Considerações sobre Gênero - C. Aruzza

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Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo 1 Cinzia Arruzza Professora de Filosofia em The New School for Social Research (Estados Unidos) 1 Publicado originalmente na revista Viewpoint e republicado com a permissão da autora. Tradução de Camila Massaro de Góes.

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  • Consideraes sobre gnero: reabrindo o debate sobre patriarcado

    e/ou capitalismo1

    Cinzia Arruzza

    Professora de Filosofia em The New School for Social Research (Estados Unidos)

    1 Publicado originalmente na revista Viewpoint e republicado com a permisso da autora.

    Traduo de Camila Massaro de Ges.

  • Consideraes sobre gnero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo Resumo: Neste artigo procura-se esclarecer so os limites de um pensamento fragmentado, que fotografa as vrias formas de opresses sem capturar sua unidade intrnseca, reconduzindo, ao contrrio, cada parte desta unidade a um sistema autnomo. Alm disso, busca criticar uma leitura da relao entre capitalismo e opresso de gnero baseada na tese do capitalismo indiferente, a qual considera a opresso de gnero como no necessria do ponto de vista do capital, tratando-se de uma relao meramente oportunista e contingente. Por fim, busca argumentar em defesa de uma "teoria unitria" para pensar a relao entre a opresso das mulheres e o capitalismo, inspirada nas contribuies do pensamento Karl Marx. Esta teoria parte da premissa de que a opresso de gnero no corresponde a um sistema autnomo e dotado de causas prprias, mas que se tornou atravs de um longo processo histrico de dissoluo das precedentes formas de vida social, parte integrante da sociedade capitalista.

    Palavraschave: 1. Gnero. 2. Patriarcado. 3. Capitalismo.

    Remarks about gender: reopening the debate about patriarchy and/or capitalism Abstract: This article tries to clarify the limits of a fragmentary thought that captures the different forms of oppression without considering their intrinsic unity, leading each part of it to an autonomous system. Besides, the text criticizes the interpretation of the relationship between capitalism and gender oppression based on the idea of an indifferent capitalism, that considers gender oppression as not needed in Capitals point of view, being merely an opportunist and contingent relationship. It argues for a unitary theory, inspired in Marx's contributions, to think the relationship between capitalism and oppression. This theory assumes the idea that gender oppression does not correspond to an autonomous system provided with singular causes, but one that has become part of capitalist society in a long historical process of dissolution of the preceding forms of social life.

    Keywords: 1. Gender. 2. Patriarchy. 3. Capitalism

  • comum encontrar referncias a patriarcado e relaes patriarcais em textos, tratados ou documentos feministas. Patriarcado comumente usado para mostrar como a opresso e a desigualdade de gnero no so

    ocorrncias espordicas ou excepcionais. Ao contrrio, so questes que atravessam toda a sociedade, fundamentalmente reproduzidas atravs de mecanismos que no podem ser explicados no nvel individual.

    Em suma, muitas vezes usamos o termo patriarcado para salientar que a opresso de gnero um fenmeno no reduzvel a relaes interpessoais, mas antes possui um carter e consistncia societal. No entanto, as coisas se tornam um pouco mais complicadas se queremos ser mais precisos no que exatamente se entende por patriarcado e sistema patriarcal. Esse passo se torna ainda mais complexo quando comeamos a questionar a relao precisa entre patriarcado e capitalismo.

    Por um curto perodo, dos anos 1970 at a metade dos anos 1980, a questo da relao estrutural entre patriarcado e capitalismo foi objeto de um debate acalorado entre tericos e partidrios da corrente de pensamento materialista, bem como as feministas-marxistas. As questes fundamentais colocadas giravam em torno de dois eixos: 1) seria o patriarcado um sistema autnomo em relao ao capitalismo? 2) correto usar o termo patriarcado para designar opresso e desigualdade de gnero?

    Embora tenha produzido resultados muito interessantes, esse debate se tornou cada vez mais fora de moda. Isso se deu ao mesmo tempo em que as crticas ao capitalismo recuaram, enquanto outras correntes do pensamento feministas se consolidaram. Estas novas formas de pensamento no foram, muitas vezes, alm do horizonte liberal da poca por vezes essencializaram as relaes entre homens e mulheres e desistoricizaram gnero, ou ainda refutaram questes do capitalismo e de classe mas, ao mesmo tempo,

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    desenvolveram conceitos teis para a desconstruo de gnero (como a teoria queer nos anos 1990).

    Naturalmente, sair de moda no significa necessariamente desaparecer. Na ltima dcada, muitas tericas feministas continuaram a trabalhar com essas questes, com o risco de parecer deslocadas de seu tempo, vestgios de um passado tedioso. Elas estavam certas em perseverar: em um perodo de crise econmica e social, foram levadas a dar uma ateno parcial, mas necessria, s relaes estruturais entre a opresso de gnero e o capitalismo.

    Nos ltimos anos, anlises empricas, descries do fenmeno ou questes especficas seguramente no estiveram em falta, como a feminizao do trabalho; o impacto da poltica neoliberal na vida e condies de trabalho das mulheres; a interseco entre opresso de gnero, raa e classe; ou a relao entre as construes diferentes de identidade sexual e os regimes capitalistas de acumulao. No entanto, uma coisa descrever um fenmeno ou um grupo de fenmenos sociais, no qual a conexo entre capitalismo e opresso de gnero mais ou menos evidente. Outra coisa dar uma explicao terica para essa relao estrutural, que possa ser identificada com esses fenmenos e seus modos de funcionamento. crucial, neste caso, perguntar se existe um princpio organizativo que explica essa conexo.

    Com o objetivo de ser tanto clara como concisa nesse ponto, tentarei sumarizar as teses mais interessantes sugeridas at agora sobre esse assunto. Nas prximas sees, vou analisar e questionar essas diferentes teses separadamente. Para manter um nvel de honestidade intelectual e evitar quaisquer confuses, destaco que minha reconstruo dos distintos pontos de vista no imparcial. Minha viso se encontra na terceira tese dentre as seguintes.

    Primeira Tese: Teoria dos sistemas duplos ou triplos. Podemos colocar a verso original desta tese nos seguintes termos: gnero e relaes sexuais constituem um sistema autnomo que se combina ao capitalismo e remodela as relaes de classe, enquanto , ao mesmo tempo, modificado pelo capitalismo em um processo de interao recproca. A verso mais atualizada desta teoria inclui as relaes raciais, tambm consideradas como um sistema de relaes sociais autnomas interconectadas com as relaes de gnero e classe.

    Dentro dos crculos materialistas feministas, essas reflexes so normalmente associadas noo de que as relaes de gnero e raa so

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    sistemas de opresso tanto quanto so relaes de explorao. No geral, estas teses tm uma compreenso das relaes de classe como definidas unicamente em termos econmicos. apenas via a interao com o patriarcado e com o sistema de dominao racial que elas adquirem um carter extra-econmico. Uma variao desta tese ver as relaes de gnero como um sistema de relaes ideolgicas e culturais derivadas de antigos modos de produo e formaes sociais, independentes do capitalismo. Estas relaes antigas ento interagem com as relaes sociais capitalistas, dando a esta ltima uma dimenso de gnero.

    Segunda Tese: Capitalismo Indiferente. Opresso de gnero e desigualdade so reminiscentes de formaes sociais e modos de produo prvios, quando o patriarcado diretamente organizava e determinava uma estrita diviso sexual do trabalho. O capitalismo em si indiferente s relaes de gnero e pode super-las de tal forma que o patriarcado como sistema seja dissolvido em pases capitalistas avanados, na medida em que as relaes familiares sejam reestruturadas de formas bastante radicais. Em suma, o capitalismo tem uma relao essencialmente oportunista com a desigualdade de gnero: usa o que acha benfico das relaes de gnero existentes, e destri o que se torna um obstculo. Essa viso articulada em vrias verses. Algumas reivindicam que no capitalismo mulheres se beneficiaram de um nvel de emancipao desconhecido em outros tipos de sociedade, e isso demonstraria o capitalismo como no sendo um obstculo estrutural da libertao das mulheres. Outras mantm que devemos cuidadosamente distinguir nveis lgicos e histricos: logicamente, o capitalismo no necessita, especificamente, da desigualdade de gnero, e pode se livrar dela; mas historicamente, as coisas no so assim to simples.

    Terceira Tese: A Tese Unitria. De acordo com essa teoria, nos pases capitalistas no existe mais um sistema patriarcal que seja autnomo do capitalismo. Relaes patriarcais continuam a existir, mas no so parte de um sistema separado. Dizer que o patriarcado no um sistema autnomo dentro do capitalismo no afirmar que a opresso de gnero no exista e permeie as relaes sociais e interpessoais. Em outras palavras, esta tese no reduz cada aspecto da opresso para simplific-la a uma consequncia mecnica ou direta

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    do capitalismo, nem busca oferecer uma explicao baseada somente em termos econmicos.

    Em resumo, a teoria unitria no reducionista ou economicista, e no subestima a centralidade da opresso de gnero. Proponentes da teoria unitria discordam da ideia de que o patriarcado seria hoje um sistema de regras e mecanismos que autonomamente se reproduzem. Ao mesmo tempo, insistem na necessidade de considerar o capitalismo no como um conjunto de leis puramente econmicas, mas antes como uma complexa e articulada ordem social, uma ordem que tem seu ncleo constitudo de relaes de explorao, dominao e alienao.

    Deste ponto de vista, o desafio entender como a dinmica de acumulao de capital continua a produzir, reproduzir, transformar e renovar relaes hierrquicas e opressivas, sem expressar estes mecanismos em termos estritamente econmicos ou automticos.

    Um, dois ou trs sistemas?

    Em 1970, Christine Delphy escreveu um folheto intitulado The Main Enemy, no qual teorizou a existncia de um modo patriarcal de produo, sua relao e as no correspondncias com o modo capitalista de produo, e definiu as donas de casa como uma classe no sentido estritamente econmico do termo (DELPHY, 1977).

    Nove anos depois, Haide Hartman publicou seu artigo, The Unhappy Marriages of Marxism and Feminism, no qual argumentou a tese de que patriarcado e capitalismo so dois sistemas autnomos, mas tambm historicamente interconectados (HARTMAN, 1979). Para Hartman, as leis capitalistas de acumulao so indiferentes ao sexo da fora de trabalho, e, na mesma medida em que surgem as necessidades do capitalismo criar relaes hierrquicas na diviso do trabalho, o racismo e o patriarcado determinam a distribuio das posies hierrquicas e a forma especfica como so utilizadas.

    Estas teses eventualmente tomaram o nome de Teoria dos Sistemas Duplos. Em Theorizing Patriarchy [Teorizando o patriarcado], Sylvia Walby reformulou os sistemas duplos ao adicionar um terceiro, o sistema racial, e

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    tambm procurou entender o patriarcado como um sistema varivel de relaes sociais composto de seis estruturas: o modo de produo patriarcal, relaes patriarcais no trabalho remunerado e assalariado, relaes patriarcais no Estado, violncia masculina, relaes patriarcais na esfera da sexualidade e relaes patriarcais em instituies culturais (WALBY, 1990). Estas seis estruturas se condicionam reciprocamente, ao mesmo tempo em que permanecem autnomas: elas tambm podem ser pblicas ou privadas. Mais recentemente, Danile Kergoat (2009) teorizou a consubstancialidade das relaes patriarcais, raciais e de classe; estes so trs sistemas de relaes baseados na explorao e dominao que se interseccionam e so da mesma substncia (explorao e dominao), ao mesmo tempo em que so distintos, como as trs pessoas da Santssima Trindade.

    Este breve levantamento de autores e artigos apenas um exemplo das diferentes formas nas quais a interseco do sistema patriarcal e do sistema capitalista tem sido teorizada, e as formas nas quais um sistema distinguido de outro. Existem outros, mas vou limitar minha anlise a esses exemplos, que esto entre os mais claros, ao mesmo tempo em que so os mais sistemticos e complexos. Como j apontei, a dificuldade nesse debate diz respeito definio de patriarcado. No h uma definio uniforme, mas um conjunto de proposies, algumas das quais so compatveis com as demais, enquanto outras so contraditrias. Uma vez que no posso analisar todas estas definies, proponho, por enquanto, focar no conceito de sistema patriarcal, entendido como um sistema de relaes, tanto materiais como culturais, de dominao e explorao de mulheres por homens. Este um sistema com sua prpria lgica, que ao mesmo tempo malevel a mudanas histricas, em uma relao de continuidade com o capitalismo.

    Antes de analisar os problemas apresentados por esta abordagem terica, devemos definir o que explorao e fazer algumas distines. Do ponto de vista das relaes de classe, explorao definida como um processo ou mecanismo da expropriao de um excedente produzido por uma classe produtora para benefcio de outra classe. Isto pode acontecer tanto por mecanismos automticos, como pelo salrio, ou ainda pela explorao violenta do trabalho de outros este foi o caso da corveia, atravs da qual os senhores feudais constrangiam os servos por autoridade imposta e coero violenta. A

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    explorao capitalista, no sentido marxista, uma forma especfica de explorao que consiste na extrao da mais-valia produzida pelo trabalhador em benefcio do capitalista. Geralmente, para falar em explorao capitalista, deve existir produo generalizada de mercadorias, trabalho abstrato, tempo de trabalho socialmente necessrio, valor e a forma-salrio.

    Estou claramente deixando de fora outra hiptese, como aquelas baseadas na subsuno real da sociedade em sua totalidade, como defendido pelas tradies trabalhistas e ps-trabalhistas. Confrontar esta viso e suas consequncias para o entendimento das relaes de gnero tomaria outro artigo. Em termos vagamente definidos: a extrao de valor para Marx o segredo do capital, no sentido que constitui a origem da riqueza socialmente produzida e seus modos de distribuio.

    Explorao como a extrao de mais-valia no a nica forma de explorao dentro de uma sociedade capitalista: para ser simplista, podemos dizer que um empregado em um setor improdutivo (em termos de valor) tambm explorado pela extrao de trabalho excedente. A taxa salarial, as condies de vida e as condies de espao de trabalho de um lojista podem, claro, serem piores do que a de um trabalhador de fbrica. Somado a isso, para alm das tendncias levemente economicistas dos debates e confuses anteriores, importante notar que de um ponto de vista poltico, a distino entre trabalhadores produtivos e improdutivos (em termos de produo de valor ou mais-valia) praticamente irrelevante. A rigor, os mecanismos e formas de organizao e diviso do processo de trabalho so muito mais importantes.

    Vamos retornar aos sistemas duplos e ao problema do patriarcado. Trs problemas precisam ser tratados.

    Primeiro, se definirmos patriarcado como um sistema de explorao, segue-se logicamente que existe um grupo explorador e outro explorado, ou melhor, uma classe expropriadora e uma classe expropriada. Quem compe essas classes? As respostas podem ser: todas as mulheres e todos os homens, ou apenas algumas das mulheres e alguns dos homens (no exemplo citado por Delphy, donas de casa e membros masculinos adultos destas famlias). Se falarmos do patriarcado como um sistema de explorao na esfera pblica, pode surgir a noo segundo a qual o Estado o explorador e o expropriador.

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    As feministas trabalhistas aplicaram a noo de explorao capitalista ao trabalho domstico, mas, de acordo com essa viso, o verdadeiro expropriador do trabalho domstico o capital, o que pode implicar que patriarcado no seja um sistema autnomo de explorao.

    No caso do trabalho de Delphy (1977), a tese de que as donas de casa so uma classe e os membros masculinos imediatos da famlia (em particular seus maridos) so a classe exploradora no totalmente articulada, mas levada s ltimas consequncias. Em termos lgicos, a consequncia de sua posio seria que a esposa de um trabalhador migrante pertenceria a mesma classe social que a da esposa do capitalista: ambos produzem valores de uso (em um caso o trabalho de cuidar puro e simples, no outro, o trabalho de representao de um certo status social, organizando encontros e recepes, por exemplo) e ambas esto em uma relao exploradora de natureza servil, o que significa dizer que esto trabalhando em troca de segurana financeira provida por seus maridos.

    Delphy (1977) insiste que ser um membro da classe patriarcal um fato mais importante do que fazer parte da classe capitalista. Disso se seguiria que a solidariedade entre a esposa do capitalista e a esposa do trabalhador migrante deve prevalecer diante da solidariedade de classe entre a esposa do trabalhador migrante e os outros membros da classe de seu marido (ou, em uma verso otimista ainda, que deve prevalecer diante da solidariedade de classe da esposa do capitalista e suas amigas do clube de campo). Por fim, a prtica poltica concreta de Delphy entra em contradio com as consequncias lgicas de sua teoria, o que torna seus limites analticos ainda mais aparentes.

    Alm do mais, se definirmos homens e mulheres (em uma verso ou outra) como duas classes uma dos exploradores, e uma dos explorados inevitavelmente chegaremos concluso que existe um antagonismo irreconcilivel entre classes cujos interesses esto em contradio recproca. Mas, se Delphy est errada, devemos negar que os homens ganham e tiram proveito do trabalho no remunerado das mulheres? No, porque isso seria um erro simtrico, infelizmente cometido por muitos marxistas que levaram esse raciocnio ao extremo oposto. claramente melhor e mais conveniente que algum cozinhe um prato quente para voc noite do que ter que lidar com a loua depois de um dia longo de trabalho. muito natural, ento, que os

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    homens tentem preservar esse privilgio. Em suma, inegvel que existem relaes de dominao e hierarquia social baseadas em gnero e que homens, incluindo os das classes mais baixas, busquem tirar vantagens delas.

    No entanto, isso no significa que exista a um antagonismo de classe. Preferimos, ao contrrio, formular a seguinte hiptese: em uma sociedade capitalista, a privatizao completa ou parcial do trabalho de cuidado, ou seja, sua concentrao dentro da famlia (qualquer que seja o tipo de famlia, e incluindo os lares monoparentais), a falta de uma socializao em grande escala deste trabalho de cuidado pelo Estado ou outras formas, tudo isso determina a carga de trabalho que necessita ser mantida dentro da esfera privada, fora tanto do mercado, como das instituies. As relaes de opresso e dominao de gnero determinam o modo e a escala nos quais a carga de trabalho ser distribuda, dando lugar a uma diviso desigual: mulheres trabalham mais, enquanto homens trabalham menos. Mas no h nenhuma apropriao de um excedente.

    Algum duvida? Basta um simples experimento mental. Um homem no perderia nada, em termos de carga de trabalho, se a distribuio do trabalho de cuidado estivesse completamente socializada, ao invs de ser realizada por sua mulher. Em termos estruturais, no existem interesses antagonistas ou irreconciliveis. De fato, isso no significa que ele seja consciente do problema, uma vez que pode muito bem ser que ele esteja to integrado cultura sexista que tenha desenvolvido algumas formas severas de narcisismo baseado em sua presumida superioridade masculina, o que o leva naturalmente a se opor a quaisquer tentativas de socializao do trabalho de cuidado, ou de emancipao de sua mulher. O capitalista, por outro lado, tem algo a perder na socializao dos meios de produo; no se trata apenas de suas convices sobre a forma que o mundo funciona e seu lugar nele, mas de lucros massivos que ele alegremente expropria dos trabalhadores.

    O segundo problema diz respeito ao fato de que os que insistem em afirmar que as relaes patriarcais hoje compem um sistema independente dentro das sociedades capitalistas avanadas precisam encarar a questo espinhosa de determinar a sua fora motriz: por que este sistema continuamente se reproduz? Por que perdura? Se um sistema independente, a razo deve ser interna e no externa. O capitalismo, por exemplo, um modo de produo e um sistema de

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    relaes sociais, com uma lgica identificvel: de acordo com Marx, um processo de valorizao do valor. Certamente, ter identificado esse processo como a fora matriz ou motor do capitalismo no diz tudo que precisa ser dito sobre o capitalismo: seria anlogo a pensar que a anatomia do corao e suas funes seria suficiente para explicar toda anatomia do corpo humano. O capitalismo um conjunto de processos e relaes complexas. No entanto, compreender como o seu corao e funciona uma necessidade analtica fundamental.

    Quando as relaes patriarcais desempenham um papel direto na organizao das relaes de produo (quem produz e como, quem se apropria, como a reproduo destas condies de produo organizada) mais simples identificar a fora motriz do sistema patriarcal. Este o caso das sociedades agrrias, por exemplo, nas quais a famlia patriarcal diretamente forma a unidade da produo com os meios de subsistncia. No entanto, isso mais complicado nas sociedades capitalistas, nas quais as relaes patriarcais no organizam diretamente a produo, mas desempenham um papel na diviso do trabalho, e a famlia relegada esfera privada de reproduo.

    Perante esta questo, quem concorda com Delphy ou outras feministas materialistas, e pensa o patriarcado contemporneo como um modo especfico de produo, teria que confrontar os desafios que destaquei acima, especialmente o problema insolvel de quem, nessa concepo, conformaria as classes exploradoras e exploradas; ou simplesmente teria que abandonar a viso de que o patriarcado um modo distinto de produo, ao menos no sentido convencional no termo.

    Uma hiptese j foi sugerida no passado que o patriarcado seria um sistema ideolgico independente, cujo motor reside no processo de produo de significantes e interpretaes do mundo. Mas aqui somos levados a outros problemas: se a ideologia a forma pela qual interpretamos nossas condies de existncia e nossas relaes com elas, alguma conexo precisa existir entre ideologia e estas condies sociais de existncia; uma conexo que de maneira alguma mecanicista, automtica, ou qualquer coisa do tipo. Em todo caso, este ainda seria o problema de uma forma determinada de conexo, caso contrrio arriscaramos a cair em uma concepo fetichista e a-histrica da cultura e da ideologia. Ainda menos convincente a ideia que o sistema patriarcal seria um

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    sistema ideolgico que constantemente se reproduz, apesar das incrveis mudanas introduzidas pelo capitalismo na vida social e nas relaes de produo nos dois ltimos sculos. Tambm a hiptese de que motor seria psicolgico se arrisca a cair nesta concepo fetichista e a-histrica da psique humana.

    Chegamos, ento, a um ltimo problema. Vamos admitir por um momento que o patriarcado, as relaes raciais, e o capitalismo sejam trs sistemas independentes, que se interseccionam e se reforam reciprocamente. Neste caso, a questo conhecer o princpio organizativo e a lgica desta aliana sagrada. Nos textos de Kergoat (2009), por exemplo, a definio desta relao em termos consubstanciais permanece uma imagem descritiva, que no consegue explicar muito. As causas da interseco entre sistemas de explorao e dominao permanecem misteriosas, assim como a Santssima Trindade!

    Apesar destes problemas, as teorias dos sistemas duplos ou triplos, em suas diferentes variaes, permanecem influncias implcitas em muitas teorias feministas recentes. Em minha opinio, isso se d porque estas parecem ser as formas de explicao mais imediatas e intuitivas. Em outras palavras, so explicaes que refletem a realidade tal como esta se manifesta. evidente que as relaes sociais incluem relaes de dominao e hierarquia baseadas em gnero e raa que permeiam o todo social e a vida cotidiana. A explicao imediata que estas relaes correspondem a sistemas especficos, porque esta a forma que elas se manifestam. No entanto, as explicaes mais intuitivas no so sempre as mais corretas.

    tudo culpa do capitalismo?

    Na ltima seo, escrevi que a concepo de patriarcado como um sistema independente dentro da sociedade capitalista a mais difundida no apenas entre tericas feministas, mas tambm entre ativistas. Isso porque uma interpretao que reflete a realidade da forma que ela aparece para ns. Falar de formas de aparncia no significa descrever um fenmeno ilusrio, em oposio a uma suposta realidade com R maisculo. Aparncia aqui se refere ao modo especfico no qual as relaes de alienao e dominao produzidas e

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    reproduzidas pelo capital so experimentadas pelo povo dada sua lgica comum. Como Daniel Bensad (1995) observou, a crtica da economia poltica , antes de tudo, a crtica do fetichismo econmico e da ideologia que nos fora a pensar na sombra do capital. No se trata de uma questo de falsa conscincia, mas do modo de experincia determinado pelo prprio capital: a fragmentao de nossa percepo da realidade. Este um discurso complexo mas, para ter uma ideia do que entendido como um modo de experincia determinado pelo capital, fazemos referncia, por exemplo, seo do primeiro volume dO Capital de Marx sobre o fetichismo da mercadoria.

    Uma vez que nossa percepo fragmentria e aqueles que desenvolveram uma conscincia da desigualdade de gnero normalmente a experimentam e percebem como determinada por uma lgica que diferente e separada do capital, qualquer negao da viso de que o patriarcado um sistema independente dentro do capitalismo inevitavelmente encontra rejeies e dvidas.

    A objeo mais comum tem a ver com a dimenso histrica: como afirmar que o patriarcado no um sistema independente quando a opresso das mulheres existe antes da sociedade capitalista? Porm, dizer que dentro da sociedade capitalista a opresso das mulheres e as relaes de poder so consequncias necessrias do capitalismo, e que esse fenmeno no tem sua prpria lgica independente, no significa apoiar o argumento absurdo de que a opresso de gnero se origina com o capitalismo. O que est sendo defendido aqui um argumento diferente, ligado s caractersticas particulares do capitalismo. Sociedades nas quais o capitalismo suplantou o precedente modo de produo so caracterizadas por uma transformao profunda e radical da famlia.

    A transformao da famlia , acima de tudo, o resultado da expropriao da terra, ou acumulao primitiva, que separou grandes pores da populao de seus meios de produo e subsistncia, provocando de um lado a desintegrao da famlia camponesa patriarcal, e, de outro, um processo de urbanizao historicamente sem precedentes. O resultado foi que a famlia passou a no mais representar a unidade de produo com um papel produtivo especfico, geralmente organizado nas relaes patriarcais especficas que prevaleciam na sociedade agrria prvia.

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    Esse processo comeou com momentos diferentes e assumiu diferentes formas em todos os pases nos quais as relaes capitalistas tiveram lugar. Com a separao entre o lugar de produo e a famlia, a relao entre produo e reproduo (no sentido biolgico, geracional, e de reproduo social) foi tambm radicalmente transformada.

    E aqui est o ponto: embora as relaes de dominao de gnero tenham permanecido, elas deixaram de ser um sistema independente que seguia uma lgica autnoma por conta desta transformao da famlia de uma unidade de produo a um lugar privado fora da produo de mercadorias e do mercado. Alm disso, estas relaes de dominao sofreram uma transformao significativa. Por exemplo, uma destas transformaes est ligada a uma conexo direta entre orientao sexual, reificada em identidade, e gnero.2 Porque certamente verdadeiro que a opresso de gnero tenha existido bem antes do advento do capitalismo, isso no significa que as formas que assumiu tenham sido sempre as mesmas.

    Alm do mais, questionvel a ideia de que a opresso de gnero seria um fato trans-histrico, uma ideia defendida forosamente por parte das feministas da segunda onda mas que deve ser revista luz de recente pesquisa antropolgica. De fato, no apenas a opresso de gnero nem sempre existiu, como no existiu em vrias sociedades sem classe, onde a opresso de gnero foi introduzida pelo colonialismo. Para se ter uma ideia melhor da ligao entre relao de classe e relaes de poder entre gneros, podemos tomar o exemplo da escravido nos Estados Unidos.

    No livro Women, Race, and Class, Angela Davis (1981) destacou a forma na qual a destruio da famlia e de todas as relaes de parentesco entre escravos afro-americanos, assim como as especficas formas de trabalho escravo, deram origem a uma substancial subverso das relaes de poder de gnero entre escravos. Isso no significa que as escravas no sofreram uma forma especfica de opresso como mulheres, mas ao contrrio: elas sofreram severamente, mas nas mos de donos de escravos brancos, e no de seus companheiros escravos. Em outras palavras, a persistncia e articulao de relaes de gnero esto

    2 Podemos consultar esse tema na Histria da Sexualidade de Foucault (1976-1984), nos

    trabalhos de Judith Butler (1999), ou mais recentemente, nos escritos de Kevin Floyd (2009) e Rosemary Hennessy (2000).

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    conectadas de formas complexas a condies sociais, relaes de classe, e relaes de produo e reproduo. Uma viso abstrata e trans-histrica da opresso das mulheres no permite um entendimento destas articulaes e diferenas e, portanto, no pode explic-las.

    Como escrevi acima, nos pases nos quais o modo capitalista de produo suplantou o precedente modo de produo, transformando radicalmente a famlia e o seu papel, as relaes de poder entre gneros deixaram de formar um sistema independente. Isso no vale para pases com estruturas de produo que no foram inteiramente transformadas e que permanecem na periferia da economia capitalista global. Claude Meillassoux (1992) documentou a persistncia do modo de produo domstico em muitos pases africanos, nos quais o processo de proletarizao (ou seja, a separao do campons de sua terra) permaneceu muito limitado.

    No entanto, mesmo em pases onde o modo de produo domstico permanece em seu lugar, a presso intensa para a integrao no sistema capitalista mundial. Os efeitos do colonialismo, do imperialismo, da pilhagem de recursos naturais por parte dos pases capitalistas avanados, das presses objetivas da economia de mercado global, etc., tem um impacto significante nas relaes sociais e familiares que organizam a produo e distribuio de bens, frequentemente exacerbando a explorao das mulheres e a violncia de gnero.

    Retornemos agora aos pases capitalista avanados. Uma objeo clssica tese de que o patriarcado no constitui um sistema independente que o feminismo marxista seria fundamentalmente reducionista. Em outras palavras, tentaria reduzir a complexidade plural da sociedade a meras leis econmicas sem agarrar corretamente a irredutibilidade das relaes de poder. Esta objeo faria sentido sob duas condies: a primeira se o capitalismo fosse compreendido aqui apenas como um processo estritamente econmico de extrao de mais-valia, e portanto um conjunto de regras econmicas que determina este processo; a segunda se encarasse as relaes de poder como resultados mecanicistas e automticos do processo de extrao de mais-valia. A verdade que este tipo de reducionismo no corresponde minimamente riqueza e complexidade do pensamento de Marx, e muito menos extraordinria sofisticao de grande parte da tradio terica marxista.

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    Como j afirmei acima, tentar explicar o que a sociedade capitalista apenas em termos de extrao de mais-valia e alienao como tentar explicar a anatomia do corpo humano pelo funcionamento do corao.

    O capitalismo uma totalidade verstil, contraditria, continuamente em movimento, com relaes de explorao e alienao que esto constantemente em um processo de transformao. Muito embora possa parecer que Marx tenha atribudo um carter automtico valorizao do valor no primeiro volume do Capital um processo no qual o valor o sujeito real, enquanto capitalistas e indivduos so reduzidos ao papel de emissrios ou portadores de uma estrutura Monsieur le Capital no existe de fato, exceto como uma categoria lgica. No antes do terceiro volume do Capital que isso se torna mais claro. O capitalismo no um Moloch, um Deus escondido, um marionetista ou uma mquina: uma totalidade viva de relaes sociais. Nela, encontramos relaes de poder conectadas a gnero, orientao sexual, raa, nacionalidade, e religio, e todas esto a servio da acumulao de capital e sua reproduo, ainda que frequentemente de formas variadas, imprevisveis e contraditrias.

    Uma opinio amplamente aceita entre tericos marxistas considerar a opresso de gnero como desnecessria ao capitalismo. Isso no significa dizer que o capitalismo no explora ou se beneficia das formas de desigualdade de gnero produzidas por configuraes sociais prvias; mas, ao contrrio, que esta seria uma relao contingente e oportunista. Nesta perspectiva, o capitalismo no dependeria de fato da opresso de gnero, o que explicaria o fato das mulheres terem conquistado um nvel de liberdade e emancipao sem precedentes, se comparado com outras pocas histricas. Em suma, no existiria uma relao antagonista entre o capitalismo e a libertao das mulheres.

    Este ponto de vista tem sido recebido de forma favorvel entre tericos marxistas de diferentes escolas de pensamento, e, portanto, vale a pena analis-lo. Podemos usar um artigo escrito por Ellen Meiksins Wood como ponto de partida. Em seu Capitalism and Human Emancipation: Race, Gender, and Democracy, Wood (1995) comea por explicar as diferenas fundamentais entre capitalismo e modos de produo que o precederam. Para ela o capitalismo no teria ligaes intrnsecas com identidades particulares,

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    desigualdades, ou diferenas extra-econmicas, polticas ou jurdicas. Ao contrrio: a extrao de mais-valia teria lugar nas relaes entre indivduos formalmente livres e iguais, sem qualquer diferena de status jurdico ou poltico. O capitalismo no estaria, portanto, estruturalmente disposto a criar desigualdades de gnero, e apresentaria ainda uma tendncia natural em questionar estas diferenas e diluir identidades raciais e de gnero.

    Para Wood, o desenvolvimento capitalista criou condies sociais que conduziriam crtica destas desigualdades e facilitaram a emergncia da presso social contra elas. Isso no encontra precedente em pocas histricas prvias; basta pensar na literatura greco-romana, na qual as posies antiproibicionistas so praticamente ausentes, apesar da presena universal da escravido para fins produtivos.

    Ao mesmo tempo, o capitalismo tendeu sempre a usar diferenas pr-existentes herdadas de sociedades prvias de uma maneira oportunista. Por exemplo, diferenas de gnero e raa so utilizadas de forma a criar hierarquias entre setores mais ou menos avanados das classes exploradas. Estas hierarquias so abrandadas como consequncias de diferenas naturais, mascarando sua real natureza, nominalmente o fato de serem produtos da lgica de competio capitalista.

    Isso no deve ser entendido como um plano consciente que o capitalismo segue, mas como a convergncia de uma srie de prticas e polticas que se seguem do fato que desigualdades de gnero e raciais so vantajosas desde o ponto de vista capitalista. No argumento de Wood, o capitalismo instrumentaliza a opresso de gnero para os seus prprios fins, mas conseguiria viver bem sem ela. Por outro lado, o capitalismo no poderia existir sem explorao de classe.

    crucial notar que o artigo de Wood expe uma srie de questes polticas bsicas sobre os tipos de ganhos e benefcios extra-econmicos que podem ou no podem ser conquistados em uma sociedade capitalista. Seu ponto de partida uma mudana de ateno das lutas sociais no terreno econmico para questes no-econmicas (emancipao racial e de gnero, paz, sade ambiental, cidadania). E a est o atrito. Menciono o argumento de Wood porque, por um lado, seu artigo baseado numa separao ntida entre estrutura lgica do capital e suas dimenses histricas; mas, por outro lado,

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    acaba misturando estes mesmos nveis, reproduzindo uma clssica confuso que infelizmente comum no trabalho de muitos tericos marxistas que aderem s teses de Wood.

    Para tornar este ponto mais claro: na medida em que consideramos a distino entre a estrutura lgica do capital e sua dimenso histrica, aceitamos a ideia que a extrao de mais-valia toma lugar dentro de um quadro geral de relaes entre indivduos formalmente livres e iguais sem pressupor diferenas no status jurdico e poltico. Mas podemos fazer isso apenas num nvel muito alto de abstrao ou seja, no nvel da estrutura lgica. Do ponto de vista da histria concreta, as coisas mudam radicalmente. Vamos analisar esta questo ponto por ponto.

    1. Vamos comear com um fato: uma formao social capitalista desprovida de opresso de gnero (em suas vrias formas) jamais existiu. Aquele capitalismo limitado ao uso de desigualdades pr-existentes permanece datado: imperialismo e colonialismo contriburam para a introduo das hierarquias de gnero nas sociedades onde no existiam antes, ou existiam de forma muito mais nuanada. O processo de acumulao capitalista foi acompanhado pela igualmente importante expropriao das mulheres de diferentes formas de propriedade das quais tiveram acesso, e profisses de que foram capazes de ter durante a alta Idade Mdia; a alternncia dos processos de feminizao e desfeminizao do trabalho contriburam para reconfigurao contnua das relaes familiares, criando novas formas de opresso baseadas no gnero. O advento da reificao da identidade de gnero, que comea no fim do sculo XIX, contribuiu para o reforo de uma matriz heteronormativa que teve consequncias opressivas para as mulheres, mas no apenas para elas. Outros exemplos podem ser citados. Afirmar que mulheres obtiveram liberdades formais e direitos polticos apenas no capitalismo, que at ento eram inimaginveis porque esse sistema criou condies sociais que tornaram esse processo de emancipao possvel, um argumento de validade questionvel. De fato, se poderia dizer a mesma exata coisa para a classe trabalhadora como um todo: apenas no capitalismo que as condies foram criadas de modo a permitir a emancipao poltica dos estratos subalternos e que essa

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    classe se tornou o sujeito capaz de obter vitrias democrticas importantes. E da? Isso demonstraria que o capitalismo prescinde da explorao da classe trabalhadora? Acho que no. melhor abandonar essa referncia ao que as mulheres obtiveram ou no: se obtiveram alguma coisa porque lutaram pra isso e porque com o capitalismo as condies sociais foram favorveis ao nascimento de movimentos sociais de massa da poltica moderna. O que tambm verdade para a classe trabalhadora.

    2. importante distinguir o que funcional ao capitalismo e o que sua consequncia necessria. Os dois conceitos so diferentes. , talvez, difcil mostrar em um alto nvel de abstrao que a opresso de gnero essencial ao funcionamento interno do capitalismo. verdade que a competio capitalista continuamente criou diferenas e desigualdades, mas estas desigualdades, de um ponto de vista abstrato, no so relacionadas ao gnero. Se pensarmos no capitalismo puro, ou seja, analisar com base em seus mecanismos essenciais, ento talvez Wood possa estar certa. No entanto, isso no prova que o capitalismo no produz necessariamente, como resultado de seu funcionamento concreto, a reproduo constante e diversificada da opresso de gnero.

    3. Por fim, devemos retornar distino entre nvel lgico e nvel histrico. O que possvel do ponto de vista lgico e o que acontece no nvel dos processos histricos so coisas profundamente diferentes. O capitalismo existe sempre em formaes sociais concretas que tm suas histrias especficas. Como j disse, estas formaes sociais so caracterizadas pela presena constante e penetrante da opresso de gnero. Vamos supor, como um experimento mental, que estas hierarquias na diviso do trabalho fossem baseadas em outras formas de desigualdade (grandes e pequenos, velhos e novos, obesos e magros, aqueles que falam lnguas indo-europeias versus aqueles que falam outras lnguas, etc.). Vamos supor tambm que a gravidez e o nascimento fossem completamente mecanizados e que toda esfera de relacionamentos emocionais pudesse ser mercantilizada e gerenciada por servios privados... vamos supor tudo isso um pouco. uma viso plausvel de um ponto de vista histrico? Ser que a opresso de gnero

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    pode ser to facilmente substituda por outros tipos de relaes hierrquicas, capazes de parecer to naturais e to profundamente enraizadas na psique? Estes cenrios parecem legitimamente duvidosos.

    Para concluir: procurando responder questo de se possvel atingir a emancipao e libertao das mulheres sob o modo de produo capitalista, devemos buscar a resposta no nvel da anlise histrica concreta, no a nvel da anlise abstrata do capital.

    de fato aqui onde podemos encontrar no apenas o deslize de Wood, mas tambm o erro de muitos tericos marxistas que permanecem fortemente ligados ideia de hierarquia entre explorao (principal) e opresso (secundria). Se queremos colocar o aspecto poltico da questo e tambm estar na posio de respond-la, devemos ter uma concepo histrica do que o capitalismo hoje e do que tem sido historicamente. Este um dos pontos de partida para um feminismo marxista no qual a noo de reproduo social ocupa um papel central.

    Repensando capital, repensando gnero

    Na seo prvia, tentei esclarecer os limites do pensamento fragmentado que apresenta tipos diferentes de opresso e dominao como conectados a um sistema autnomo sem entender sua unidade intrnseca. Alm disso, critiquei a leitura da relao entre capital e gnero baseada no que chamo de capitalismo indiferente. hora de abordar a teoria unitria, bem como o conceito de reproduo social.

    As posies dualistas frequentemente comeam com a ideia de que a crtica marxista da economia poltica apenas analisa as leis econmicas do capitalismo, atravs de categorias puramente econmicas. Esta abordagem pareceria inadequada para entender um fenmeno complexo tal como a multiplicidade de relaes de poder, ou prticas discursivas que nos constituem como sujeitos. Da o porque das abordagens epistemolgicas serem consideradas mais capazes de observar as causas que se encontram fora do domnio da economia, e so mais adequadas para o entendimento da especificidade e natureza irreduzvel destas relaes sociais.

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    Esta posio compartilhada alm do espectro das tericas feministas. Algumas delas sugerem que precisamos de um casamento ou uma combinao ecltica entre os diferentes tipos de anlise crtica, algumas devotadas s leis econmicas puras da acumulao de capital, e outras endereando outras formas de relaes sociais. Por outro lado, outras tericas abraaram o que se chama de virada lingustica na teoria feminista, que separa a crtica da opresso de gnero da crtica do capitalismo. Em ambos os casos, h uma suposio comum de que leis econmicas puras existem, independentes das relaes especficas de dominao e alienao. justamente essa suposio que deve ser questionada criticamente. Vou me limitar a destacar dois aspectos da crtica marxiana da economia poltica.

    Em primeiro lugar, uma relao de explorao sempre implica numa relao de dominao e alienao. Essas trs relaes nunca esto verdadeiramente separadas na crtica marxiana da economia poltica. A trabalhadora antes de tudo um corpo que vive e pensa, submetido a formas especficas de disciplina que a remodelam. Como Marx escreve, o processo produtivo produz o trabalhador na mesma extenso que reproduz a relao de trabalho capitalista. Uma vez que todo processo de produo sempre concreto ou seja, caracterizado por aspectos que so historicamente e geograficamente determinados possvel conceber cada processo produtivo como conectado ao processo disciplinar, que parcialmente constri o tipo de sujeito que o trabalhador se torna.

    Podemos dizer a mesma coisa para o consumo de mercadorias: como Kevin Floyd (2009) mostrou em sua anlise da formao da identidade sexual, o consumo de mercadorias ocasiona um aspecto disciplinar e participa da reificao da identidade sexual. O consumo toma parte no processo de formao do sujeito.

    Em segundo lugar, para Marx, produo e reproduo formam uma unidade indivisvel. Em outras palavras, enquanto so distintas e apresentam caractersticas especficas, produo e reproduo so necessariamente combinadas como momentos concretos de uma totalidade articulada. Reproduo entendida aqui como o processo de reproduo da sociedade como um todo, ou em termos althusserianos, a reproduo das condies de produo: educao, indstria cultural, Igreja, polcia, exrcito, sistema de

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    sade, cincia, discursos de gnero, hbitos de consumo, etc. todos estes aspectos desempenham um papel crucial na reproduo de relaes especficas de produo. Althusser notou em Idologie et appareils idologiques dtat que sem a reproduo das condies de produo, uma formao social no poderia se manter nem por um ano (ALTHUSSER, 1976).

    essencial, contudo, no entender a relao entre produo e reproduo de uma forma mecanicista ou determinista. De fato, se Marx entende a sociedade capitalista como uma totalidade, no a entende, entretanto, como uma totalidade expressiva: colocado de outra forma, no existe uma relao automtica ou de "reflexo" direito entre os diferentes momentos desta totalidade ou entre um momento particular e a totalidade como um todo.

    Uma anlise do capitalismo que no entenda essa unidade entre produo e reproduo retrocede ao materialismo vulgar ou economicismo, e Marx no comete esse erro. Alm dos escritos polticos, O Capital a prova disso, como por exemplo nas sees sobre a luta pelas jornadas de trabalho ou sobre a acumulao primitiva (MARX, 1990). Nestas pginas, se pode ver claramente que a coero, a interveno ativa do Estado, e a luta de classes so, de fato, componentes constitutivos de uma relao de explorao que no determinada apenas por leis econmicas e mecnicas.

    Estas observaes permitem que destaquemos como a ideia de que Marx concebe o capitalismo apenas em termos econmicos insustentvel. Isso no quer dizer que no houve tendncias reducionistas ou materialistas vulgares dentro da tradio marxista. Significa, entretanto, que estas tendncias se basearam em uma m compreenso fundamental da natureza da crtica marxiana da economia poltica e uma fetichizao das leis econmicas, que foram concebidas antes como coisas estticas ou estruturas abstratas do que como formas de atividade ou relaes humanas.

    Uma hiptese alternativa e oposta separao entre as leis puramente econmicas e outros sistemas de dominao conceber a unidade entre produo e reproduo como uma identidade direta. Esse ponto de vista caracteriza a seo de pensamento marxista-feminista, em particular a tradio trabalhista, que insistiu em ver o trabalho reprodutivo como diretamente produtivo de mais-valia, e portanto governado pela mesma lei.

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    Limitarei-me observao de que tal ponto de vista retorna a uma forma de reducionismo, que obscurece a diferena entre vrias relaes sociais e no nos ajuda a entender as caractersticas especficas das relaes de dominao diversas que no so apenas constantemente reproduzidas, mas tambm transformadas dentro de cada formao social capitalista. Alm do mais, no nos ajuda a analisar o caminho especfico no qual certas relaes de poder so colocadas para fora do mercado de trabalho, enquanto permanecem indiretamente influenciadas pelo mercado: por exemplo, atravs de diferentes formas de consumo de mercadorias, ou atravs de limites objetivos que o trabalho assalariado (ou seu equivalente, o desemprego) impe na vida pessoal ou nos relacionamentos interpessoais.

    Para concluir, proponho repensar a crtica marxiana do capitalismo como uma crtica de uma totalidade articulada e contraditria de relaes de explorao, dominao, e alienao.

    luz dessa clarificao metodolgica, podemos compreender a reproduo social dentro da chamada teoria unitria. O termo reproduo social, na tradio marxista, normalmente indica o processo de reproduo de uma sociedade em sua totalidade, como j mencionado. Na tradio marxista feminista, entretanto, reproduo social significa algo mais preciso: a manuteno e reproduo da vida, em nvel dirio e geracional. Neste contexto, reproduo social designa a forma na qual o trabalho fsico, emocional e mental necessrio para a produo da populao socialmente organizado: por exemplo, preparo da comida, educao dos jovens, cuidado dos idosos e doentes, assim como as questes domsticas e todo caminho at as questes de sexualidade...

    O conceito de reproduo social tem a vantagem de expandir nossa viso do que foi previamente chamado de trabalho domstico, foco de grande parte do feminismo-marxista. De fato, o conceito de reproduo social inclui uma srie de prticas sociais e tipos de trabalho que vo muito alm do trabalho domstico. Torna possvel tambm estender a anlise para fora das paredes do lar, desde que o trabalho de reproduo social no seja sempre encontrado das mesmas formas: qual parte vem do mercado, do Estado de bem-estar social, das relaes familiares, permanece uma questo contingente que depende das dinmicas histricas especficas e das lutas feministas.

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    O conceito de reproduo social, ento, nos permite localizar mais precisamente a qualidade mvel e porosa das paredes do lar: em outras palavras, a relao entre, de um lado, a vida domstica dentro do lar e o fenmeno de mercantilizao, sexualizao da diviso do trabalho, e as polticas do Estado de bem-estar social, de outro. A reproduo social tambm nos permite analisar mais efetivamente fenmenos como a relao entre a mercantilizao do trabalho de cuidado e sua radicalizao por polticas de migrao repressivas, como aquelas que possuem o objetivo de abaixar os custos do trabalho imigrante e forar a aceitao de condies de trabalho anlogas escravido.

    Finalmente, e este um ponto crucial, a forma como a reproduo social opera dentro de uma formao social dada tem uma relao intrnseca com a forma em que a produo e reproduo de sociedades so organizadas em sua totalidade e, portanto com as relaes de classe. Mais uma vez, estas relaes no podem ser concebidas como puramente interseces acidentais e contingentes: v-las pelas lentes da reproduo social nos permite identificar a lgica organizacional destas interseces sem por isso excluir o papel desempenhado pela luta, ou desconsiderar a existncia de fenmenos contingentes e prticas em geral.

    Devemos ter em mente que a esfera da reproduo social tambm determinante na formao da subjetividade e, portanto, das relaes de poder. Se levarmos em conta as relaes que existem em cada sociedade capitalista entre reproduo social, a produo da sociedade como um todo, e as relaes de produo, podemos dizer que estas relaes de dominao e poder no so estruturas ou nveis separados: eles no se interseccionam de maneira externa e no mantem uma relao meramente contingente com as relaes de produo.

    As relaes mltiplas de poder de dominao, portanto, aparecem como expresses concretas de uma unidade contraditria e articulada que a sociedade capitalista. Esse processo no deve ser entendido de forma automtica ou mecanicista. Como j foi notado, no devemos esquecer a dimenso da prxis humana: o capitalismo no uma mquina ou um autmato, mas uma relao social, e como tal, sujeita a contingncias, acidentes, e conflitos. No entanto, contingncias e conflitos no excluem a existncia de uma lgica nominalmente, a acumulao capitalista que impe limites objetivos no apenas nossa prxis ou experincia vivida, mas tambm

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    nossa habilidade de produzir e articular relaes com outros, nosso lugar no mundo, e nossas relaes com nossas condies de existncia.

    Isso exatamente o que a teoria unitria tenta alcanar: ser capaz de interpretar as relaes de poder baseadas no gnero ou orientao sexual como momentos concretos daquela totalidade articulada, complexa e contraditria que o capitalismo contemporneo. Deste ponto de vista, estes momentos concretos certamente possuem suas prprias caractersticas especficas e devem ser analisadas com ferramentas tericas adequadas e especficas (da psicanlise teoria literria...), mas eles tambm mantm uma relao interna com esta totalidade maior e com o processo de reproduo societal que prossegue de acordo com a lgica da acumulao capitalista.

    A tese essencial da teoria unitria a de que o feminismo marxista, a opresso de gnero e a opresso racial no correspondem a dois sistemas autnomos que possuem suas prprias causas particulares: eles passaram a ser uma parte integral da sociedade capitalista atravs de um longo processo histrico que dissolveu formas de vida social precedentes.

    Deste ponto de vista, seria um erro ver ambos como meros resduos de formaes sociais passadas que continuam a existir dentro da sociedade capitalista por razes pertencentes sua ancoragem na psique humana ou no antagonismo entre classes sexuadas, etc. Isto no subestimar a dimenso psicolgica de gnero e opresso sexual ou os limites entre opressores e oprimidos. Ao contrrio, uma questo de identificar o recorte e as condies sociais providos pelas relaes de classe que impactam, reproduzem, e influenciam nossas percepes de ns mesmos e de nossas relaes com os outros, nossos comportamentos, e nossas prticas.

    Este recorte social a lgica da acumulao capitalista, que impe limites e restries fundamentais s nossas experincias vividas e a forma como as interpretamos. O fato de que um nmero grande de correntes tericas feministas das ltimas dcadas tenham evitado analisar esse processo e o papel crucial desempenhado pelo capital na opresso de gnero em suas vrias formas, atesta sua capacidade de cooptar nossas ideias e influenciar nossas formas de pensar.

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