Cross-cap- Sujeito e Cultura

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Correio da APPOA 243 – mar/2015 http://www.appoa.com.br/correio/edicao/243/o_cross_cap_e_a_relacao_entre_sujeito_e_cultura/184 1 Mais ainda sobre a topologia dos discursos Temática O cross-cap e a relação entre sujeito e Cultura André Oliveira Costa 1 1. A Filosofia e o discurso dos dois mundos Em certo sentido, podemos considerar Freud como um herdeiro do Idealismo alemão – escola que começa com Kant e se desenvolve em Fichte, Schelling e Hegel, até chegar em Marx –, na medida em que ele sofre os efeitos dos problemas colocados por esses filósofos. O projeto kantiano de uma crítica da razão começa quando ele se dá conta de que a Filosofia não avançou como as outras ciências: a Física, a Matemática e mesmo a Lógica. Dever-se-ia, então, fazer como Copérnico o fez em sua revolução científica. Assim, na Crítica da Razão Pura (1787), Kant propõe a necessidade de realizar uma revolução copernicana na Filosofia, torcendo a relação entre sujeito e objeto. Ao descobrir que não era o Sol que girava em torno da Terra, Copérnico pode concluir que os objetos que o ser humano conhecia não passavam de percepções construídas a partir de sua posição específica no mundo. Assim, Kant colocou o impossível como condição do acesso e do conhecimento dos objetos do mundo, recolocando o problema: como é possível o conhecimento? Como solução, Kant estabelece, para os indivíduos, dois mundos independentes entre si: o mundo externo e o mundo interno. O primeiro é impossível de conhecer como ele é em si mesmo. É o mundo das coisas-em-si-mesmas, ao qual somente temos acesso através das experiências sensíveis, determinadas nas formas de espaço e tempo. O segundo é o mundo dos fenômenos, da realidade significada pelo pensamento, quando a atividade do entendimento confere sentido ao conteúdo sensível percebido pela intuição. Como conclusão, nosso acesso aos objetos do mundo ficava restrito àquilo que nós mesmos colocamos neles. 1 Psicanalista, membro da APPOA, mestre em Filosofia pela PUCRS, doutor em Educação pela UFRGS, pós-doutorando pelo DIVERSITAS/USP.

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    http://www.appoa.com.br/correio/edicao/243/o_cross_cap_e_a_relacao_entre_sujeito_e_cultura/184 1

    Mais ainda sobre a topologia dos discursos

    Temtica

    O cross-cap e a relao entre sujeito e Cultura Andr Oliveira Costa1

    1. A Filosofia e o discurso dos dois mundos

    Em certo sentido, podemos considerar Freud como um herdeiro do Idealismo

    alemo escola que comea com Kant e se desenvolve em Fichte, Schelling e

    Hegel, at chegar em Marx , na medida em que ele sofre os efeitos dos problemas

    colocados por esses filsofos. O projeto kantiano de uma crtica da razo comea

    quando ele se d conta de que a Filosofia no avanou como as outras cincias: a

    Fsica, a Matemtica e mesmo a Lgica. Dever-se-ia, ento, fazer como Coprnico o

    fez em sua revoluo cientfica. Assim, na Crtica da Razo Pura (1787), Kant

    prope a necessidade de realizar uma revoluo copernicana na Filosofia, torcendo

    a relao entre sujeito e objeto. Ao descobrir que no era o Sol que girava em torno

    da Terra, Coprnico pode concluir que os objetos que o ser humano conhecia no

    passavam de percepes construdas a partir de sua posio especfica no mundo.

    Assim, Kant colocou o impossvel como condio do acesso e do

    conhecimento dos objetos do mundo, recolocando o problema: como possvel o

    conhecimento? Como soluo, Kant estabelece, para os indivduos, dois mundos

    independentes entre si: o mundo externo e o mundo interno. O primeiro impossvel

    de conhecer como ele em si mesmo. o mundo das coisas-em-si-mesmas, ao

    qual somente temos acesso atravs das experincias sensveis, determinadas nas

    formas de espao e tempo. O segundo o mundo dos fenmenos, da realidade

    significada pelo pensamento, quando a atividade do entendimento confere sentido

    ao contedo sensvel percebido pela intuio. Como concluso, nosso acesso aos

    objetos do mundo ficava restrito quilo que ns mesmos colocamos neles.

    1 Psicanalista, membro da APPOA, mestre em Filosofia pela PUCRS, doutor em Educao pela UFRGS, ps-doutorando pelo DIVERSITAS/USP.

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    Considerando-se esse fundamento filosfico estabelecido como horizonte

    para as formulaes da Psicanlise, este texto pretende investigar, atravs da

    demonstrao da topologia do cross-cap, tal como ela apresentada por Lacan em

    seus Seminrios, a construo desses dois mundos que constituem a realidade.

    Nesse sentido, a cultura, em suas manifestaes, se apresenta como um fenmeno

    decorrente do impossvel desse encontro.

    2. O cross-cap e a univocidade dos mundos

    Freud um pensador que segue a linha que vai de Kant a Marx, pois ele

    responde essa aporia epistmica pensando as condies subjetivas que situam o

    sujeito diante desse mundo impossvel de ser representado. Para o psicanalista, a

    perda da realidade, em funo da perda do acesso a ela, leva construo de

    verses de realidade, atravs de formaes do inconsciente, de fantasias e de

    sintomas. So formas de reestabelecer o lao com o Outro. Recorremos, ento,

    topologia de Lacan para mostrar como ele representa esse processo de construo

    da duplicidade dos mundos de acordo com o pensamento freudiano.

    Comeamos retomando a ideia de que, para Freud, a bipartio entre mundo

    externo e mundo interno no est dada desde o incio da formao subjetiva. Tal

    como afirma no texto A negativa (1925), a distino entre a existncia real de um

    objeto dentro ou fora do indivduo um segundo tempo da funo do pensamento. O

    primeiro tempo do pensamento seguindo a lgica do eu enquanto princpio do

    prazer atribui aos objetos a qualidade de ser bom e produzir prazer ou de ser mau

    e produzir desprazer. Tudo o que era visto como bom, era introjetado para dentro de

    si, identificando-o ao eu. Aquilo que era visto como mau era expelido, rejeitado como

    no pertencente ao eu. como se o eu se expressasse pela linguagem pulsional:

    gostaria de comer isso ou gostaria de cuspi-lo para fora.

    A segunda funo do pensamento no se preocupa mais em saber se algo

    bom ou mau, se vai ser posto para fora ou para dentro. O que est em questo

    reconhecer a existncia real ou no dos objetos que produziram satisfao, pois

    preciso que seja possvel reacess-los na realidade sempre quando for necessrio.

    Seguindo a lgica do empirismo, Freud afirma que todas as representaes tm

    origem nas percepes fsicas. Em um tempo inicial, a mera existncia de uma

    representao constitua uma garantia da realidade daquilo que era representado. A

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    anttese entre subjetivo e objetivo no existe desde o incio (Freud, 1925/2003, p.

    2885). Essa oposio surge com a ativao da representao desse objeto, que

    outrora deu satisfao, atravs de uma nova experincia perceptiva. Por exemplo, o

    registro mnmico do seio, enquanto objeto de satisfao oral, ser reativado quando

    a fome reaparecer.

    Mas, continua Freud, a reproduo de uma percepo como representao

    nem sempre fiel; pode ser modificada por omisses ou alterada pela fuso de

    vrios elementos (Freud, 1925/2003, p. 2885). O pensamento, portanto, no

    consegue encontrar a percepo deste primeiro objeto de satisfao, mas apenas

    reencontr-lo como representao. A condio para a diviso entre subjetivo e

    objetivo, portanto, consiste em que objetos, que outrora trouxeram satisfao real,

    tenham sido perdidos (Freud, 1925/2003, p. 2885).

    Segundo Eidelsztein (2006), a topologia do plano projetivo nos permite

    compreender como se d essa operao de extrao do objeto, mostrando tambm

    como o sujeito tem inscrito em si esse objeto que, ao mesmo tempo, lhe prprio e

    alheio. A figura do cross-cap nos ajuda a pensar uma estrutura que fechada em si

    mesmo, uniltera, mas que ao mesmo tempo se caracteriza pela continuidade entre

    interior e exterior. Essa estrutura pode indicar um tempo pr-subjetivo de

    indiferenciao entre o eu e o Outro. Existem algumas formas de construir o cross-

    cap. Na ltima lio do Seminrio A identificao, Lacan nos apresenta a seguinte

    descrio sobre o que vem a ser esse cross-cap?

    uma esfera. J lhes disse, ela necessria, no se pode esquecer do fundo dessa esfera. uma esfera com um furo, que vocs organizam de uma certa maneira, e vocs podem muito bem imaginar que esticando uma de suas bordas que vocs fazem aparecer, mais ou menos, segurando-a, essa alguma coisa que vir tapar o furo, na condio de fazer com que cada um desses pontos se una ao ponto oposto, que cria dificuldades intuitivas naturalmente considerveis, e at que nos obrigaram a toda a construo que detalhei diante de vocs, sob a forma do cross-cap representado no espao (Lacan, 1961-62/2003, p. 427).

    Para construir um cross-cap, podemos partir de uma semiesfera, como uma

    tigela ou um vaso redondo, suturando os pontos opostos que se encontram em sua

    borda. Vejamos o processo. Se juntarmos, primeiro, o ponto A com seu ponto oposto

    A atravs de um estiramento da superfcie dessa semiesfera, vai ser construda

    uma ala, conforme as imagens (Nasio, 2011, p. 44) vo indicando.

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    Em seguida, para cada ponto da borda da semiesfera, fazemos corresponder

    o ponto diametralmente oposto. Nota-se que a continuidade do fechamento pela

    juno do ponto B com seu antpoda B cria um entrecruzamento nessa ala,

    inserindo nela uma toro sobre si mesma, conforme a imagem (Dor, 1992/1995, p.

    180) a seguir.

    Realizando a sequncia da operao de costura dos pontos diametralmente

    opostos at o seu fim, formamos uma estrutura que carrega um ponto de toro que

    no permite o fechamento completo da estrutura, como ocorre em uma esfera. um

    ponto que, ao se sobrepor a si mesmo, recorta-se da mesma forma como acontece

    com o oito interior. Um recorte que permite a continuidade das superfcies, a

    passagem do interior para o exterior. Este ponto de recorte do cross-cap

    corresponde ao ponto infinito da reta projetiva, um ponto impossvel de ser

    representado.

    O resultado dessa operao a figura denominada de cross-cap. Apesar de

    encontrarmos em Lacan a utilizao indistinta dos termos cross-cap e plano

    projetivo, rigorosamente eles no significam a mesma coisa. Um plano projetivo

    um espao topolgico, segundo Granon-Lafont, definido pela edio de um ponto,

    dito por conveno ao infinito, ao plano cartesiano (Granon-Lafont, 1986/1990, p.

    67). O cross-cap um plano projetivo fechado, pois no tem borda. No

    fisicamente realizvel em nosso espao ordinrio, pois suas duas superfcies se

    entrecruzam, colocando em continuidade o dentro e o fora, o avesso e o direito,

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    conforme vemos na seguinte figura (Nasio, 2011, p. 47).

    J no se trata mais de um objeto que podemos construir com papel, tesoura

    e cola. Mesmo sua representao no fiel ao seu conceito, pois, como nos aponta

    Granon-Lafont, sua superfcie contnua e isto d conta do infinito do espao do

    plano projetivo (o termo contnua significa sem margem, ou sem borda) (Granon-

    Lafont, 1986/1990, p. 68).

    O cross-cap uma estrutura uniltera fechada, uma esfera que encerra um

    ponto de corte. A subverso da distino entre direito e esquerdo, dentro e fora,

    ocorre porque um ponto particular na superfcie faz uma sobreposio sobre si

    mesmo. Ele recorta e atravessa a superfcie sem mudana de lado. Fazendo uma

    volta sobre si prpria, ela coloca seu avesso em continuidade com seu direito.

    O ponto central do cross-cap, esse buraco que permite a passagem do

    interior ao exterior, um ponto irredutvel, sem fronteiras. , segundo Lacan, no

    Seminrio A identificao, o ponto de partida, ponto estrutural, em torno do qual

    est sustentada toda a estrutura da superfcie assim definida (Lacan, 1961-62/2003,

    p. 342). Esse ponto um buraco que introduz a noo de objeto a. Ao redor desse

    lugar de passagem se formam os orifcios pulsionais inscritos no corpo, que

    possibilitam a circulao dos objetos entre o sujeito e o Outro.

    Temos, na figura do cross-cap,a representao de trs problemticas do

    campo da Psicanlise. Em um primeiro momento,

    1. a continuidade entre dentro e fora;

    e, aps a realizao de um corte nesta figura,

    1. o surgimento do sujeito do inconsciente

    2. e de seu objeto o objeto pulsional.

    Em relao a esse primeiro momento, no Seminrio A lgica do fantasma

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    (1966-67), Lacan apresenta o cross-cap como uma superfcie primordial que articula

    logicamente as dimenses do desejo e da realidade em uma relao de tessitura

    continua, sem corte.

    No existe mais realidade do desejo que aquela que seja certo dizer o inverso do direito; existe um nico e mesmo estofo que tem um inverso e um direito, este estofo est tecido de tal maneira que se passa sem perceber (pois ele est sem corte) de uma a outra de suas faces (Lacan, 1966-67/2003, p. 6)

    Para esta figura primordial, a realidade psquica, que segue o princpio do

    prazer, idntica realidade exterior. O seio da me, que satisfez a fome de seu

    filho, no lhe percebido primeiramente como um objeto externo. Ele faz parte de

    seu prprio corpo e pode ser acessado conforme sua necessidade. o tempo de

    auto-cruzamento das superfcies, no qual os corpos esto imbricados um no outro,

    em continuidade indiferenciada entre o que externo e interno, entre o que est

    dentro e fora.

    Trata-se de um tempo no qual a representao e seu objeto ainda no

    sofreram ruptura. Tal como afirma Freud, no texto Pulses e destinos da pulso,

    originalmente o eu satisfazia-se com seus prprios investimentos pulsionais, e o

    mundo externo lhe era indiferente. Nesse tempo, subjetivo e objetivo so espaos

    indiferenciados. Lacan continua: se passa de uma face outra sem se dar conta,

    digo bem, que no existe ali mais que uma face. , portanto, uma estrutura

    uniltera que ainda no joga as posies entre cara e coroa, eu e outro.

    Na medida em que os objetos vo sendo representados como objetos de

    satisfao, o eu que segue os critrios do princpio do prazer vai distinguindo o

    que interno e externo. Assim, o mundo externo est dividido numa parte que

    agradvel, que ele incorporou a si mesmo, e num remanescente que lhe estranho.

    Isolou uma parte do seu prprio eu, que projeta no mundo externo e sente como

    hostil (Freud, 1915/2003, p. 2049). A distino entre interno e externo, portanto, no

    est dada como condio de partida para o surgimento do sujeito.

    3. O cross-cap e o corte dos mundos

    O sujeito comea pelo corte (Lacan, 1966-67/2003, p. 7). O corte uma

    operao que desdobra uma estrutura em outra. Na figura do cross-cap ele pode ser

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    realizado de diversas maneiras. O corte que nos interessa aqui o que segue o

    traado do oito interior, pois a toro que mostra o inconsciente como uma

    estrutura de linguagem. Atravs do corte do cross-cap podemos ver a prpria

    estrutura do fantasma, representada pela relao $ a, ou seja, sujeito e objeto

    como efeitos da mesma operao de recorte.

    Se fizermos um corte simples no cross-cap, seguindo o trajeto do oito interior,

    sua estrutura abre uma superfcie, mas no a divide. necessrio que o corte

    percorra duas vezes a volta completa, realizando a ultrapassagem das superfcies

    atravs do ponto infinito. Destaca-se que o corte deve seguir a repetio da cadeia

    discursiva j mostrada na dobra do oito interior, como vemos na seguinte imagem

    (Nasio, 2011, p. 75). Apenas atravs da repetio do significante que temos a

    produo de um sujeito e a queda de seu objeto, dividindo o cross-cap em duas

    partes heterogneas.

    Uma parte que se destaca corresponde fita de Moebius, formada por uma

    superfcie e uma borda. A outra parte um disco que carrega as propriedades

    essenciais do cross-cap. Trata-se de um disco bilateral, que segue os princpios do

    oito interior e que no especularizvel, ou seja, esse objeto no tem imagem

    especular, sua imagem no pode ser sobreposta ao objeto. As superfcies desse

    disco so entrecruzadas por uma linha dupla, cujo ponto central, que caracteriza a

    estrutura do cross-cap, permite a continuidade entre as faces exterior e interior. o

    ponto impossvel de pensar, mas no de escrever, o ponto fora da linha (Granon-

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    Lafont, 1986/1990, p. 79).

    Ao percorrer esse disco torcido, vamos perceber o mesmo efeito de

    continuidade do oito interior. Quando partimos de um ponto na superfcie exterior

    desse disco, depois de uma volta completa, aps passar por esse ponto-furo,

    chegamos no interior do objeto. Se continuarmos na segunda volta completa,

    cruzando novamente o ponto de recorte, retornamos para ponto exterior original da

    partida.

    O corte no cross-cap produz a operao de separao entre duas estruturas.

    De um lado, temos a fita de Moebius, representando o sujeito em sua relao com o

    significante. Por outro, temos o disco torcido, representando os objetos pulsionais:

    voz, olhar, seio e fezes, definidos por Lacan como objeto a. Esse disco que se

    destaca carrega a particularidade do cross-cap, isto , o ponto central que faz a

    continuidade do interior com o exterior. o buraco que corresponde aos orifcios do

    corpo pulsional. Ao mesmo tempo em que so partes interiores do corpo, eles

    possibilitam a passagem dos objetos ao exterior.

    Para Lacan, o cross-cap a operao que constitui o fantasma fundamental,

    separando e unindo sujeito e objeto. Em termos freudianos, o corte inscreve, tal

    como faz a castrao, a impossibilidade de o sujeito ter acesso ao seu objeto sexual.

    O que est em questo, portanto, pensar o sujeito como efeito da extrao do

    objeto.

    Inversamente pode-se dizer que todo o corte do sujeito, aquilo que, no mundo, o constitui como separado, como rejeitado, lhe imposto por uma determinao no mais subjetiva, indo do sujeito para o objeto, mas objetiva, do objeto para o sujeito (...) (Lacan, 1961-62/2003, p. 343).

    Atravs do cross-cap vemos que a posio primordial do sujeito no a de

    anterioridade ao Outro. O sujeito tambm no a condio para o recorte do objeto.

    Ao contrrio, a produo de um sujeito efeito do recorte do objeto, representado

    pelo corte no cross-cap.

    Mas, esse objeto pequeno a, que vemos surgir no ponto de falha do Outro, no ponto de perda do significante, porque essa perda a perda desse prprio objeto (...) esse objeto, como no lhe dar o que chamarei, parodiando de sua propriedade reflexiva se posso dizer visto que ele a funda, que dele que ela parte, e que na medida em que o sujeito , antes e unicamente, essencialmente corte desse objeto (...) (Lacan, 1961-62/2003, p. 429).

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    A partir dessa citao, vale lembrarmos a proposio de Freud sobre os

    tempos da pulso: ativo, passivo e reflexivo. Quando trabalha a pulso escpica, no

    texto Pulses e destinos da pulso, Freud identifica uma fase preliminar de

    passividade do sujeito. Ele no condio para o recorte dos objetos pulsionais,

    mas surge como efeito da produo destes.

    A perda do objeto vai ser recuperada pela criao de substitutivos. O sujeito

    cria uma verso da realidade, que constri o sujeito em seu lao com o Outro. Essa

    falta a causa da produo de um sujeito. Ali onde estava um objeto, um sujeito

    deve advir. Nesse sentido, dissemos que a lgica do sujeito segue a estrutura da fita

    de Moebius, pois ela rompe com a descontinuidade entre direito/avesso, dentro/fora.

    Vale lembrar que os termos interno e externo, dentro e fora so subvertidos

    em seu sentido comum. Isso no significa que a Psicanlise pretende dissolver a

    ideia de fronteiras. A toro de seus sentidos, ao contrrio, recai sobre a forma como

    esses termos se relacionam, no mais em oposio, mas em continuidade.

    REFERNCIAS:

    DOR, Jol. (1992). Introduo leitura de Lacan: estrutura do sujeito. Volume. 2. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1995.

    EIDELSZTEIN, Alfredo. (2006). La topologia en la clnica psicoanaltica. Buenos Aires: Letra Viva.

    FREUD, S. (1915) Los instintos y sus destinos. Em: FREUD, S. Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva, v.2, 2003.

    _______. (1925). La negacin. Em: FREUD, S. Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva, v.3, 2003.

    GRANON-LAFONT, Jeanne. (1986). A topologia de Jacques Lacan. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1990.

    LACAN, J. (1961-62). O Seminrio, livro 9: A Identificao. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003.

    _______. (1966-67). Seminario, libro 14: La lgica del fantasma. Buenos Aires: Escuela Freudiana de Buenos Aires, 2003.

    NASIO, Juan-David. (2011). Introduo topologia de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.