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    O novo imperialismo: ajustes

    espao-temporais e acumulao por

    desapossamentoDavid Harvey

    Resumo:Processos predatrios de desapossamento, com diversos recursos violncia, o que passa pela interveno estatal, longe de se restringirem aum momento encerrado na pr-histria do capitalismo, constituem, aolado da reproduo ampliada, um dos eixos fundamentais da expansodeste modo de produo e seu exame imprescindvel para acompreenso do novo imperialismo.

    A longa sobrevivncia do capitalismo, apesar de mltiplas crises ereorganizaes acompanhadas por terrveis prognsticos, tanto da esquerda

    quanto da direita, sobre sua iminente extino, um mistrio que requeresclarecimento. Lefebvre acreditava ter encontrado a chave em sua famosatese de que o capitalismo sobrevive atravs da produo do espao, mas noexplicou exatamente como isto ocorria. Tanto Lnin quanto Luxemburgo,por diferentes razes e argumentos, consideravam que o imperialismo umadeterminada forma de produo de espao era a resposta para o enigma,ainda que ambos argumentassem que esta soluo fosse limitada devido ssuas prprias contradies.

    Nos anos 70 tentei abordar este problema luz da anlise dosajustes espaciais e seu papel no interior das contradies da acumulao decapital1. Argumentava que um minucioso exame das formas em que o capitalproduz espao ajudaria a construir uma teoria do desenvolvimento desigual eintegrar melhor os fenmenos geogrficos de expanso e desenvolvimentonas vrias reformulaes e revises da teoria da acumulao de capital deMarx que ento apareciam, e, conseqentemente, integrar tais teorias comaquelas do imperialismo e dependncia, as quais tambm eram objetos desrios debates naquele momento. Agora, com o reexame do discurso, tanto esquerda quanto direita, no que se refere ao chamado novo

    Artigo publicado originalmente em Socialist Register, julho/03. Traduo de MariaIzabel Lagoa, pesquisadora do NEILS. Reviso tcnica de Lcio F. R. Almeida. Nestenmero, publicamos a primeira parte do presente artigo. A segunda sair no nmero15. Gegrafo, autor de A condio ps-moderna, The Limits to Capital, Espaos de

    esperana e O novo imperialismo.1A maioria destes trabalhos dos anos 70 e 80 foi reeditada em Harvey (1999e 2001).

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    imperialismo2, parece til reexaminar essas idias gerais luz dosacontecimentos atuais.

    A tese do ajuste espacial somente tem sentido se relacionada com atendncia expansiva do capitalismo, entendida teoricamente mediante ateoria marxista da queda da taxa de lucros que produz crises desuperacumulao (Harvey, 1999). Tais crises manifestam-se em excedentessimultneos de capital e de fora de trabalho sem que aparentemente exista

    nenhuma forma de coorden-los para realizar alguma tarefa socialmenteprodutiva. Portanto, se a desvalorizao (e mesmo a destruio) de capital ede fora de trabalho no se seguirem, ento devem ser encontradas formaspara absorver o excedente. Expanso geogrfica e reorganizao espacial soa sada possvel. Mas isto tampouco pode se dissociar dos ajustes temporais,uma vez que expanso geogrfica freqentemente acarreta investimentos eminfraestruturas fsicas e sociais de longo prazo (redes de transporte e decomunicaes, educao e pesquisa, por exemplo) que demorariam muitosanos para realizar seu valor atravs da atividade produtiva que apoiavam.

    Proponho, ento, aceitar o argumento de Brenner (2002) de que ocapitalismo global tem sofrido um crnico problema de superacumulaodesde os anos 70. Interpreto a volatilidade do capitalismo internacional

    durante esses anos como uma srie de ajustes espao-temporais quefracassaram, mesmo a mdio prazo, ao tratar de problemas desuperacumulao. Foi, entretanto, atravs da orquestrao de tal volatilidadeque os Estados Unidos pretendiam preservar sua posio hegemnica dentrodo capitalismo mundial (Gowan, 1999). A recente guinada rumo a umimperialismo aberto respaldado pela fora militar por parte dos EstadosUnidos, pode ser visto como um sinal de fraqueza na dita hegemonia frentes srias ameaas de recesso e ampla desvalorizao em sua prpria casa,como oposio aos diversos ataques de desvalorizao anteriormenteinfligidos em outras zonas (Amrica Latina nos anos 80 e no incio dos anos90 e, ainda mais seriamente, a crise que consumiu o Leste e o SudesteAsiticos em 1997 e se arrastou at a Rssia e boa parte da Amrica do Sul).Mas eu tambm gostaria de argumentar que a incapacidade de acumular por

    meio da reproduo ampliada tem sido compensada por um aumento dastentativas de acumulao mediante desapossamento. Estas so em definitivo,as caractersticas principais das novas formas do imperialismo. Uma vez queo debate sobre este tema excede este artigo, continuo a exposio de maneiraesquemtica e simplificada, deixando a anlise mais detalhada para umapublicao posterior (Harvey, 2004).

    O ajuste espao-temporal e suas contradies

    2O tema do novo imperialismo foi tratado pela esquerda por Panitch, (2000), 5-20; ver tambm Gowan, Panitch e Shaw(2001). Outras observaes importantes so

    feitas porPetras e Veltmeyer (2001), Went (2002

    -03); Amin

    (2001);

    Ignatieff (2003) eCooper( 2002).

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    A idia principal sobre o ajuste espao-temporal bastante simples.Superacumulao em um dado territrio implica em um excedente de mo-de-obra (aumento do desemprego) e excedente de capital (que se manifestanum mercado abarrotado de bens de consumo que no podem ser vendidossem perdas, como uma alta improdutividade e/ou como excedente de capitallquido carente de possibilidades de investimento produtivo). Tais excedentespodem ser absorvidos por: a) uma reorientao temporal por meio de

    investimentos de capital em longo prazo ou gastos sociais (como educao epesquisa) que adiam a reentrada na circulao do excesso de capital at umfuturo distante; b) reorientaes espaciais por meio da abertura de novosmercados, novas capacidades produtivas e novas possibilidades de recursos emo-de-obra em outro lugar; c) alguma combinao de a e b.

    A combinao de a e b particularmente importante quandofocamos o capital fixo de natureza independente imobilizado em umambiente construdo. Isto providencia as infraestruturas fsicas necessriaspara que a produo e o consumo se mantenham no espao e no tempo (tudodesde parques industriais, portos e aeroportos, sistemas de transporte ecomunicao, gua e esgoto, moradia, hospitais e escolas). Em suma, no setrata de um setor econmico menor, mas capaz de absorver massivas

    quantidades de capital e de mo-de-obra, particularmente sob condies derpida expanso e intensificao geogrfica.A realocao do excedente de mo-de-obra e capital por tais

    investimentos requer a mediao das instituies financeiras e/ou estatais,que tm capacidade de gerar e oferecer crdito. A quantidade de valoresfictcios criados equivale superacumulao de capital na produo decamisas e sapatos. Tal capital fictcio pode ser realocado fora do circuito deconsumo em projetos futuramente orientados, como construo de estradasou na educao, revigorando assim a economia (incluindo, talvez, o aumentoda demanda por camisas e sapatos por parte dos professores e trabalhadoresda construo)3. Se os gastos em construes ou melhoras sociais serevelarem produtivos (facilitando no futuro formas mais eficientes deacumulao de capital), ento os valores fictcios so reduzidos (seja

    diretamente por amortizao da dvida ou indiretamente por maiores retornosatravs de impostos que permitem pagar a dvida pblica). De outra forma, asuperacumulao na construo ou educao pode tornar-se evidente com adesvalorizao destes bens (moradia, escritrios, parques industriais,aeroportos, etc.) ou em dificuldades para pagar a dvida estatal originada comas infraestruturas fsica e social (crise fiscal do Estado).

    O papel de tais investimentos na estabilizao e desestabilizao docapitalismo tem sido significante. Por exemplo, a origem da crise de 1973 foium colapso mundial dos mercados imobilirios (comeando com o HerstattBank na Alemanha, que arrastou o Franklin National nos Estados Unidos),

    3Os conceitos marxianos de capital fixo independente e capital fictcio so elaborados em Harvey (1999), captulos 8 e10

    ,respectivamente

    ,e sua importncia poltica considerada em Harvey

    (2001),captulo 15, The geopolitics of

    capitalism.

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    seguido imediatamente pela falncia virtual da cidade de Nova Iorque em1975. Por sua vez, a longa dcada de estagnao no Japo, em 1990, iniciou-se com o estouro da bolha especulativa existente em ativos aplicados nomercado imobilirio e em outros bens, que ps em risco todo o sistemabancrio; o colapso asitico em 1997 comeou com o rompimento das bolhasna Tailndia e Indonsia; e o vigor especulativo nos mercados imobiliriosaps o incio de uma recesso geral em todos os outros setores desde meados

    de 2001, foi o mais importante impulso para as economias estadunidense einglesa. Desde 1998, a China tem mantido sua economia em crescimento etem buscado absorver seu grande excedente de trabalho (controlando aameaa de descontentamento social) mediante financiamentos comendividamento de investimentos em mega-projetos que deixam pequena aimensa represa das Trs Gargantas (8500 milhas de ferrovias, rodovias eprojetos de urbanizao, trabalhos de engenharia massivos para desviar guado rio Yangtze para o Amarelo, novos aeroportos, etc.). Surpreende-me que amaioria das anlises sobre a acumulao de capital (incluindo a de Brenner)ignore completamente estes temas ou os tratem como epifenmenos.

    O termo ajuste tem, entretanto, um duplo sentido. Uma certaquantidade do capital total torna-se literalmente fixada em alguma forma

    fsica por um perodo de tempo relativamente longo (dependendo de seutempo de vida fsico e econmico). Existe um sentido no qual gastos sociaistambm se tornam territorializados e permanecem geograficamente imveisatravs de compromissos estatais (de qualquer forma, no irei considerarexplicitamente as infraestruturas sociais uma vez que o tema complexo erequer um espao maior para discuti-lo). Parte do capital fixo geograficamente mvel (como a maquinaria que pode facilmente serdeslocada de um lugar para o outro), mas o resto esta to fixado ao solo queno se pode mov-lo sem destru-lo. Os avies so mveis, entretanto osaeroportos aos quais eles voam no.

    O ajuste espao-temporal, por outro lado, uma metfora parasolues das crises capitalistas mediante adiamento temporal e expansogeogrfica. A produo do espao, a organizao de novas divises

    territoriais de trabalho, a abertura de novos e mais baratos complexos derecursos, de novos espaos dinmicos de acumulao de capital, e apenetrao em formaes sociais pr-existentes pelas relaes sociaiscapitalistas e acordos institucionais (tais como regras contratuais e acordosde propriedade privada) so formas de absorver excedentes de capital e mo-de-obra. Tais expanses geogrficas, reorganizaes e reconstruesfreqentemente ameaam os valores fixos, mas ainda no realizados. Vastasquantidades de capital fixo em um lugar atuam como um obstculo na buscapor ajuste espacial em outro lugar. Os valores dos ativos que constituem acidade de Nova Iorque no eram e no so triviais e a ameaa de suadesvalorizao massiva em 1975 (e agora de novo em 2003) foi (e ) vistapor muitos como a maior ameaa ao futuro do capitalismo. Se o capital sai

    dali, deixa um rastro de devastao (a desindustrializao experimentada no

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    corao do capitalismo, como Pittsburgh e Sheffield, assim como em muitasoutras partes do mundo, como Bombaim, nos anos 70 e 80, um exemplodisso). Por outro lado, se o capital sobreacumulado no se move ou no podese mover, ser diretamente desvalorizado. Resumo do processo: o capitalnecessariamente cria, em um primeiro momento, um ambiente fsico suaprpria imagem unicamente para destru-lo depois, quando busca expansesgeogrficas e deslocamentos temporais como solues para as crises de

    superacumulao que o afetam ciclicamente. Esta a histria da destruiocriativa (com todas as suas conseqncias sociais e ambientais negativas)escrita na evoluo da paisagem fsica e social do capitalismo.

    Outra srie de contradies geralmente surge dentro da dinmica dastransformaes espao-temporais. Se o excesso de capital e de fora detrabalho existe em dado territrio (como uma nao ou Estado) e no podeser absorvida internamente (tanto por ajustes geogrficos ou gastos sociais)ento devem ser enviados a outro lugar a fim de encontrar um novo terrenopara sua realizao rentvel para no serem desvalorizados. Isto pode ocorrerde diversas formas. Mercados para excedentes de produtos podem serencontrados, mas os espaos aos quais se enviam os excedentes devempossuir reservas de meio de pagamentos como o ouro ou dinheiro (dlar) ou

    bens intercambiveis. O problema de superacumulao aliviado apenas porpouco tempo (pois se troca meramente o excedente de bens por dinheiro ououtros bens, ainda que no caso de a troca se realizar em matrias-primas ououtros insumos mais baratos seja possvel aliviar temporariamente a pressoda baixa taxa de lucro no lugar). Se o territrio no possuir reservas ou benspara trocar, ele ou deve ach-las (os ingleses obrigaram a ndia a abrir ocomrcio de pio com a China no sculo XIX e extraindo ouro chins atravsdo comrcio indiano) ou deve receber crdito ou assistncia. Neste caso umterritrio recebe o emprstimo ou a doao do dinheiro com que compra oexcedente de mercadorias geradas no territrio em questo. A Inglaterra fezisto com a Argentina no sculo XIX e o excedente do comrcio japonsdurante os anos 90 foi largamente absorvido por emprstimos aos EstadosUnidos destinados a sustentar o consumo dos produtos japoneses. Simples

    transaes comerciais e de crditos deste tipo podem aliviar problemas desuperacumulao ao menos em curto prazo. Elas funcionam muito bem sobcondies de desenvolvimento geogrfico desigual em que os excedentesdisponveis de um territrio so compensados pela carncia dos mesmos emoutro local. Mas, simultaneamente, o recurso ao sistema de crditos volta aosterritrios vulnerveis aos fluxos de capital especulativo e fictcio, quepodem tanto estimular como minar o desenvolvimento capitalista e mesmo,como ocorreu recentemente, ser usado para impor selvagens desvalorizaesnesses territrios vulnerveis.

    A exportao de capital, particularmente quando acompanhada pelaexportao de fora de trabalho, opera de maneira bastante distinta efreqentemente surte efeitos em prazos mais longos. Neste caso, excessos de

    capital (geralmente capital-dinheiro) e trabalho so enviados a outros lugares

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    para pr em movimento a acumulao de capital no novo espao. Excedentesgerados na Inglaterra no sculo XIX e enviados para os Estados Unidos, paraas colnias no sul da frica, Austrlia e Canad, criaram novos e dinmicoscentros de acumulao nestes territrios, gerando uma demanda de bens daInglaterra. Uma vez que podem transcorrer muitos anos para que ocapitalismo amadurea nestes novos territrios (isso se algum dia o fizer) ato ponto onde eles, tambm, comecem a produzir superacumulao de capital,

    o pas de origem pode esperar beneficiar-se por um perodo considervel detempo. Este particularmente o caso quando os bens demandados em outraparte so de tipo imobilirio. Investimentos de portflio podem manter aconstruo do capital fixo (ferrovias e represas) requeridas como base parauma slida acumulao no futuro. Mas a taxa de retorno destes investimentosa longo prazo no ambiente construdo depende da evoluo de uma fortedinmica de acumulao no pas receptor. A Gr-Bretanha foi assimfinanciadora da Argentina na ltima parte do sculo XIX. Os EstadosUnidos, por meio do Plano Marshall para a Europa (Alemanha em particular)e Japo, viu claramente que sua prpria segurana econmica (deixando delado o aspecto militar derivado da Guerra Fria) dependia da revitalizao daatividade capitalista em tais lugares.

    As contradies surgem porque os novos espaos dinmicos deacumulao de capital geram excedentes que devem ser absorvidos atravsda expanso geogrfica. Japo e Alemanha tornaram-se competidores docapital estadunidense desde o final dos anos 60 em diante de modo parecidoao como os Estados Unidos superaram o capital ingls (e colaboraram paraderrubada do imprio britnico) no transcurso do sculo XX. sempreinteressante delimitar o momento em que o slido desenvolvimento internotransborda em uma busca por ajustes espao-temporais. O Japo fez issodurante os anos 60, primeiro atravs do comrcio e em seguida por meio daexportao de capital como investimentos diretos, primeiro para a Europa eos Estados Unidos e mais recentemente na forma de investimentos massivos(diretos e de portflio) para o Leste e Sudeste da sia e, por ltimo, medianteemprstimos (particularmente para os Estados Unidos). A Coria do Sul de

    repente se voltou para o exterior nos anos 80, seguida por Taiwan nos anos90. O dois pases exportaram no apenas capital financeiro, mas algumas dasmais impiedosas prticas de gerenciamento do trabalho imaginveis, como aterceirizao feita pelo capital multinacional ao redor do mundo (na AmricaCentral, na frica, assim como no resto do Sul e Leste da sia). Mesmorecentemente, pases que tiveram sucesso ao aderirem ao desenvolvimentocapitalista, rapidamente se encontraram frente necessidade de ajustesespao-temporais devido a sua superacumulao de capital. A rapidez com aqual certos territrios, como Coria do Sul, Singapura, Taiwan e agora atmesmo a China deixaram de ser receptores lquidos para serem territriosexportadores tem sido surpreendente, comparada ao ritmo lento de perodosanteriores. Mas, pela mesma razo, tais territrios devem adaptar-se

    rapidamente presso interna de seus prprios ajustes espao-temporais. A

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    China, absorvendo excedentes na forma de investimentos diretos estrangeirosdo Japo, Coria e Taiwan, est rapidamente suplantando estes pases emmuitos setores de produo e exportao (particularmente aqueles de baixovalor agregado e de trabalho intensivo, mas tambm est se movendo emdireo aos bens de consumo de alto valor agregado). A generalizadasobrecapacidade que Brenner identifica pode desta forma decompor-se eproliferar-se em uma cascata de ajustes espao-temporais, primeiro no Sul e

    Leste da sia, mas com elementos adicionais na Amrica Latina (Brasil,Mxico e Chile em particular) e somados agora com a Europa Oriental. E emuma estranha reviravolta, explicvel em grande parte pelo papel do dlarcomo moeda de reserva global que confere o poder de senhoriagem, osEstados Unidos, com o imenso endividamento nos ltimos anos, tmabsorvido capitais excedentes principalmente do Leste e Sudeste da sia.

    De qualquer maneira, o resultado final um aumento na ferocidadeda concorrncia internacional na medida em que mltiplos e dinmicoscentros de acumulao de capital emergem para competir no cenrio mundialem meio a importantes correntes de superacumulao. Como nem todospodem ter sucesso em longo prazo, ou os mais fracos sucumbem e caem emsrias crises de desvalorizao ou confrontos geopolticos emergem na forma

    de guerras comerciais, guerras monetrias e at mesmo confrontos militares(do tipo que nos deram duas guerras entre potncias capitalistas no sculoXX). Neste caso o que se exporta desvalorizao e destruio (do tipo queas instituies financeiras estadunidenses induziram o Leste e o Sudeste dasia em 1997-8) e os ajustes espao-temporais assumem formas maissinistras. Existem, entretanto, outros pontos que precisam ser assinaladospara melhor compreender este processo.

    Contradies internas

    Em sua Filosofia do Direito, Hegel (1967) aponta como a dialticainterna da sociedade burguesa, que produz uma superacumulao de riquezapor um lado e uma multido de pobres por outro, leva busca por soluesatravs do comrcio externo e das prticas coloniais e imperiais. Hegel

    rejeita a idia de que possam existir formas de solucionar os problemas dedesigualdade sociais e instabilidade atravs de mecanismos internos deredistribuio. Lnin (s.d.) cita Cecil Rhodes ao dizer que o colonialismo e oimperialismo eram a nica maneira possvel de evitar a guerra civil. Relaese lutas de classes em uma formao social ligada a um territrio causamimpulsos de buscar ajustes espao-temporais em algum outro lugar.

    Um exemplo ilustrativo do final do sculo XIX o de JosephChamberlain. Conhecido como Joe, o radical, se identificava estreitamentecom os interesses liberais manufatureiros de Birmingham e inicialmente,durante as guerras afegs da dcada de 1850, se opunha ao imperialismo.Dedicou-se reforma educativa e melhoria das infraestruturas fsicas esociais da produo e do consumo em sua cidade natal. Pensava que isto

    ofereceria uma sada produtiva para os excedentes, que devolveriam seu

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    valor a longo prazo. Figura importante dentro do movimento liberalconservador, foi testemunha de primeira mo do ressurgimento da luta declasses na Gr-Bretanha e em 1885 realizou um celebrado discurso no qualconvocava as classes proprietrias a assumir suas responsabilidades sociais(melhorar as condies de vida dos menos favorecidos e investir eminfraestruturas sociais e fsicas em nome do interesse nacional) em lugar depreocupar-se apenas com seus direitos individuais como proprietrios. O

    escndalo que isto originou entre as referidas classes forou-o a se retratar e,deste momento em diante, tornou-se o mais ardente defensor doimperialismo (como secretrio colonial, levou a Gr-Bretanha ao desastre daguerra dos Boers). Esta trajetria profissional foi bastante comum noperodo. Jules Ferry na Frana, um ardente defensor das reformas internas(especialmente da educao) nos anos 60, assumiu a defesa do colonialismologo aps a Comuna de 1871, levando a Frana ao atoleiro do SudesteAsitico, que culminou com a derrota de Dien Bien-Phu, em 1954; FrancescoCrispi procurou resolver o problema agrrio no sul da Itlia por meio daexpanso imperialista na frica; e at Theodore Roosevelt, nos EstadosUnidos, preferiu apoiar as prticas coloniais ao invs das reformas internas,depois que Frederic Jackson declarou (erroneamente, ao menos no que se

    refere s oportunidades de investimentos) que a fronteira americana estavafechada4.Em todos esses casos, a mudana para uma forma liberal de

    imperialismo (associada a uma ideologia de progresso e a uma missocivilizatria) no foi resultado de imperativos econmicos absolutos, mas dafalta de vontade poltica, por parte da burguesia, para renunciar adeterminados privilgios de classe, bloqueando assim qualquer possibilidadede absorver a superacumulao atravs de reformas sociais internas. A ferozoposio a qualquer poltica redistributiva ou de melhoria social, que existenos Estados Unidos, no deixa outra opo do que procurar no exteriorsolues para suas dificuldades econmicas. Polticas internas de classe destetipo foraram muitas potncias europias a buscar no exterior solues paraseus problemas desde 1884 at 1945, e isto deu uma tonalidade especial s

    formas que o imperialismo europeu adotou. Muitas figuras liberais e mesmoradicais tornaram-se orgulhosos imperialistas durante estes anos e grandeparte do movimento operrio foi persuadido a apoiar o projeto imperialistacomo um fator essencial ao seu prprio bem-estar. Isto requeria que osinteresses burgueses se colocassem frente do Estado, do aparato ideolgicoe do poder militar. Dessa forma, em minha opinio, Arendt (1968: 18)interpreta corretamente este imperialismo eurocntrico como a primeiraetapa do domnio poltico da burguesia e no a ltima fase do capitalismo

    4Toda esta histria de mudanas radicais das solues internas at as externas para os problemas scio-polticos derivados dadinmica da luta de classe est explicado em uma pouco conhecida, mas fascinante coleo de Julien, C-A., Bruhat, J., Bourgin,

    C. Crouzet, M. and Renouvin P. Les politiques dexpansion imperialiste, Paris,

    PUF,1949, na qual so examinados e

    comparados detalhadamente Ferry, Chamberlain, Roosevelt, Crispi e outros.

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    como foi descrito por Lnin5. Examinarei mais detalhadamente esta idia naconcluso.

    Medidas institucionais de mediao para a projeo de poder sobre o

    espao

    Em um artigo recente, Henderson (1999: 327-368) reconhece aimportncia dos ajustes espao-temporais como uma soluo para a

    superacumulao, mas observa que a diferena, em 1997-98, entre Taiwan eCingapura (que escaparam relativamente ilesos da crise, com exceo deuma desvalorizao da moeda) e Tailndia e Indonsia (que sofreram umcolapso econmico e poltico quase total) se explica pelas diferenas naspolticas estatais e financeiras. Os primeiros territrios se mantiveramisolados dos fluxos especulativos em seus mercados imobilirios efinanceiros mediante fortes controles estatais, enquanto os ltimos no ofizeram. Diferenas deste tipo so muito importantes. As formas assumidaspelas instituies mediadoras so produto da dinmica da acumulao decapital.

    Claramente, o conjunto de turbulncias nas relaes entre Estado,supraestado e poderes financeiros, por um lado e, por outro, a dinmica geral

    de acumulao de capital (atravs da produo e das desvalorizaesseletivas) tem sido um dos mais caractersticos e mais complexos elementosna dinmica do desenvolvimento geogrfico desigual e na polticaimperialista do perodo iniciado em 19736. Acredito que Gowan esta corretoao analisar a reestruturao radical do capitalismo internacional ps-1973como uma srie de apostas desesperadas por parte dos Estados Unidos paratentar manter sua posio hegemnica no cenrio internacional frente Europa, Japo e mais tarde ao Leste e Sudeste Asitico. Isto comeoudurante a crise de 1973 com a dupla estratgia de Nixon baseada na elevaodo preo do petrleo e na desregulamentao financeira. Os bancosestadunidenses receberam o direito exclusivo de reciclar a grande quantidadede petrodlares que era acumulada na regio do Golfo. Isto contribuiu paravoltar a centralizar nos Estados Unidos a atividade financeira e em

    5Existem muitos paralelismos entre a anlise de Arendtno sculo XIX e a nossa situao atual. Consideremos por exemplo oseguinte trecho: A expanso imperialista tem sido impulsionada por uma curiosa forma de crise econmica, a sobreproduo de

    capital e a criao de dinheiro suprfluo, produto do sobrepoupana que no pode mais encontrar investimentos produtivos

    dentro das fronteiras nacionais. Pela primeira vez, investimentos de poder no abriam caminho para o investimento de dinheiro,

    mas a exportao de poder se limitava a seguir, timidamente, a exportao de dinheiro, visto que os investimentos

    incontrolveis em pases distantes ameaavam transformar longos estratos sociais em apostadores, para mudar toda a

    economia capitalista de sistema de produo para sistema de especulao financeira e realocar os benefcios da produo pelos

    benefcios das comisses. A dcada imediatamente anterior a era imperialista, a de setenta do sculo XIXtestemunhou um aumento sem precedentes nas fraudes, nos escndalos financeirose especulaes nas bolsas de valores (p. 15).6 Brenner (2002) apresenta o relato mais geral e sinttico desta turbulncia. Detalhessobre o desmoronamento do Leste Asitico podem ser encontrados em Wade &Veneroso (1999: 3-23); Henderson, op. cit; Johnson, C. Blowback (2000), captulo 9,o artigo especial da Historical Materialism, n 2 (2001) Focus on East Asia after the

    crisis, (particularmente Burkett & Hart-Landsberg, Crisis and recovery in East Asia:the limits of capitalist development, pp. 3-48).

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    contrapartida resgatou Nova Iorque de sua prpria crise econmica. Criouum poderoso regime financeiro Wall Street/Federal Reserve7, com poderesde controle sobre as instituies financeiras globais (tais como o FMI) ecapaz de fazer ou quebrar muitas economias mais fracas atravs damanipulao do crdito e das prticas de administrao da dvida. De acordocom Gowan, este regime monetrio e financeiro foi utilizado por sucessivasadministraes estadunidenses como um formidvel instrumento de

    polticas de estado e controle econmico para impulsionar tanto o processode globalizao quanto as transformaes nacionais neoliberais. O regimese desenvolveu atravs das crises. O FMI cobre os riscos e assegura que osbancos estadunidenses no percam (os pases pagam atravs de ajustesestruturais, etc.) e a fuga de capitais provenientes de crises localizadas noresto do mundo acaba reforando o poder de Wall Street ... (Gowan, 2001,23 e 35). O efeito disto foi a projeo do poder econmico estadunidensepara o exterior (em aliana com outros quando possvel), para forar aabertura de mercados, particularmente aos fluxos financeiro e de capital(atualmente um requisito para integrar o FMI), e impor outras polticasneoliberais (culminando com a OMC) sobre boa parte do resto do mundo.

    Existem dois aspectos importantes a serem destacados sobre este

    sistema. Primeiro, o livre comrcio de mercadorias freqentemente descritocomo uma abertura do mundo a uma concorrncia livre e aberta. Mas, comoLnin observou h muito tempo, este argumento falha frente ao poder demonoplio ou oligoplio (tanto na produo quanto no consumo). OsEstados Unidos, por exemplo, tm repetidamente utilizado a arma de negar oacesso ao enorme mercado estadunidense para forar outras naes a aceitarseus desejos. O mais recente (e crasso) exemplo disto nos oferecido porRobert Zoellick, representante de comrcio dos Estados Unidos, ao anunciarque se Lula, o recente presidente eleito no Brasil pelo Partido dosTrabalhadores, no se alinhasse com os planos de livre mercado para aAmrica, seria forado a exportar para a Antrtida. Taiwan e Cingapuraforam foradas a aderir OMC e, conseqentemente, a abrir seu mercadofinanceiro ao capital especulativo, frente s ameaas americanas de negar o

    acesso ao seu mercado. Diante da insistncia do Federal Reserve, a Coria doSul foi forada a fazer o mesmo como condio para que o FMI a financiasseem 1998. Os Estados Unidos planejam agora agregar uma clusula de livreacesso aos mercados, segundo o modelo estadunidense, nas ajudas de riscoque oferecem aos pases pobres. Na esfera produtiva, os oligoplioslocalizados majoritariamente nas regies capitalistas centrais controlamefetivamente a produo de sementes, fertilizantes, eletrnicos, programas decomputador, produtos farmacuticos, produtos do petrleo e muito mais.

    Sob estas condies, a abertura dos mercados no amplia aconcorrncia, mas apenas cria oportunidades para a proliferao de poderesde monoplio com todas suas conseqncias sociais, ecolgicas, econmicas

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    Vrios nomes foram propostos para isto. Gowan opta por chamar de Dollar Wall Street Regime, mas eu prefiro a denominao

    mais complexa Wall-Street-Treasury-IMF sugerida por Wade and Veneroso.

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    e polticas. O fato de que aproximadamente dois teros do comrcio exteriorse concentram atualmente em transaes dentro e entre as principaiscorporaes transnacionais um indicador desta situao. At mesmo algoaparentemente benigno como a Revoluo Verde, como a maioria doscomentadores concorda, acompanhou o incremento da produtividade agrcolacom uma maior concentrao de riqueza neste setor e um maior nvel dedependncia dos monoplios atravs de todo o Sul e Leste da sia. A

    penetrao no mercado da China pelas companhias de tabaco estadunidensecompensa as perdas em seu prprio mercado e isto certamente gerar umacrise da sade pblica nas prximas dcadas. Em todos estes aspectos, osargumentos que apresentam o neoliberalismo como uma concorrncia aoinvs de um controle monoplico revelam-se fraudulentos, camuflados,como de costume, pelo fetichismo da liberdade de mercado. Livre mercadono significa mercado justo.

    Existe tambm, como reconhecem at mesmo defensores domercado livre, uma imensa diferena entre o livre mercado de mercadorias ea liberdade de movimento do capital financeiro (Bahgwati, 1998: 7-12). Istoprope imediatamente o problema de qual forma de liberdade de mercado deque se esta falando. Alguns, como Baghwati, defendem ferozmente o livre

    comrcio de bens, mas resistem idia de que isto necessariamente sejapositivo para os fluxos financeiros. A dificuldade aqui a seguinte. De umlado os fluxos de capital so vitais para os investimentos produtivos e para asrealocaes de capital de uma linha ou lugar de produo a outros. Elestambm jogam um importante papel ao equilibrar as necessidades deconsumo (de moradia, por exemplo) com as atividades produtivas, em ummundo espacialmente desintegrado, com excedentes em um lugar e dficitsem outro. Em todos esses aspectos, o sistema financeiro (com ou semparticipao do Estado) vital para coordenar a dinmica da acumulao decapital em um contexto de desenvolvimento geogrfico desigual. Mas ocapital financeiro tambm engloba uma grande quantidade de atividadesimprodutivas nas quais dinheiro simplesmente utilizado para gerar maisdinheiro atravs da especulao em mercados de futuro, valores monetrios,

    dvidas e outros. Quando grandes quantidades de capital se tornamdisponveis para tais propsitos, ento mercados de capital abertos seconvertem em veculos para atividades especulativas algumas das quais setornam profecias auto-realizveis , como ocorreu, durante os anos 90, com osponto.com e as bolhas dos mercados de aes ou os hedge funds, quecontavam com trilhes de dlares sua disposio, e foraram a bancarrotada Indonsia e at mesmo da Coria do Sul, independentemente da fora desuas economias. Muito do que aconteceu em Wall Street no tem nada a vercom facilitar o investimento em atividades produtivas. puramenteespeculao. Da as descries do capitalismo como cassino, predatrioou mesmo de rapina - com o fracasso da gesto do capital a longo prazo,que precisou de um socorro de US$2.3 bilhes, o que aponta aos Estados

    Unidos que a especulao pode fracassar facilmente. Esta atividade tem,

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    entretanto, profundos impactos sobre toda a dinmica de acumulao decapital. Sobretudo, isto facilitou a que o poder poltico e econmico voltassea se centrar nos Estados Unidos mas tambm em mercados financeiros deoutros pases centrais (Tquio, Londres, Frankfurt).

    Como isto ocorre, depende da forma das alianas intraclassedominante existentes nos paises centrais, da relao de foras entre eles nasnegociaes de acordos internacionais (como a nova arquitetura financeira

    internacional implementada depois de 1997-98 para substituir o chamadoConsenso de Washington de meados dos anos 90) e das estratgias poltico-econmicas postas em marcha pelos agentes dominantes com respeito aocapital excedente. A emergncia do complexo Wall Street-Federal Reserve-FMI dentro dos Estados Unidos, capaz de controlar as instituies globais eprojetar um vasto poder financeiro ao redor do mundo atravs de uma redede outras instituies financeiras e governamentais, tem jogado um papeldeterminante e problemtico na dinmica do capitalismo globalrecentemente. Mas este centro de poder pode apenas operar da forma que fazporque o resto do mundo est interconectado e enquadrado na estrutura dasinstituies financeiras e governamentais (incluindo as supranacionais). Daa importncia da colaborao entre, por exemplo, bancos centrais das naes

    do G-7 e os vrios acordos internacionais (temporrios no caso de estratgiasmonetrias e mais permanentes no caso da OMC) designados para lidar comdificuldades particulares8. E se o poder do mercado no for suficiente paraalcanar objetivos particulares e colocar elementos recalcitrantes ou estadosdelinquentes (rogue States) na linha, ento o inigualvel poder militarestadunidense (direto ou indireto) est preparado para resolver a situao.

    Este complexo de acordos institucionais deveria, no melhor de todosos capitalismos possveis, ser utilizado para sustentar e apoiar a reproduoampliada (crescimento). Mas, assim como a guerra em relao diplomacia,a interveno do capital financeiro respaldada pelo poder de Estado equivale acumulao por outrosmeios. Uma aliana non sancta entre os poderes deEstado e os aspectos predatrios do capital financeiro forma a ponta da lanade um capitalismo de rapina muito mais dedicado apropriao e

    desvalorizao de ativos do que sua construo por meio de investimentosprodutivos. Sob as condies de superacumulao, estes outros meiospodem ser dirigidos para forar desvalorizaes e prticas canibaispreferentemente praticadas em espaos alheios e sobre aqueles que tmmenos capacidade de reao. Mas como devemos interpretar estes outrosmeios de acumulao ou desvalorizao?

    Bibliografia:AMIM, S. (2001). Imperialism and globalization,Monthly Review, vol. 53, n. 2.

    ARENDT, H. (1968). Imperialism. Harcourt Brace: New York.

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    Embora um autor no se refira ao outro, Gowan (1999) e Brenner (2002) tecemconsideraes paralelas a respeito deste assunto.

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