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CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Portugal: Celta Editora, 1999. Capítulo 2 – Cerimônias Comemorativas 1 [...] Nenhum festival estava dotado de uma força de culto mais poderosa do que aquele que comemorava o Putsch, o "batismo de sangue" de 1923. O seu tema era o sacrifício, a luta e a vitória final dos "antigos combatentes" do nacional-socialismo. Os sobreviventes do putsch, condecorados com a Ordem do Sangue, encontravam-se para a reunião tradicional na Burgerbraukeller de Munique, no dia 8 de Novembro, para ali ouvirem a al oc ão comemora ti va de Hitler dedicada aos "dezesseis mártires do movimento nacional-socialista". No dia seguinte, os "antigos combatentes" marchavam do Burgerbraukeller para o Feldherrnhale, repetindo ritualmente a marcha de 1923, ao longo de um caminho assinalado por archotes a arder, acompanhados de uma música fúnebre, do dobre dos sinos e da recitação lenta dos nomes de todos os que haviam sido mortos, desde 1919, ao serviço do partido. Estas cerimônias atingiram o aparato máximo em 1935. Nesse ano, os cadáveres exumados das dezesseis "testemunhas de sangue" foram colocados no Felherrnhalle, na véspera do dia das comemorações, e transferidos, a 9 de Novembro, em procissão solene, para o recém-construído Ehrentempel, na Konigplatz. O caminho era assinalado por duzentas e quarenta colunas, cada uma delas com o nome de um dos "caídos pelo movimento". À medida que a cabeça da procissão passava por cada coluna, o nome de um dos mortos era proclamado. Quando a procissão chegou ao Feldherrnhalle soaram dezesseis tiros de canhão, um por cada um dos dezesseis caídos de 1923. Enquanto os caixões eram colocados em carruagens para serem transportados para o Ehrentempel, Hitler depôs uma coroa de flores no monumento aos mortos. No Ehrentempel, os nomes das dezesseis "testemunhas de sangue" foram evocados, um por um, e o coro da Juventude Hitleriana respondeu à chamada de cada nome com o grito "presente!". Após cada grito soaram três tiros em saudação. Esta comemoração era uma representação paga da Paixão, apresentada num vocabulário pedido de empréstimo à religião. A narrativa relata acontecimentos históricos — mas acontecimentos históricos transfigurados pela mitificação que os transformou em substâncias inalteráveis e imutáveis. O conteúdo dos mitos é representado como não estando sujeito a qualquer espécie de mudança e o mito ensina que a história não é um jogo de forças contingentes — as constantes fundamentais são a luta, o sacrifício e a vitória. As virtudes cardeais do nacional-socialismo consubstanciadas, por assim dizer, mas dezesseis "testemunhas de sangue", são a obediência incondicional, a confiança absoluta e a preparação para o sacrifício até à morte. O fiasco político de 1923 não é, deste modo, reinterpretado e representado nem como uma derrota, nem como fútil e sem sentido. O destino mortal daqueles que nele tombaram deve ser interpretado não como uma morte sem sentido, mas como uma morte sacrificial. Deve ser entendido como um acontecimento sagrado, que aponta em frente, para um outro acontecimento sagrado, o de 30 de Janeiro de 1933, pois a tomada do poder não é interpretada como um mero êxito político, tal como o putsch de 1923 não o é como um mero fracasso político. Nenhum deles pertence à esfera das coisas mundanas. O acontecim ent o "sa gra do" do putsch pre fig urava a vitória, enquanto o acontecimento "sagrado" da tomada do poder dava, por fim, forma real ao conteúdo da revelação, o "Reich". Entre os dois acontecimentos estabeleceu-se uma concordância mítica e a data crucial recorrente desta narrativa mítica é o 9 de Novembro. Esta narrativa era mais do que o contar de uma história, era um culto encenado, era um rito estabelecido e representado. A sua história não era inequivocamente contada no pr et ér it o, mas no temp o de um pr esente metafí si co. Subestimaríamos o po der  comemorativo do rito, minimizaríamos o seu poder mnemónico, se disséssemos que ele recordava acontecim ent os míticos ao s participantes. Deveríamos antes diz er que o

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CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Portugal: Celta Editora, 1999.Capítulo 2 – Cerimônias Comemorativas

1

[...] Nenhum festival estava dotado de uma força de culto mais poderosa do queaquele que comemorava o Putsch, o "batismo de sangue" de 1923. O seu tema era o

sacrifício, a luta e a vitória final dos "antigos combatentes" do nacional-socialismo. Ossobreviventes do putsch, condecorados com a Ordem do Sangue, encontravam-se para areunião tradicional na Burgerbraukeller de Munique, no dia 8 de Novembro, para aliouvirem a alocução comemorativa de Hitler dedicada aos "dezesseis mártires domovimento nacional-socialista". No dia seguinte, os "antigos combatentes" marchavam doBurgerbraukeller para o Feldherrnhale, repetindo ritualmente a marcha de 1923, ao longode um caminho assinalado por archotes a arder, acompanhados de uma música fúnebre,do dobre dos sinos e da recitação lenta dos nomes de todos os que haviam sido mortos,desde 1919, ao serviço do partido. Estas cerimônias atingiram o aparato máximo em1935. Nesse ano, os cadáveres exumados das dezesseis "testemunhas de sangue" foramcolocados no Felherrnhalle, na véspera do dia das comemorações, e transferidos, a 9 de

Novembro, em procissão solene, para o recém-construído Ehrentempel, na Konigplatz. Ocaminho era assinalado por duzentas e quarenta colunas, cada uma delas com o nomede um dos "caídos pelo movimento". À medida que a cabeça da procissão passava por cada coluna, o nome de um dos mortos era proclamado. Quando a procissão chegou aoFeldherrnhalle soaram dezesseis tiros de canhão, um por cada um dos dezesseis caídosde 1923. Enquanto os caixões eram colocados em carruagens para serem transportadospara o Ehrentempel, Hitler depôs uma coroa de flores no monumento aos mortos. NoEhrentempel, os nomes das dezesseis "testemunhas de sangue" foram evocados, um por um, e o coro da Juventude Hitleriana respondeu à chamada de cada nome com o grito"presente!". Após cada grito soaram três tiros em saudação. Esta comemoração era umarepresentação paga da Paixão, apresentada num vocabulário pedido de empréstimo àreligião.

A narrativa relata acontecimentos históricos — mas acontecimentos históricostransfigurados pela mitificação que os transformou em substâncias inalteráveis eimutáveis. O conteúdo dos mitos é representado como não estando sujeito a qualquer espécie de mudança e o mito ensina que a história não é um jogo de forças contingentes— as constantes fundamentais são a luta, o sacrifício e a vitória. As virtudes cardeais donacional-socialismo consubstanciadas, por assim dizer, mas dezesseis "testemunhas desangue", são a obediência incondicional, a confiança absoluta e a preparação para osacrifício até à morte. O fiasco político de 1923 não é , deste modo, reinterpretado erepresentado nem como uma derrota, nem como fútil e sem sentido. O destino mortal

daqueles que nele tombaram deve ser interpretado não como uma morte sem sentido,mas como uma morte sacrificial. Deve ser entendido como um acontecimento sagrado,que aponta em frente, para um outro acontecimento sagrado, o de 30 de Janeiro de 1933,pois a tomada do poder não é interpretada como um mero êxito político, tal como oputsch de 1923 não o é como um mero fracasso político. Nenhum deles pertence à esferadas coisas mundanas. O acontecimento "sagrado" do putsch prefigurava a vitória,enquanto o acontecimento "sagrado" da tomada do poder dava, por fim, forma real aoconteúdo da revelação, o "Reich". Entre os dois acontecimentos estabeleceu-se umaconcordância mítica e a data crucial recorrente desta narrativa mítica é o 9 de Novembro.

Esta narrativa era mais do que o contar de uma história, era um culto encenado,

era um rito estabelecido e representado. A sua história não era inequivocamente contadano pretérito, mas no tempo de um presente metafísico. Subestimaríamos o poder comemorativo do rito, minimizaríamos o seu poder mnemónico, se disséssemos que elerecordava acontecimentos míticos aos participantes. Deveríamos antes dizer que o

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acontecimento sagrado de 1923 era reapresentado; os que participavam no rito davam-lhe uma forma cerimoniaImente corporizada. A realidade transfigurada do mito erareapresentada uma e outra vez, quando aqueles que tomavam parte no culto setornavam, por assim dizer, contemporâneos do acontecimento mítico. Todos os anos, amarcha histórica de 1923 repetia-se; todos os anos, soavam os dezesseis tiros, repetindoos dezesseis disparos mortais de 1923; todos os anos, as bandeiras eram agitadas não

como símbolos que se reportassem a um acontecimento acabado, mas como relíquiasconsubstanciais desse mesmo acontecimento. Acima de tudo, era através de atosrepresentados num lugar sagrado que a ilusão do tempo mundano era suspensa. NoFeldherrnhalle dava-se, todos os anos, uma forma presente à estrutura mítica. Neste locala diferença temporal era negada e a existência da mesma realidade, "verdadeira" e"autêntica", anualmente desvendada.

O regime nacional-socialista era recente e as suas cerimônias recém inventadas,apesar de adotarem deliberadamente alguns componentes cristãos — de calendário e decarater intrínseco — da mesma maneira que as cerimônias cristãs primitivas adotaramalguns elementos pagãos. Assim, o nazi estava para o cristão como o cristão estava parao pagão. Há uma traditio germânica muito antiga — assim identificada — e esta tem sidoem parte mantida em funcionamento.

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Acontecimentos da natureza dos que foram atrás referenciados fazem parte,claramente, de um fenômeno mais vasto, o da ação ritual. Existe um desacordosubstancial quanto à forma como a palavra ritual deveria ser utilizada, mas considero queuma das definições mais sucintas e funcionais à nossa disposição é aquela que Lukespropõe, sugerindo que empreguemos o termo ritual para designar "a atividade orientadapor normas, com carater simbólico, que chama a atenção dos seus participantes paraobjetos de pensamento e de sentimento que estes pensam ter um significado especial".As premissas contidas nesta definição podem ser reveladas através de três proposições

interligadas, cada uma das quais se pode enunciar mais facilmente sob uma formanegativa.

Os ritos não são meramente expressivos. É verdade que são atos com mais deexpressivo do que de instrumental no sentido em que ou não são dirigidos para um fimespecífico, ou, se o são, como no caso dos ritos de fertilidade, não conseguem alcançar oseu objetivo estratégico. Mas os ritos só são atos expressivos em virtude da suaregularidade notória, são atos formalizados e tendem a ser estilizados, estereotipados erepetitivos. Dado serem deliberadamente estilizados, não estão sujeitos à variaçãoespontânea, ou, pelo menos, só são suscetíveis de variação dentro de estritos limites.Não se realizam sob uma compulsão interior momentânea, mas são deliberadamente

celebrados para simbolizar sentimentos. Libertam, na verdade, sentimentos expressivos,mas este não é o seu objetivo central.Os ritos não são meramente algo de formal. Exprimimos vulgarmente a nossa

percepção do seu formalismo falando de tais atos como "meramente" rituais, ou comoformas "vazias", e pomo-los freqüentemente em contraste com atos e declarações àsquais nos referimos como "sinceras" ou "autênticas". Mas isto é enganador, pois aquelesque celebram os ritos sentem que estes são obrigatórios, mesmo que nãoincondicionalmente, sendo a interferência com atos dotados de valor ritual sempre sentidacomo uma injúria intolerável infligida por uma pessoa, ou grupo, a outro. Podemos achar que as crenças que outra pessoa qualquer considera sagradas são puramentefantásticas, mas nunca pode pedir-se de ânimo leve que a sua expressão efetiva seja

violada. E, inversamente, as pessoas resistem à obrigação de fazer louvores a umconjunto de ritos alheios, incompatíveis com a sua própria visão da "verdade", porqueencenar um rito é sempre, num certo sentido, estar de acordo com o seu significado.

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Obrigar os patriotas a insultarem a sua bandeira, ou forçar os pagãos a receber obatismo, é violentá-los.

O efeito dos ritos não está limitado à cerimônia ritual. E verdade que os rituaistendem a realizar-se em lugares especiais, em datas estabelecidas. E é um fato quemuitos ritos assinalam momentos de início e termo tanto em cerimônias nas alturascríticas da vida dos indivíduos — por exemplo, o nascimento, a puberdade, o casamento

e a morte —, como também nas cerimônias recorrentes do calendário, mas o que quer que os ritos demonstrem, impregna também o comportamento e a mentalidade nãorituais. Embora delimitados no tempo e no espaço, os ritos são também, por assim dizer,porosos. Considera-se que fazem sentido, porque têm significado relativamente a umconjunto de outras ações não rituais, para toda a vida de uma comunidade. Os ritos têm acapacidade de conferir valor e sentido à 'vida daqueles que os executam.

Todos os ritos são repetitivos e a repetição subentende automaticamente, acontinuidade com o passado, mas existe uma classe distintiva de ritos que têm um carater calendarizado explicitamente virado para o passado. Os festivais nacional-socialistaspertencem a este tipo e é fácil pensar em mais exemplos. Assim, em muitas culturas, os

festivais são realizados como a comemoração de mitos que lhes estão associados ecomo a recordação de um acontecimento que se pensa ter ocorrido numa data históricadeterminada, ou num qualquer passado mítico; existem cerimôniais recorrentes nocalendário, como o Dia de Ano Novo e os aniversários; as festas dos santos cristãoscomemoram-se em certos dias do ano; no cenotáfio, celebram-se cerimônias derecordação; as bandeiras são colocadas a meia-haste; põem-se flores nas sepulturas; eexistem atualmente mais de uma centena de embaixadas, em todas as capitais mundiaismais importantes, cada uma com, pelo menos, uma celebração nacional para a qual osfuncionários devem ser convidados, todos os anos. Algumas destas comemorações sãocelebradas de bom grado, outras são um fardo e outras não provocam mais do que umbocejo moderadamente emocionado. Contudo, a característica que todas têm em comum,

e que as afasta da categoria mais geral dos ritos, é que não implicam apenas acontinuidade com o passado, mas reivindicam explicitamente essa mesma continuidade.E muitas delas, nas quais desejo agora fixar a atenção, fazem-no através da reencenaçãoritual de uma narrativa de acontecimentos que se julga terem decorrido num tempopassado, de modo suficientemente elaborado para incluírem a performance deseqüências mais ou menos invariáveis de atos e declarações formais.

Em nenhum outro domínio é esta pretensão, de comemorar uma série anterior deacontecimentos fundadores sob a forma de um rito, mais amplamente expressa do quenas grandes religiões mundiais. Uma tal pretensão está nelas constantemente presente.

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[...] A primeira linha de argumentação, a que chamarei a posição psicanalítica,consiste na perspectiva de que o comportamento ritual se compreende melhor como umaforma de representação simbólica. Afirma-se que os ritos são o enunciadosistematicamente indireto, codificado no simbolismo do rito, de conflitos que esse ritodisfarça e, nessa medida, nega. O processo primário, que se considera explicar oprocesso secundário da representação simbólica, está localizado na história de vida doindivíduo, embora as interpretações psicanalíticas particulares do ritual possam variar,conforme a fase edipiana ou pré-edipiana da infância, ou outro qualquer processoconflitual, seja, ou não, tomada como a gênese de tais representações. Aquilo que todasessas interpretações têm em comum é descodificarem o texto ritual como tendo umacarga de conflito e estando, por isso, de certo modo, carregado de estratégias de

negação.É possível interpretar os rituais psicanaliticamente como representações

simbólicas, explicando essas representações em termos da história de vida do indivíduo.

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Assim, o entendimento que Freud tem do ritual é baseado na suposta analogia entre aontogenese e a filogénese, sendo o terreno da alegada analogia proporcionado pelo seuponto de vista de que a luta edipiana entre filhos e pais, no contexto da autoridadepatriarcal, é o processo primário. Nesta base, Freud é levado a especular que na históriade vida da espécie humana terá existido outrora uma horda primitiva constituída por umpai poderoso, os seus filhos e um grupo de fêmeas às quais o pai tinha acesso exclusivo;

que os filhos, ressentindo-se da sua dominação, o mataram; que, depois, reconheceramque o amavam, para além de o odiarem, ficando dominados pelo remorso; e que, comoreparação, restauraram a imagem do pai sob a forma substitutiva do animal totémico.Segundo esta interpretação, a refeição totémica que repetiam todos os anos devia entãoser vista como a repetição solene não do ato de parricídio em si, mas da forma de encarar esse ato,. que aqueles que o haviam cometido vieram posteriormente a adotar. Era umregresso da memória reprimida, no qual representavam e superavam o ato originário.Representavam a sua ambivalência para com o pai venerando e, devorandosimultaneamente o animal totêmico superavam essa ambivalência identificando-se com oanimal que comiam. A refeição totémica deve ser entendida como um ato derepresentação simbólica no sentido em que se tratava de uma repetição e de uma

comemoração deste feito criminoso e memorável. Sem nos exigir que aceitemos aontologia freudiana na globalidade, ou que aceitemos a sua projeção na história de vidada humanidade, Richard Wollheim propõe uma explicação psicanalítica alternativa doritual como representação codificada. Começando por observar que muitos ritos exigemuma morte, geralmente a de um animal, embora por vezes também a morte real ousimulada de um ser humano, sugere que tais atos são invariavelmente "exercícios denegação" e como tal pertencem à "patologia do ritual". O ritual nega, e aqueles que oexecutam negam, a realidade da agressão como impulso humano, a denegação é feitacolocando "entre parêntesis" o seu sentido. O fim para o qual a agressão como impulsose dirige inerentemente, a destruição de uma vida, é isolado. Uma vez isolado, este fim érecomendado como algo que deveria ser repetido uma e outra vez, mas sempre, em cadarepetição, o motivo pelo qual a vida deve ser tirada deve estar o mais afastado possívelda agressão — deve ser em nome da piedade, da decência, ou da reverência pelaautoridade. Aquilo que esses ritos se destinam a alcançar, sugere, é "a minimização ou adepreciação do sadismo", e este fim apenas se pode concretizar, tal como os ritos nocenário alternativo de Freud, pela representação quase textual codificada.

Uma segunda linha de argumentação, a que chamarei a posição sociológica,consiste na opinião de que o comportamento ritual se compreende melhor como umaforma de representação quase textual. Este tipo de leitura desenvolve-se enfatizando asformas como o ritual funciona para comunicar valores partilhados no interior de um grupoe para reduzir a dissensão interna. Segundo este ponto de vista, aquilo que os rituais nos

dizem é como são constituídos a estabilidade e o equilíbrio sociais. Mostram-nos como oethos de uma cultura e a sensibilidade moldada por esse ethos, quando soletrados para oexterior, são articulados no simbolismo de algo parecido com um texto coletivo único.

Podem encontrar-se muitas variantes influentes desta linha de interpretação.Segundo Durkheim, o ritual "representa" a realidade social tornando-a inteligível, mesmoque o conteúdo cognitivo do rito esteja codificado sob uma forma metafórica e simbólica.Neste sentido, podemos considerar os rituais religiosos, por exemplo, como sistemas deidéias nos quais "os indivíduos representam para si próprios a sociedade de que sãomembros e as relações obscuras mas íntimas que têm com esta". Esta idéia — queresulta do realce da componente fortemente cognitiva da explicação de Durkheim — deque os ritos podem ser interpretados como representações simbólicas e, neste sentido,

como possuindo conteúdo cognitivo, pode ser simultaneamente alargada e modificada.Pode ser alargada se considerarmos que o simbolismo dos rituais políticos representaconceitos particulares daquilo que é uma sociedade e de como ela funciona, e pode ser 

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modificada se considerarmos que esses rituais políticos operam no âmbito de contextos'políticos em que o poder é distribuído de modo sistematicamente desigual, o que nospermite interpretar os rituais como algo que possibilita um controlo cognitivo na medidaem que proporciona uma versão oficial da estrutura política através de representaçõessimbólicas, por exemplo, do "império", da "constituição", da "república", ou da "nação".Esses rituais podem ler-se como uma espécie de texto coletivo simbólico, mas a

possibilidade de interpretar os ritos como formas de representação simbólica pode ser levada ainda mais longe se, com Bakhtin, interpretarmos o Carnaval e, maisparticularmente, as festividades populares que floresceram durante o Renascimento comorepresentações antecipatórias. Segundo esta explicação, as inversões da ordemhierárquica características do Carnaval não devem continuar a ser interpretadas comouma forma encoberta de reafirmar a hierarquia, mas, pelo contrário, como um mecanismode libertação social, no qual o expediente da representação simbólica é utilizado comoalavanca. O Carnaval é assim visto como um ato em que "os indivíduos" se organizam “àsua maneira", como uma coletividade onde os membros individuais se tornam parteinseparável da massa humana, de tal forma que "as pessoas" se apercebem da suaunidade corporal sensual-material. Pode então dizer-se que as formas populares-festivas,

ao permitirem a aglutinação de um tal corpo coletivo, oferecem às pessoas umarepresentação simbólica não das categorias presentes, mas da utopia, a imagem de umestado futuro no qual se concretiza a "vitória da abundância material de todo o povo, aliberdade, a igualdade e a fraternidade". Os ritos do Carnaval representam e prefiguramos direitos do povo. Como forma de interpretar os ritos, esta argumentação oferece-nosuma espécie diferente de codificação simbólica, em que aquilo que de outro modo seriacalado e indizível é expresso e a dimensão do tempo futuro implicitamente revelada.Como interpretação da ação ritual, pertence, todavia, ao mesmo gênero que o seucorrespondente durkheimiano, o da representação simbólica numa espécie de textocoletivo.

Uma terceira linha de argumentação, à qual chamarei a posição histórica, consisteno parecer de que os ritos não se podem compreender de forma satisfatória apenas emtermos da sua estrutura interna, pois todos os rituais, não importa quão venerável seja aancestralidade que lhes é atribuída, têm de ser inventados em alguma altura e, durante operíodo histórico em que permanecem vivos, o seu significado é suscetível de mudança.Esta explicação levou à tentativa de redescobrir o significado dos cerimoniais,reenquadrando-os no seu contexto histórico. Segundo este ponto de vista, situar um ritono seu contexto não constitui um mero passo auxiliar, mas um ingrediente essencial aoato da sua interpretação. Investigar o contexto de um rito não é estudar apenasinformação adicional a seu respeito, mas sim colocarmo-nos em posição de obter maior compreensão do seu significado do que aquela que seria acessível a "alguém que o

interpretasse como um texto simbólico independente". Seguindo esta linha depensamento, muitos historiadores têm demonstrado que, se quisermos redescobrir osignificado dos rituais da realeza no início do período moderno, temos de relacioná-losinteligivelmente com as circunstâncias em que foram realizados. Outros historiadores,especializados num período posterior, mostraram que sempre que as instituições sociais,para as quais as "velhas" tradições foram concebidas, começam a ruir sob o impacte deuma rápida evolução social, ocorre uma invenção imediata e muito difundida de novosrituais, a qual invenção do ritual acaba por ser simultaneamente um problema geral e umfenômeno de interesse particular nas sociedades pós-tradicionais.

Deste modo, é agora muito claro que, no período moderno, as elites nacionaisinventaram rituais que reclamam a continuidade com um passado histórico adequado,

organizando cerimônias, paradas e reuniões de massas e construindo novos espaçosrituais. Isto é verdade tanto para a Europa como para o Médio Oriente. Tanto a TerceiraRepública como a Alemanha de Guilherme investiram capital simbólico em tradições

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inventadas. Em França, o Dia da Bastilha tornou-se uma data histórica em 1880 e, naAlemanha, a Guerra Franco-Prussiana tornou-se um acontecimento histórico no seuvigésimo quinto aniversário, quando se instituiu uma cerimônia comemorativa, em 1896.Ambas comemoravam os atos fundadores do novo regime, diferindo apenas na maneiracomo o mito da fundação era interpretado. Nos dois casos, o contexto dos ritos demonstraa sua função ideológica. Em França, a burguesia republicana moderada inventou um rito

como parte da sua estratégia para afastar a ameaça de inimigos políticos à esquerda.Conseguiram-no através de uma reafirmação anual da França como a nação de 1789, naqual os símbolos da bandeira tricolor e de A Marselhesa e a referência à liberdade, àigualdade e à fraternidade, lembrassem aos cidadãos da Terceira República o fatoalegadamente unificador da pertença à nação francesa. Na Alemanha, o regime deGuilherme II inventou cerimônias como parte da sua estratégia para garantir a um povo, oqual não possuía qualquer definição política anterior a 1871, que auferia, na verdade, deuma identidade nacional. Conseguiram-no através da celebração da unificaçãobismarckiana da Alemanha, como a única experiência histórica nacional partilhada por todos os cidadãos do novo império. Em épocas mais recentes, duas celebraçõesreinventaram ritualmente a história antiga, no Médio Oriente. Uma foi a comemoração da

heróica defesa e queda de Masada, na revolta judaica contra os Romanos/no ano 66 daera cristã. A outra foi a celebração, inaugurada pelo xá do Irão, dos dois mil e quinhentosanos da fundação do estado e da monarquia persas por Ciro, o Grande. Ambos os cultos,o de Masada e o de Ciro, reportam-se a temas há muito esquecidos e, na verdade,desconhecidos entre os povos respectivos, não dizendo a tradição rabínica coisa algumasobre Masada e não tendo os Persas preservado qualquer registro de Ciro. Em ambos oscasos, a memória foi recuperada a partir de fontes exteriores, recebeu patrocínio político efoi transformada no foco das festividades nacionais. Em Israel, os ossos encontrados nasruínas de Masada foram de novo solenemente inumados, com uma cerimônia militar. NoIrão, organizaram-se cerimônias junto à sepultura de Ciro. O culto de Masada destinava-se a restaurar a dimensão político-militar oculta da identidade judaica. O culto de Cirotinha como fim dramatizar a transformação dos Persas, de uma comunidade religiosa comuma identidade centrada no islão, numa nação secular com uma identidade centrada noIrão. Ambos os conjuntos de ritos inventados celebravam o heroísmo nacional.

Os tipos de explicação que acabei de passar em revista e aos quais, por umaquestão de clareza, chamei explicação psicológica, sociológica e histórica da ação ritual,procuram, todos eles, penetrar além do propósito e significado ostensivos dos ritos, com oobjetivo de atingirem o propósito e significado "reais" que se diz jazerem sob a superfície.E isto dá origem à questão de saber se poderemos ter um bom motivo para pensar que osrituais, que são representados como sendo explicitamente comemorativos, têm naverdade a importância, como meios de transmissão da memória social, que os seus

participantes reivindicam para eles. Essa questão pode abordar-se melhor, segundopenso, em duas etapas: considerando, em primeiro lugar, as características da formaritual que as cerimônias comemorativas têm em comum com outros atos rituais de tipoduradouro e considerando, depois, as características que definem as cerimôniascomemorativas como rituais de uma espécie diferente. Pretendo demonstrar que, aoprocurarmos compreender as características que as cerimônias comemorativas têm emcomum com outros rituais elaborados, estamos sujeitos a ser embaraçados por umatendência característica da maioria das interpretações modernas do ritual, que nos induza focalizar a atenção no conteúdo e não na forma do ritual. E pretendo assim provar que,ao procurarmos compreender as características que distinguem as cerimôniascomemorativas como rituais de um tipo particular, podemos ser estorvados por uma

tendência, característica de muita da moderna auto- -interpretação, para desvalorizar ouignorar a universalidade e a importância, em muitas culturas, de ações que se realizamexplicitamente como reativação de outras ações que são consideradas prototípicas. A

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nossa compreensão das cerimônias comemorativas encontra, assim, obstáculos em doiscampos.

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Consideremos agora a primeira dificuldade: a tendência para focalizar a atençãosobre o conteúdo e não sobre a forma do ritual. Os três métodos de interpretação do ritualque acabei de descrever partilham um pressuposto comum. Todos explicam o ritual comouma forma de representação simbólica, todos procuram compreender a "questão" ocultaque está "por detrás" ldo simbolismo ritual, através de um ato de tradução pelo qual otexto codificado do ritual é descodificado para outra linguagem. Quando nos centramos noconteúdo simbólico oculto do ritual orientamos a atenção para as características que estepartilha com algumas outras maneiras de articular o significado de uma forma estruturada,particularmente os mitos e os sonhos. Todavia, esta ênfase nas características comuns,presente nas três posições referenciadas, embora seja muitas vezes esclarecedora, nadanos diz, por definição, sobre as características que identificam o ritual. Voltarei, maistarde, a este tópico. Vejamos primeiramente a analogia evidente com o mito e, depois, emque aspectos o mito e o ritual divergem.

Tanto o ritual como o mito podem ser vistos, de forma bastante apropriada, comotextos simbólicos coletivos. E, nesta base, podemos sugerir que as ações rituais deveriamconsiderar-se exemplificativas do tipo de valores culturais que são também expressosmuitas vezes nos enunciados elaborados a que chamamos mitos — que exemplificamestes valores por um outro meio. Lévi-Strauss, por exemplo, demonstrou como umconjunto de mitos índios sul-americanos se refere constantemente ao contraste entre acarne crua e a carne cozinhada, por um lado, e ao contraste entre os vegetais frescos eos vegetais podres, por outro. Carne crua, carne cozinhada, vegetais frescos e vegetaispodres são coisas concretas; porém, quando agrupadas de forma a definir um padrão,como acontece em muitos mitos índios da América do Sul, aquele número limitado decategorias permite sustentar a idéia abstrata de um contraste entre um modo cultural de

transformação e um modo natural de transformação. Trabalhando com base nesta idéia,Edmund Leach observa que essa padronização em redor da oposição entre um processocultural e um processo natural pode ser expressa por diferentes meios, pois podeexprimir-se tanto por palavras — cru, cozinhado, fresco, podre — e ser exposta sob aforma de uma narrativa mítica, como expressar-se por coisas, e revelar-se através dacombinação ritual dos objetos apropriados. A padronização de um ritual ou de um mitopode servir igualmente como armazém complexo de informação.

O problema surge quando esta questão é excessivamente generalizada. Oexemplo que acabei de citar parece conduzir naturalmente à sugestão de que se deveriaconsiderar que as ações rituais exemplificam os valores culturais, freqüentemente

expressos também nos enunciados míticos, que os exemplificam por outro meio. Masmuita coisa depende da expressão "por outro meio". Interpretar o ritual como um meiosimbólico alternativo para exprimir aquilo que pode ser expresso por outros meios e, emparticular, sob a forma de mito, é ignorar aquilo que o ritual tem, em si próprio, dediferente. Todavia, uma vezt que comecemos a considerar a forma do ritual como distintada forma do mito, somos levados a ver que o ritual não é apenas uma maneira alternativade exprimir certas crenças, mas que certas coisas só podem ser expressas através doritual.

Ver-se-á então que o ritual e o mito diferem estruturalmente, pelo menos numaspecto fundamental. Um mito pode ser narrado por um cantor a uma audiência, comoforma de divertimento, por um pai aos filhos, como lição, ou por um estruturalista a

leitores implícitos, como um conjunto de opostos. Recitar um mito não é necessariamenteaceitá-lo. Aquilo que a recitação de um mito não faz, e que a execução de um ritual fazessencialmente, é especificar a relação que prevalece entre os atores do ritual e aquilo

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que estes estão a executar, daqui resultando a existência de um elemento de invariânciacodificado na estrutura do ritual que não se encontra presente no mito.

Esta diferença estrutural é evidente na forma como alguns dos mitos primitivos dacultura ocidental têm sido remodelados e reinterpretados. As adaptações do mito naforma dramática, e os possíveis limites colocados a uma tal tarefa, foram objeto de umdebate animado nas últimas décadas do século XIX. Nessa época expressava-se muitas

vezes a opinião de que o material que proporcionava o tema de grandes obras dramáticasóu trágicas seria tratado de várias maneiras até que um grande dramaturgo encontrasse,finalmente, a forma completa e definitiva para esse material mítico, que ficaria entãoesgotado. Defendia-se, deste modo, que tinham sido feitas muitas readaptaçõesdramáticas do mito de Don Juan até este ter recebido a materialização perfeita na óperade Mozart. O mesmo julgamento foi aplicado às versões dramáticas mais antigas do mitode Fausto até este ter recebido a forma definitiva no Fausto de Goethe. Por isso,prosseguia esta argumentação, não valia a pena querer ainda produzir um outro DonJuan, depois de Mozart, ou um outro Fausto, depois de Goethe. O objetivo destesargumentos era demonstrar que a reestruturação criativa do material mítico era umprocesso finito. Porém, este objetivo apenas era alcançado reconhecendo, em cada caso,que aquele processo constituía, na verdade, uma história de reinterpretações, umprocesso de readaptações substanciais e variadas até ser dada uma forma definitiva aomaterial mítico.

É possível conceber uma variância criativa acrescida, que não se enquadre maisnum esquema do tipo acima referido: uma pré-história das interpretações que éfinalmente suplantada por uma interpretação definitiva. Tanto no caso do mito de DonJuan como no do mito de Fausto, pode ser apropriado falar-se de soluções para otrabalho de readaptação do material mítico que eram imperfeitas e preliminares, e de umasolução mais tardia e definitiva. Mas o mito de Orestes-Electra não pode ser ajustado aum tal padrão. Neste caso, o mesmo material mítico e a mesma situação trágica básica

são reestruturados dramaticamente pelos três grandes autores da tragédia grega e, maistarde, novamente sob uma forma moderna, pelo maior de todos os dramaturgosmodernos, em Hamlet. Deparamos com várias representações dramáticas do mesmomaterial mítico, bastante diferentes umas das outras. Mesmo se deixarmos de lado aversão de Eurípides, dado o estatuto de autoria desta ter sido posta em causa por várioscríticos, incluindo Aristóteles, ficam ainda três peças que se contam entre as maiores detodas as tragédias, mas entre as quais é impossível escolher uma única e proclamar queessa representa, em comparação com as outras, a adaptação definitiva do materialmítico.

[...]

Estas reconfigurações do material mítico revelam, de forma extrema, umacaracterística intrínseca ao mito como tal. O conteúdo simbólico do mito grego não ficaesgotado em nenhuma combinação formal única. O material simbólico desses mitos nãotem a invariância e a inércia de algo já preestabelecido e formalizado. Constitui, pelocontrário, algo mais semelhante a um reservatório de significados que está disponívelpara voltar a ser possivelmente usado noutras estruturas. O material mítico contém umavariedade de significados potenciais que excede significativamente o seu uso e função emqualquer combinação particular, em qualquer estrutura dramática singular. Tal comoacontece também com muito do material do Antigo Testamento, por exemplo, embora alimais sob a forma de repetição narrativa e comentário, uma rede de acontecimentosmíticos goza de uma significativa historicidade, de um longo processo interpretativo de

renovação e de variação. A reutilização dos mitos gregos, tanto na cultura da antigaGrécia como em contextos culturais posteriores, depende daquilo a que podemos chamar um excedente de significado — um excedente que pode ser realizado em combinações

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interpretativas variáveis, quando o material mítico é reestruturado noutras formasdramáticas.

Em comparação com os mitos, a estrutura dos rituais tem significativamente menospotencial de variação. É verdade que todos os rituais tiveram de ser inventados em algummomento, podendo os pormenores da sua articulação desenvolver-se ou variar emconteúdo e importância com a passagem do tempo. Todavia, continua a existir um

potencial de invariância incorporado nos ritos, mas não nos mitos, em virtude do fato,intrínseco à natureza dos rituais — mas não dos mitos — de estes especificarem arelação que prevalece entre a execução do ritual e aquilo que os participantes estão aexecutar. Daí resulta que, se se quiser tomar precauções consideráveis para proteger aidentidade do material simbólico de uma cultura, é aconselhável orientarem-se essasprecauções para a proteção da identidade do seu ritual. E, na verdade, muitas sociedadestradicionais, nas quais o simbolismo parece ser imutável, agem como se tivessem visto operigo de uma evolução excessivamente rápida: fazem tudo para impedir a mudança.Duas tradições, em particular, exemplificam, de forma impressionante e largamentedocumentada, este fato. A liturgia da missa persiste há quase dois milênios, durante osquais só mudou muito lentamente. Os credos recitados na missa existem há muito tempo,na sua forma presente. Mais uma vez, embora alguns aspectos das suas liturgias variemconsideravelmente, respondendo talvez, neste aspecto, às diferenças de circunstânciahistórica, os rituais dos judeus asquenases do Norte da Europa, dos sefarditas doMediterrâneo, dos falachas da Etiópia, dos benis da índia, dos caraítas da Crimeiaconservam, numa posição fulcral, a profissão de fé a que chamam Shema.

Esta tendência para a invariância resulta da forma particular como funciona alinguagem litúrgica. Podemos caracterizar este traço negativamente, dizendo que nãoemprega formas de comunicação que tenham força preposicional, que não consiste norelato de acontecimentos, na descrição de objetos, no enunciado de descobertasexperimentais, ou na formulação de hipóteses. Podemos caracterizá-lo positivamente,

dizendo que a linguagem litúrgica é uma certa forma de ação que põe algo em prática.Não se trata de um comentário verbal sobre uma ação exterior a si, pois, em si e por siprópria, a linguagem litúrgica é uma ação. A natureza desta ação pode ser dividida emduas propriedades distintas, cuja existência e eficácia explicam simultaneamente porqueé que a linguagem ritual funciona tão poderosamente como instrumento mnemónico.

Em primeiro lugar, o ritual é uma linguagem performativa. Um enunciadoperformativo não fornece a descrição de uma determinada ação. O próprio enunciado daperformance constitui uma ação de certo tipo, para além da ação obviamente necessáriade produzir sons com sentido. E esta ação, uma promessa ou um voto, por exemplo, sópode ser executada pela enunciação de certas palavras prescritas. Uma liturgia é umaordenação de atos discursivos que ocorre quando esses enunciados se concretizam, e só

nessas alturas. Se não se realizarem, o ritual não existe.Em segundo lugar, o ritual é uma linguagem formalizada, os seus enunciados

tendem a ser estilizados e estereotipados e a comporem-se de seqüências de atosdiscursivos mais ou menos invariáveis. Os enunciados não são produzidos pelos atores,mas encontram-se já codificados num cânone, podendo por isso ser repetidos comexatidão. Aquilo que é referido no enunciado canónico é referido em seqüências depalavras e de atos que, por definição, já foram realizados antes.

A performatividade do ritual é, em parte, uma questão de enunciado: o enunciadorecorrente de certos verbos e pronomes pessoais característicos. Entre os enunciadosverbais que se encontram mais vulgarmente nos ritos estão as pragas, as bênçãos e os

juramentos. Considera-se que, na verdade, muito, se não tudo, depende, em cada caso,da exatidão do próprio enunciado. Uma praga procura sujeitar o seu objeto à ascendênciado seu poder. Uma vez pronunciada, uma praga continua a confiar o seu objeto ao

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destino que invocou e julga-se que continua em vigor até a sua potência se extinguir. Umabênção não é um mero desejo piedoso, considera-se que ela confere dons da sorteatravés do emprego de palavras, e tal como a praga e a bênção, o juramento é umaexpressão com poder, de efeito automático que, se a afirmação que o acompanha nãopuder ser confirmada, consagra aquele que presta juramento a este poder. O testemunhosob juramento é considerado determinante para se decidir sobre a culpa ou a inocência.

As pragas, as bênçãos e os juramentos, bem como outras expressões verbaisfreqüentemente presentes na linguagem ritual, como, por exemplo, "pedir", "orar", ou "dar graças", pressupõem certas atitudes — de confiança e de veneração, de submissão,contrição e gratidão — que entram em vigor no momento em que, por meio daenunciação da frase, o ato correspondente ocorre. Ou melhor: esse ato realiza-se na epela enunciação. Aquelas expressões verbais não descrevem nem indicam a existênciade atitudes: elas trazem efetivamente essas atitudes à existência através do ato elocutivo.O mesmo resultado é conseguido, na linguagem ritual, por uma utilização característicados pronomes pessoais. A linguagem litúrgica faz um uso especial do "nós" e do "eles". Aforma plural de "nós" e "nos" indica que, embora existam vários oradores, estes estão aagir coletivamente, como se fossem um único, uma espécie de personalidade coletiva.

Anteriormente a essa elocução pronominal, existe um estado de preparaçãoindiferenciado expresso pela presença de todos os participantes no local onde a liturgiavai ser celebrada. Ao proferir-se o "nós" constitui-se, dá-se forma definitiva, a umadisposição básica entre os membros da comunidade litúrgica. A comunidade é iniciadaquando os pronomes da solidariedade são repetidamente pronunciados. Ao pronunciaremo "nós", os participantes reúnem-se não só num espaço exteriormente definível, mastambém numa espécie de espaço ideal determinado pelos seus atos discursivos. O seudiscurso não descreve o aspecto possível de tal comunidade, nem exprime umacomunidade constituída antes e separadamente dele. Os enunciados performativos são,por assim dizer, o lugar onde a comunidade é constituída e recorda a si própria o fato dasua constituição.

A performatividade está também codificada nas atitudes do corpo, nos gestos emovimentos. Os recursos desta codificação são elementares. Nos ritos, dá-se ao corpo apostura e os movimentos apropriados através das ações prescritas. O corpo, quando depé, mantém-se rígido e vigilante. As mãos são unidas e postas como que em oração. Aspessoas curvam-se e expressam a sua impotência ajoelhando-se, ou podem abandonar completamente a postura ereta na humilhação da prostração corporal. A relativa escassezdestes repertórios é a origem da sua força. Os recursos da linguagem comum, a suavariedade semântica e flexibilidade de tom e de registro, a possibilidade de se produziremenunciados que podem ser qualificados, ironizados e retratados, os modos condicional econjuntivo dos verbos, a capacidade da linguagem para mentir, para ocultar e para dar 

expressão idealizada àquilo que não se encontra presente — todos estes recursosconstituem, de um certo ponto de vista, uma deficiência de comunicação. A subtileza dalinguagem vulgar é tal que pode sugerir ou indicar níveis finamente graduados desubmissão, respeito, indiferença e desprezo. As interações sociais podem ser negociadasatravés de um elemento lingüístico de ambigüidade, imprecisão e incerteza, mas osrecursos limitados da postura, do gesto e do movimento rituais despojam completamentea comunicação de muitos pttzzles hermenêuticos. Uma pessoa ajoelha, ou não ajoelha,faz o movimento necessário para executar a saudação nazi, ou não faz. Ajoelhar emsubmissão não é o mesmo que declarar submissão, nem serve apenas para comunicar uma mensagem de submissão, é antes exibi-la através da substância visível e presentedo nosso corpo. Os que se ajoelham identificam a posição do seu corpo com a sua

predisposição para se submeterem. Estes atos performativos são maneirasparticularmente eficazes de "dizer" por serem inequívocas e materialmentesubstancializadas. E a elementaridade do repertório, do qual estes "dizeres" são retirados,

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torna simultaneamerte possíveis o seu poder performativo e a sua eficácia como sistemasmnemónicos.

Oformalismo da linguagem ritual tem um efeito mnemónico ainda mais evidente.Podemos dizer que uma linguagem é formalizada quando é sistematicamente compostade forma a restringir o leque de escolhas lingüísticas disponíveis. Este é sobretudo o casocom os rituais em que muitas opções lingüísticas foram abandonadas para que a escolha

das palavras, da sintaxe e do estilo seja vincadamente mais restrita do que na linguagemquotidiana. Claro que a economia da formalização não é exclusiva do ritual. O mecanismodo "paralelismo canônico", que figura largamente no discurso ritual, encontra-se tambémna poesia oral tradicional. Pode dizer-se que existe uma tradição do paralelismo canônico,segundo Jakobson, "quando certas semelhanças entre seqüências verbais sucessivassão compulsivas ou gozam de grande preferência" — daí a recorrência de um corpoestandardizado de "pares de palavras fixados convencionalmente".A proeminência de talparalelismo lingüístico em todas as literaturas orais do mundo, e a sua importância comodispositivo mnemónico, foi demonstrada por inúmeras pesquisas. O caso clássico é o dapoesia oral finlandesa, sendo os feitos épicos registrados na Kalevala o exemplo depoesia paralelística mais freqüentemente citado depois do Antigo Testamento. Bloomfielddefendia que a "estrutura em cadeia" dos textos védicos é também "análoga ao chamadoparalelismo na poesia hebraica".29 Têm sido ainda documentadas tradições deparalelismo entre os Chineses antigos e os Gregos primitivos, em numerosas tradições"populares" no Sul da índia e no Sudeste asiático e entre os idiomas dos índiosamericanos, principalmente na literatura maia e asteca antiga e nas formas elaboradas deritmo e de repetição dos cânticos navajos. O paralelismo canônico é, assim, umacaracterística comum à poesia oral e ao ritual. Porém, no ritual este dispositivo écombinado com outros tipos de formalização onde o discurso, o canto, o gesto e a dançasão combinados num todo compósito. De fato, um acontecimento que não contivessetodos estes elementos não seria provavelmente descrito pelos antropólogos como um

ritual. São estas características que, em conjunto, constituem a marca distintiva do ritual.Comparado com o discurso quotidiano, o discurso ritual caracteriza-se não só peloparalelismo canônico, mas também por um vocabulário restrito, pela exclusão de algumasformas sintáticas, por uma rigidez na seqüência dos atos discursivos, por padrões fixos novolume das elocuções e por uma flexibilidade limitada da entoação. Todas estascaracterísticas impelem os atos de discurso ritual na mesma direção.30 Deste modo, umaqualquer elocução isolada, em vez de poder ser seguida por um grande número deelocuções potenciais, só é possível acompanhá-la por um conjunto limitado ou, naverdade, na maior parte dos casos, por uma elocução apenas. O fim de um ato discursivoé previsível desde o seu início porque, uma vez iniciado, existe uma única seqüênciacorreta para uma pessoa prosseguir. Além disso, tal como as articulações num único ato

discursivo estão formalmente predeterminadas, também as articulações entre os atosdiscursivos dos diferentes participantes estão fixadas de antemão. A partir do atodiscursivo de um participante pode predizer-se o do seguinte. Mais uma vez, no discursoritual a escolha da entoação ou do ritmo da enunciação é limitada. Sempre que ocorreuma passagem do discurso entoado para o canto, é introduzida uma restrição ainda maior na escolha da entoação e do ritmo e adaptados uma entoação e um ritmo ainda maisafastados dos padrões variados do discurso quotidiano. Finalmente, a postura, o gesto eo movimento atualizados, em vez de se combinarem de forma flexível para conferiremvariedade e ambigüidade de informação, como naquilo que descrevemosconvencionalmente como situações do quotidiano, têm um padrão restritivo e são, por isso, facilmente previsíveis e repetíveis de um ato para o seguinte e de uma ocasião ritual

para a seguinte.