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    Desconstruindo Huntington

    Gildo Marçal Brandão - [email protected]  

    República, nov. 2001, n. 61

    Publicado em Gramsci e o Brasil  – www.gramsci.org 

    Se em vez de terrorista, Osama Bin Laden osse um acad!mico de "rest#gio, umrio analista da "ol#tica mundial, ele teria escrito O Choque de Civilizações, deSamuel P. $untington %1&. Podemos "egar o livro e l!'lo como um es"el(oimagin)rio. *nvertidos os +u#zos de valor sobre a civiliza-o de cada um, oarcabouo meta#sico sub+acente an)lise "ermaneceria igual/ as noes deidentidade e su"erioridade da sua civiliza-o, o direito guerra, +usta, 3 claro,"ois se trata de "reserva-o de sua "r4"ria cultura e do Bem 5ue ela encarna, odireito vingana "elos sorimentos inligidos "ela outra. 7"licitamente, ambosveriam no sangue e na religi-o os "rinci"ais motores das civilizaes. 8mbosconsiderariam todas elas como organismos coesos, singular#ssimos e, no limite,inimigos mortais uma das outras. 8mbos criticariam o (edonismo, a

    seculariza-o, a corru"-o e o amolecimento atual de seus "ovos, "ro"ondo aregenera-o moral "elo retorno s ontes "roundas ' religiosas, +amais laicasnem racionais ' s 5uais cada um deles deve origem, e7ist!ncia e consci!ncia.

    9as Osama Bin Laden n-o 3 um acad!mico. : um (omem do din(eiro, umbourgeois conquérant , il(o das novas classes dominantes do mundo )rabe e docircuito do ca"ital globalizado. $omem da cultura de massa, tem senso dees"et)culo suiciente "ara mono"olizar a voz dos 5ue n-o t!m voz eacumularam s3culos de ressentimento. ;rente, est) imune s diabo 8zul "ara lutar contra o >iabo ?ermel(o ' ser)sur"reendente 5ue, a"4s li5uidar o segundo, seu >eus 5ueira arrebentar o"rimeiro@ =inalmente, 3 um (omem da "r)7is, um organizador. ;om essas5ualidades, (averia algu3m mais a"arel(ado "ara levar "r)tica ' com ainestim)vel colabora-o de Aeorge . Bus(, n-o nos es5ueamos ' o 5ue o >r.Strangelove de "lant-o teoriza@

    : a "rova do "udim da teoria deste, "or assim dizer. >e ato, sua a-o nada tevede tresloucada, mas oi o "roduto de uma escol(a racional, bem undamentada,a "onto de atingir v)rios alvos ao mesmo tem"o/ a o cora-o do *m"3rio e seuss#mbolos de "oder, es"al(ando o "Cnico entre os dirigentes e a "o"ula-o ecriando condies "ara a militariza-o dessas sociedades de ini3isD b osE5uintas'colunasF da cultura islCmica, isto 3, os governos corru"tos e vacilantes5ue o *nimigo sustenta no "r4"rio OrienteD c o escanteamento dos l#deres"alestinos moderados e EtraidoresFD e d sem es5uecer o gan(o su"lementar 5ueoi +ogar na deensiva todos esses movimentos e militantes liberais, socialistas,comunistas, ambientalistas, etc., laicos e mesmo religiosos, dos 5uatro cantosdo mundo 5ue acreditam na raz-o, no internacionalismo, na "ossibilidade dodi)logo e em valores universais. Proecia autocum"rida, sua a-o deu imediataa"ar!ncia de verdade tese de $untington, levando'a, ato cont#nuo, a ser aceitacomo boa descri-o da realidade e linguagem do dia'a'dia da "ol#ticainternacional.

    Samuel P. $untington, em contra"artida, n-o 3 um militante 7iita, mas umsim")tico "roessor de $arvard. Gm cientista, embora dierena dessesliberais weberianos, +amais ten(a acreditado "ara valer na se"ara-o radicalentre ci!ncia e "ol#tica, ci!ncia e valores. ;i!ncia 3 "rerrogativa de ocidental e

    ci!ncia boa 3 a5uela 5ue conirma os valores e leva engen(aria institucional.ngen(eiro institucional 5ue se "reza, entretanto, n-o su+a as m-os. : consultor,assessor, estrategista, ca"a "reta. 8"onta a necessidade e os meios de azer a

    mailto:[email protected]:[email protected]://www.gramsci.org/http://www.gramsci.org/mailto:[email protected]

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    guerra se se 5uiser atingir a "az, mas dei7a o trabal(o su+o "ara os Leit-o de 8breu, os Aeorge . Bus( e os Bin Laden da vida.

    As teses 

    Hessa 3"oca de Ecrise dos grandes "aradigmasF e das Egrandes teoriasF, eis 5ue

    temos um novo "aradigma, o retorno a uma grande teoria. Hessa 3"oca de Eimda (ist4riaF, eis 5ue a "r4"ria direita "ara al#vio de uma certa es5uerda, 5ue v!nisso "rova de 5ue estava certa vem dizer 5ue a (ist4ria n-o acabou, 5ue omundo continua movido a conlitos sangrentos, 5ue a globaliza-o 3 ilus4ria e5ue a E"az "er"3tuaF 3 conversa "ara boi dormir. Hessa 3"oca do Eim dasideologiasF, eis 5ue se cria uma nova ideologia. ;omo costuma ser todaideologia, tamb3m esta 3 uma sim"liica-o grosseira da realidade e um lero'lero convincente "ara os incautos.

    ;omo se sabe, sua tese "rinci"al, da 5ual derivam todas as outras, 3 5ue Eaonte undamental de conlito nesse novo mundo n-o ser) essencialmenteideol4gica ou essencialmente econImica. 8s grandes divises na (umanidade ea onte "redominante de conlito ser-o de ordem cultural. 8s naes'stados

    continuar-o a ser os agentes mais "oderosos nos acontecimentos globais, masos "rinci"ais conlitos ocorrer-o entre naes e gru"os de dierentes civilizaes.O c(o5ue de civilizaes dominar) a "ol#tica global. 8s lin(as de cis-o entre ascivilizaes ser-o as lin(as de batal(a do uturoF.

    ;ivilizaes s-o entidades com"le7as, indiv#duos com ca"acidades de azerarcos transcendentais mais abrangentes do 5ue os da etnia, da classe, do "ovo,da na-o, da cultura. S-o, de ato, uma mistura orgCnica de am#lias, etnias,"ovos, naes e culturas, unidas todas "ela l#ngua, tradies comuns,narrativas, instituies e valores com"artil(ados. S-o, sobretudo, id!nticas a simesmas e estran(as entre si.Ho undo, entretanto, civilizaes s-o coisas sim"les/ En4sF contra elesF, meutaca"e contra sua borduna. Pouco im"orta 5ue voc! se+a meu vizin(o, viva do

    mesmo modo 5ue eu e dese+e ainal de contas as mesmas coisas ' um teto, um"adr-o de vida decente, um uturo razo)vel, alguma dignidade. H-o somos il(osda mesma m-e, n-o temos o mesmo sangue nem, sobretudo, acreditamos nomesmo >eus. Portanto, voc! 3 uma coisa e eu outra. u sou do Bem e voc! 3do 9al. vice'versa.Jrata'se, esse novo mundo, de um con+unto multi"olar e multicivilizacional. :bem verdade 5ue as civilizaes s-o "oucas ' a ;ristandade Ocidental, a*slCmica, a S#nica ou ;onuciana, a Ortodo7a Kussa ou slava, a $indu, aa"onesa, a Budista, a Latino'8mericana 5ue diabo ela 3@ e 8ricana masesta 3 mesmo civilizada@ ', mas criam uma conus-o dos diabos. Jodas elass-o absolutamente singulares,

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    ;omo se sabe, O Choque de Civilizações  oi escrito originalmente como umartigo "ara a revista Foreign !!airs. Publicado na edi-o do ver-o de 1NN, ote7to ez tanto sucesso e des"ertou tanta "ol!mica 5ue levou o seu autor aam"li)'lo num volumoso livro de 6 ")ginas "ublicado em 1NN6 "ela Simon QS(uster. O 5ue era (i"4tese no "rimeiro ' E;(o5ue das ;ivilizaes@F ' viroucerteza no segundo, sem 5ue nen(uma de suas "alavras ten(a sido revista e

    modiicada %2&.Os seus alvos eram claros/ a celebra-o ediicante do Eim da (ist4riaF, 5ue outrouncion)rio do >e"artamento de stado, =rancis =uRuama, tin(a "irateado edeormado de $egel "ara comemorar a vit4ria ca"italista e liberal sobre osocialismo e7istenteD o del#rio megaloman#aco dos inancistas de all Street,o"eradores das Bolsas de ?alores de Hew TorR e Londres, di"lomatas e"ol#ticos de as(ington, te4ricos da Eterceira viaF e governantes do e7'Jerceiro9undo emergente, 5ue se iludiram e nos iludiram com um su"osto eEirrevers#velF "rocesso de Eglobaliza-oF inanceira e cultural do mundo. =alandoa linguagem dos EatosF, eis 5ue c(ega o vel(o Realpoliti"er  "ara "Ir ordem nacasa.

    m suas m-os, alguns argumentos liberais cl)ssicos s-o triturados. m nome

    da deesa do Oeste, $untington n-o acredita nem no "oder do Edoce com3rcioF,nem na universalidade das instituies democr)ticas, nem na ine7orabilidade doEdesencantamento do mundoF, nem na realidade da globaliza-o, cu+os n#veis,ali)s, s-o estat#stica e realisticamente ineriores aos da belle époque  liberal eca"italista 5ue mediou entre a derrota da ;omuna de Paris e a eclos-o daPrimeira Auerra 9undial.

    >esde logo, sugere, 3 necess)rio relativizar a natureza da moderniza-o e suaca"acidade e7"ansiva. Ha verdade, n-o 3 a"enas 9ar7 e a luta de classes 5ueest-o su"erados. : tamb3m eber 5ue est) errado ou, "elo menos, dei7ou deestar certo. O "rocesso atual n-o 3 o da racionaliza-o de todas as eseras dae7ist!ncia nem o do desencantamento do mundo. m vez de seculariza-o,estamos assistindo, elizmente, a la revanche de #ieu, revitaliza-o da religi-o

    e ao reoro dos laos tribais e amiliares entre os membros da mesmaciviliza-o. Parodiando o lema EglobalistaF, segundo o 5ual na 3"oca atual 3"reciso E"ensar globalmente, agir localmenteF, $untington sentencia 5ue E"ol#ticalocal 3 "ol#tica de etnia, en5uanto "ol#tica mundial 3 "ol#tica de civiliza-oF.

     8ntigo te4rico da moderniza-o, n-o "assa evidentemente "ela sua cabeanegar 5ue ela e7ista, mas sim observar 5ue ela n-o est) "roduzindo umaciviliza-o universal nem a ocidentaliza-o das sociedades n-o'ocidentais. :claro 5ue o Ocidente est) mais orte, mais "oderoso e bem armado, mas suainlu!ncia relativa est) em decl#nio, se+a "ela e7"ans-o econImica, "ol#tica emilitar das sociedades asi)ticas, se+a "ela e7"los-o demogr)ica do *sl-. 8l3mdisso, muitas sociedades n-o'ocidentais 5uerem moderniza-o, mas re+eitamocidentaliza-o.

    Ha verdade, o 5ue signiica ocidentaliza-o@ >igamos assim/ um "rocessomediante o 5ual, consciente da su"erioridade de sua cultura, o ing!nuo ocidentaloerece suas mercadorias na crena de 5ue, ao vend!'las, vende algo muitomaior. ;onia em 5ue o Edoce com3rcioF, "rinci"almente 5uando est) sustentado"or doses cavalares de su"erioridade b3lica, cria redes de interesse m

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    e muito menos seus valores. st) bem, alguns deles sorem da s#ndrome deidentiica-o com seus su"eriores e se esoram "ara se tornar iguais a eles,mas voc!s (-o de convir 5ue todas as tentativas anteriores de ocidentalizarsociedades n-o'ocidentais racassaram. 8gora, se+amos realistas, racassaramn-o "or5ue estas sociedades ossem inca"azes, mas "or5ue suas culturas esuas civilizaes s-o outras, dierentes e naturalmente (ostis nossa.

    H-o 3, "ortanto, o Edoce com3rcioF nem a beleza das id3ias, mas a ainidadecultural entre "ovos, entre sociedades no interior da mesma civiliza-o, 5ue osleva a coo"erar entre si. ;ada civiliza-o, de ato, 3 uma il(a e nen(uma delas 3res"ons)vel "ela outra 5ue cativa. ;om suas "retenses universalistas, oOcidente enrenta civilizaes inebriadas "ela certeza de sua su"erioridadecultural e acabrun(adas "ela realidade de sua inerioridade material, tecnol4gicae "ol#tica.

    Hesse com"asso, a e"ende, em segundo lugar, de 5ue"rocure revitalizar seus valores mais b)sicos. : l#cito deduzir da# 5ue ser)"reciso combater o materialismo atual, o (edonismo, a destrui-o dos elementosn-o'contratuais do contrato, o descontrole do mercado, etc., e "romover orenascimento da tradi-o, da am#lia, da "ro"riedade, da 3tica do trabal(o, dareligi-o, etc. >e"ende, sobretudo, de 5ue o "a#s l#der do Ocidente "ois oseuro"eus "erderam o g)s reorce sua (omogeneidade cultural, reduza omulticulturalismo, conten(a seus dissidentes e dierentes internos e reative osvalores de seus "ais undadores.

    Para sermos +ustos, cabe acrescentar 5ue, de acordo com as "remissas de$untington, o 5ue vale "ara uma civiliza-o vale "ara a outra e a ess!ncia decada uma delas est) com seus undamentalistas. ;omo diz S3rgio PauloKouanet, Eesse aiatol) da ci!ncia "ol#tica americana recomenda, sem titubear,"ara a Jur5uia, o c(ador e o ;or-o, e "ara os stados Gnidos, uma boa dose deundamentalismo "uritano. 8s recom"ensas n-o se ariam es"erar. 8 Jur5uia setornaria o "a#s'n

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    indon3sios, )rabes e sul'asi)ticos ossem muito maiores do 5ue as semel(anas5ue eles com"artil(am com membros n-o muulmanos da mesmanacionalidadeF %W&.

    m abono sua teoria, ressuscita catacumbas amosas como Oswald S"lengler, 8rnold Jonbee, ;(risto"(er >awson e outros. Prossegue subestimando

    radicalmente o E"ersistente legado do "r4"rio monote#smoF, das EreligiesabraCmicasX, 5ue, como sabemos e dward . Said nos relembra, comea como uda#smo, continua com o ;ristianismo e se desdobra com o *slamismo %Y&.;onirma soisticadamente todos os estere4ti"os 5ue durante s3culos, o (omembranco criou sobre o Oriente. ec(a os ol(os "ara o grau em 5ue todas asculturas s-o (#bridas e se misturaram, de orma 5ue 3 im"oss#vel e7tir"ar umade dentro da outra.

    ;omo toda ideologia, descreve algo de real e l(e deorma o sentido. ;omo todaideologia, "retende ser uma "revis-o auto'realiz)vel. 9enos do 5ue umaconstru-o cient#ica, 3 uma arma de combate/ ornece um discursoa"arentemente racional "ara a nova elite dominante, obriga os recalcitrantes ordem unida e luta, enim, "ara convert!'lo em (egemInico.

    H-o () d