Contos do Cover

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A Cidade do Mistério carrega mais enigmas que seu nome sugere. Uma escola, uma nova ameaça ou experimentos escabrosos. Nenhum segredo está protegido enquanto existir alguém agindo pelas sombras. Contos do Cover pega o universo ficcional dos quadrinhos de José Amorim e expande em 3 contos com pontos de vista que vão além de William Banks.

Transcript of Contos do Cover

André BarbosaLuciano RibeiroTiago da Rocha

Com ilustrações de José Amorim

Cover criado por José Amorim

Ilustrações e Capa Edição

Ilustração Final

Branco Frusc

José Amorim Wendrick Ribeiro

SUMÁRIO

Vigiar e Punir..................................................................................5Mini-Conto do Cover......................................................................13A Cidade Está Podre........................................................................14Autores..........................................................................................18

Vigiar e PunirAndré Barbosa

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Nesse excerto tenho como objetivo retratar as palavras de minha antiga e adorável paciente Samantha como arquivo próprio, em sua última e mais curiosa sessão. Escrevo como espectador que fui de relato tão curioso durante as horas que compartilhamos em meu consultório. Minha paciente entrou pela porta sem bater, carregando uma caixa amassada e molhada da garoa que estava caindo lá fora. Rapidamente lhe ofereci o assento e levei seu casaco até um cabide. Perguntei se tudo estava bem, porém tudo que seus pulmões pareciam ter força para expulsar eram soluços. Enquanto eu desligava o ar condiciona-do, me perguntava o que faria uma paciente procurar um psicólogo tão tarde e em tanto desespero. Nunca havia acontecido comigo. Não existe pronto-atendimento psiquiátrico no meu consultório, mas em nossas consultas prévias Samantha sempre me deixou claro que me considerava um amigo, mesmo não mantendo laços fora do consultório.Sentei-me na poltrona à frente da dela e antes mesmo de que eu conseguisse perguntar o que havia ocorrido, enquanto olhava discretamente para o relógio para marcar a duração da consulta como costumo fazer, Samantha me interrompe. “Não quero que marque minutos hoje Diogo, quero que me ouça de verdade”. Não eram as lágrimas que me impressionavam. Estou acostumado com esse tipo de situação, sempre os lenços estão no braço da poltrona do paciente estrategicamente. O que me impressionou de verdade foi o desespero na voz, a procura verdadeira por ajuda. Não me senti psicólogo, me senti como única salvação, me senti um bombeiro procu-rando por uma criança que gritava entre as brasas. “Preciso te contar algo, é uma história longa”. Eu tinha todo o tempo do mundo.

Vigiar e Punir

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Verão

Samantha deixava o interior de uma pequena igreja católica durante uma missa de domingo. Se dirigiu até o corredor escuro do banheiro onde avistou uma garota, sen-tada no chão, olhos fixos nas páginas de um livro. Parecia ter ido lá com os mesmos mo-tivos de Samantha. Fugir da missa. - Bem-vinda ao clube dos maiores pecadores - a garota de cabelos vermelhos disse, enquanto continuava fixa em seu livro. Samantha ficou em silêncio por timidez, apenas apertou o passo, ignorando a presença da outra jovem, fingindo estar com pressa para entrar no banheiro. Fechou-se no box pensando em apenas permanecer ali sentada sob o vaso até a menina ruiva ir embora. - Eu não consigo ouvir você mijando! - a jovem disse do lado de fora - Somos as maiores pecadores desse lugar, pelo menos o resto das pessoas finge que acredita em algo, qual é? Temos mesmo que fingir algo até dentro da casa do criador? A gente devia era fugir daqui! O tom de deboche diante da ordem. Do padrão. Do uniforme. O tom era incomum à grande maioria dos jovens que frequentavam aquela igreja. Incomum demais para Samantha, que vinha de uma família rígida em seus dogmas e tradições. Sem tempo para filosofia que não fosse cristã, para palavra que não fosse sagrada. O cheiro do ralo começou a incomodá-la, porém quando decidiu abrir a porta, a jovem já não estava mais no corredor. Samantha não se lembrava de ter ouvido os passos dela. Decidiu, portanto, voltar para dentro da igreja, ao lado de seus pais. Quando entrou, enquanto seguia pelas bancadas, atravessando as fileiras de fiéis, procurava ver os cabelos vermelhos da menina. Questionei o motivo, qual a razão de procurá-la? Samantha respondeu-me que se sentiu curiosa, como um pássaro enjaulado que vê outro voando livre do lado de fora. Porém, ela não a encontrou. Enquanto o padre lia passagens bíblicas, seus pais a bronqueavam entre cochichos por ter demorado tanto no banheiro. Samantha não conseguia ouvir. O tom de liberdade daquela jovem havia a conquistado de certa forma. Queria encontrá-la de qualquer forma. Queria apertar sua mão e fundar o clube dos maiores pecadores e fugir para muito longe. Mas não podia. O restante da missa, Samantha passou olhando para baixo, me contou temer pela punição divina ali mesmo. Talvez um raio a acertasse na cabeça. Ou talvez um carro logo na saída do estacionamento, mas o medo não era o bastante para fazer sua mente parar de fantasiar. "Um dia serei igual à moça de cabelos vermelhos". Samantha estudava durante período integral, portanto não tinha tempo para frequentar a igreja, exceto nos domingos. Com relação à escola, seus pais escolheram uma das mais rígidas do país. Durante a época, a escola Trindade era conhecida por seus métodos. Uniformes separados por sexo, sapatos pretos, cabelos cortados e amar-rados, hinos todos os dias. Diziam criar cidadãos lá dentro, cidadãos de verdade. O dis-curso extremista da escola atraía muitos pais, em grande maioria, de famílias religiosas como a de Samantha. Portanto, a escola estabeleceu aulas de religião, que nada mais eram do que leituras em grupo diárias da bíblia cristã.

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Em seu primeiro dia, disse ter sido a primeira aluna do período a chegar na sala, ainda faltava uma hora para as aulas terem início e pouco a pouco, novas pessoas iam chegando. Sentavam-se isoladas no início até serem obrigadas a sentarem mais próxi-mas umas das outras. O assento em frente de Samantha estava vazio. E permaneceu assim durante as duas primeiras e sofridas semanas de aula de Samantha. Os hinos diários já a perturbavam em seus pesadelos, podia ouvi-los toda noite. Na terceira semana chega uma nova aluna, trazida pela inspetora a força, quarenta minutos atrasada para a aula de religião. Suas peças de uniforme estavam completamente amassadas. Os cabelos vermelhos fizeram com que Samantha quase não conseguisse esconder seu sorriso. A inspetora colocou a jovem na carteira que estava vazia na frente de Samantha, foi quando ela ouviu o nome da garota pela primei-ra vez. -Rebecca, espero que nas próximas semanas seu comportamento e frequência nas aulas sejam exemplares, assim como espero dar um jeito nesses cabelos e nessa vestimenta, fui clara? - A inspetora disse enquanto olhava de cima para Rebecca, que já estava sentada. -Amém - ela respondeu. A inspetora deixou a sala, houve um silêncio constrangedor até a professora de religião, Sandra, entrar e iniciar suas falas. -Hoje começaremos a leitura em Levíticos - A frase de Sandra foi como um gatilho para todos os alunos abaixarem-se para abrirem suas malas, pegarem suas bíblias, abrirem sobre a mesa e encontrarem o trecho em um movimento quase ensaiado. Exceto por Rebecca. No momento em que Sandra começaria a leitura, Rebecca levantou a mão, Sandra lhe concedeu a palavra. -Professora, como essa é a primeira aula que compareço desde o início das aulas, gostaria de saber quando estudaremos Satanismo - alguns alunos riram um pouco, outros chocaram-se. -Senhora Rebecca, esta fundação não tolera este tipo de desrespeito - Sandra respondeu, enquanto apontava para o aluno da primeira fileira começar a leitura. -Onde estou desrespeitando a fundação, professora? Como se trata de uma aula de religião, pensei que aprenderíamos sobre religiões, e satanismo é uma delas, aliás, essa que estamos estudando hoje eu já ouvi diversas vezes, posso exigir um exame de proficiência? - mais risos eram causados por Rebecca. -Você não vai atrapalhar a minha aula! - Sandra respondeu em um tom rígido, sua face já estava vermelha. -Não mesmo, estou tentando tirar algum sentido dela - Rebecca retrucou e nesse momento a mesma instrutora chegava novamente. Resmungava baixinho algo que Samantha não compreendeu e levou a jovem para fora a força. Enquanto a puxava, Rebecca olhou diretamente para Samantha, segundos antes de fechar a porta, e disse em alto e bom tom, para todos ouvirem.-Eu lembro de você! E você é como eu! - e a porta fechou-se diante da jovem ruiva. Após alguns segundos de silêncio, dos quais Samantha foi alvo de olhares de toda a sala, Sandra disse. -Espero que nossa colega de classe saiba escolher bem suas companhias, posso

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contar com isso Samantha? - Sandra disse na frente da sala, coma bíblia aberta em suas mãos. Sim - respondeu Samantha. Após alguns dias de advertência, Rebecca voltou numa segunda-feira a frequen-tar as aulas. Quando o sinal tocava todos os alunos saíam para o pátio, sempre obser-vados por instrutores que sequer permitiam certos assuntos, ou qualquer aproximação física entre alunos, por mais inocente que poderia ser. Quando Samantha sentou-se sozinha em um banco, ouviu uma voz que vinha dos arbustos atrás dela. -Ei, eu preciso muito te mostrar uma coisa - a voz era obviamente de Rebecca. -O quê tá fazendo aí? - Samantha se virou para tentar vê-la. -Não faça isso! Vão perceber! Só fica aí olhando para frente e me ouça - Rebecca respondeu com certo desespero. Samantha voltou a olhar para frente, alguns inspetores passavam pelo local. -Porquê você não senta aqui e a gente pode conversar como pessoas normais? - Samantha indagou. -Se eu sentasse do seu lado, imediatamente três inspetores iam colar na gente, e eu não poderia falar o que preciso, quero que me encontre atrás da biblioteca em dez minutos, preciso te mostrar algo - Foi possível ouvir passos na grama. -O que é? - Samantha perguntou em vão, Rebecca já havia sumido dali. Discretamente Samantha andou até a biblioteca, atravessou o gramado ao redor do prédio e chegou nos fundos. Para sua surpresa, havia grafites e sinais de rebeldia por toda a parede, e pelo estado borrado de alguns, pareciam estar tentando remover. Rebecca disse algo marcante para Samantha assim que a avistou. -Gosto de dizer que este é o reto dessa escola - Rebecca riu - todo o ódio guardado tá jogado nessa parede - ela estendeu um giz preto para Samantha -, devemos começar a agir. Samantha pegou o giz com brilho nos olhos e foi até a parede enquanto Rebecca dizia. -Vai ver que nós duas não somos as únicas, nas próximas semanas mais pessoas vão confirmar o modo como vemos isso tudo. Samantha, após desenhar um coração na parede, virou-se para trás e perguntou. -O que pretende fazer? -O mesmo que fazem conosco - respondeu Rebecca - vigiar e punir. Após ouvirem passos no gramado por perto, correram juntas até o outro lado da biblioteca, colaram na parede para se esconder de possíveis instrutores. Quando se inclinaram para olhar perceberam se tratar apenas de um dos alunos, Eric, que estava riscando o muro. -Vê? Precisam apenas de alguém que dê o primeiro passo, e eu serei essa pessoa, mas não posso fazer isso sozinha. Rebecca olhou para Samantha. -Tá dentro? - Perguntou. Samantha assentiu com a cabeça, com um sorriso tímido no rosto.

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Outono

Samantha me leva alguns meses à frente, antes de suas férias de inverno. Era um dia normal na escola se não fosse por um chamado especial de todos alunos até o pátio, vindo da própria direção. Em alguns minutos os alunos se agruparam. Meninas separa-das dos meninos como de praxe, em silêncio. A frente estava a diretora Abigail e seu vice, Garcia, que também lecionava. Entre as duas autoridades estava Eric, olhando para baixo, segurando um spray de tinta preta. -Chamo vocês todos esta tarde pois gostaria que presenciassem uma coisa - a diretora colocava a mão sob um dos ombros de Eric-, esse jovem perdeu-se, mas não por falta de opção ou chance. Garcia tomou a frente. -O aluno foi pego violando o patrimônio de nossa biblioteca, e não é a primeira vez. Eric o interrompeu. -Não importa quantas vezes eu escreva, vocês vão ler o que eu quero dizer - Quando Eric bravejou a frase, recebeu um tapa reto em sua cara, todos esconderam suas expressões, inclusive Samantha. -Eu quero que todos aqui - continuou Abigail - façam uma fila. Tentamos corrigir este aluno por tempos, talvez seja hora de provar do mesmo veneno. Samantha contou-me mais sobre Eric. O rapaz vivia com sua vó, era órfão e seu tio, militar, que não era nem um pouco presente, obrigou-o a entrar na instituição no momento em que Eric começou a se interessar pela arte de rua. Os alunos formaram uma longa fila, Abigail pegou o spray e deu para Eric e disse: -Seu rosto. Eric relutou, porém, ao ver que Garcia tomaria a lata de sua mão e o forçaria, o empurrou e, olhando com fúria para frente, pintou sua testa de preto. -Imagino que queira limpar isso da cara - Abigail chama o primeiro aluno da fila, o encara, e diz-, cuspa na cara dele. O aluno assustado e relutante era George, aluno da sala de Eric. Samantha não viu sua feição, porém os segundos que demorou para acatar a ordem já foram o bastan-te. George cuspiu. -Esfregue Eric, quero ver esta cara limpa - disse Garcia. E Eric esfregou. Samantha relata que a tortura durou um certo tempo. Rebecca estava ausente. Samantha não me disse se cuspiu, mas creio saber a resposta. Os dias que vieram após tal acontecimento foram negros. Mais câmeras na escola, o medo da humilhação pública pairando, a separação e rotulação de alunos, o novo sistema acadêmico onde o dia-a-dia dos alunos era mapeado e registrado após a análise de filmagens e anotações de inspetores. Em alguns dias os fundos da biblioteca estavam limpos. Uma semana depois Rebecca reaparece na sala, segundo Samantha ela vestia o capuz do uniforme de maneira que não era possível ver sua cara corretamente, e assim que chegou, debruçou-se na carteira. Samantha decidiu não puxar conversa já que parecia que Rebecca não estava de bom humor para isso.

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No momento em que a professora entrou na sala, todos olharam para frente enquanto a professora fazia o caminho da porta até sua mesa dizendo: -Bom dia al...Mas o quê é isso? A professora olhava para Rebecca, quando Samantha virou-se, Rebecca estava com seu rosto pintado do mesmo modo que Eric, porém a cor era um tom de lilás, bor-rado com preto. -Resistência - Rebecca respondeu. Samantha relata que, mesmo após terem retirado Rebecca várias vezes da sala por conta disso, ela sempre voltava com seu rosto pintado. Por sorte Abigail e Garcia haviam viajado durante o período. Mais uma semana depois, Samantha encontrava Rebecca enquanto ia para escola, Rebecca estava pintando seu rosto minutos antes de entrar na escola. Em silên-cio Samantha se aproximou e disse: -Vigiar e punir? Rebecca sorriu de volta, e nesse dia, ambas entraram com suas faces pintadas. E nos dias que seguiram o número de alunos pintados aumentava. Samantha me conta então sobre um dia em especial, onde inspetores pergun-taram aos alunos diversas vezes "Se querem aparecer, coloquem orelhas de burro na cabeça", e no dia seguinte, Samantha e Rebecca foram a escola vestindo-as. Foi então que os responsáveis começaram a receber ligações da escola. E em alguns dias Abigail e Garcia estariam na escola novamente. Tempos difíceis viriam, mas Samantha disse que tudo valia a pena nos momentos em que olhava para suas orelhas de burro onde, na testa, estava escrito "Vigiar", com a grafia surpreendentemente delicada de Rebecca.

Inverno

Os pais de Samantha receberam ligações da escola. Samantha permaneceu sob um castigo que a privava de qualquer entretenimento durante o inverno. Seus pais lhe tiraram qualquer conexão com o mundo, exceto ao ir para a escola. Os meses eram conturbados após a volta de Abigail e Garcia. Ao acionarem todos os responsáveis, as caras pintadas diminuíam. Rebecca era constantemente chamada para a sala de Garcia, segundo Samantha. Próximo das férias, o clima na escola estava pesado. Nada de alunos combinando alguma viagem juntos ou qualquer coisa do tipo, era apenas o silêncio, os cochichos, a tristeza e o conformismo. Durante a primeira semana de férias, Samantha estava estudando em seu quarto quando disse ter ouvido algo na janela, ao abrir as cortinas, Rebecca estava pendurada do lado de fora. -O quê você tá fazendo aí? - Samantha disse baixinho. -Eu tentei te ligar mas você está me ignorando - disse Rebecca. -Isso é pela nossa fabulosa ideia, sem computadores ou qualquer contato, meus pais já sabem de você, aliás, se te pegarem aqui eu já era - Samantha olhava constante-mente para a porta de seu quarto. -Tem que vir comigo, precisa vir, é algo importante, Eric tá junto e mais alguns

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alunos, vamos contra-atacar - Ela estendia a mão para Samantha. -Não posso, é muito perigoso - Samantha recusava e começava a fechar sua janela. -Como pode? Vai desistir agora? Eles confiam na gente! Rebecca retrucava e quando Samantha, lacrimejando, tentava fechar a janela, Rebecca a segurou, e beijou seus lábios. Foi o primeiro beijo de Samantha. Embora entender tudo o que sentia por Rebecca naqueles segundos que a sentia como nunca antes, ainda mantinha sua concepção de que invadir a escola era algo errado, aquilo tudo já tinha ido longe demais. Samantha viu Rebecca partir após encará-la por alguns segundos, fazendo alguns cachorros na vizinhança latirem. Seu quarto vazio de vida e a agonia de não saber o que ia acontecer estava consumindo-a. Portanto, após seus pais dormirem, Samantha trocou de roupa, pulou sua janela e correu pelas ruas mal iluminadas que seguiam até a escola. Ao chegar, não viu sinal de Rebecca ou Eric, ou qualquer aluno sequer, mas após algumas voltas ao redor dos muros, Samantha encontrou uma grade que dava acesso ao estacionamento dos professores, onde uma brecha havia sido cortada, e entrou por lá, seguindo para os prédios onde ficavam as salas de aula e de administração. Poucos corredores estavam iluminados, alguns deles ligavam luzes automatica-mente ao detectar movimento. Paredes estavam pichadas, pelo que Samantha se lem-brava. Orelhas de burro pichadas em neon. A tinta fresca brilhava nos corredores escu-ros. As palavras "Vigiar" e "Punir" se repetiam diversas vezes. Os vidros da lente das câmeras quebradas se espalhavam por todos os corredores. Chegando perto do corredor que dava acesso à sala de Abigail e Garcia, Saman-tha disse ter avistado um corpo no chão, deitado sobre tinta, e então ela se aproximou. Assustada levantou a cabeça do corpo, seus pés deixavam pegadas brilhantes pelo caminho. Era Eric, o sangue descia de seu pescoço. Não estava respirando. Assustada Samantha decidiu fugir dali, porém ao correr, ouviu um disparo e algo que pareceu ser a voz de Rebecca. Ao seguir o som do disparo, Samantha viu Garcia, carregando uma arma de fogo, apontando-a para Rebecca. -Vocês são monstros, sem disciplina, acham que podem tentar me humilhar desta forma? Sua putinha! - Garcia mal conseguia pôr as palavras para fora tamanho o ódio que sentia. Ao ver a cena, em uma injeção de adrenalina, Samantha correu e, em uma inves-tida contra o corpo de Garcia, desarmou-o. A arma deslizou até os pés de Rebecca, que pegou a arma rapidamente. A tinta borrada no rosto e os olhos vermelhos, cheios de lágrima e ódio, estavam prontos para disparar. -Não! Rebecca não atire nele! - Samantha gritou, em completo desespero. Rebecca disparou três vezes contra o corpo de Garcia, que, gritando, perdia sangue lentamente pela boca e pelos ferimentos. Os olhos de Rebecca e Samantha arregalaram-se ao ver a morte, ali, diante delas, tão perto. Algumas horas depois, a polícia encontrou Samantha em um dos banheiros, sozinha. Rebecca tentou convencê-la a fugir, desaparecer para sempre, mas era demais

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Algumas horas depois, a polícia encontrou Samantha em um dos banheiros, soz-inha. Rebecca tentou convencê-la a fugir, desaparecer para sempre, mas era demais para Samantha.

Primavera, e hoje.

O resto da história agora eu conheço bem, enquanto as investigações continua-vam, a escola de Abigail foi fechada. Samantha iniciou seu tratamento psiquiátrico com medicação controlada. Passou por um longo período apresentando estranhos compor-tamentos frutos do trauma de sua criação por seus pais, sua escola, e as mortes que viu diante de si Mais alguns meses e a escola finalmente fechou, tornando-se lar de artistas de rua que nomearam as ruínas abandonadas da escola de Parque Eric. Samantha começou a apresentar melhoras no tratamento, chegou a faltar em algumas de suas sessões semanais sem apresentar pioras no quadro. Porém nada me fazia entender seu desespero ao me procurar naquela noite chuvosa, e me contar toda esta história. Foi aí que ela me deu a caixa. Minha curiosidade fervilhava. As mãos de Samantha tremiam nos braços da pol-trona. Removi o papel rasgado da embalagem e uma simples caixa se apresentou para mim. Abri. Dentro, um pequeno papel escrito em letras adoráveis e delicadas "O mundo nos pune, nós o puniremos de volta, por Eric", acompanhadas de um par de orelhas de burro, onde estava escrito "VIGIAR E PUNIR". Estremeci.

contos do cover

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A cidade mantém sua respiração ofegante.A lua já alcança a metade do céu.Ele caminha devagar, cambaleante, as dores em sua cabeça não o deixam reagir de forma alguma, não existem pensamentos, só dores.Entra em um beco escuro, esperando encontrar alguém para vender algo que lhe alivie.Mas, o beco está vazio…Escora na parede forçadamente para não cair…E a dor torna-se mais forte.Suas mãos se contraem, sua pele começa a ficar grossa e escura…Algo em sua mente pede para procurar a razão de tamanha dor…Seus olhos vagueiam a escuridão, sem direção ou sentido, parando no prédio mais alto da cidade.A dor diminui…

Luciano Ribeiro

A cidade está podreTiago da Rocha

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A cidade está podre. Este pensamento que passa pela cabeça de Diógenes ao acabar de escrever sua última matéria sobre a nova onda de assaltos e sequestros na Cidade do Mistério. Um fato vem chamando sua atenção nos últimos tempos, vários relatos de pessoas sendo salvas ou visto um “vulto vermelho”. Como um bom jornalista com vários anos de profissão, alguns prêmios na prateleira e inimigos criados, decidiu buscar mais infor-mações. Podia ser somente uma lenda urbana, mas várias pessoas de diferentes lug-ares da cidade deram a mesma descrição do vulto. Algo nesta história faz Diógenes lem-brar de suas antigas matérias sobre um médico que não agia com muita ética e começou a criar experimentos com seres humanos a uns anos atrás, até ser descoberto e preso. -Acho que isso não vai dar em nada, seu Braga. – Comentou Denis, o novo estagiário do jornal, que Diógenes foi encarregado de tutorear. -Pode ser que sim, guri, mas meu faro está dizendo que tem algo aí e eu sei que o Thanos está desaparecido depois que conseguiu fugir e casualmente este “vulto” apare-ceu pouco depois da fuga. Não é coincidência. Naquela noite Diógenes foi para as ruas falar com seus contatos. Andava por becos sujos e úmidos. Falava com traficantes e prostitutas como se isso fosse seu dia-a-dia. Já estava acostumado com isso. Cresceu na cidade e por causa de seu tra-balho conhecia aquelas pessoas como ninguém. Também se algo acontecesse ele sabia se defender. Estava ficando velho, cabelos brancos começando a aparecer, mas seus anos de treinamento em caratê ainda serviam para alguma coisa. Isso já tinha salvo sua vida algumas vezes, especialmente quando começava a chegar perto de informações que ele

A CIDADE ESTÁ PODRE

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não devia saber. Ninguém estava muito disposto a falar, mas o que ouvirá já era o suficiente. Vários jovens estavam desaparecendo nas ruas nos últimos meses e isso coincidia com a mesma época que Thanos tinha conseguido fugir da prisão, quase todos desapareceram perto das localidades onde ficavam antigos laboratórios clandestinos do doutor. Todos estes lugares foram destruídos pela polícia na época, e estes sumiços acon-tecendo na mesma redondeza levaram Diógenes ao lugar onde o último jovem desapare-ceu, um tal de William Banks. Chegou lá tarde da madrugada, tinha começado a chover e ele se amaldiçoava por ter deixado o guarda-chuva em casa. Estava todo molhado, mas pelo menos tinha vesti-do seu sobretudo. Parou na frente do antigo prédio com fachada clássica. Procurou a porta que parecia arrombada. Com esta chuva o lugar devia estar cheio de drogados e sem-tetos. Pegou sua pequena lanterna no bolso interno do sobretudo e entrou. Estava tudo escuro com um cheiro de umidade e algo podre. Lá fora a chuva con-tinuava firme enquanto ele caminhava pelo grande andar vazio. Encontrou algumas pessoas dormindo nos cantos fugindo da chuva. Alguns olharam assustados, outros estavam com o olhar vazio por causa das drogas e o restan-te nem perceberam sua presença. Continuou andando até chegar no antigo consultório de Thanos. Ali que tinham encontrado várias das criações bizarras do “doutor”. Seres híbridos que não deviam existir nem nos pesadelos e coisas disformes dentro de vidros que se mexiam como se estivessem vivas. Aquela lembrança ainda dava calafrios em Diógenes, mas hoje estava tudo vazio e quieto. Ficou um tempo parado na escuridão pensando. Haviam pedaços de papel joga-dos pelo chão. Eram jornais velhos, folhas de caderno e lixo em geral. Uma, entretanto, coisa chamou sua atenção: um antigo folder de um grande empreendimento imobiliário construído pela influente família Rigo a alguns anos atrás. Na época Diógenes tinha provado várias fraudes que a família estava metida e mesmo não podendo provar tinha descoberto uma sociedade secreta que segundo ele mandava na cidade. Os Rigo tinham contato com eles que financiavam Thanos pouco antes dele ser pego. Diógenes não conseguiu provar nada disso na época. Perdeu seu emprego por causa da matéria insinuando esta ligação e logo depois sofreu um atenta-do, mas saiu ileso. Ficou anos sem conseguir um trabalho no jornalismo, mas deu a volta por cima e agora esta num pequeno jornal que até onde ele sabe, não é comandado pelos figurões da cidade. Estava saindo da sala quando percebeu uma pintura diferente em uma das pare-des. Foi até lá para ver mais perto e percebeu uma reentrância. Empurrou e a parede cedeu um pouco. - Uma porta? Mas como ninguém percebeu isso aquela vez? Empurrou com força e a porta cedeu mais um pouco. Deu um chute e ela abriu dando entrada para uma sala pequena, abafada e que fedia. Ajustou o facho de luz da lanterna e teve um arrepio na espinha quando viu vários instrumentos de cirurgia, grandes armários de ferro e uma grande maca com lugar para amarrar as pernas e os

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passado por ali a pouco tempo. Diógenes pegou seu celular e começou a tirar fotos de tudo, contudo foi parado por um som abafado no canto da sala. Iluminou o ponto de onde achava que tinha vindo o som e não viu nada além de um pedaço velho de tecido vermelho.“Deve ter sido um rato” pensou. “Bom, já deu minha hora, vou sair logo daqui antes que amanheça. ” Estava saindo do prédio. Ainda chovia lá fora. O chão estava úmido e grudento. Seus olhos já estavam acostumados com a escuridão e ao longe ele via a porta. Pensava no que ele tinha encontrado e como tudo isso ligava Thanos ao desaparecimento dos jovens quando trombou com algo mole no chão, não conseguiu definir o que era, só percebia uma massa disforme e escura. Deu a volta e trombou com outra coisa que parecia um saco de roupas suja e molhadas. Não lembrava disso no caminho antes. Iluminou o chão e seu coração parou, o andar todo estava cheio de corpos decapitados e sangue dos sem-teto e drogados que estavam ali antes. O jornalista não sabia o que fazer e seu senso de sobrevivência falou mais alto. Correu com todas as suas forças em direção a porta entreaberta quando um grande vulto negro cobriu a luz da porta e deu um forte golpe no seu peito. Diógenes se viu voando pela sala até atingir uma janela e cair na rua em meio a chuva e estilhaços de vidro. Tinha um corte na mão esquerda e seu peito doía muito, mas estava vivo. Olhou para todos os lados e não viu ninguém. Seu coração estava disparado e quando tentou se levantar viu seu agressor saindo pela janela. Era um grande homem careca e forte, parecia ter quase 2 metros de altura, estava sem camisa e usava uma calça esfarrapada, seus olhos estavam vidrados, vermelhos e para espanto de Diógenes, tinha tubos saindo de seu tórax que iam até seu antebraço com grandes garras ensanguentadas em suas mãos. O homem saltou em direção ao jornalista e Diógenes sentiu sua morte chegando. Dizem que toda sua vida passa diante dos seus olhos, mas a única coisa que Dió-genes pensava era que sua descoberta não ia sair dali e Thanos ia sair ileso desta história. O que aconteceu a seguir foi muito rápido, um grande vulto vermelho atacou aquela criatura gigantesca com garras e a jogou em um canto do beco cheio de latas de lixo como se fosse de papel. O ser se levantou raivoso procurando seu agressor e fixou seu olhar em um homem de estatura media vestido todo de vermelho e portando uma grande capa que estava parado em frente ao jornalista. Diógenes também olhou para aquele homem e não acreditou no que via, o vulto vermelho existia mesmo. E aquele uniforme parecia um ser vivo se movendo sozinho a despeito da forte chuva que caia. Neste momento, Diógenes sentiu uma mão tocando seu ombro, olhou assustado e viu uma garota morena vestida toda de preto que reconhecia de algum lugar. - Calma, estamos aqui para te ajudar – Falou ela enquanto o puxava para longe da luta que ia acontecer. Ele se virou a tempo de ver a grande criatura com garras pular em direção ao vulto vermelho que desviou do golpe ao mesmo tempo que sua capa enrolou as mãos da criatura e a jogou com força em uma parede. O ser levantou cambaleando e tentou atacar, mas a capa atacou novamente derrubando o inimigo, agora definitivamente.

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O vulto vermelho se virou e olhou para Diógenes e a garota. -Você não devia estar aqui. – falou com dureza – Estou te seguindo a semanas e sabia que em algum momento você encontraria algo que não ia dar conta. Pare o que está fazendo agora. – brandiu. Se virou e chamou a garota. Estavam indo embora quando Diógenes gritou em meio a tempestade. -William!! Também estou atrás de Thanos! - O vulto vermelho se virou. – Posso te passar tudo que descobri e podemos finalmente botar este monstro atrás das grades definitivamente. O vulto vermelho parecia pensar na proposta enquanto Diógenes e a garota o olhavam curiosos. -Não nos procure mais. Nós te achamos – Se virou e fez uma pausa, como se pensasse algo. - William não existe mais, me chame de Cover. – completou. E com um salto sumiu na noite levando junto a garota misteriosa.Diógenes se levantou com certa dificuldade e olhou para a criatura caída no beco molhado. Ao lado ele percebeu um pequeno pedaço de tecido vermelho se mexendo e o pegou colocando no bolso sorrindo. Tinha muito o que fazer. Como descobrir da onde conhece aquela garota, porém de uma coisa ele tinha certeza, naquela noite conseguiu aliados de peso nesta luta. Na manhã seguinte acordou mais cedo que o normal, tinha uma nova matéria para escrever e estava empolgado como não ficava a anos. Ligou seu computador e logo começou a escrever: “DE VULTO VERMELHO A HERÓI, COVER É O NOME DO PROTETOR DA CIDADE DO MISTÉRIO. ”

OS AUTORES

ANDRÉ BARBOSA

Com 21 anos, André Barbosa, é estudante, roteirista e contador de histórias nato. Influenciado por William Gibson e Chuck Palahniuk, seus temas favoritos na escrita são distopia, futurismo e auto-destruição. Um dia pretende escrever um livro como a tecnologia ultrapassará os limites evolucionários e de adaptação da natureza e também contos eróticos.

LUCIANO RIBEIRO

Luciano Ribeiro, roteirista de quadrinhos, digitador de histórias, colunista do site Palitos Nerds (pois é um seriemaníaco) e contador de causos verídicos. Fã incondicional do Canal Syfy (principalmente de Sharknado), tenta terminar seu primeiro livro de contos ainda este ano.

TIAGO DA ROCHA

Tiago da Rocha é nerd assumido, fã de quadrinhos, livros, games e afins. Com 31 anos de idade, coleciona de tudo um pouco. Escrever para ele é um hobbie prazeroso, que já lhe rendeu a adaptação de um conto para curta metragem, além de outro publicado em uma coletânea de terror. Publicitário de formação,atualmente mantém seu blog Palitos Nerds na internet.