, geometricamente exposta,como a pessoa se encontra no interior de Deus(Imanncia) e se auto-determina segundo aunio de sua mente com a Natureza inteira,conforme Spinoza se propor como objeto maior,ao qual a filosofia deve se dedicar: [...]Mostraremos, no lugar prprio, que essanatureza superior o conhecimento da unioda mente com a Natureza inteira.9

    A interrupo da obra mxima de Spinozatambm refora o que supradissemos acerca do

    7 FRAGOSO, E. A. da R. As definies de causa sui,substncia e atributo na tica de Benedictus de Spinoza.UNOPAR Cient. Londrina, V2, N.1, pp.83-90. Disponvelem: . Acesso em maio de 2009.

    8 TIE [9]-[10].9 TIE [12], pp.10-11.

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    seu envolvimento existencial. Ao iniciar aredao do Tratado teolgico-poltico, longe deestar abrindo um parntesis no conjunto de suaobra, est se engajando em um embateintelectual, no qual desafia os seus adversriose os combate em seu prprio territrio (oteolgico), reduzindo a munio deles (osagrado) a um simples instrumento parainstruo daqueles incapazes de chegar virtudepela luz natural. Com isso, defende a libertasphilosophandi contra a perseguio daqueles quequerem instaurar um Estado absolutista-aristocrtico.

    Ningum, a bem dizer, j hoje contesta que areligio e a poltica de que se fala aqui estointimamente conectados com a filosofiademonstrado na tica. E, no entanto, dizer issoainda no tudo. Porque o Tratado Teolgico-Poltico no apenas uma obra que tenhasubjacente a concepo de realidadereivindicada pelo autor ou que para ele remeta,como teria irremediavelmente de acontecer: ,sim, a primeira e, em muitos aspectos, definitivaexplanao do sistema espinosista, a tentativaprogramada de recuperar o que a racionalidadeem moldes geomtricos insinuava comodesordem ou servido a resgatar pela liberdadeintelectual, sem suspeitar que precisamentea que se decide toda a gama de possibilidadesde interao dessas partculas do todo que soos homens.10

    V-se claramente que a concepospinozista da realidade encontra-se coerente naexposio hermenutica do Tratado Teolgico-Poltico, e que este no uma digresso dopensador, mas uma invectiva intelectual a favordo Sbio, que encontra a sua razo de ser e asua alegria no agir em acordo com a sua prprianatureza e no contra ela.

    4.0 IMANNCIA NO TRACTATUS THEOLOGICO-POLITICUS

    Na sociedade holandesa, na qual moravaSpinoza, embora houvesse espao para osdiferentes estilos de vida e, por isso, fosse refgiopara muitos, havia (no entanto) uma briga pelo

    poder diretivo em que se procurava em nomeda religio, reduzir a funo da dirignciagovernamental monarquia absolutista.11 Issoteria como conseqncia uma minimizao daautonomia para se dedicar a verdade das cinciasnaturais. No nos esqueamos, que na poca emque vivera o nosso autor, muitas perseguiesforam realizadas contra aqueles que se opunhama certa viso de mundo, baseada nas Escriturascomo fonte de verdade.

    J se encontrando na maturidade de seupensamento, e envolvido na poltica a favor deseu pensionista Jan de Witt, chefe do partidoliberal de Orange, Spinoza interrompe a sua obrasuma no terceiro captulo para escrever oTractatus thelogico-politicus, no qual ir defendera libertas philosofandi a partir da distino entreos campos da razo e da f, de maneira a associaresta funo de mera instrutora do vulgo,incapaz de ascender virtude pela via da luznatural, caminho este prprio do sbio que noage pelo medo de coao ou pela recompensada ao, mas unicamente pelo amor intelectualao summum bonum. , por isso, que toda a obratornar-se- uma interpretao da Sacra Scripturae uma proposta de um mtodo capaz de explicara Escritura por ela mesma, de maneira imanente, semelhana de como as cincias estudam anatureza.

    A viso imanentista de Spinoza desguana leitura dos textos sagrados do judasmo-cristianismo de uma maneira a inferir do seuinterior somente o seu significado. Com isso, abreespao para um novo tipo de abordagemhermenutica, que se ope Tradio, e a qualpodemos sintetizar com uma sentena latina,conhecida pela Escola: Littera gesta docet, quidcredas allegoria, moralis quid agas, quid speresanagogia. Traduzindo: A Letra ensina o queaconteceu; a Alegoria o que deves crer; o sentidomoral o que deves fazer; o sentido Anaggicoda Escritura que esperana deves ter. Este modode abordar os Escritos conhecido como sentidoQudruplo por observar a mensagem sob quatro(4) ngulos diferentes (Literal; Alegrico; Moral;e Anaggico). Pressupe que, em cada passagemanalisada, possvel haurir uma resposta a

    10 AURLIO, Diogo Pires. Introduo. In: ESPINOSA,Baruch de. Tratado Teolgico-Poltico. Lisboa: ImprensaNacional-Casa da Moeda, 1988, pp. 9-10.

    11 MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Lisboa:Edies 70, 1971, p. 16.

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    qualquer realidade humana; ou seja, poder-se-ia, por meio de imagens, comparaes ou figuras,extrair um conhecimento sobre o mundo,inclusive o que diz respeito verdade natural. Eisso porque no se poderia desconfiar dainfalibilidade da luz divina que houverainspirado os autores. Neste sentido, qualquerdesacordo entre um dado natural e umainformao escriturstica, ou mesmo, qualquerfalta de sintonia das passagens no interior dasEscrituras, seria esvanecido por fora do engenhocriativo de quem l, que encontraria um sentidoescondido por trs da aparente contradio.

    Ao que a Escola chama de Literal e que considerada como possuidora de poucasignificncia, tornar-se-, dentro da propostaspinozista, a nica pedra de toque, segura osuficiente, para oferecer uma interpretao em queno se caia em devaneios lingusticos, ao forar otexto a dizer o que no existe nele. claro que nose descarta aqui o sentido moralis; ao contrrio,toda a anlise imanentista reduzir-se- descobertade que no h um significado transcendente aoescrito, sobre coisas misteriosas, mas apenas umensinamento exortativo vida prtica, um convite obedincia e a piedade, por parte daqueles queso incapazes de elevarem-se por si mesmos aoconhecimento das causas naturais e, portanto,incapazes da virtude por si mesmos.

    Na coerncia de mostrar, que no h umsignificado autntico para os textos bblicos paraalm deles mesmos, urge demonstrar o que seentende por sobrenatural, ou o que seriarealmente a Palavra de Deus. , por isso queSpinoza s expor o mtodo seguro deinterpretao no captulo sete (7) de sua obra,reservando-se espao para mostrar a incongrunciaem se buscar a verdade natural nas Escrituras apartir do alegorismo. Proceder, nestademonstrao, mediante um recurso estratgico-lingustico no qual retomar (ou assumir)noes prprias do universo analisado; realizandoposteriormente uma inflexo, a fim de conduziras tais ao significado de acordo com a verdadeou viso adequada da realidade.

    O Tractatus theologico-politicus comeacom a definio de profecia (cap. 1), como umarevelao de Deus sobre coisas certas, e deprofeta (Cap. 2), como aquele que interpreta amensagem divina. A anlise desses conceitos

    extrados do interior das Escrituras redundarna impossibilidade de se obter a verdade naturalmediante o profetismo. E isso porque osintrpretes da mensagem divina se destacamunicamente pelo seu modo de vida asctico epor sua imaginao super-aguada, a qual seexpressa apenas atravs de smbolos, dandocomo nica certeza ou fundamento os sinais (ouprodgios) realizados. E dado que, em Israel,existiram vrios falsos profetas, que tambmproduziam esses efeitos, o que nos foitransmitido por eles no pode ser aceito comoverdade, e nem eles podem ser acolhidos comosuperiores ao sbio, j que no possuem umamente melhor dotada do que o restante dos sereshumanos.

    Demonstrado a que se reduz a Palavra deDeus, pela inflexo hermenutica, realizada nosprimeiros captulos, Spinoza pode propor omtodo realmente seguro na inferncia damensagem escriturstica, reduzindo o SentidoQudruplo da tradio ao seu elementofundamental e imanente, a saber, o literal. [...] necessrio afastarmo-nos o menos possvel dosentido literal.12 No captulo sete (7), apresentao novo instrumental exegtico a partir dosseguintes pontos: 1. Considerao da naturezada lngua,13 na qual foi escrita (do hebraico parao Antigo Testamento; e do grego para o NovoTestamento); 2. Compilar os assuntos essenciaisde cada livro e compar-los, observando se hcontradio entre si isto feito sem receios, jque o sentido e no a verdade, que buscamos;3. Resgatar a histria do texto: de quem oescreveu, para quem escreveu, e de como chegouas nossas mos; por fim, 4. Deduzir-se- oaspecto prtico, que consiste no essencial damensagem escriturstica, a saber, conduzir ovulgo piedade e a obedincia ( moral e aosbons costumes). Tal proposta exegtica ter avantagem de no criar intrigas, j que toda a

    12 Ibidem, p. 210.13 Quanto preocupao com a lngua e sua natureza,

    deve-se destacar que nos foi legado por Spinoza umagramtica do hebraico: SPINOZA, Baruj. Compendio degramtica de la lengua hebrea. Madrid: Trotta, 2005. Apropsito, consultar o primeiro captulo de CHAU,Marilena. Da realidade sem mistrios aos mistrios domundo, que procura discutir a relao entre a GramticaHebraica e o imanentismo em Espinosa.

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    Escritura reduzir-se- a prtica da vivncia doduplo mandamento de amor a Deus e aoprximo. Ao bem da verdade, Spinoza verificarque as discrdias entre as igrejas se devem noao texto sagrado, mas a m interpretao e ouso interesseiro feito dele.

    Toda gente diz que a Sagrada Escritura apalavra de Deus que ensina aos homens averdadeira beatitude ou caminho dasalvao: na prtica, porm, o que se verifica completamente diferente. No h, comefeito, nada com que o vulgo parea estarmenos preocupado do que em viver segundoos ensinamentos da Sagrada Escritura. vercomo andam quase todos a fazer passar porpalavra de Deus as suas prprias invenes eno procuram outra coisa que no seja, apretexto da religio, coagir os outros para quepensem como eles. Boa parte, inclusive dostelogos esto preocupados em saber comoextorquir dos Livros Sagrados as suasprprias fantasias e arbitrariedades,corroborando-as com autoridade divina. [...]Porque se os homens fossem sinceros quandofalam da Escritura, teriam uma regra de vidacompletamente diferente [...].14

    A decorrncia imediata desta novahermenutica escriturstica a separao entreas esferas da razo e da f. Esta est sob odomnio da Escritura e de mxima utilidade,j que um nmero super-reduzido, os quepodem alcanar a vida virtuosa somente pelaconsiderao da natureza das coisas e de simesmo. Aquela est no mbito somente da LuzNatural e se constitui a via da beatitude dos sbiosou dos verdadeiros filsofos, cuja ao repousana idia adequada da ordem natural, na qualest necessariamente inserido. Acrescente-se, aoresultado de uma nova viso sobre o conjuntodos livros da Sacra Scriptura, a concepopoltica, que decorrer outrossim do carterimanentista de Spinoza.15

    Para Spinoza, a poca na qual aadministrao da coisa pblica ficou nas mosdos reis ou dos sacerdotes, os quais secorromperam e abandonaram as suas verdadeiras

    funes, foram tempos de muitas guerras civis,impiedade e perseguies. Por isso, emconsonncia com a separao entre as esferasda f e da razo, reclama a subordinao dareligio ao Estado, a fim de garantir a plenaliberdade de pensamento e expresso. Da nsconclurmos a ltima grande consequncia dopensamento spinozano, a saber, a reivindicaode condies seguras para o completocumprimento da natureza racional de cada um,que s pode se dar em um Estado livre e laico,no qual se reconhea o lume natural como omaior bem para o todo.16

    CONCLUSO

    O pensamento de Benedictus de Spinoza,embora relegado ao esquecimento durante muitotempo por causa da parcialidade com a qualtratavam suas idias um marco referencialpara se compreender como se gestou um modode ver o mundo capaz de captar a suapotencialidade inerente a si mesma, semnecessidade de apelos a qualquer outra esferadita misteriosa ou sobreposta realidade.

    A referncia a Deus nas explicaes domundo ser aos poucos abandonada namodernidade. Em Spinoza, este afastamento datradio dar-se- de uma maneira criativa eoriginal. A anlise proceder-se- sempre demaneira a procurar a maior exatido possvel,tendo como modelo a nica cincia capaz deoferecer resultados indubitveis, claros eevidentes, a saber, a Geometria.

    O carter dedutivo e a necessidade deuma absoluta coerncia conduzi-lo-o a umafastamento do sentido das noes assumidasem seu discurso; o que levar a uma filosofiacujo fundamento ltimo estar nela mesma; ouseja, no precisar abdicar da luz natural, mas,ao contrrio, s confiar naquilo que se deixarguiar por ela. A hermenutica de inflexo dostermos assumidos da tradio ter seu corolriona noo de Deus, o qual deixar de ser uma

    14 TTP, Cap. VII, p. 206.15 Cf. Ibidem, cap. XVI-XVIII.

    16 Para aprofundamento dessa questo, ver PINTO, F.Cabral. A heresia poltica de Espinosa e AQUINO, JeffersonAlves de. Direito e poder em Espinosa: os fundamentosda liberdade poltica; ainda deste ltimo, A chave dosanturio: fides et ratio no Tratado Teolgico-Poltico deEspinosa (conf. Referncias Bibliogrficas).

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    CHAGAS, JOS SOARES DAS. A POSTULAO DA IMANNCIA E SUAS CONSEQUNCIAS [...], EM BENEDICTUS DE SPINOZA. P. 33-40.

    entidade transcendente e inacessvel razohumana e assumir o carter de Natureza, ouSubstncia nica; ou, em outras palavras: tornar-se- a suprema afirmao da ordem do mundoenquanto constituda de uma teia infinita decausas e efeitos, possveis de serem traduzidascom exatido por meio de leis naturais. Dasecularizao do conceito maior da tradio,produzir-se- o solo frtil para o labor cientfico,a saber, a imanncia.

    Se houvesse ficado apenas na necessidadeda imanncia, como princpio filosficonecessrio, o estudo de Spinoza j estariajustificado pela relevncia que tal postulaoadquiriu no decorrer dos anos. No entanto, nopodemos esquecer que o seu pensamentoencontra o centro na afirmao da potencialidadecapaz de garantir ao homem a consecuo de suafelicidade, a qual consistir em se compreendercomo parte (e no acima) da natureza e seautodeterminar em funo dela. E isso umaprova de como a sua filosofia estava a servioda realizao humana, enquanto caminho dosbio ou daquele que se deixa conduzirunicamente pelos ditames de sua conscincia.

    Alm do que j dissemos sobre arelevncia de um estudo sobre Spinoza, devemosdestacar a sua defesa pela libertas philosophandi., por isso, que o seu pensamento se insurgircontra o pietismo (no Tratado Teolgico-Poltico)e propor uma radical separao entre religioe Estado, a fim de garantir a tranquilidadenecessria para aqueles que se dedicam cincia.Sem se esquecer, no entanto, de demonstrar quetodas as religies se resumem no amor a Deus eao prximo, e que isso o bastante para a prticade uma verdadeira piedade, livre de fanatismose conflitos. Tal considerao, acerca doverdadeiro papel da religio (do que as podeunir) e da urgncia de liberdade de expresso,mostram o quanto atual o pensamento desteautor e como ser salutar retom-lo edesenvolv-lo. O nosso artigo quer ser umcontributo neste sentido.

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  • 40 REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 3 - NMERO 6 - DEZEMBRO 2009

    CHAGAS, JOS SOARES DAS. A POSTULAO DA IMANNCIA E SUAS CONSEQUNCIAS [...], EM BENEDICTUS DE SPINOZA. P. 33-40.

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