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1No Brasil: da teoriaà prática

LEITURAS RECOMENDADAS:

BAYUS , Jchn: SMITH. Steve , 17.. Glbbaliuuwn of World Politics ,Ox:ford : Oxford Un ivershy Prcss, 200 1. VlGEZZI, Brunello. TireB";·tis/r Com", i"'e O" rhe Theory of ltuernational Polnics (1954 -1985).The Redí scov ery of I-llstory. Milano : Unicopli , 2005 . WATSON, Adarn ,A evolução dll sociedade ;ntemacWnal: urna an41iS<' histórica compara­da, Bnsi1io: U rLB, 2004 . DUROSELl .F. , Jcan-Bap tist c , Todo im~";o pe­recerá: recria das relaçõe s Internacionais. Bra, lli. : UnB , 2000. SALAll ,Tsbn zí Ben, Institution< lnternanoa ales. Pans: Atm and Colin, 2005 .SMOUTS, Marle-Claurle . (Or-g.) . Les nmlv.ll4s relat ions intema/uma ·I. ,; p•• t iques et th éoríes. Paris : Scien ces Po., 1998 . BERNAL-MEZA,RaúJ. A molrica LtuilUl . tI el Mundo. El pen ..rmenro lat ino. meri"""oy I. teo ría de rdad oncs intcrnacio nales. Bue nos Aires: N uevohacer,2005 . MANZUR , Tânia M. P. G . Opinião públ ica' poltuco exteriorn,U go",,",OS de Iôn io Q uadros e 106.0 GOlIlart ( 196 1 " 1964) . 2000 .Tese (Doutorado). U nlversíd ade de Brasília, Brasília. CARDOSO. Fer­nand o H en rique . Poliri"" externa em tempos de mudança . Bmsi1ia: Fu­nas , 1994 . LAFER. C elso . Mudam ·se OS t. mpos. dí plomac la brasile ira,200 1·2002. erasai,; Funag..2 00 2. C ERVO, Amado Luiz . (O rg.) . O de­safio int. mado7uú: . po liti<" . ext erior do Bras il de 1930 a n 0 550 S dias.BrasOia: UnB. 1994. AL\ofEIDA, Paulo Roberto de. Relaçi>rs int........·n ana is e pollrica nterna do Branl: lust ôna c socio logís da t1íploma cia

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8 - CQNCUTllI. TUJlSIÇ6ES E ' ..AmGIMS

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1.1 Diplomacia. política exterior e relações ínternacionaisOs termos diplomacia, polít ica exterior e relaçôes internacionais corres­

pondem a três dimensões da convivência entre os povos, as quais, ao con­verterem-se em objetos de an~li~c , dão origem a tr ês conceitos distintos . Aespecificidade de cada con ceito é det erminada pelo grau de abrangência quecomporta: as relações iuternacionais correspondem ao con ceito mais largo,uma vez que incluem a política exterior, que.•~m ordem decrescente deabrangência, inclui a diplomacia.

A diplomacia compreende a ação externa dos governos expressa em ob­jetivos, valores c padrões de conduta vinculados a uma agenda de com pro­rnissos pelos qu ais se pretende realizar detcnninados interesses. Essa agendaé, em prindpio, determinada mu ito mais de fora do que de dentro de cadanação. O elevado grau de determinaç ão externa da diplomacia pode ser ob­servado em sua dimensão global, regional e bilateral.

O que internacionalistas chamam de govemança global, sociedade inter­nacional ou ordem un iversal constitui , ao mesmo tempo, um conjunto deregras, um cálcul o de interesses e um código de valores. Quando uma confe­rência -internacional promove a negociação desses elementos, por exemplo,no campo do melo amb iente, das finanças , do comércio, dos direitos buma­nos e de outros direitos, da segurança e de outras questões de alcance uni­versal , a agenda não é determinada por esse OU aquele país ou bloco político,mas de forma coletiva, nem sempre como expressão .da autonomia decisórianacional. Observa-se, ademais, urna disparidade de peso relativo entre osgovernos, seja quando estabelecem a agenda internacional da diplomacia,

seja quando atingem resultados esperados. Essa disparidade de peso pode serexplicada pelo maior ou menor poder de que dispõe cada Estado ou bloco deEstados que compõem o sis~ema internacional.

Os processos de integração que vêm se multiplicando nas últ imas décadastambém espelham esse caráter externo da diplomacia, porquanto lidam comos mesmos fatores em dimensão regional , com vistas ao relacionamento dospaíses que integram um bloco e do conjunto desses com outros blocos ou

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NoBusll: DA nD",• Púnl:A 9

pa íses . Mesmo a esfera <hação diplomática bilateral evidencia a externalida­de da diplomada, na medida que pelo menos dois governos consentem emnegociar uma agenda comum.

Por sobre a ação diplomática de todos os países e blocos de países, convi­ria, para a sorte da humanidade, que se estabelecesse o equilfbrio na nego­ciação , envolvendo interesses, valores im plíci tos e regras comuns. Mas esseeq uilíbrio não oc o rre na prática e os conceitos de pol ítica exterior e relaçõesinternacionais fornecem explicações para as desigualdades entre potências,ou sej a, entre capacidades dispares de influência dos governos no que dizrespeito aos resultados da ação diplornãtica.

Antes de 1990, a política exterior gozava de elevada consideração pelosgovernos e estudiosos, porque, como se supunha , condicionava a margem demanobra de uma diplomada. Depois disso, inteligências ficaram em dúv idaquanto a sua conveniência, especialmente os neoliberais latino-americanos,acadêmi cos e dirigentes, que a desejavam enfraquecida ou mesmo banidado processo decisório de Estado e dos currículos nas universidades. A or­dem sistêrnica provida pela globalização bast-ava, em seu entender. No iníciodo século XXI , todavia, à sombra do unilateralismo norte-americano, bemcomo em razão de efeitos nocivos da globalização e estando a integração embaixa como alternativa a esses problemas internacionais, a política exteriorrecuperou seu lugar de destaque na consideração dos governos e nos estudosacadêmicos . Na verdade, a polftica exterior não perdera tanto espaço comodisciplina acadêmica e prática política na era da globalização. Em países ce n­trais, a literatura a respeito da política exterí~r não cessa de crescer. NaAmérica Latina, depois das criticas a que o modelo neol iberal est eve expos­to , a pol ítica exterior recupera seu prestigio.

Uma das razões para isso consiste precisamente na conexão entre duas va­riávei s: a pol ítica exterior fornece o conteúdo da diplomacia, sendo respon­

sável por seus erros e acertos . Diplomacia sem pol ítica não passa de conduta

vazia, movimento sem rumo, ação externa sem estratégia de realização deinteresses nacionais e mesmo coletivos. Cabe à política exterior agregar osinteresses, os valores e as pretendidas regras do ordenamento global, <hinte­gração ou da relação bilateral, isto é, prover o cont eúdo da diplomada desdeuma perspectiva inte rn a, quer seja nacional, regional, quer seja universal.

A história das políticas exteriores evidencia as diferentes concepções dodestino nacional que inte lectuais e estadistas propõem a suas nações, com

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10 CoIIC[fIOS, Tll-"'SLçI)ISE PARADlG.....

maior ou menor aceitação por parte da opinião pública, maior ou menor con­versão em prática política . Para além do alcance interno que essas concep­ções envolvem, o papel do respectivo país sobre o cenário internacional tam­bém se desvela por meio delas. O manijest destiny norte-americano, o granddessem francês e a revolução transnacional soviética são exemplos remotos

de desígnios incrustados na política exterior. A Guerra Fria, a globalização eo combate ao terrorismo são exemplos rec entes de desígnios transformadosem política exterior. No caso do Brasil , em menor escala também em outrospaíses da América Latina, a experiência hist6rica permite cons tru ir o concei­to de projeto nacional de desenvolvimento, definido como des ígnio nacionale vetor da ação externa.

Quando a opinião pública, os estadistas ou os intelectuais concebem odestino da nação, seu projeto e seu pape l sobre a arena internacional estão fi­xando pressupostos da política exterior, e quando os diplomatas moldam suaação sobre eles, estão cumprindo adequadamente sua função. Na ausênciade tais pressupostos, o que também ocorre, por vezes, o processo dec ís ónoem política exterior subordina-se a valores, interesses e regras desejados poroutros, que não os cidadãos de um determinado país . Nessas condições, a na­ção permanece em sua infância política e há necessariamente de ser tuteladaou dominada. Uma diplomada adequada repousa, portanto, sobre a políticaexterior e dela tira orientação para estabelecer a equalização entre os povos ,útil à vida internacional.

A evolução dos sistemas de Estado desde tempos remotos at é 3 sociedadeinternadonal atual , segundo Adam Wat son , evidencia a importância da cul­tura nas relações internacionais. Dominantes e dominados organizam-se emdeterminado sistema por concessões de Estados independentes à autorida­de, seja ela hegemonia , domínio ou império, porque aceitam regras comunse, assim, legitimam a hierarquia do poder. Colonialismo e imperialismo bro­tam de concessões de povos que se resignam à infância política em nome de

valores cul tura is ou beneflctos de aparente estabilidade, A soc iedade inter­nacional européia que se expandiu em dimensão global no sécu lo XJX emrazão da coerência cultural e da supe rioridade tecnológica conserva até hojea herança do conflito com outras civilizações. A harmonia entre os povos doplaneta requer a convivência de diferenças culturais e a equalização de inte­resses não COincidentes. Alcan çar essa hannonía representa o maior desafioposto à sociedade internacional de nossos dias .

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ND BMSIL: DA TE••IA ~ NÁllCA 11

o conceito de relações internacionais evoca, pois, um .fenômeno ainda

mais abrangente do que diplomacia e política exterior. As relações interna­cionais compreendem três categorias de agentes: a diplomacia, o governocom sua pol ítica e a sociedade com suas forças . Esses agentes das relaçõesinternacionais se relacionam entre si de forma a se poder vislumbrar umesquema de influências rec íprocas. Assim, as forças sociais que espelham ograu de desenvolvimento econômico, como a apropriação de conhecimento

científico, a inovação tecnológica, a organização empresarial e a concentraçãode capital, mas que também espelham outros fatores como a geografia, adensidade demográ6ca, a cultura, a opinião pública e o sentimento nacional,relacionam-se com a política exterior, uma vez que a sociedade organizadapretende alcançar objetivos transnacionais. Por efeito da racionalidade, asforças sociais condicionam, assim, o movimento das diplomacias, na formade ação ou reação .

O processo decisório dos governos equivale a um cálculo estratégico demeios, fins e riscos, no entender de Jean-Bapt íste Duroselle Nele, dige­rem-se os componentes destes três níveis da realidade: forças sociais quefornecem meios de ação, objetivos externos que correspondern a interessesa realizar e conduta diplomática coerente com os dois anteriores. A deci ­são em política exterior está relacionada com o grau de organização des sasforças sociais e com sua capacidade de influência sobre os dirigentes . Adecisão também depende da psicologia, do caráter e do temperamento dohomem de Estado. Ademais, é tributária dos próprios fatos, na medida queum fato apenas ou uma seqüência de fatos produzem, por vezes , impactossobre a decisão.

A gerência das relações internacioriais requer, portanto , a abertura doMinistério das Relações Exteriores ~ sociedade. A reconhecida capacidadegerencial do setor externo por parte cio ltamaraty, consideradas a dimensãoe a complexidade da sociedade brasileira, é metodologicamente insuficien­

te em termos pragmáticos. A penetração de agentes, ou seja. de forçassociais, no processo decisório e na negociação, que existe obviamente emdeterminado grau, contribui para adequá-los aos fins da polItica exterior.Por exemplo, os interesses do setor siderúrgico brasileiro em relação aosEstados Unidos, onde sofre restrições de mercado, somente serão contem­plados se o diplomata ouvir O empresário e seu executivo. O estudante derelações internacionais do Brasil multiplicaria exemplos dessa natureza e

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demonstraria a necessidade de abertura da diplomacia ~ sociedade paradela tirar inspiração conceitual e decisões práticas em áreas como investi­mentos, indústria, expansão empresarial, agricultura, meio ambiente, tu­rismo, artesanato, migrações, direitos humanos e outras que a diplomaciatem dificuldades de identificar.

1.2 Tendências do pensamento brasileiro aplicado àsrelaçõesinternacionais

O pensamento internacionalista lança raízes longínquas na História. Des­

de o aparecimento do Estado moderno, no século XVl, as relações interna­cionais despertam curiosidade e uma estirpe de grandes pensadores, hojeincorporados ao patrimônio intelectual da humanidade, tomou-as como ob­jeto de reflexão ao longo dos séculos. Mesmo correndo o risco de deixar irn­

portantes pensadores de fora, não os mencionando aqui, lembramos alguns,Bartolomé de Las Casas e Tomás Morus que escreveram sobre o contatoentre civilizações; Nicolõ Maquiavel, sobre a arte da guerra; Hugo Grotius,sobre o direito internacional: Emmanuel Kant, sobre a harmonia universal;Leopoldo Von Ranke, sobre a história das relações entre os Estados; Adarn

.Smith e Karl Marx, sobre as relações econômicas internacionais.À época da Segunda Guerra Mundial, esse pensamento internacionalista

evoluiu e tornou-,se disciplina acadêmica. Alcançou grau mais elevado deabstração e maior alcance explicativo, multiplicando-se as teorias de relaçõesinternacionais. Umas brotavam da História, alargando o campo de observa­ção e usando o método indutivo, outras fluíam de pressupostos conceituais

e utilizavam o método dedutivo. As teorias mais consistentes são aquelasque sabem gerenciar a relação entre a formulação teórica e a base históri­ca de observação. Na Inglaterra e, sobretudo, nos Escadas Unidos, a teoriadas relações internacionais abrigou-se nas universidades e revelou pretensõesepistemológicas e práticas ambiciosas: fornecer a explicação-chave para asrelações internacionais e inspirar as decisões dos dirigentes. As teorias fir­maram-se como corpus de conhecimento nos países que criaram centros depesquisa e ensino e são até o presente muito úteis, porquanto contribuempara iluminar o campo de estudo das relações internacionais com conceitosque lhe dão compreensão e íntcligibilidade.

As teorias tendem à abstração, como, aliás, todo conhecimento cienti­

fico, e adquirem. pela via da generalização, alcance universal. Em vez de

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revelar consistência e realizar os dois objetivos a que se propõe - produzirinteligibilídade e inspirar a decisão -, a pretensão universal constitui wnafraqueza . Os críticos estão convencidos de que não hã teoria acabada na áreadas ciências humanas e sociais que lidam com o comportamento ·huma no,por isso não se furtam em demonstrar a forma contraditória e polêmica comque as teorias vêm evoluindo nas últimas décadas . O estudioso das relaçõesinternacionais percebe, contudo, outra limitação.As teorias carregam consi­go valores e veiculam interesses das nações cujos intelectuais as concebem,por mais ísentas e objetivas que se apresentem . Esse fato não deve ser to­rnado como deprimente, porém exige leitura crítica das teorias para evitarque acentuem o fenômeno da dependência cultural entre os povos, além deassentar o mundo sobre países que tiram proveito das relações internacionaise outros que são explorados porque se deixam explorar.

Em termos comparativos, o Brasil é um país que acumulou sólido pen­samento, que não evoluiu, contudo, para a teorização das relações inter­'nacionais. Perde para seu vizinho do sul, a Argentina, onde uma literaturamais abundante a tal respeito está disponível. Existe, pois, um consistentepensamento brasileiro aplicado às relações internacionais que ainda está porser investigado, organizado e exposto em sua riqueza de filigranas, apesar deuma primeira sistematização elaborada por Raúl Bernal-Meza . As correntesdo pensamento brasileiro revelam dois traços em sua evolução recente: avinculação com teorias latino-americanas de relações internacionais e o pro­blema epistemológico central, o desenvolvimento. Esses dois traços são per­ceptíveis nas versões com que o pensamento brasileiro, aplicado às relaçõesinternacionais, se revestiu em sua trajetória, dos anos 1950 a DOSSOS dias.Examinamos essa evolução em seis fases : a versão da Comissão Permanentepara a América Latina da ONU (Cepal) e a teoria do desenvolvimento, ateoria da dependência e o pensamento independentista, o neoliberalismo e aconcepção cética da globalização.

Havendo centrado seu foco sobre o desafio do desenvolvimento, o pensa­mento brasileiro aplicado às relações internacionais será exposto brevemen­te, porêm com o intuito de avalíã-lo como instrumento polít íco propulsorde decisões favoráveis, desfavoráveis ou indiferentes. O leitor perceberá queos pensadores brasileiros, conquanto tenham centrado sua reflexão sobre odesenvolvimento da nação, não coincidiram no modo de conceituá-lo e, logi­camente, nos mecanismos de como alcançá-lo.

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14 CONcmos, TRANSIÇllu [PAllADISMAS

1.2.1 OBrasile a CepalO pensamento de Raul Prebisch e do grupo que com ele compôs a Cepal,

na década de 1950, particularmente Celso Furtado, constitui o ponto de par­

tida de uma teoria latino-americana e brasileira das relações internacionais.Os cepalinos foram originais, mas MO de todo, Por um lado, elaboraram uma

consistente crítica à teoria clássica de David Ricardo, que preconiza a divisãointernacional do trabalho e a especialização dos mercados, substituindo-a pelavisão de um mundo dividido em duas metades, o centro e a periferia. Por ou­tro, tiraram inspiração da experiência latino-americana, especialmente a bra­sileira, concebida pelos estadistas dos anos 1930-40, quando se configurou oparadig-ma desenvolvimentista de política exterior, como se verá adiante.

Sustentavam os cepalinos que as relações internacionais, particularmenteo comércio, compon:avam mecanismos que reproduziam as condições dosubdesenvolvimento, perpetuando-as no tempo, ou seja, convertendo-as emestruturas permanentes. Os conceitos que elaboraram a partir dessa visãodual de mundo apresentavam-se, por um lado, como díagnóstíco da realida­de, por outro, como base para a estratégia de ação.

O acervo do pensamento cepalino conta com conceitos que espelham umarealidade evidenciada pela divisão clãs estruturas econõmicas entre centro e pe­riferia. O comércio internacional favorecia a acumulação de riqueza nos países

que exportavam produtos manufaturados e importavam matérias-primas, comotambém a acumulação de pobreza nos países que faziam o contrário. A divisãoentre ricos e pobres, centro e periferia, países desenvolvidos e subdesenvolvidos,

manter-se-ia enquanto não fosse quebrada por mecanismos que a desfizessem.Os conceitos cepalinos sugeriam, portanto, aos dirigentes latino-americanos,uma estratégia política de superação da desigualdade entre as nações.

A estratégia de ação proposta por eles envolvia o esforço interno das naçõesno sentido de promover a industrialização como política de Estado, adequandopolítica exterior e ação diplomática para induzir um novo modelo de inserção

internacional. Desde sua independência, a sociedade latino-americana havia-seestabelecido na infância social e econômica, contentando-se com formal sobe­

rania política, porém aceitando a condição de exportadora de produtos primá­rios e importadora de manufaturados. O pensamento cepalino concebia umaquebra dessa ordem e atríbuía ao Estado o papel principal de agente indutordas condições requeridas pelo novo modelo. Para esses intelectuais, estava emjogo a superação do sistema dual mundial, nada menos.

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No BRASIl: .A TIO'" APLllltA 1S

Celso Furtado agregou o papel das diferenças no domínio tecnológicocomo elemento constitutivo da configuração dual do mundo. Sua teoria dodesenvolvimento avança, pois, para nova etapa do pensamento, fundado emforte análise histórica . O subdesenvolvimento teria se constituído como pro­

cesso histórico e como outra face do desenvolvimento capitalista, desde quealguns centros de inovação tecnológica , situados na Europa, irradiaram suadominação sobre países ou regiões atrasadas . Assim, definiram-se as estrutu­ras da organização local e das relações int ern ac ionais, de modo a reproduzi­rem-se mutuamente e a perpetuarem-se de forrn a dual. Osvaldo Sunkel, porsua vez, aprofundou o conceito de dominação do cent ro sobre a periferia, aodemonstrar que se tratava de estruturas parciais, complementares, sendo,porém, uma dominante sobre a outra. Nes se sentido, a capacidade de ditarregras ou criar mecanismos de ordenamento internacional cabia a uma daspartes, dotada de estruturas hegemônicas. Esse detalhe não foi percebidopelo inglês Adarn Watson, todavia o foi pelo italiano Brunello Vigez.zi, espe­ciali sta na contribuição do British Committee on the Theory of IntemationalPolitics, para quem a sociedade internacional européia do século XIX con­verteu-se em poderoso instrumento da expansão capitalista sobre a periferiado mundo. Ambos os autores requerem uma nova etapa no pensamentointernacionalista, que desabrocharia na América Latina.

A fragilidade do pensamento de Prebisch, bem como de Furtado e Sunkel,reside, contudo, em insu 6ciente análise histórica. A expansão do capitalismonão comporta, a partir do século XIX, a existência de mecanismos de per­petuação da configuração dual, ao contrário, revela a possibilidade práticade rompê-los. Os dirigentes de alguns países perceberam a necessidade deromper com tais estruturas, enquanto outros acomodaram-se na condiçãoperiférica. Essa Fragilidade explica, contudo, uma nova fase do pensamentobrasileiro e latino-americano que representa uma evolução do pensamentocepalino, entretanto, sugere saltar para Fora do sistema capitalista com o fimde superar o subdesenvolvimento. Trata-se das teorias da dependência.

1.2.2Teorias da dependência e pensamento independentistaOs enfoques da dependência tornaram dois rumos no pensamento brasilei­

ro. Uma primeira vertente, de caráter teórico e conformista, expressou-se pormeio das chamadas teorias da dependência desenvolvidas por Teotônio dosSantos e Fernando Henrique Cardoso, entre outros. A outra vertente, de cará-

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16 COIlUltOl, 1llAHS1çl)ES .......,G...'

ter realista e prático, foí expressa pelo grupo dos índependentistas, que incluíaintelectuais e diplomatas de pensamento forte, a exemplo de Oswaldo Ara­nha, Afonso Ar inos, San T íago Dantas e Araújo Castro. Seus escritos vieram a

público nas décadas de 1960 e 1970, porém o segundo grupo prevaleceu, aoinspirar o pensamento e a ação externa das três chanceleres que ocuparam oMinistério das Relações Exteriores entre 1969 e 1985, Mário Gibson Barboza ,Antônio F. Azeredo da Silveira e Ramiro E. Saraiva Guerreiro.

Os pensadores de então, agrupados nessas vertentes referidas, foram res ­ponsáveis pelo extraordinário sucesso que alcançou o termo dependénciaentre os internacionalistas latino-americanos. As origens situam-se na aná­lise estruturalista dos economistas da Cepal, mas a evolução epistemológicaesteve a cargo de soclélogos, os teóricos da dependência, e de diplomatas,os qua is definiram uma estratégia de superação de longo prazo. Para os· so­ctólogos, os componentes do conceito depend ência adquirem caráter similarao que de sempenham as leis ciendficas na elaboração d e teorías fisicas, bio­lógicas ou naturais. Por isso, foram tais componentes do conceito por elesagrupados e chamados de teoria da dependência.

Em síntese, a teoria da dependência e sua relação com o subdesenvol­

vimento assenta sobre os seguintes pressupostos: a) o subdesenvolvimentose liga a relações de dominação e dependência entre as povos; b) constituífen ômeno hist órico mundial inerente às estruturas que se definiram com aevolução do capitalismo; c) comporta o conluio de interesses no centro ena periferia, d e modo a favorecer, no interior dai; sociedades e Estados deambos os lado s, os interesses de segmentos sociais dominantes; d) por essarazão , cons ciência e cultura são afetadas, como se desenvolvimento e subde­senvolvimento fossem mutuamente necessários e benéficos; e) o subdesen­volvimento impregna também o poder, ou seja, a política e seu processo de­cisório; f) estabelece-se, enfim, a interdepend ência dependente, vale dizer,o fato de. uns países terem economia e poder condic ionados à economia e aopoder de outros países.

Por considerarem tais rnecanísrnos inexoráveis, a conclusão lógica dos teõ­

ricos da dependência encaminha-se no sentido de propor aos países atrasadosa salda do sistema capitalista. Mesmo porque, na época, o capitalismo dispu­

tava com o socialismo a organização social interna e a ordem intemadonal.A crítica às teorias da dependência foi precoce, por isso elas não conhe­

ceram o suc esso nos meios acadêmicos brasileiros . O s equívocos que com-

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portam foram identificados, por historiadores , como sendo a manipulaçãodo conhecimento histórico, e por politólogos, que apontaram o fato de quesomente é explorado e dominado quem consente. Não existindo estruturas

que mantenham o sistema internacional indefinidamente estável.Apesar da crítica. o pensamento brasileiro aplicado às relações interna­

cionais incorporou contribuições do pensamento cepal íno original, comoas teorias do desenvolvimento e da dependência . Entre essas contribuiçõesque irão inspirar o pensamento dos independentistas realistas e dos desen­volvirnentistas estão a descoberta de formas polarizadas de distribuição debenefícios, a incapacidade de o livre-comércio permitir a modernização daperiferia, a existência de sistemas produtivos diferentes no centro e na peri­feria, a assimetria na inovação tecnológica , os ritmos descompassados de de­senvolvimento dos países, o ordenamento espontâneo do mercado mundialsegundo regras de benefícios unilaterais .

A corrente de caráter realista e prático tomou, nos anos 1960, o rumodo pensamento independentista. Embora dispusessem das contribuições daCepal, os independentes, liderados por San Tiago Dantas, formularam novasreflexões sobre as relações internacionais do Pais, em uma fase em que oavanço da industrialização era notável em razão do êxito do Plano de Metas

de Juscelino Kubitschek. Desenvolvimento e emancipação econômica eramas idéias-chave a serem aplicadas no plano interno; não-intervenção e coe ­xistência pacífica dos regimes capitalista e comunista, no plano externo. Osindependentes concebiam, portanto, o descolamenlo dos Estados Unidos e adiversificação de, eixos externos de cooperação para o desenvolvimento, masinsistiam sobre a utilidade do planejamento estratégico do desenvolvimento.No berço dessas idéias, germ..lnavao pensamento universalista, caro a Oswal­do Aranha e • Afonso Arinos. assim como fora a opção arnericanista valiosapara Raúl Fernandes e João Neves da Fontoura na década anterior.

Com efeito, dois discursos, o americanista e o índep endent ist a, ambos

vinculados 11 questão central do pensamento brasileiro, o desenvolvimentoa promover, radical izararn-se nos anos) 960, cindindo a opinião pública e omeio politico . Os dois campos disputavam o poder com o objetivo de im­por seu pensamento e sua ação. Os americanistas cogitavam usar a aliançaestratégica com os Estados Unidos e o comprometimento na Guerra Friacom o fim de alimentar o desenvolvimento por meio de capital e empreen­dimentos norte-americanos. Prolongavam, desse modo, o pensamento de

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18 COMemos, JllANSlÇl1lS [ "AAAOIGM"

Neves da Fontoura. Os independentes pensavam em tom ar d istância da

Guerra Fria e promover wn modelo de desenvolvimento menos tributdriodo capital e da tecnologia de fora. Os arnericanistas t riunfaram em 1964 emantiveram seu protagonisrno político durante o governo de Castelo Bran ­

co, ao passo que os independentes influíram sobre o governo de João Gou­lart e alongaram sua influência sobre o regime militar desde a ascensão deCosta e Silva, em 1967 .

O s esquem as mentais que se configuram quanto ao modo de gerenciar oprocesso de desenvolvimento tomam, nos anos 1960, duas formas conflitan­tes : o desenvolvimento associado às forças do capitalismo e tocado, essencial­mente, de fora, e o desenvolvimento aut ônomo, tocado pelas forças internasr13 naç ão . Os nacionalistas centravam-se em tomo das idéias de soberania,desídeologízaç ão da política exteri or , proteção das atividades econômicas edo mercado internos, fortalecimento da empresa nacional, desenvolvimentode tecnologias próprias, autonomia de segurança e solidariedade com a peri ­feri a, então chamada de Terceiro Mundo. Tiravam, portanto, inspiração dopensamento bra sileiro formulado anteriormente. li os associacionistas culti­vavam as idéias de subo rdin a ção 11 vontade dos Estados Unidos com alinha­mento político, ideologização da política exterior e envolvimento na GuerraFria, o dorrúnio do livre mercado sobre o planejamento do desenvolvimento,a entrada de empresas e de tecnologias estrangeiras e a segurança coletiva.Esses acabaram por inspirar, pela via do argumento lógico, os neoliberais dosanos] 990.

Essas correntes de pensamento exerceram influência desigual sobre omodelo de desenvolvimento e a política exterior por este requerida, pre­valecendo, na segunda metade do século xx. a corrente independentista,derrocada somente à época da globalização do fim do século. Mesmo as­sim, não convém insist ir sobre a divisão do pensamento brasileiro aplicadoàs relações internacionais, visto que houve, entre suas vertentes congênitas,a índependentists e a associacionista, interpenetração de influências e muitodiálogo político a condicionar os efeitos sobre o processo decisório e sobre aformação nacional .

Um passeio pela s visões de mundo que essas correntes de pensamentocomportam, visão inerente a toda teoria de relações internacionais, permitecompreender melh or a simbiose que Se forma na inteligência brasileira acer­ca da inserção internacional do País. Para os cepalinos, o mundo era o mundo

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No 0Ms1L: DA TEOR" l pR.4nu 19

dual, marcado pela fenda entre ricos e pobres, estes últimos dispostos a re­

cuperar o tempo perdido e a aproximar-se dos primeiros. O mal da desigual­

dade não havia ~do co nceb ido como tal, em sua origem, por doutrinários,políticos e empreendedores, apenas resultava da evolução dos fatores e tinhano livre mercado, aceito pelos pobres, seu instrumento de indução. Domar .

o mercado tomou-se a chave da solução. O subdesenvolvimento poderia ser

superado pela capacidade de que dispunha o Estado de conduzir a sociedade,

mediante o planejamento da industrialização, i geração de emprego, A ex­pansão do consumo de massa e ao dese nvolvimento tecnológico.

Os teóricos da dependência aprofundaram o raciocínio, chegando a con­clusões radícalízadas acerca da divisão dual e não vendo solução dentro dos

mecanismos do sistema capitalista. Para eles, a cooperação inte rnacional desuas forças, com o fim de debelar o subdesenvolvimento, apenas transferiapara outros patamares a dominação e a dependência, perpetuando a pobreza

de metade do mundo.O pensamento brasileiro que se firma por contradição na década de 1960,

quando as correntes independente e associacionista disputavam o Estado,

comporta aquela visão de um mundo dual dos anos 1950, porém capaz deremediar-se desde suas estruturas internas. O dilema consistia em dosar o

peso entre fatores externos e int ernos, com O fim de diminuir a distânciaentre centro e periferia e eliminá-Ia ao termo do processo, Em outras pala­vras, O que estava em jogo era a natureza da relação entre o centro e a peri­

feria. Nesse ponto, a inteligência nacional cindiu-se na tentativa de dosagemdos fatores, i.nc1inando-se uns para o recurso externo, outros para o interno.

A idéia de cooperação internacional emergiu, assim , vinculando ambas as

correntes de pensamento, porque lhes era comum. Uma visão de mundocooperativo entre países desenvolvidos e aspirantes irá perpetuar-se como

viga mestra do pensamento brasileiro aplicado às relações internacionais. Asderivações lógicas da idéia de cooperação se manifestaram com dareza e

foram operacionalizadas pela política ao longo do tempo. Contribuíram paraformar o acumulado histórico da diplomacia brasileira as seguintes diretri­

zes : cooperativa e não -confrontacionista, universalista, pacifista, zelosa pelasoberania em razão do papel indutor do Estado e da necessidade de planejar

o desenvolvimento.

O ponto de equílfbrío da política de desenvolvimento permanecerá como

o desafio d:.' inteligência brasileira nas três últimas décadas do século xx.O

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~

20 CONCflTOS. TllANSIÇlKs E ""AADlOMU

regime militar não inovou, apenas deu ênfase aos fatores internos. Convinhareforçar o núcleo central da economia nacional, composto de empresas, ca­pital e tecnologia, com o fim de conduzir o processo de desenvolvimento aopatamar de auto-sustentação, após a criação das indústrias de transforrneçâo,que dependiam cada vez mais de insumos básicos. Convinha manter as deri­

vações lógicas da idéia de cooperação internacional, capazes de datar de efi­ciência a política exterior. Ademais, essa economia política contribuía para O

reforço do poder, sem o qual nada se alcança sobre a cena internacional . Umpensamento vinculado a essas duas idéias - o núcleo robusto econômico e

sua correlação com o reforço do poder - foi elaborado entre os anos 1960e 1980, não explicitamente pelos militares que ocuparam a Presidência, po­rém pelos seus três chanceleres, Mário Gibson Barboza, Antônio Azeredo daSilveira e Ramiro Saraiva Guerreiro.

A redernocratizaçâo dos anos 1980 tampouco trouxe inovação para o pen­samento brasileiro aplicado às relações internacionais do Pais. O processo de

integração que se concebeu ao sul do continente deve ser tomado como ummeio a mais, não um fim da política, que permanecia voltada para o desafiodo desenvolvimento . A inovação, apesar de d..rivada de formulações ante ­

riores, porque contaminada pelo legado do passado, virá com a irrupção dopensamento neoliberal a partir de 1990 e coro o pensamento cético acercada globalízação.

1.2.3 Neoliberalismo e globali18çãoO neoliberalismo não foi uma invenção da inteligência política brasi­

leira , mas antes uma assunção, devida a quatro influências externas. Emprimeiro lugar, a substituição no pensamento econômico do modelo key­nesiano de Estado. inerente às concepções cepalinas, pelo modelo liberal,proposto por Friedrich Hayek e Milton Friedrnan, e operacionalizado naInglaterra c nos Estados Unidos nos anos 1970 e 1980. Em segundo lugar,a unificação do mundo sob a égide do sistema capitalista, ocorrida após ofim do socialismo real em 1989. Em terceiro, as experiências monetaristaslevadas a termo na Chile e na Argentina, de forma intermitente, de sde os

anos 1950, porém recentemente concebidas por escolas norte-americanas

e propostas aos governos da América Latina com o fim de debelar a criseda dívida externa dos anos 1980. Por fim, a ascensão de governos neoli­berais na vizinhança, Chile, Argentina, Peru, Venezuela e México. Assim;

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NoBllAs'" OA rnllllA 1 ........,. 21

de re pente, o Bras il cr-palino e cooperativo , com Estado intervenclonista econdutor autônomo da pol ítica exterior, percebeu-se isolado . Um traumaqur- afetaria sua in te ligência política .

As injunções extern as não são suficiente s para explicar a gênese do neolí­beralismo latino-americano, visto que essa corr ente de pensamento aplicado

às relações internacionais assenta some base histórica local, composta depensamento e ensaios políticos, Esse fermento local pôs-se em ação quandoesteve em jogo o problema crônico da instabilidade monetária e da inflação,talvez decorrente das atribu ições econômicas desempenhadas pelo Estado ,Duas Interpretações acer ca das causas e duas estratégias sobre as soluçõespara o problema da instabilidad e monetária afloraram à mente de pensa­dores e dirigentes . O vdho pensamento da Cepalconcebia soluções estru­tura is, como aumento da renda e do consumo, portanto, industrialização

e expansão do mercado interno, ao passo que os rnonetar ista s conce biamso luç ões de choque, mediante manipulação tempestiva da moeda e do rner­cado, confrontando-se, pois , estrat égias de longo prazo e de CUrtO prazo.Ambos tinham em mente a est ab tlização econômica, porem os neoliberais arestringiam 11 estabilização monetária , O valor supremo da pol ítica desloca­se, destarte, do desenvolvimento li promover para a inflação a matar. Mas asderiv ações dessas duas linha s de ação , agora estando em mira as derivaçõesda est ratégia neolibr-ral, compóem um conjunto de idéias assentado em COr­

pus de observação e conhecimento ,O neoliberalismo veio a erigir sua própria visão de mundo e a pr opor mo ­

delo próprio de inserção internacional, no Brasil e em quase todos os paísesda América Latina. Substi tui u a visão estruturalista tradicional e embarcouno paradigma da globalização do fim do século XX. Substituiu a visão du alentre centro e periferia e a idéia de conserto daordem internacional pela deum mundo unificado pelos fatores transnacionais do capitalismo. O cursoprofundo desse pensamento abandona, no Brasil , a crítica à economia rica r­diana clássica da divisão int ernacional do trabalho e das vantagens compara­tivas, e reflete, ademais, o estágio de avanço da competitividade nacional.reivindicando, como benéfico , o 'livre .mercado global .

Como expressão mais 'e laborada desse pen samento no Brasil, convém re­ferir dois intelectuais consistentes, que garantiram sua atuação como dirigen­tes da nação , Fernando Henrique Cardoso, Ministro d e Rela ções Exteriorese Pres idente da República, e C elso Lafer, por duas veze s Ministro de Reta-

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22 ; CONCErTOS, raAIGIç6a I PAA.Ill'GMAS

ções Exteriores. Seus textos, que ainda são pertinentes, incluem reflexões de

homens de Estado, como também pesquisas e análises que expressam idéi as,visões do nacional e do internacional e, sobretudo, um modelo alternativo de

inserção internacional.Três requisiçôes essenciais conduzem o pensamento neol iberal: a) elimi­

nar O modelo do Estado desenvolvirnentista interventor, julgado perdulário e

ineficiente em termos econômicos; b) abrir o mercado e o sistema produtivoà penetração dos fatores externos do capitalismo, considerados suficientespara promover o desenvolvimento à épOC1 da global lzaç ão: c) ferir o conceito

de sociedade com que se ocupava o Estado e promover a oportunidade deindivíduos, o que supunha enorme deslocamento da renda .

De certo modo, neolíberalisrno e cepalismo encontram-se no propósito

de o rigem , ou seja, transformar a economia e a organização social, utilizando

para esse fim as instituições e a lei, porem separam -se ao conduzi-Ias paroutros caminhos, a outras situações. Por isso o neollberalisrno contem uma

crítica ao Estado keynesiano do bem-estar, à sua visão cooperat iva, todaviaco nt rolada de mundo, e ao modo de promover o bem-estar dos índlviduos .Sob sua égide , a de sregulação tomou-se rnecarusrno de ajuste interno e a

abertura da economia, estratégia pura e simples de inserção internacional.

Embora tenham levado a soc iedade latino-americana ao de scontenta­mento, à convulsão social c à derrubada pela via eleitoral de todos os gover­nos de sua ins p ira çâo , quando a exclusão social atingiu em 2003, segundo

dados da Cepal, cera de 40% da população da região, os ne oliberais con­sideravam -se, na origem, promotores de novo renascimento, tido como re ­dençâo dos problemas econômicos e sociais . As circuflslànl'ias imp~ratlleS

- expressão usada por Cardoso e Lafer - da interdependência global queconstrangiam a mente neoliberal não deixavam alternativa ao processo de­

cisório em política exterior. Tanto m ais que acreditavam nesse mundo novode regras jus/as, transparerues e benéficas para todos , a serem produzidas

pela negociaç ão multilateral , como novo ordenamento do sist em a capita­

lista em todos os domínios das rel ações inte rnacio nais: co mé rcio, finanças,

direitos, meio ambiente e segurança. Ressalte-se ainda que acreditavam no

efeito sist êrn ico e benéfico da ação da s forças transnac lonals que com anda­

vam o curso profundo das relações internacionais à era da globalizaçâo. O

necliberalisrno reivindicava, ademais, uma revolução na ciência, na política

e no pensamento. Assimi lou, enfim, o caráter de um fundamentalismo ti -

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Noa"s'L: DA nooIA .l ,1lÁ11CA 23

pico da e ra da globalizaçá o, ao confundir argumento, raciocínio e ciência

com con vicção, crença e f".Dotado de ambiç ões rne sxiâniras, mescladas com atributos de into lerân ­

cia, o ru-olibcralismo provocou três reações mentais: o regionalismo aberto,

um aggiornamento do pensamento cepalino, o neoestruturahsrno, expresso

sobretudo pelo mexicano O svaldo Sunkel, e o pensamento cético acerca da

globalízação, expresso com vigor por internacionalistas hispano-arnericanoscomo Aldo Ferrer, Luciano Tomassini , Mario Rspoport e Ra úl Bernal-Meza,

bem como pelo brasileiro teórico da dependência, Fern ando Henrique Carodoso, co nd uzido pelos caminhos da incoerência ou seria da coerência a

posteriori] - ao neohberalismo, e posteriormente à crit ica da globalizaçâo,

Para os jovens economistas da Cepal, o regionalismo aberto constitui o

ponto de chegada de uma evolução, além de evidenciar o desejo de adapta­

ção à era da globall zação do grupo originalmente ocupado com soluções para

o desenvolvimento. Com sua nova proposta, pretendiam os ne ocepalinosconciliar a interdepend ência posta em mar cha pelos pro cessos de integra­

ção da América Latina com a interdependência advinda da liber alização domercado global. Assim , a integração passa. ser considerada uma espécie de

resseguro econômico diante de eventuais ameaças trazidas pela globalização,isto t', pelo curso desenfreado do liberalismo mundial, como cris e financeira,com ercial ou produtiva .

Ao exam iná-lo bem de perto, o observador percebe, contud o, que oregionali smo aberto inclina -se ma is para o neoliberalísmo do que para o es­

trutural ismo cepalino, uma vez que enalrece a ab ertura econômica, a fast a oprotecionismo criador d e empreendimentos e tecnologias, sugere a adesão

aos temas globais e impregna a agenda diplomát ica , que se movimenta fe­brilmente co m o fim de orien tar, por meio de tais pr essupostos, a forma çâo

dos blocos e a negociação de tratados de comércio , O observador percebe,ademais, que o pensamento ccp alino , nessa segunda versão, a exemplo do

neoliberal, ainda ignora o fator de im pu lsão do sistema capitalista, a inter­nacionalização econ ômi ca entendida como projeção para fora de negócios

nacionais ou regionais, com. que se at inge a verdadeira inte rdependênciados fatores mediante ccmpetitividade sist êrnica e distrtbuiç ão equil ibrada

de beneffcios. Tido por referência de regionalismo aberto, o Chile revela

precisamente essa condição de pai s que abandonou a vocação industrial,abriu seu sistema produtivo e de se rviço s ao empreendimento estrangeiro

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24 COHWTOS, TIWOSlÇóES f 'AllIJ)'GMA!

e estabilízou-se na medi ocridade do setor primário, aprofundando a depen­dência estrutural.

Os críticos da globalização, entre de, uma fat ia do pensamento de Fer­nando Henrique Cardoso que opôs o con cei t o de globalízaçã o assimétri ­

ca ao de glob alizaç ão benigna avançado pela comunidade epistêrnica daArgentina 11 época de Carlos Menern, concebem modelo alternativo deinser ção intern acional aos que foram disponibilizados pelos neolíberais eneocepalin os. Ainda sob influência remota do pensamento dual clássicolatino-americano, esses intelectuais cét icos retomam com suas pesquisas 11evolução histórica do capitalismo e rep ensam a globalízaçao e os fatores doatraso e do desenvolvimento.

As assimetrias entre os doi s mundos , o desenvolvido e o subde senvolvido,ter- se-iam imiscuído no processo histórico de evolução do capitalismo quan­do alguns países se diferenciaram de outr os, inicialmente, ao criar e repro­duzir suas vàntagens comparativas inta ngíveis (capital, ciência e tecnologia].ecom bin é-las, a seguir, com o modo como-as puseram em jogo ao administraras relações com os vizinhos e, depois, com o mundo todo. Resolver o proble­ma da relação entre o interno e o entorno, com base nessas vanta gens com ­parativas intangíveis, significa resolver o problema do desenvolvimento. Di­f..renternente da América Latina que, desde a independência até o adventodo processo de industrialização, buscou soluções nas vantagens comparativasnaturais, do tipo: solo , subsolo, clima e setor primário. A transnacionalíza­ção das empresas e a intensificação dos fluxos finance iros e de seus efeitosuniversais representam fenômenos recentes, porem a global ízaçâo remontaao s éculo XVI, com as Grandes Navegaç ões e a de corrente ampliação domundo conh ecido, ocorrendo por meio da uníficação do mercado, em suaprimeira fase, e da inovação tecnológica , desde o século XIX. O pensamentocrítico desqualifica a ilusão oeoliberal de que a globalização signífica fenôme­no recente vinculado ao fim da bipolarídade leste-oeste e. afasta o consenso

entre doutrinários norte-americanos e ínrelecruaís e dirigentes latino-ameri­canos de que a abert ura econ ômica do presente substitui o livre-comé rcio deoutrora corno mecanismo de superação do atraso histórico.

O pensamento dos críti cos lati no-americanos acer ca da globalizaç ão con­verte-se em pensamento cético, ao rechaçar a visão de mundo e as soluçõesao desafio do desenvolvimento concebidas pelos neollberaís. O grau de ce­ticismo acentua-se quando aqueles pensadores despem o neol íberal ísrno de

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No Ilusa.: OATEORIA' rU.llCA • 25

suas bases con ce ituais e fixam, ao mesmo tempo, as linhas do próprio argu­mento: a) os níveis atuais de interdependência econômica de form a algum~

carecem de precedentes históricos; b) a transnacionalízação econômica nãoevidencia nova ordem mundial menos centrada na Estado; c) em vez. de víti­

mas passivas, os governos são os arquitetos da globalízação: d) a interdepen ­d ência liberal não traz implícita uma receita de superação das desigualdadesentre as nações; e) O real ismo dos dirigentes globalistas latino-americanosnão passa de ilusão acerca da benignidade da governança global sobre a qualassentam o processo decisório, mesmo porque essa atitude evidencia tam­bém o caráter ideológico unifi cador da globalização, conveniente para pôr emprática uma estratégia impopular.

A crít ica da glcbalieação e o ceticismo diante do modelo neoliberal deinse rção internacional se fazem presentes no Brasil de dois modos: no penosarnento acadêmico de alguns grupos de inte rnacionalistas que atuam emuniversidades de renome e na opinião pública que elegeu Luiz Inácio Lula daSilva à Presidência da República em 2002. Observa-se, portanto, no infciodo século XXI , uma conflu ênc ia de pensamento, opinião pública e polítí ­ca exterior. Como são manifestações imbricadas da socied ade , dividem ouaproximam diplomatas, políticos, jornalistas, empresários e acadêmicos. Opensamento prevalecente durante o governo Lula conduz a uma inferên­cia: as estruturas do capit alismo produzem benefícios unilaterais em favordos mais fortes , como pensavam os cepalínos e os independentes, a menosque se estabeleça a união dos países emergentes, cujos governos, agrupadosem coalizões (como o Mercosul), negociam reciprocidades reais nas relaçõescom os países centrais ou travam o avanço da governança global, como pensaCelso Amorim, estrategista das relações internacionais põs-necl íbera is.

Durante a campanha eleitoral de. 2006, cujos resultados estenderiam ogoverno de Lula por mais quatro anos, as duas vertentes básicas do pensa­mento brasil eiro aplicado às relações internacionais afloraram mais uma vez

e de modo explicito. O embaixador aposentado Rubens Barbosa, porta-vozda oposição, definiu em artigos publicados no jornal O Estado de S. PauloOS conceitos inerentes à política exterior do candidato derrotado, Gera ldoAlckmin. Esses conceitos refletem as tendências do pensamento que lançaraízes na concepção do desenvolvimento associado e do neollberalisrno: vín­

culos estreitos com Estados Unidos e Europa e descolamento do mundo dosemergentes, cuja prioridade estabelecida por Lula estaria contaminada pela

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26 • CONcaroS, IIlAN!lçOlS ( 'AIl~OIGMAS

ideologia. O termo ideologia é recorrente no discurso da direita brasileira ,quando critica a política exrorior do governo Lula ou, quando em campanhapol ítica. se opô .. a candidatos de percepção nacional de interesses e de vi­são realista de mundo, entr et anto esse discurso traz , de fato, para a opiniãop úhlica do presente, os esquem as essencialmente ideológicos da época daGuerra Fria, como o leitor pode observar pela exposição das tendências dopensamento bra sileiro.

O leitor per cebe que o pensamento global ista no Brasil, ao transitar dateoria à prá t ica , tamb ém transita do Estado à sociedade, sob as versões depensamento crft ico, cét ico e logístico. Este último vem sendo incorporadotanto pelo Governo, que se integra às estruturas hcgcm ônicas do cap italismocom o fim de influir na produção das regras do ordenamento multilateral,quanto pela sociedade, por meio da internacionalização de empresas de ma­triz bra sileira que penetram as cadeias produtivas globais e alcançam cornpe ­trrívidade sistêmica .

Reviver o confronto de visões de mundo, bem como de correntes depen samento que tendem a se apropriar da op inião eleitoral e do Estado,demonstra que no Brasil, apesar de' diálogo político, o pensamento acadêmi­co, político e diplomático nunca fech a consenso debnitivo, ao contrário, fazemergir a riqueza da divergência e das propostas alternativas. Sem impedir adefin ição de uma prâtica diplomática de caráter próprio, brasile iro,

1.3Acumulado histórico da diplomacia brasileiraA política exterior do Brasil, em sua evolução , vem agregando princípios e

valores à diplomacia , de modo a tornar tais elementos inerentes à sua conduta.Esses padrões de cocduta não surgem tempest ivamente como subprodutos daHistória, porém, um ap6s outro, adquirem caráter duradouro e, por vezes, per­manente. N50 se estendem sobre todo o passado, visto que seu aparecimentoe eventual abandono vem escalonado no tempo, Eles exercem duas funções :em primeiro lugar, dão prevís íbílídade à ação externa, tanto para observadoresbrasileiros quanto para estrangeiros, e, em segundo, moldam a conduta exter­na dos governos, impondo-se à sua sucessão e alé mesmo a mudanças de re­gime polít ico. Resistem ao t~'fI1PO, portanto, e exibem traços de continuidadeinerentes à pol ít ica exterior, tanto mentais quanto práticos. Contribuem parafazer da política exterior política de Estado ao imprimir-lhe a lógica da racio­nalidade e ao dar prevalência 11 continuidade sobre a mudança, à causalidade

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No BIWIl: DATtDIIlA À P«ÁllCA ! n

sobre a ruptura . O padrão do acumulado histórico vincula-se, como se verá, aoparadigma da política ext erior, em cujo fermento germina, podendo, contu do,preceder ou sohreviver a um determinado paradigma.

A reflex ão sobre a evolução das relações inte-rnacionais do País permiteidentifi car e descrever a origem, a essê nc ln c a duraçãc dos padrões de con­duta que com põem o acumulado histórico da diplomacia braslleira. A e-nu­

meração do s compo ne nte s desse acumulado, fcita a seguir de forma sucinta,confere ênfase ao pre sente;

a) Autoden-rrnlnnçõo, não-intervenção e solução pncífica de controvérsiasNem sempre a diplomacia brasileira orientou -se pelos princípios de au­

todeterm inação , não- intervenção e solução pacífica de controvérsias, comorevela a política implementada nas relações com os países da Batia do Pratanos meados do s éculo XIX. Contudo, esse padrão da ação diplomática vemde longe e carrega, desde sua origem, princ ípios e valores que influenclama conduta até o presente. Há várias causas a conside rar na orige m de s­se componente do acumulado histórico, que por vezes é designado comopacifismo da política"exte rior: o legado conceitu al do pan-arnericanisrnodo século XIX; o pacifismo do barão do Rio Branco; o fato de o Brasil seenvolve r em dua s guerras mundiais engendradas pelos outros; a convi vên­

d a das diferenças na sociedade brasileira, que sugere a coexist ênc ia entrenações de cultura e interesses diferenciados; a valorização da sobe rania eda individualidade do Estado como sujeito das relações internacionai s; apercepção segundo a qual a interv..nç ão , fe ita sob o manto da civilizaçãoa difundir, d os dire itos humanos, da democracia 011 de outras causas tira ,via de regra , a morlvac ão propulsora de interesses nac ionais concreto. denações dotadas de maior poder; o fato de o Brasil não dispor de potência

estratégica; a valor ização te órica do multilateralismo como agente da har­mon ia un iversal.

Ao reconhecer a ingerência feita em defesa da democracia e dos direitoshumanos, os dirigentes brasile iros da década de 1990 hesitaram em manteresse guia de conduta, mas náo chegaram ao ponto de compromete-lo cm suaessên cia . 1ànto assim é que ele chega ao presente sob a forma de divergênciacom os Estados Unidos ea Grã-Bretanha, cujas diplomacias optaram porcombater o terrorismo mediante iniciativas d e guerra contra outras nações .O regime cubano, a pressão dos Estados Unidos sobre a Venezuela, a nacio­nalização dos hidrocarbonetos pela Bolívia, apesar de contar com vozes em

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2jI CONWroi, .......Slç08 I PAIWlIC ..AS

favor do abandono do componente de conduta, não demoveu a diplomaciabrasil ..ira do respeito ao princípio em questão .

b) Jur idicismoTrata-se deum padrão conservador de conduta da diplomacia brasileira, que

reforça o anterior. Os tratados foram assimilados como fatores de estabilizaçãodas relações internacionais, desde que o Brasil firmou, à época da Indr-pcndên­cia, cerca 'de duas dezenas de tratados desiguais com as potências capitalistas

de então e desde que, posteriormente, lirmou com os vizinhos outros tantoscom o fim de garantir o território e a paz. O respeito ao compromisso jur ídíccinternacional, assumido sob as formas de tratado, convenção, protocolo e ou ­tras, envolve a soberania e assegura a autodeterminação dos povos.

c} Multilateralismo normativoA valorização do multilateralismo pela diplomacia brasileira conheceu

dois momentos importantes em sua gênese . O primeiro data dos anos 1960­70, quando o país empenhou-se na construção da chamada Nova OrdemEconômica Internacional , ao lado do Terceiro Mundo, em confrontação aoesquema bípolar, considerado de interesse das duas superpotências de então,Estados Unidos e União Soviética. O segundo corresponde às expectativasde que a global izaçâo do fim do século XX daria origem a uma ordem inter­nacional. cujas regras transparentes, justas e respeitadas por todos seriamestabelecidas por meio da negociação multilateral. Em razão desse interessepelo ordenamento multilateral. as legações brasileiras contam entre as pre­senças mais numerosas e ativas perante as organizações multilaterais existen­

tes desde a Segunda Guerra Mundial até os dias atuais.

d) Ação externa cooperativa e não-confrontacionista

Esse padrão de conduta da diplomada comporta dois impulsos decisivosem sua gênese. O primeiro vem da era Vargas (1930-53), quando a coopera­ção de guerra com os Estados Unidos foi prestada com segundas intenções.Gerou-se, desse modo, a convicçâo de que a cooperação econômica parapromover o desenvolvim'ento traz ganhos concretos e aconselha submetera política de segurança a esses mesmos ganhos, portanto, recomendava nãoconfrontar outros países. O segundo vem do governo Kubitschek (1956-61)e da Política Externa Independente (1961 -64) , sobretudo do chamado Prag-

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NoBllAslL: OAno... APIlÁTIC.l 29

rnatismo Respons ável de Geisel (1974-79), quando se preparou e se imple­

mentou o salto para além da cooperação entre Brasil e Estados Unidos, até

ent ão considerada suficiente como eixo externo promotor do desenvolvi­

m ento nacional. Na virada da milênio, a globalização deprime o padrão da

cooperação bilateral, enfraquecendo-se as parcerias em lavor de laços dainterdependência srstêrnica, IlUlS sem sacrificar o nâo- confrontacionismo.

e) Parcerias estratégicas

O padrão co rresponde ao aprofundamento do que foi percebido anterior­

mente como necessário, em cert os casos . A iniciativa compete à diplomada

brasileira, em razão de objetivos e interesses nacionais de primeira importância

a serem realizados por meio da ação externa. Pensado por Kubitschek e os

independentes, d esde que a cooperação com os Estados Unidos revelou-se

insuficiente e por vezes nociva, depois diversificado por Geisel, o padrão d a

parceria estratégica norteia as opções de cooperação externa para o desenvol­vimento, não sem refletir uma divisão dos dirigentes e dos diplomatas. algun s

elos quais manifestam preferências exclusivas por parceiros do Primeiro Mun­cio. A mais longa e rel evante par ceria, Brasíl-Estados Unidos, entra em crise

nos anos 1~70 c a po lítica exterior dirige seu foco para a diversificação.

Essa primeira evolução do padrão sofre nova inílex ão ao tempo daglobali ­zaç âo, quando transita do bilateral ao regional e ao multilateral. Desse modo,

as escolhas externas fizeram desfilar o interesse brasile iro por paíse s como

Alemanha, Japão, China e Argentina, por regiões como a África subsaariana eo Cone Sul, por blocos como o Mercosul e a Comunida de Andína, por coalí­zôes de paíse s emergentes como o Grupo dos 77 , a Comunidade de Países de

Línguu Portuguesa, o G20, nascido da Conferência da OMC, em Cancun, em

2003, o Ibas(índia, Brasil e Africado Sul) etc. Embora a linguagem diplomáti­

ca, por vezes, abuse do termo com o fim de engrandecer determinado vinculo

externo, a qualificaç ão de parceiro estratégico atribui-se, em princípio, àquele

e stado, bloco ou coalizão capaz de aportar elementos substantivos à expansãodo comércio exterior, dos investimentos diretos, da organização empresarial,

da ci ência e da tecnologia.

f) RealJsmo e pragmatismo

Os conservadores brasileiros do sé cul o XIX já eram realistas, não utópicos,

voltados à valorlzação da vontade sobre o destino. Por isso não acreditaram na

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30 - CoNemos. TJWjSlçl\ES I NUDICMU

liga an6ctiôn ica, uma arqu itetura supranacional que Bolfvar e os pan-arneri­canistas hispano-arnerícanos propunham. O barão do Rio Branco herdou essepadrão de conduta ao orientar as relações do Brasil para os Estados Un idos,a potência hemísfénca emergente em condições de tornar-se hegcmônica.Mas foi Vargas que conduziu o realismo de conduta ao novo passo de quali­dade, o pragmatismo, ao operar em meio às bre chas da divisão do mundo emblocos antagônicos e tirar, na medida do possível, proveito de todo lado emfavor de seu projeto nacional, a industrialização. () pragmatismo, evolução eestado avançado do realismo, demonstra a prevalência da esperteza diplomá­tica sobre as forças pro fundas da economia e da sociedade, bem corno sobreo processo deci sório de outros governos, embora nesses elementos se assentee -<eJa limitado pela escassez de poder disponível. A evolução do realismo aopragmatismo qualifica, portanto, a conduta externa brasileira, antes mesmode C ..isel haver apl icad o o termo à sua política exterior.

p;) Cordiaüdade oficial no trato com os vizinhosEsse padrão de conduta da diplomacia brasile ira foi concebido ainda no

s éculo XIX, pelo visconde do Rio Branco e, no sécul o xx. pelo seu filho, oharâo . Convém. pensavam eles , ao Brasil implementar a amizade e os negó ­cios com os vizinhos para manter a convivência e a paz. A ccrdíalidade oficialacon selha conduta regional que não ostente a grand ct.a nacional e a superio­ridade econômica e que elim ine gestos de prestigio, mas que se guie pelarealizaç âo dos interesses do Brasil sobre os dos vizinhos, seja pela cooperaçãoseja pela negociação. e fort aleça seu poder internacional , ra7.ÓC S que podemmomentaneamente quebrar a cord ialidade. A quebra n ão é aconselhãvel, portal razão o governo Lula recusou-se a abrir confl ito com St'US colegas da Ar­gentina e da Bclfvia, Néstor Kirchner e Eva Morale s, quando interesses docomércio exterior e dos investimentos brasileiros foram afetados,

h) Desenvolvimenro como vetorEntre 1930 e 1989, a diplomacia brasileira respondeu 30 processo de de ­

senvolvimento em curso, incumbindo-se de trazer insumos externos, funçãoque lhe foi explicítarnente confiada pelos homens de Estado. Ciência, tec­nologia, capitais e ernpreendlmentos de- fora complementariam os esforçosinternos, essa era a 6.I0s06a política que presidia lal incumbência. A ernpol­gação da era da global ização, que marcou os governos de Fernando Collor

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No BMSlt: CAIIORIA. PftAnCAª: 31

de Melo (1990-92) e de Fernando Henrique Cardoso (1995 -2002), com­prometeu esse padrão de cond uta, sacrificando- o, em parte, 11 crença de que

abertura econômica, liberalismo e prevalência do mercado bastariam comoelementos mdutores do de senvolvírnento. Como o papel do Estado prevale­cia anteriormente, procurou-se enfraquecê-lo para dar fluxo aos agent es daglobalizaç ão, todavia a experi ência revelou-se de alcance limitado, o desen ­volvimento regressou aos pOIlCOS à linguagem diplomática e a opinião públicaacabou por levar à Presid ência, em 2003, o crítico do modelo neoliberal,Luiz Inácio Lula da Silva. Por outras vias c em novas condições de operado­nalidade , o padrão clt' conduta restabeleceu -se e o desenvolvimento, vistocom maior !:r3U de int erdepe ndência e entrosamento tom forças sistêrnicase me.nor vinculação com o Estado, recuperou sua antiga função de vetor daação externa ,

i) Independência de inser ção internacionalEsse padrão de- conduta da diplomacia conrarrun a todos os anteriores como

substrat o ideológico. °Brasil inclui-se entre uma dezena de países, apro xi­madamente, cuja vocação os impele a perseguir um mod o próprio de inserçãointernacional. A independência de inserção pressupõe visão própria de mundo,autonomia do processo decisório c formulação própria de política e-xterior.0 , conservadores brasileiros do século XIX, como os descnvclvimentistas doséculo XX, cultivaram esses valores, enqua nto os liberais daquela época e osneoliberais di era da globalízaç ão colocaram-nos em segundo plano. A auto­nomia de inserção fiKllr3 como padrão de conduta da diplomacia brasileiraporque se impõe sobre a longa duração e faz pre valecer o caráter nacional nainevitável simbio se entre o interno e () externo. Ela não elimina os condicio­namentos externos, mas sugere dominá-los em proveito próprio, submeter asorte e as circunstâncias e comandar o destino, em vez de. apenas sofre r seusefeitos . A independência de- inserção inclui, paradoxalmente, a interdepen­dência real da era pós-neohberal entre suas variáveis operativas.

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2Transições: regime político, governo,

partido e ideologia no poder

LEITURAS RECOMENDADAS

SARAIVA, los" Flávio Sombra. [Org.). Foreigpt policy and poli/icalrcginu . Bra.lli" IBRI, 2003 (ver especialmente o; textos de AmadoLuizCI''''''O e Th omas Skidmore <obre a expe rí éncn brasileira) . COS­TA, Emll ia Vjotti da. Da mDnDrquia à repúbl iJ:a: momentos decisi vos.SJo Paulo : Grijalhn, 1977. BUENO, Clodoaldo. A r~blica o sua po­ííticn ~rttrior. Br»ilUI: UnB , 1995. GARCIA, Rugênio Vargas. Entr eAmérica o Europa : a polftica externa b..stlei ra na década de 1920.B"silia: UnB , 2006. CERVO, Amado Luiz. So b o signo neol íberal:as releçõcs inte rnacio nais da Am éri ca Latina . Rtvirta Brasiloira dePolítica Imrmacional, n. 43, v. 2, p. 5-27, 2000. CERVO, AmadoLuiz. Relações internacionais do Brasil: um bala nço da era Cardoso.RnJisra Bras ileira de PoII'ica lnlCrnat:itm<ll n. 45, v. 1, p. 5-35 , 200 2.C O RREA, Luiz Felipe de Sebeas. Polrlica erterna e idenrídade nacio­nal brasilelra, Politica E"'trrna, \'.9, n. I, p . 29, 2000. LAFER , Ce l­50. A identida de internacional do Brasil, passado, presente e futuroSlo Paulo: Perspectiva, 200 1. SEITF.NF US, Ricardo A. S. O BrasiliÚ Go /úlio Vargas ea [armação dos blocos, 1930· /942 . São Paulo :Nacional , 1985. MOURA, Gerson , Sucessos • ilusões. Relações in­ternaciona is do Bruil durante e após a Segunda GUCrT3 Mundial. Riode Janeiro: Fundação Gelúli o Vargas, 199 I. STORRS, Keith Larry.8razi/'s lnd~ndtn/ Fo,..;gpt PoIicy, 1961 ·/ 964. Cernell Unive rsity,

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2.1 Transições: o problema cognitivoA relação entre regime político e política exterior ocupa reduzido espaço

na literatura especializada sobre relações internacionais. Ocupa menos ain­da a transição propriamente d ita entre regimes , governos, partidos e ideo­logias. Em boa medida, o fato se deve 11 contingência de ser essa literaturapredominantemente anglo-sax ónica c de não .ocorr e-r mudanç.a de regimepolítico na Inglaterra e nos Estados Unidos há séculos. Recentemente, po­rém, o tema tem atraído o interesse, em razão da disputa pela hegemonia,no contexto da S<"gunda Guerra Mundial, entre democracias, ditaduras ouregimes totalitários, e durante a segunda metade do século XX, entre co­munismo e capita lismo. Ademais, durante a Guerra Fria, os países da Amé­rica Latina alternaram democracia e regíme militar, com desenvoltura, Ofim do comunismo no Leste europeu não extinguiu o regime, que sobrevivena China continental

Esses pressupostos históricos são s-uficientes para formular o problemada relação entre regime político e política exterior, Recente pro jeto de pes­quisa do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasíha,desenvolvido em cooperação com especialistas de relações internacionais deuniversidades européias e americanas, ampliou o problema cognitivo ao in­vestigar O nexo entre regime político, política exterior e modelo de desen­volvimento. A junção dessa terceira variável parecia a esses especialistas umarequisição 16gica: em que medida o regime - democracia, totalitarismo,comunismo, socialismo, ditadura militar - condiciona, para além da políticaexterior, toda a ação externa dos Estados e o próprio modelo econômico em

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TUJtS1ÇÕf:J; Rlr.tM{ POúTICO,IKNIItND. PAKIl.DO IlDtO\OO1A'to rootll 35

sua dimensão externa? No caso do Brasil, devemos indagar SI' entre o modelode desenvolvimento " as relações internacionais do país existe nexo de cau­salidade, ou condicionalidadc, com relação ã Monarquia, República, EstadoNovo , regime militar, democracia, neoliberalisrno e ascensão da esquerda.Uma vez que a experiência histórica brasileira é rica e variada, convém, ain­

da , indagar acerca do nexo entre mudança de governos ou de partidos nopoder" as relações internacionais. Como conviria aos norte-americanos ana­lisar, por exemplo, o Impacto das distintas visões de mundo de republicanose democratas sobre as relações internacionais dos Estados Unidos ,

Os dirigentes políticos, e com eles os intelectuais, são propensos a aceitarcomo natural a relação entre regime político e política exterior, na suposiçãode que o primeiro embute na segunda uma conduta ideal. Na realidade,para a História não existe p<;üt ica e ncricr ideal acoplada à natureza do re­gíme, porquanto a democracia e SC"-1 antagônico, o totalitarismo, têm porvezes apresentado condutas assemelhadas. A guerra do Vietnã e a guerrado Iraque, criticadas pela opinião internacional, por juristas internacionais epor moralistas, foram iniciadas" cond uzidas pela democracia. As estruturashegernônicas que perpetuam o subdesenvolvimento e a pobreza de mais demetade da humanidade, no entend..r do pensamento estruturalista latino­americano, ergueram-se e produziram efeitos no seio da democracia. Por suavez, o regime militar no C hile e no Brasil, a título de exemplos, contribu iupara fortalecer a organização liberal da sociedade e a ord em liberal global.

O exame do nexo entre regime político e modelo de inserção internacionalna experiência brasileira parte da seguinte hipótese: a mudança da pulíticaexterior e do "modelo" de inserção internacional ocorre sob a influência dedeterminados fatores vinculados ou não à sucessão de regimes ou de gover­nos de um mesmo regime. Vale dizer que o regime polítice exerce influênciasobre a política exterior, como também pode não exercer, sendo plausívelfazer a mesma afirmação acerca do papel do governo. Com o intuito de ve­

rificar essa hipótese , examinamos as diversas mudanças e seus impactos naHistória do Brasil, dando ênfase ao estudo da transição entre o governo deFernando Henrique Cardoso para o de Luiz Inácio Lula da Silva, em 20tH,visto que nesse momento ocorre uma transição ídeo légíca no poder, de cor­rentes ditas de direita para correntes ditas de esquerda.

Duasobservações iniciais permitem compreender melhor DOSsa hipótesede trabalho.

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36 CQNcmo~, TlI.lN1JÇóIl ( _AMOIO"OS

Na experiência brasileira, as mudanças políticas, algumas vezes, não im­plicaram, de imediato, uma mudança da política exterior. Assim ocorreucom a Revoluçã o de 1930, a ímplantaç.ão do Estad o Novo em 1937 c a rede­mocratízaç ão em 1985. Quando se tentou adaptar abruptamente a políticaexterior à mudança do regime, observou-se, por veze s com certa rap idez ,o refluxo de parâmetros anteriores dentro do mesmo regime. Isso ocorreucom a "republicanizaç âo" da política exterior em 1889 e a recuperação dastendências da dipl omada imperial pelo barão do Rio Branco em 1902; coma "ocklentalização" ou "arne ricaniza çâo" de Eurico Gaspar Dutra em 1945e o refluxo aos parâmetros nacíonalistas da era Vargas (1930-1945) desde1947; com a "correção de rumos" liberal e oc ídemalista de Castelo Brancoem 1964 c a recuperação dos princípios da Política Externa Independente(1961 -1964) pelo regime militar, desde 1967.

Por outro lado, a inserção internacional do Brasil sofreu mudanças deorientação dentro de um mesmo regime politico. Durante a chamada Repú­blica Velha (1889-1930) , houve uma inflexâ c da política exterior quanto àpercepção dos interesses a realizar, que se tornam mais universalista s com agestão do barão do Rio Branco entre 1902 e 1912 do que o eram sob a égideda Rep ública jacobina im plantada em 1889. Os militares [regime vigenteentre 1964 e 198 5) deram demonstração evidente de mudança dentro doregim e , ao recuperar, entre 1967 e 19f15, as tend ências introspectivas em­hutidas no projeto de des envolvime nto dos pre sidentes Vargas, Kubitschek,Quadros e Goulan (1951 -1964) . A a censão de José Sarney em 1985 e acontinu idade do regime democrático até nossos dias não impediu llITUI rup­tura em relação a conceitos c oriernações da inser ção internacional em 1990e 2003 .

Essas duas observações permitem concluir que variáveis de médio e longoprazos pre valecem sohn: o nexo entre regime político e política exterior?Caso a resposta seja positiva, estaríamos dizendo Que existem determinaçõesque exercem maior inlluêncía sobre a política ext erior e 3 inserção inter­nacional do pafs do que a sucessão e a natureza dos regimes, a sucessão degovernos ou , ainda, de partidos pol íticos no poder?

Quando o regime é: substituído por outro, Verifica-se maior substituiçãode dirigentes do que quando mudam os governos dentro do mesmo regime.Há, porém, vari áveis independentes desses fatos que pesam sobre o modelode inserção internacíonal. Identidade nacional, identidade cultural. capaci-

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T"'HSI~ES: Af{;'M[ I'llúnro. COVEJlNO, PAllI1IlQ [ IIlrJll1lSlAtIO1'010 37

dade de estabelecer consensos internos , grau de racionalidade na gerênciadas políticas de Estado, existência ou não de projeto nacional, jogo interno

conflitivo ou cooper ati vo dos grupos e das forças sociais, autonomia decisóriaou subserviên cia do homem de Estado, conformismo diante de condiciona­mentos externos ou vontade nacional são algumas variáveis a serem manipu­ladas nesse estudo.

Convém ap licar ao tema um tratamento que aproxime dois métodos deanálise . Primeiro, a análise multicau sal das relações internacionais desenvol­vida pela escola francesa . Essa análise ganha especificidade se vier associadaao co nceito de ldentidade internacional do Brasil , recentemente elaboradopor Celso Lafer com o intuito de explicar continuidade e mudança na polft i­C<I exterior. Ao sugerir o segundo método de anál ise, remetemos o leitor aosprocedimentos da análi se paradigmática que aplicamos no Capitulo 3 como mesmo propósito de escl arecer co ntinuidad e e mudança de modelo deinserção internacional.

A escola fran cesa de relações internacionais parece propor o "descola­meruo" das rel açõe s internacionais contemporâneas do regime político, aoconduzir O raciocínio para a identificação e a ponderação de quatro grandesvariáve is da vida internacional: as forças , os fins da política, os componen­tes e o movimento, tanto das forças quanto da diplomacia . Esse modelo deinterpretação situa o regim e do lado das finalidades da política exterior con ­cebidas pel os homens de Estado. Com efeito, os dirigentes interpretam asforças, sob a forma de percepção de int eresses a realizar, e tomam decisõesexternas, engendrando urna política . O regime tem a ver com o padrão dohomem de Estado e também com a dimensão Institucional e operacional- instrumentos ou mecanismos de ação - disponíveis para implementardeterminada política. Assim, por exemplo, os dirigentes comunistas chinesespodem operar externamente por meio de um modelo de inserção interde­pendente de matriz capitalista.

Para o estudo do caso bras ileiro, a literatura sugere o conceito de iden­tidade nacional como categoria instrumental de análise adequada para des­vendar o jogo da multicausalidade através da História . Rarníro Saraiva Guer­reiro exami nou em seus e scritos o nexo entre identidade nadonal e políticaexterior à época do desenvolvimentismo, ao passo que Lafer estendeu talanálise para a identidade internacional brasileira como categoria explicativade tendências e de mudanças da política exterior. Seu conceito abriga cinco

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38 - CONCErTOS, TllANSlçóES E "AIlAOIGMAS

componentes: o legado histórico, o contexto da vizinhança, a inserção assi­métrica de potência média, o vetor do desenvolvimento nas finalídades da

política exterior e o processo de abertura externa desde 1990.

Esses componentes não são, por certo, objeto deste estudo, mas a elesdevemos estar atentos, porque à primeira vista minimizam o papel do regimepolítico sobre a política exterior brasileira. De que modo?

Seguindo o raciocínio de Guerreiro, já tivemos oportunidade de chamara atenção sobre a relação estreita entre identidade nacional brasileira, deter­minada pejo caráter multiétntco e multicultural da sociedade, feita ademaisde desigualdades e heterogcncídades socíoeconômicas, e. o acumulado his­

t6rico da diplomacia brasileira: uruversalista ou contrária aos segregacionis­mos de qualquer natureza, cooperativa ou nâo-confrontacionlsta, pacifista ouorientada pela convivência das diferenças, juridicista ou valorativa da normado direito e do ato jurídico internacional. Esses parâmetros de conduta so­freram pouco com as mudanças de governo.' e regimes, Eles espelham a per­cepção de país satisfeito consigo mesmo, que comere ao exterior um créditode simpatia e benevolência.

Tomemos, a título de exemplo, alguns elementos da identidade nacional,a começar pela cordialidade oficial no trato com os vizinhos, A vizinhança foi

importante na gênese da ide'ntidade internacional e na condução da políticaexterior. Mas o caso brasileiro se diferencia de muitos outros, quanto aopapel que o entorno exerce sobre a configuração da identidade. Durante operíodo da Regên(";a (1831-1840), em que se deu a consolidaçâo do Estadonacional, e durante o Segundo Reinado (1840-1889), a Monarquia brasileíradespendeu grande esforço para configurar o rerritórro, seja afastando amea­ças à sua integridade, seja acordando com os vizinhos as linhas de fronteira,Até por volta de 1860, a imagem de uma vizinhança constituída de Estadosmal"adm;nistr~doscontribuiu para gerar a auto-imagem de Pafs provido deinstituições civilizadas. A Argentina apenas obteve urna imagem positiva noconceito da opinião esclarecida brasileira após a ascensão de Barrolorneo Mi­tre, nOS anos 1860 Essa visão de si e do outro transferiu-se da diplomaciamonárquica à diplomacia republicana e aprofundou-se com a gestão do barãodo Rio Branco entre 1902 e 1912, Assim, fortaleceu-se aquele acumulado

histórico pela idéia de superioridade de força e de. civilização diante dos vizi­nhos. Os vizinhos, concluía-se, devem ser bem tratados, mesmo porque sãopouco relevantes para a vida naciona.l. É a chamada cordialidade oficial, que

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TRANSlÇóES: ",O'M>: pj)tJnc(J, GCJ1IEllNO, PAlmOGE lDEOIDGLI NOpj)0EIl 39

se cultiva até o presente como parâmetro de conduta da diplomacia brasilei­ra no trato com os vizinhos.

Monárquicos e republicanos, presidentes democratas e militares, nacio­nalistas e liberais ostentaram, com notável continuidade, o discurso e a práti­

ca da cordialidade oficial. Houve, por cena, momentos e homens de Estadoinchnados a romper com esse padrão de conduta nas relações com a Argen­tina, como ocorreu por breve período no fim dos anos 1970, com ErnestoGeisel e seu chanceler, Azeredo da Silveira, em razão do contencioso acercado aproveitamento dos rios da Bacia do Prata. Ou ainda com a diplnmacia daobstnlÇãlJ praticada pelos chanceleres brasileiros entre 1945 e 1956, particu­larmente por João Neves da Fontoura, que via a aproximação com o regime

peronista como ameaça aos ganhos que o Brasil auferia das relações especiaiscom os Estados Unidos.

Observamos, pois, que a cordialidade oficial evoluiu como variável in­dependente do regime e dos governos: transitou de uma base explicativavinculada à imagem e à configuração do território para outra vinculada à

percepção de interesses a realizar. Essa última circunstância é recente e dizrespeito à criação de ambiente favorável il expansão de negócios brasileirosna América do Sul e à necessidade de realizar consenso regional do gêneropólo de poder com o fim de alcançar resultados de interesse nacional nasnegociações multilaterais globais (O Me, ONU, conferências multilaterais).

Tomemos outro exemplo, o de potência média com inserção assimétricana economia internacional, A política exterior do País foi causa da inserçãoassimétrica do Brasil no mundo, no contexto da evolução da econom.ia ca­pitalista. Contribuiu para engendrar e manter esse tipo de inserção até aRevolução de 1930, característica de país exportador de produtos primáriose importador de manufaturados. Desde então, a pclítica exterior inverteusua função histórica, ao tomar-se' instrumento operacional destinado pre­cisamente a eliminar assimetrias e a arrancar a nação da condição de naçãodependente e atrasada.

A condição de potência média imprimiu à conduta externa traços ambí­guos: de subserviência. durante a expansão da sociedade internacional euro­péia sob a égide do capitalismo na primeira metade do século XIX. Já du­rante a segunda metade do século XIX, as elites conservadoras que dirigiamo país lixaram objetivos externos e alcançaram-nos com notável coerência e 'racionalidade de conduta. Assim, o país equacionou seu problema de mão-

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40 CONCfIT~ lIlANtlÇOfS f PAJlAl)IGMAS

de -obra, pondo fim ao tráfico de escravos e atraindo a imigraç ão livre, exer­ceu uma hegem onia regional sobr e os países da Bac ia do Prata , enquantose consolidavam por lá os Estados nacionais, fixou a linha de fronte ira peladoutrina do UI; possidetis e assegurou a autonom ia da política de comércio

exterior, que fora sacrificada pelos tratados desigua is finnados com os paísescapitalistas dominantes à época da Independência. Durante a segunda meta ­de do século XX, a di plomacia brasileira de potência média, enquanto corriaatrás de fatores externos de desenvolvimento, como capitais, empresas etecoologia, buscou liderar o Terceiro Mundo em um movimento de reformada ordem econômica internacional, confrontando interesses concretos daspotências avançadas.

Percebemos que o elemento fulcral da identidade nacional e.merge no S<!­

culo XX como Paes em desenvolvimento. Desde o primeiro governo de G e­túl io Vargas (1930-1945) , o desenvolvimento tornou-se o velor da políticaexterior, rui expressão do chanceler Rarníro Saraiva Guerreiro. Assegurada asoberania sobre o te rritório, configuradas suas fronteiras, o desenvolvimentodesse território tomou-se a terceira funç ão histórica sucessiva da diploma cia

br asileira , segundo a interpretação do embaixador Luiz Felipe de Se ixas C or­rêa . Entranhada como elemento da identidade nacional.

À época da globalízação, na passagem do século XX para o XXJ, outroconceito aílora na auto-imagem da opi nião esclarecida e dos dirigentes: o depotência emergente, não m ais de integrante do Terceiro Mundo, mas envol­vida e integrada ao movimento das estruturas hegemônicas do cap italismoque se voltam para o con t ro le do ordenamento global.

Essa evolução da política exterior e do modelo de inserção interna cionaltem a ver com regime político, partido, governo e ideologia, mas a tudo issose sobrepõe, por vezes, como se esses fossem vari áveis independentes. Oelemento que qualifica esse ou aquele período das re lações internacionaisvinculadas àquelas var iáveis não é a própria variável , mas o interesse motor

pelo qual se movem os dirigentes. E sem pre houv e algum .Na experiência brasileira , por longo tempo, a ' naç ão padeceu de certa

inércia e não respondeu aos desafios econômicos como ocorreu nos proces­sos que levaram ao desenvolvimento um certo número de países cap italistas.Getúlio Vargas manifestou decepção diante do que considerava covardia daburguesia brasileira . Coube ao Estado colocar a nação no rumo da moderni­zação integrada ao sistema capital ista . Esse processo foi concebido pelos di-

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TU.HSIÇOES: REGIME POL.iJl(.a, QOV9:1II0. PARTIDO E IDEDlDGlANO PClDlR 41

rigentes brasileiros nos anos J930 e mantido nas décadas seguintes como umprocesso com quatro fases a galgar. A primeira, dos anos 1930 a 1950, vol­tou-se para a implantação de um moderno parque industrial. A segunda, dosanos 1960 e 1970, preocupou-se em dotar a economia de elementos básicos

que lhe conferissem o grau possível de autonomia. A terceira, a partir dosanos 1970, destinava-se ~ aquisição ou domínio de tecnologias avançadas Aquarta, dos anos 1990 a nossos dias, orienta-se pela cornpetitividade sistêrni­

ca a atingir e pela interdependência real da era da globalízaçâo a estabelecer.E!õS<lS fases permearam ações e resultados e não corresponderam, obviamen­te, a períodos estanques ou dissociados. O que se percebe, contudo, são acontinuidade e a racionalidade do processo que se inaugura nos anos 1930,marcado por forte presença do Estado, até a crise de adaptação desse Estadocom transfer ência de responsabilidade às forças sociais que presenciamos naera da globalização. O minguado desempenho das administ rações de Collorde Melo e Fernando Henrique Cardoso diante dos objetivos de desenvolvi­mento exigidos pela opinião pública explica a primeira eleição de um gover­no de esquerda na História do Brasil, em 2002, disposto à revisão do modelode desenvolvimento que esvaziara o Estado de seu papel de comando em fa.vor do mercado. Em suma, o papel protagônico do Estado quanto ao modelode inserção internacional perpassa regimes e governos.

Os instrumentos con ceituais que. expusemos até O momento não nosajudam a ver influêncin importante do regime político sobre a política ex­terior e o modelo de desenvolvimento. Convém, portanto, aprofundar oestudo de casos de mudança antes de tirarmos conclusões sobre o nexoentre as três variáveis : regime político, modelo de desenvolvimento e rela­ções internacionais.

121889: Transição da Monarquia à República e interesses degrupo

Durante a depressão capitalista dos anos 1930, a América Latina rompeucom o modelo de inserção internacional que se arrastava desde a época deseus processos de independência, no início do século XIX. Durante mais deum século, os dirigentes que se apropriaram do aparato do Estado, plantado­res e exportadores de produtos agrícolas ou exploradores de minérios, rnan­tiveram o esquema deportas abertas concebido pelos dirigentes europeus ­exportação primária e importação industrial - que garantia vantagens para "

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=42 C01tC!110S. TUHS'ÇOEõ E PAlWl'GMAS

am bos O~ lad os: no centro, a expansão do capitalismo industrial, na periferia,o domínio da soc ied ade por uma eli te social numericamente irrelevante . OEstado aqui servia aos interesses de sse grup" socioeconôm íco hegem õnico.

Apesar de ser uma monarquia constitucional , o Brasil não se diferencioudas rep úblic as latino-americanas quanto ao modelo liberal de inserção inter­

nacional qu e se estendeu do início do século XIX a 1930. Contudo, o longop er íodo de vig ênc ia do paradigma liberal-conservador de ent áo sofreu algu ­mas inflexões na l l ist ória do País. Entre a transferênc ia da Corte portuguesa

ao Rio de Janeiro em 1808 e a expiraçáo do Tratado de Comércio com a In­glaterra em 1844, a política exterior foi subordinada ao paradigma de portas

abenas com que 0 < países capitalistas europeus impunham à periferia seusinteresses c as regras de sua sociedade ínternurional. Nessa época, o governobrasileiro assinou duas dezenas de tratados desiguais que amarrara m o pro­cesso der is ório e as es t ru tur as da inserç ão internacional i ordem capitalist a,

de modo a engendrar a condição de inserção-Internscional dependente. Umgrit o de revolta ant.. ,'S'<>I sub ordinação dos interesses nacionais e do proçes­

so de cisório OCorreu nos an os 1840, quando SI' formulou com certo grau deautonomia o primeiro projeto nacional de industrialização, fracas sado aliás,que se manteve, porém, na condução das rel ações internacionais do País atéo fim do regime monárq uico. Mas não houve modificação de essência domodelo de in ser ção,

O advento da Rep ública, em 188 C) , induziu a adaptação da polít ica ex­terior tanto à ascens ão de nova elite ao poder quanto à evolução das forç asprofundas da H ist ór ia. Na esfera e xtr-rn a, os Estados Unidos já represen ta­vam o mercado de destino de mais de 70% do café exportado e haveriamde atrair o e ixo de relações pol íticas c come rciais pa ra si. A velha Eur opapass ou a segundo plano. Conjugava-se, portanto , o Brasil com os obj eti­vos regionais dos Estados Unidos , que pretendiam transformar a AméricaLatina em mercado ele reserva para seus produ lOS industriais, já que nãopartilhavam da divisão de mercados levada a termo pelo colonialisrno eu­ropeu. Tanto a agenda da Conferência Pan-Americana de 1889 por 1'1<''< en­t ão convocada como a atuação do representante br asileiro em Washington,

Salvador de Mendonça, revelam as novas disposições. A República, pra- i

ticamente imposta, ape lou à intervenção norte-americana, cuja esquadrasediada na Baía da Guanabara contribuiu para consolidar o regime. Favorescomerciais foram cedidos .aos Estados Unidos pelo acordo ele 1891, em

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TR..,..SIÇÓEl:JllGIMEPOúnC'o. GOVfJlHD, PAIII11DO f IDEOLOGiA NO PDOEJt 43

troca de amizade e proteção estratégica, sobre cujos elementos o barão doRio Branco firmou a relação bilateral. Convertido o eixo de relações inter­nac ionais da Europa para os Estados Unidos, exceção feita à dependên­cia financeira de Londres que um empréstimo de consolidação da dívidaprolongava, os dirigentes republicanos submeteram o serviço diplomáticoà disposição central de atrair imigrantes para a lavoura e exportar café,

aprofundando verticalmente o modelo anterior por meio da diplomacia daagroexportação, na expressão de Clodoaldo Bueno .

A República, portanto, provocou queda de qualidade da política exte­rior, ao lançar novas raízes de dependência na área econômica (estruturacentro-periferia), financeira, comercial e estratégica. Prolongou o atrasohistórico do Brasil, sem trazer inovação de fundo, porquanto essas ten­dências vinham do regime anterior, que sobre elas exercia certo controlemediante leitura mais complexa do interesse nacional. Do lado do ConeSul, as relações com a Argentina seguiram em ciclos de tensão e distensãoe a ascensão do Chile já havia sido introduzida nos cálculos estratégicosregionais. A República Velha, até 1930, buscará o prestigio externo, queconvinha a plantadores e exportadores de produtos agrícolas, mas terá delidar com três problemas de relações internacionais: o alinhamento pol íticocom os Estados Unidos, a dependência financeira de Londres e a expansãodas exportações de café .

2.3Décadade 1930: Industrialização e interesses da naçãoAs relações internacionais do Brasil não foram afetadas abruptamente pelo

triunfo da Revolução de 1930. Seriam, contudo, redefinidas até o advento dogoverno constitucional de 1934, de forma como nenhuma outra mudança deregime as afetou em toda a História do País .

Desde ) 929, a crise do capitalismo repercutia diretamente sobre o es­quema de comércio que vinha do século XlX, exportações primárias e im­

portações de manufaturados. Por outro lado, e com a mesma capacidade dedeterminação, as transformações da sociedade brasileira - aumento d~ po­pulação urbana, burguesia nacional incipiente, organização sindical embrio­nária, demanda de emprego e de produtos industriais, descontentamentomilitar e intelectual diante do atraso e da dependência secular - explicam adrástica ruptura calculada e segura que se operou .na esfera política, tanto noBrasil quanto em outros grandes países latino-americanos.

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44 CONCmOS. TRANSIÇÕES E PAIWlIGMAS

o paradigma liberal-conservad or de pol íti ca exterior não combinava coma nova conjun tura externa e interna. O sistema complementar cen t ro- peri­feria de porras aberras unllarerais, proposto pelo centro e ace ito pelos go­vernos lat ino-americanas. cedeu à fonnulação de projetos nacion ais que imoprirniram novo rumo às políticas exteriores dos países da região. Essa nova

fase teve como protótipo o Brasil de Getú lio Vargas desde o iníci o da décadade 1930, porém generalizou-se com a ascensão de Juan Domingo Perón naArgentina, a nacionalização do petróleo no México e a disposição de qu asetod os os grandes e pequenos Estados da região de fomentar a expansão deindústrias. Paradoxalmente, a crise do capitalismo mergulhou a América La­tina em um processo de modernização rápida , ardentemente desejada pelosnovos dirigentes pol ít icos . Na origem dessa mudança, teve menos impor­tância a continuidade ou a quebra dos regimes políticos nos diferente paíseslatino-americanos do que a mudanç a do grupo dirigente . As velhas elitesoriundas da economia pr imária perderam poder em favor de lideranças urba­ruas co m visão moderna de interesses e de relações int ernacionais.

A divisão do mundo em blocos antagônicos facilit ou a ob ra desses novosdirigentes, que negociavam sua ade são 11 guerra do s outros em troca de ele­mentos promotores da indústria, como crédito para exportações, invest imen­tos empresaria is, fornecimento de máquinas etc. Até a eclosão da SegundaGuerra Mundial, a América Latina abriu-se 11 competição internacional, pro­vocando respostas de potências rivais, Alemanha, Itália, França , Grã-Breta­nha, Estados Unidos, Japão, União Soviética, principalmente. preocupadasem assenhorear-se, por meio de seus empreendimentos, de parte , não so­mente do mercado de consumo, mas ainda do sistema produtivo loca l, quese expandia e se diversificava.

Algun s elementos caracterizam a mudança de modelo de inserção int er­nacional que se operava desde 1930: a) a inconve niên cia de prolongar o mo ­delo anterior da agroexportação, que na década de 1920 cultivava o pre stfgioexterno e procurava manter o crédito n.apr aça de Londres e que fora objetode críticas por parte do movimento tenentista , de intelectuais e do me iopolítico; b) a consciência que a crise do capita lism o despertou de se es ta rvivenciando uma fase de 'transição que permitia que o desenvolvimento fos­se convertido em objet ívo-s íntese da política exterior; c) a convicção de sepoder utilizar a diplomacia para alcançar resultados, a exemplo dos países decentro, então guiados pela introspecção estratégica e econômica; d) a desce-

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TIlAH"~E1: ItCIM! POLIncn,Cll'VflINO. ~'II'IIDO IIOIOlOCIA NO "Ollt 45

berta das condições de eficiênría de uma diplomacia voltada para o desenvol­vimento: autonomia de ci sória , ação cooperativa, com ércio exterior flexívelsem amarras dourrinais , subordinação da segura n ça aos fins econômicos e acon comitância de boas relaçõ es com os grandes e os vizinhos . Esses quatroelementos de observação indicam o grau de profundidade da mudança deinserção internacíonal que. então, se desejava para o Brasil com o objeti ­vo-síntese de desprender, enfim, a Mção dos interesses de um grupo socialapenas e lançá-Ia no rumo da modernização.

A política de comércio exterior do Brasil, desde 193 5, serve de exemploconcreto de como se operava a mudança . Tr ês princípios orientavam-na: pri ­meiro, tirar proveito da rivalidade entre os blocos antagônicos que dividiamo mundo com o intuito de aumentar a competição interna e o puder de bar­!lanha externo; segundo, manter o comércio liberal com os Estados Unidos,levando esse país a decisões que aquele poder de barganha requeria; terceiro,realizar o comércio compensado com Alemanha e Itália, mais adequado :.expansão da indústria nacional.

A Segunda Guerra Mundial criou mais uma condição favorável aos pro­pésltos do desenvolvimento brasileiro e latino-nrnericano . A solidariedadepol ítica continental tornou-se fator preponde.rante nos cálculos estratégi­cos do Rovemo de F. Roosevelt dos Estados Unidos, disposto a reforçar abase econômica dos vizinhos do sul, visto que essa melhoria era importantepara os es forços de guerra. O Brasil de Vargas soube manipular com gran­de habilidade essa cooperação bilateral , enquanto a Argentina insistia emsua neutralidade, vista com relutância pelo Departamento de Estado dosEstados Unidos.

Entre 1930 e 1945, portanto, a América Latina abriu nO\'Ocaminho. quan­do os Estados passaram a orientar por outro paradigma suas políticas exterío­res, Trata-se de um movimento convergente, embora com intensidade variadaentre os diversos governos . A mudança conceitual era pollCO perceptível nalinguagem diplomática, exceção feita, por exemplo, 11 mensagem de Vargas~ Assembléia Constituinte (':IYl 1933, em que interpretava o jogo das diplo­macias como jogo econômlco egoísta de potências voltadas 11 realização deinteresses nacionais unílaterais , A mudança era mais pe rceptível nos processosdecisórios. Os governos da região pretendiam imitar os grandes países capita­listas e tomarem-SI" unilaterals na reallzação de objetivos externos diretamentevinculados a ganhos internos, que eram identificados aos ganhos de desen-

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46 = CONtOTlll. TUNSlçOD [ P_IUS

volvirnento, que por sua vez confundiam-se com a expans âo da indústria. A

industri alização converteu -se, assim, no obienv o-síntese da política exterior,porque das ind ústrlas Se espe ravam o aumento da riqueza, o provimento demeios de seguranç a, a abertura de oportunidades de ~ócios para a burguesi anacional, a expansão do emprego para as ma ssas urbanas e a modernização dasociedade como um todo, no entendimento do elite esclarecida. Transitava-sedo interesse de um grupo para o interesse de UITLil naç ão,

A análise qu e fazemos das experiências latino-americanas de entio colocaem plano bem secundário a capacidade expl icativa dos regimes políticos DO

origem do novo paradigma de inserç ão internacional , Os Estados da regiãoforam ocupados por novos dirigentes que alijavam do poder as velhas oligar­quias da era líbcral-conservadora . Esses novos dirigentes iam adaptando a lei­tura do interesse nacional às demandas de uma sociedad e em tr ansformação.Não convinh a, em sua avaliaçâo, que se prolongasse 8 funcional idade anteriordo Estado, pOSIO a serviço do grupo socioecunômico hegem ônico e distanteda nação, ma s reorienr ã-lo para a realização de interesses gerais e estruturais.Desse modo, podemos identificar ent re os componentes do novo paradigmade política exte rior, qu e se iam agregando aos padrões de conduta, algunselementos conceituais , tais como: a idéia segundo a qual o proce sso deci sóriodeve nutrir-se de PN I'CPÇÕ<'s ade-quadas do s interesses nacionais ; a idéia derealizar, pela via da negociação, ganh os recíprocos nas relações internacio­nais: o objetivo de supe rar de sigualdades E'ntTP as nações ; e , enfim, urna visâo

de mundo cooperativa, de realização mútua de interesses entre os povos .No Brasil, a raiio do Estado desem'olvimenlista estender-se- á sobre go­

vernos e regimes políticos durante sesse-nta anos, entre 1930 e 1989. Comoocorreu com a longa permanência do paradigma líberal-conservador, o novoparadigma de relaçõe s inte rnacionais do B"rasil também sofreu inflexões.Examinamos no próximo item sua sobrev ivência, conturbada, aliás, por doisabalos do regime.

2.4Períodos de 1945-47 e 1964-61: Redemocratização B regilllemilitar. dois hiatos libera.ise interesses ocidentais

As mudanças de regime em 1945 c 1964 apresentaram convergênciaem um ponto: os novo s dirigentes não abandonaram a idéia do desenvol ­vimento nacional como vetor da ação externa, porém passaram a operarna suposição de que o desenvolvimento deveria extrair maior impulso da

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r"'N&lÇÔ(S; R(OIM( 'O~tnco, OQY(RNO, l'OIll1D' E IOUlO... NDP6DfR 47

estreita vinculação com as potências do Ocidente do que da vinculaçãodireta ao projeto nacional.

O governo de Eurico Gaspar Dutra, na embalo da nova ordem interna­

cional do pós-guerra , cujos parâmetros eram a divisão do mundo em ZOl\3S

de influência e o liberalismo na área de influência norte-americana, imprimiuorientação própria às relações internacionais , descolando-se de tendências

alinhavadas pelo regime de Get úlio Vargas. Sem extrair resultados de in­

teresse nacional, corrigiu logo sua estratégia em 1947 e recuperou aquelastendências mediante mecanismos de política cambial e medidas de com érc io

exterior que voltaram a promover a expansão das indústrias e que permiti­

ram a Vargas, de retorno como Presidente eleito em 1950, tocar o projeto

nacional na perspectiva anterior.O pensamento pol ítico e diplomático brasileiro apli cado às relações in­

ternacionais do País tornava, já nos anos 1950, fe ição própria e, ·a princípio,

independente do regime ou do governo, não tanto do partido. A União De­mocrátíca Nacional, UDN, e, depois de 1964, a Aliança Renovadora Nacio­

nal, Arena, constituíram-se como partidos políticos de direita , propensos.0 liberalismo e àquele estreitamento com os interesses do Ocidente, cujapromoção equiparavam à promoção do interesse nacional. Esses dois parti­

dos se prolongam no Partido da Social Democracia Brasileira, PSDB, e noPartido da Frente Liberal, PFL, à época da globalízaç ão da virada do milênio.

Mas aquele pensamento, mesmo em sua formulação partidária de direi ta ,

liberal e associada, não foi unitário diante do modelo de· desenvolvimento

a que a política exterior haveria de serv ir entre 1930 e 1989. Como não seobserva hegemonia dos dois grandes partidos da era da globalização sobre omodelo de desenvolvimento. Em um ponto concordaram homens de Estado,

intelectuais, diplomatas, militares , políticos e lideranças sociais: a função dapolítica exterior, que era de prover elementos para tocar o projeto nacional

de desenvolvimento.

Duas correntes cindiram o pensamento político brasileiro quanto ao mo­

delo de desenvolvimento a implementar pelos esforços sociais e do Estado.

Essa cisão aprofundou-se nos anos 1960, década da confrontação das corren­tes da opinião pública brasileira.

De um lado, posicionavam-se os defensores do desenvolvimento as­sociado às forças do capitalismo internacional e, de outro, os defenso­

res do desenvolvimento nacional autônomo. Essa divisão não deve ser

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48 CONtElTlU,TllANSlÇÓU ( ' .....OIaw.s

tomad a como um confron to radical de \1SÕeS do interno e das relaçõesexteriores, mas antes como uma questã o de dosagem entre liberalismo eprotecionismo. Embora as fronte iras entre ambas as correntes de pensa­

menta envolvessem uma zona de larga fusão, tais correntes fo ram sufi ­cientemente d ist intas e c oere nt es ao ponto de sugerir duas estrat égias de

inserção int ern ac ional.O des envolvimento associado - entre cuj os re presentantes figuram ,

nos anos 1950, João Neves da Fontoura e, na década segu inte, os militaresconse rvadores do grupo Castelo Branco que tomaram o poder em 1964,bem como os chanceleres ocidentalistas Vasco Leitão da C unh a e JuracyMagalh ães - envolvia parâmetros de política exter ior abrangentes e coe­sos . Os associacionistas vislumbravam um desenvolvimento impelido de

fora pelas forças do capitalismo internacional. As relações especiais com osEstados Unidos, matriz do sistema, se rram valorizadas e postas acima dequalquer outra var iável de conduta. De lá, sobretudo, adviriarn os fatoresesse nciais de desenvolvimento, tais como capital, empreendimentos e te c­nol ogia e também influ ên cia polít ica e ideológica. Para tanto, as condiçõesinternas requeridas seriam um sistema regulatório favorável à penetraçãodesses fatores, por um lado, e, por outro, a aliança nas esferas pol ítica, ge ­opolítica e de segurança. A esfera das rel ações econômicas int ernacionaisfundia-se, pois, . com a esfera ideolôgica e política. Isso significava adesãoà dout rina da segurança co let iva, sob hegemonia norte-americana, à épocada Guerra Fria . Essas idéias pou co ou nada tem a ver com o regime políti­co . A História revela que for am abraçadas pelo governo militar de CasteloBranco, entre 1964 e 1967, como h.aviam sido pelo governo democráticode Euri co Gaspar Dutra, entre 1946-47, e que inspiraram o de FernandoHenrique Cardoso, bem mais tarde, na passagem do século.

O desenvolvimento independente concebido por pensadores comoAraújo Castro, San Tiago Dantas, Hélio Jaguarlbe e os militares nacional is­

tas que subst ituíram os associacionisras em 1967, entre muitos outros, en ­volvia diferentes parâmetros de ação externa . Os independentes desejavamum desenvolvimento tocado por forças internas, menos dependente de ca­pital, empresa e tecnologia de matriz externa. As relações com os EstadosUnidos perdiam importância e a Guerra Fria também cara nas conside ra ­ções dos tomadores de decisão. Por outro lado, a segurança de sprendia-sedo elemento ideológico e coletivo ocidental para vincular-se ao esforço de

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TAANSlÇÔES: R[OIM[ POth1CO. GllVBlNO. PARfiOO [IOEOlOGIANOPOOER 49

desenvolvimento econômico e tecnológico. A solidariedade com o TerceiroMundo fluía naturalmente dessa estratégia, não por pressão ideológica mas

por comunhão de interesses concre-tos, e a política exterior levantaria abandeira da nova ordem econômica internacional. A vizinhança seria vistacomo área de convergência de interesses, senão mesmo de expansão dosinteresses de uma economia nacional cada vez mais robusta. Essas idéiasque lançam raízes remotas no tempo inspiram o governo de Luiz InácioLula da Silva, governo da era pós-neoliberal.

A década de 1960 assistiu 11 radicalização dessas duas correntes de pen­

samento político. Formulou-se a chamada Política Externa Independente,entre 1961 e 1964, ocorreu o golpe militar de 1964, bem como o golpedentro do golpe de 19úi, uma reversão política do regime militar. Pode-se~oncluir que aquela década foi de avanço conceitual. A transposição à es­fera executiva do pensamento dos independentes pelos governos tomou-semais perceptível e equilibrada, de um ponto de vista operacional, nos anos1970, à época de Ernesto Geisel. quando a maturação do processo de de­senvolvimento permitia prover a decisão de meios econômicos.

Entre 1930 e 1989, verificamos que os parâmetros de pensamento dosindependentes prevaleceram, embora temperados, na prática, pela influ­ência dos associacionistas. A inteligência política brasileira 'soube, portan­to, administrar com prudência essas duas estratégias externas. O diálogoentre ambas, embora exacerbado por momentos, produziu notável efeitode qualidade: converter a política exterior em política de Estado, acima deregime, governo e partido.

O progresso que o Brasil alcançou entre 1930 e 1989 deve muito a essasimbiose feita de equllfbrio de longo prazo entre concepções distintas quetiravam força de uma sociedade complexa e se impunham às contingências

do momento. Preservou-se a autonomia decisória, na esfera polí tica, e acriação de um núcleo econômico nacional forte como objetivo econômico.

Por ser composto de pensamento político híbrido, o modelo de inserção in­ternacional do Brasil resultou aberto às forças do capit alismo internacional,mas com autonomia de condução. A experiência brasileira diferenciou-sebastante da experiência da Argentina, pais no qual as rupturas institucio­nais, mais numerosas, eram acompanhadas de vontade destrutiva com rela­ção a conceitos e objetivos anteriores. Enquanto táprevalecia a alternância,aqui prevalecia a continuidade.

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2.51985: Transição semmudançaA transição do regime militar para o civil, em 1985 , afe tou superficial.

mente a política exterior e o modelo de inser ção int ernacional. Nessa década,apareceram as primeiras crít icas ao desenvolvirnent ismo, ao qu al atribu íarn- se

desvios e vícios acumulados durante o longo curso anterior, ta is como o pro­tecionismo exagerado con cedido ao mercado e ao empreendimento interno,a baixa compet itividade sist êrnica da ind ústria e dos serviços nacionais, a bai­xa capacidade de investimento do Estado, a instabil idad e monetária e a vul­nerabilidade finance ira prov ocada pelo volume da dívida externa. A transiçãoinstitucional e legal vinha sendo preparada desde 1974, pela ch amada aber­tura política . Por sua vez, a transição do modelo de inserção internacional doPaís também vinha sendo pre par-ada, como revelam dois fat os significativos:a cooperação bilateral que conduziu ao processo de integração com a criaçãode 11meixo entre o Brasil de José Sarney e a Argentina de Raúl Alfonsín foralançada pelos regimes mi litares, med iante entendimentos para exploraçãodos rios da Bacia do Prata e a cooperação na área nucl ear; por outro lado,também perpassou a mudança do regime a lese brasileira acerca da soluçãodos conflitos na América Cen tra l e no Caribe pela superação prévi a da mi ­séria popular em oposição à estratégia norte-americana de enquadramentodesses conflitos no esquema da Guerra Fria.

2.6A décadade 1990: Neoliberalismo de versão democrática 8

interesses globaisA inovação profunda que se operou no pensamento dos dirigentes bra­

sileiros e na condução do modelo de inserção internacional ocorreu entre1990 e 200 2 e resultou de mudança de governos, não de regime político.Os governos neoliberais, que ascenderam ao poder nos prin cipais Estados daAmérica Latina, apresentaram uma notável convergência de pensamento ede propósitos com rela ção à inserção internacional de seus países . A rnudan­

ça na natureza da Inserç ão internacional do Brasil durante a úl t ima décadad o século XX não correspondeu a uma invenção da inteligência política bra­sileira , como ocorrera na dé cada de 1930, mas a uma adap tação ao consensoregional e aos conselhos dos países centrais.

Em nossos estudos sobre as relações internacionais da América Latina , parti­

cularmente sobre políticas exteriores comparadas entre Br-asil e Argentina, che­gamos a elaborar o conceito de Estado normal, em substituição ao conceito de

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TRANSlç1lEs' '''IME ,0UnCj], GOVf1INO, ""'00 E IDrotOCLl NOPOorl 51

Estado desenvoluimentista, com o 6rnde dar inteligibilidacle ao novo paradigma

que se espalhava sobre a região. Embora a experiência precoce do novo para­digma tenha sido lançada pelo regime militarde Augusto Pinochet, no Chile, osgovernos democráticos dos anos 1990 adotaram-no com entusiasmo.

O modelo de inserção internacional introduzido nos anos 1930 deveu-sea duas séries de determinações: externamente, a crise do capitalismo afetoua economia primária dos países latino-americanos e levou à conclusão de quenão lhes convinha perpetuar a divisão internacional do trabalho estabelecidaentre centro e periferia no século anterior; internamente, as transforrnsçôessociais requeriam a diversificação das atividades econômicas, particularmen­te a expansão das indústrias. Assim entenderam os dirigentes políticos deentão e por isso inventaram o Estado desenvolvimentista .

A irrupção do paradigma normal, também chamado de neoliberal pelaliteratura, obedeceu, do mesmo modo, a impulsos externos e internos. Ex­ternamente, o colapso do socialismo, o triunfo da economia de mercado e amiragem da globalízaçâo levaram os dirigentes lat ino-americanos a considerarque também convinha pôr termo à experiência do Estado desenvclvimentis­ta . Internamcnte, a crise do endividamento externo da década de 1980 e arecessão econômica foram consideradas conseqüência do paradigma vigentepelos partidários da mudança.

Os governos ceolíberaís consideravam a supremacia do mercado e a reti­rada do Estado derivações lógicas da democracia. Para esses dirigentes, por­tanto, havia um nexo entre regime democrático e paradigma político. Defato, a História da América Latina desmente a existência desse nexo. Oargumento apenas tomou-se alvissareiro porque exercia forte impacto sobrea opinião e com esse fim foi apropriado pelos dirigentes, que se sentiam àvontade para impor o triunfo do indivíduo e do empreendiménto livre sobreo coletivo e o social. Além de haver lançado raizes em experiências precocesdo regime militar chileno e argentino, o Estado neoliberal , invenção típica d~

inteligência política Latino-americana dos anos 1990. representou, em pers­pectiva de efeitos, uma involução. Seu modelo mais acabado correspondeuà experi ência do governo de Carlos Saúl Mcnem (1989-1999) na Argentina,responsável pela' falência da nação, consumada com a crise política, econô­mica e social de 2001.

O Estado neoliberal, cujo modelo Implantou-se no Brasil durante o go­verno de Collor de Melo , entre 1990 e 1992 , e consolidou-se com o de

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52 CONClITOS. rlWlSlçOes [ ' .... D'. ....

Fernando Henrique Cardoso, durante seu s dois mandatos (1994-2002) , nãosignificou uma adoção dos parâmetros da globalização pela via da in terde­pendência , como ocorreu, por exem plo, com as relações internacionais deEspanha e Portugal no mesmo período. No Brasil, em razâo de abertura eco­nômica ind iscriminada, e longe do equ ilíbrio interno-externo, aprofunda­ram-se dependências estruturais com relação 80 exterior de modo a fazerprevalecer sobre o interesse nacional os interesses carregados pelas forç astransnacionais da globalízaç ão. A lógica da evolução histórica foi interrompi­da ao bloquear-se o processo de desenvolvimento anteriormente em marcha .A experiência dos anos 1930, quando a mudança paradigrnática provocou osalto de qualidade para a frente, em termos de desenvolvimento nacional,não se repetiu nos anos 1990. sob o signo do s governos neoliberais . Àquelaépoca, o governo tomou as forças inte rnas e externas no estado em qu e seencontravam e produziu o avanço para novo patamar. Sob o signo neoliberal,os dirigentes introduzinüll lima estratégia de destruição das forças nacionai s.cedendo sua apropriação e controle às forças do capitalismo transnacional.Foram além dos associacionistas anteriores que concebiam o equilíbrio debeneffcios nas relações internacionais por meio da cooperaçâo.

Com efeito, sob o aspecto político , o Estado normal revelou -se sub ser­viente ao sacrificar a autonomia da política exterior e erigir o chamado Con­senso de Washin~on , ou seja, os comandos externos do centro do capitalis­mo, como inspiração do processo dec isório. A noção 'de int eresxe nacionalesterilizou-se , já que aqu eles comandos foram estabelecidos para realizarInteresses dos países avançados que se diluíam na globalízação. Sob o aspec­to econômico, o Estado normal revelou-se destarte destrutivo" primeiro aoempreender a dissolução do núcleo central robusto da economla nac ional,em razão da alienação ao exterior que promoveu dos ativos das empresas pri­

vatizadas, e, segundo, ao transferir renda ao exterior em volume crescente,seja pela via dos d ividendos, seja pela via da especulação financeira . Enfim,sob o aspecto histórico, o Estado normal revelou-se regressivo, ao empurrarpara o setor primário o empreendimento nacional , restabelecendo, de certaforma , o paradigma liberal- conservador do século XIX .

Esses três traços que identificam efeitos do Estado normal são apontados,para fins de anál ise, como fulcra is, porém não devem ser tomados de for­ma int ransige nte. Fernando Henrique Cardoso, que dominou o pensamentopolítico e a política exterior e fez emergir o paradigma do Estado normal,

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T....soçOn: .m... ! POLfnCO, aoroNo. p,moo! 10EOLOGIA N. PODEll 53

combateu com vontade destrut iva os conceitos e propósitos do Estado de­senvolvimentista . Assim mesmo, como era típico de sua inteligência, não foicoerente como seu colega argentino ao implementar os três parâmetros doEstado normal. Cardoso preservou em certa medida a inf!úência de algunsprincípios c propósitos da fase anterior e lançou as sementes de outro para­digma de conduta externa, que chamamos de estado logistico, como se veráno Capítulo 3 . Cedeu ao externo, mas também ao interno, e brilhou pela

criatividade . Isso porque a essa incoerência foi conduzido pela sociedade,certamente a mais organizada em seus segmentos na região sul-americana,capaz de levar as pressões ao processo dcc isóric e, naquela instância, interes­sada em dosar o processo de abertura Incontrolável desejado pelos dirigentescom a capacidade de adaptação competitiva.

Em conferencia de 1995 na Universidade de São Paulo, Ronaldo MotaSardenbcrg, Secretário de Assuntos Estratégicos, definiu muito bem esseambíguo pensamento de Cardoso: inserção estratégica é também social , poisque consiste em visâo crítica da ordem , capaz de reconhecer, ao mesmo tem­po, os requisitos da globalizaç âo e do projeto nacional brasileiro.

2.72003: Continuidade democrática. mudança de modeloeinteresses sociais

Após algumas tentativas de alcançar a Presidência, o Partido cios Trabalha­dores (PT) triunfou em 2003 , havendo eleito no ano ant er ior SCu líder, LuizInácio Lula da Silva . Durante a campanha eleitoral, o argumento central comque se convenceu a opinião pública consistiu na crítica ao modelo de Cardosoe do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) . Em seus dois manda­tos , Cardoso teria aprofundado a exclusão social no Brasil e a vulnerabilidadeexterna da nação. Não engendrara a inserção madura no mundo da interde­pendência global e não promovera O crescimento econ ômico necessário à

expansão do emprego e da renda e à conseqüen te absorção dos pobres pelasociedade do bem-estar. A opinião públi ca respaldou a proposta do candida­to do PT de pôr termo à experiência do Estado nonnal, subserviente, destru­tivo e regressivo, Tudo em perfeita sintonia com o regime democr ático.

A transição de 2003, transição de partido e de ideologia no poder, adquiresignificado como tran sição de neolibcralisrno híbrido para governo híbrido de

esquerda . Reproduz um feitio daevolução do passado brasileiro, no qual pre­valece o diálogo entre correntes de pensamento, regimes polJticos e governos

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54 - CONcaroS. IllANs.ç6n ( I'MIJI '&MAS

de matizes partidárias. Expressa, assim, O cerne da mudança em política ex­terior, que no Bras il mais se aproxima ~ política de Estado do que à pol ítica

própria de um regime ou governo. A equipe de governo coordenada por Lula

abriga, por um lado, idéias anteriores, como a primazia dada à estabilidademonetária sobre o crescimento econômico, daí as metas de contenção dainflação e OS juros reais e levados, e, por outro, idéias de quebra de modelo,por meio de programas sociais de deslocamento de re nda paro os pobres e:a recuperaç ão da autonomia decisória na área externa. Algo similar ao qu e

ocorreu na década de 1960, quando independentes e associacionistas dispu­tavam o Estado para realizar suas concepções de desenvolvimento.

Com "feito, Cardoso havia conduzido as relações inte rnacionais do Brasilem quatro dir eções. Deu ênfase ao rnulttlarerallsrno, dele esperando a cons ­t.rução da governança global que poria fim ao Estado como agente principaldas relações int ernacionais. Essa crença dos neoliberais não tinha por si ne­nhuma evidência comprovada pela Hi stória nos séculos XIX e XX , quandoas relações internacionais asseguravam o encaixe estrutural entre cent ro eperiferia, a menos que uma potência da periferia rompesse por determínaçãoprópria esse nexo causal . Mas Cardoso ... sua equipe de governo acreditavamque a negociação internacional estabeleceria regras justas, transparentes erespeitadas por todos, en gendrando ordem perfeita atrás da qual movia-sea diplornacia.usto é, atr ás do mundo kant iano da harmonia universal. Des­

confiado, porém, Cardoso avançou o processo de int egração do Cone Sul,em demonstração de conduta reali sta com que equilibrar eventuais efeitosnocivos da globalização. Ao lidar com os Estados Unidos, revelou mais umaconrradíção de movimento, criticando o unilateralisrno que cr iava entraves à

governança global e sendo subserviente na área econômica. Enfim, Cardosoorientou-se para a Europa, em cujas relações via maior grau de convergênciapolítica e econômica.

Os quatro eixos da ação externa de Cardoso, o rientados para o Primeiro

Mundo, exceto a integração no Cone Sul, resultaram em retiradas e perdaspara as relações internacionais do Brasil: o Oriente Médio foi deixado delado, a África subsaariana também,,o próprio Japão e a China conhece ramo mesmo desprezo e a R ússia e o Leste europeu, reconvertidos ao capitalis­mo, não foram redescobertos, Mais graves, porém, para os interesses bra­sileiros, foram os quatro equívocos estratégicos embutidos na ação externada era Cardoso: a) o comércio exterior evoluiu de instrumento da pol ítica

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TRANSlÇlIES: '161MI .ollntll, GOIlfANO, •••neer 'D!'OlDG" NO POO!A 55

de desenvolvimento para variável dependente da estabilidade de preçose reverteu a tendência histórica de produzir saldos favoráveis: b) as rela­

çôe s financeiras internacionals destinadas 3 suprir o aporte sonegado pelocomércio submeteram-se a doi s mecanismos de at ração de capitais: juros

reais elevados e privatizaçôes com alienaçâo dos ativos nacionais a empre­endimentos estrangeiros. mecanismos estes por meio dos quais duas novasvias de transfer ência de renda foram abertas; c) a dependência empresariale tecnológica fez-se per eber em setores do sistema produtivo e feriu de

morte o setor de serviço Da área das cornunica ç ôcs : d) Cardoso tomou,portanto, a abertura econ ômica como estratégia sem definir uma estratégia

de inserção madura no mundo da interdependência global. Por isso qualifi­camos seu modelo de subservi ente, destrutivo e regressivo : encaminhou odesmonte do núcleo ceritra] robusto da economia nacion al; fez o país evo­luir da nscionalizaçâo da economia internacional para a desnacionalizaçãoda economia nacional e do pensamento cepalino para o consenso neoliberallatino-american o ,

Cardoso surpreendeu-se com a boa reação da SOCIedade d iante do pro­cesso de abertura econômica e política e usou para seu propósito de governoessa adesão que res ultava da avaliação dos desvios e vícios do modelo de­scnvolvirnen ti st a , como j~ se observou. Mas o ~rau de organização da 50­

ciedade , educada para fazer valer interesses de distintos segmentos, resul ­tou em pressão para do sar as medidas de abertura, desejada incondicionale irrestritamente pelos dirig entes, com a capacidade de adaptação, seja doparque industrial, se ja do emprego e da renda de operários e empresários,à oncorrência de produtos estrangeiros no mercado int erno. Os resultadospositivos dessa adaptação, que por certo elevou J cornpe t itividad e sistêmica

do conjunt o, não impediram, contudo, a deterioração dos indicadores sociaise econômicos e a vulnerabilidade externa, sobretudo o aumento do déficitdo comérc io e da d ívida. A opinião pública que se expressou pelo voto nas

eleições de 2002 exigiu urna mudança de modelo.A transição do governo Cardoso, de neoliberalismo híbrido, para o gover­

no Lula, de esquerda híbrida, correspond.eu a uma transição da década dasilusões - de divi sas, da cornpetlt ívidade sistêmíca, das liberdades, da har­monia universal, da governança global benéfica, porém, da exclusão social,dos desconremamenros do povo no Brasil e das convulsões das massas navizinhanç a - para o realismo duro das relações internacionais.

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56 C...CElTOS.TMHSlÇllfl ( 'ARADIG....

A co rre ção de rumos da ação externa empreendida por Lula compor­ta três linhas de frente: a) tirar a política exterior das ilusões da harmoniakantiana e de divisas c orientá-Ia para a conquista da n-ciproc idade real nasrelações internacionais, ou se ja, a transição do mulrilatcralismo utópico parao multilateralismo de rccrprocidade entre países centrais e emergentes; b)o enfrentarnento das depend ências estruturais - finan eira, empresarial etecnol ógica - com o fim de atenuá-las: c) a idéia de reforçar a América doSul como pólo de poder c plataforma pol ítica c econômica de realização deinteresses brasileiros. Por meio dessa estratégia, que contem pla, enfim, aexpansão dos empreendirncntos brasileiros no exterior, cogita o governo doPT aproximar-se da interdepend ência real da era da globalízação.

Em seu primeiro mandato, Lula alcançou resultados concretos de suacorreção de rumos. O multilateralismo passou pela maior transformaçâoconceitual, ao despir-se da utopia, tornar-se realista e colocar em jogo a re­cíprocídade dos interesses a realizar nas negociações comerciais. Por isso, 1\3

esfera polltica, sua diplomacia contribuiu positivamente para a criação decoalizões ao sul entre países emergentes que bloquearam as negociações co­merciais sem reciprocidade entre o norte e o sul, desde :I Conferência minis­terial da OMC em Ca ncun, em 2003. É nesse momento que o Brasil de Lulaemerge como poder global, porque passa a determinar, ao lado das estruturasbegemõnicas, o ritmo c a natureza das regras e do regime do comércio in­lernadonal. As negociaç ões para criação da A1ea e da zona de livre -com ércio

entre o Mercosul e a União Européia foram travadas, pelas mesmas razões,visto que, como as primeiras e do modo como estas se faziam, não atendiamao interesse estrutural do Brasil de preservar sua vocação industrial de fundoempresarial e tecnológico.

Nas negociações multilaterais, a global e a regional, verifica-se, com efeito,o embate entre as estruturas hegcmônicas do velho capitalismo que agiampara perpetuar interesses de potências acostumadas a definir as regras doordenamento global em seu proveito desde a criação do Gatt no imediatopés-guerra até Cancun, por um lado e, por outro, a disposição do Brasil emenvolver-se nas relações intemacionais corno agente à pari enriere, ao ladoele países emergentes, como África do Sul, fndia c China. Os países emer­gentes tomaram, de modo muito esperto, os subsídios e o protecionismoagrícolas elos paíse$ do norte, condenado pela opinião, como pretexto paranegar l!Jaior abertura de seus mercados e sistemas produtivos a produtos

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TlWtSIÇ6f.S: REliIloI( poLlnCO. 60YE.OO. PARTlIJe ( IOIOUlGIA NOPODUl ~

industriais e serviços. Ou as regras da governança global seriam válidas e pro­duziriam efeitos benéficos para todos os países que integravam a economiade mercado da era da globalizaçâo ou deixariam de reger o ordenamento dasrelações internacionais. Essa visão estratégica equ ivale ao eixo de ação dadiplomacia de Lula.

No fundo, a transição do governo Cardoso para o governo Lula evidenciao outro patamar em que se vai lixand'a a relação entre a ação externa brasí­leira e o papel das estruturas hegemônicas na configuração do ordenamentoglobal: de passiva ou subserviente, passando pela dúvida, ao envolvimentocom o poder global.

Na esfera econômica, resultados concretos são alcançados da mesma for­ma. Lula se despe da auréola de estadista e intelectual que abrilhantava afigura de seu predecessor e não deixa de brincar com sua imagem de cai­xeiro viajante. Aciona sua diplomacia pelo mundo com o fim de abrir maismercados, sem restrições políticas ou geogr áficas. A balança do comércioexterior recupera a tradição de produzir grandes saldos. Com isso, a dividaexterna entra em declínio, interrompendo o ciclo desastroso de aumento ex­ponencial da fase anterior. Enquanto atenua-se a vulnerabilidade financeira,a expansão de empresas brasileiras , sobretudo nos países vizinhos, indica quea real interdependência adquire maior visibilidade . O sistema produtivo cos serviços de matriz nacional inserem-se gradualmente em cadeias globais,sentindo-se os empresários estimulados pela visão realista da globalizaçãoimplementada pelo Presidente-operário.

ES.~l~S resultados positivos na esfera política e econômica não escondemfragilidades da ação externa . Algumas considerações sobre o tema das fragi-lidades são inevitáveis. .

Embora o governo de Lula pareça agradar aos Estados Unidos durante osegundo mandato de George W. Bush, sobretudo na sua função de bom~iroa apaziguar conflitos e descontentamentos na América do Sul, a autonomiadecis ória externa do Brasil, que se opôs à intervenção norte-americana noIraque e bloqueou a fonnação da. Ales, incomoda os Estados Unidos a pontode ameaçar a pretens ão a um assentopennanente no Conselho de Segurançada ONU. Essa dimensão, por meio da qual a diplomacia de Lula pretendeavançar para agente global também na esfera geopol ítica, ainda se trilha comocaminho inconcluso, apesar da criação do G4 (Brasil, índia, Japão e Ale­manha), urna iniciativa conjugada de pretendentes ao assento permanente.

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58 CoNCEITo!. TlIA""'ÇÜ" I PAIlAllIllMAS

Os cinco membros permanentes do Conselho bem como parcela da opiniãonacional vêem como desmesurada essa pretensão, visto não dispor O País de

potência estratégica correspondente à parcela de poder pretendido.

Uma segunda dimensão de fragilidade externa advém do desgaste da ima­gem de Lula, promotor do combate à pobreza e líder mundial da esquerdaresponsável, segundo juízo de meios políticos em vários países. A im agempositiva emerge da ação contra a fome. Com efeito, Lula embala o Consensode Monterrey, cuja Declaração do Milênio, firmada por 189 países, estabe­lece meus para o desenvolvimento sustentável e a errad ícaçâo da pobreza.Ele próprio ou sua diplomacia se fizeram presentes nOS foros de Davos , noG8 e nas Nações Unidas, aliciando lideres para criação de mecanismos definanciamento de programas, a exemplo dos programas brasileiros de comba­te à fome. Em 20 de setembro de 2004, líd..res mundiais lhe deram ouvidosc firmaram uma Declaração de apoio, na ausência de Bush. visto que Lulapropõe com bate r o terrorismo pelo combate à fome, não pela guerra. Assim,Lula desponta como líder de um novo Bandung, nas palavras de Jean Ziegler,relator da ONlJ para o direito à alimenta ção.

Contudo, a imagem positiva é afetada interna e externamente pela con­tinuidade da política monetária, que mantém juros reais e superávits fis­

cais elevados, aumentando a dívida pública, freando o ritmo do crescimentoeconômico e fazendo com que a ação social, em vez de solução de modelo,como se havia prometido durante a campanha eleitoral, se transformasse emsolução conjuntural. Uma massa de quarenta milhões de brasileiros pobresé .beneficiada por ajuda financeira direta, é bem verdade, mas não acede àsociedade do bem-estar e 11 dignidade humana, acesso que somente empregoe renda própria facultam . Assim , a ausência de crescimento econômico nãosomente faz com que o país perca posições no ranhing das economias nacio­nais, mas ainda não faz avançar a inclusão social.

Tudo isso não desanima o Presidente em sua luta global pelo combate à

fome, ele não esmorece, ao cont rá rio, volta a insistir sobre o tema em forosmultilaterais e reuniões políucas restritas, depois de reeleito para o segun­do mandato. A dura realidade lhe dá razão: na Ásia, por exemplo, apesardo espe tá cu lo do crescimento que fascina o mundo na primeira década doséculo XXI, quase dois bilhões de pessoas, cerca de 60% da população,vivem na miséria, com problemas críticos de saúde, educação e alimen­tação. O que leva Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia, a concluir:

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TRAHSIÇ6fS: 'HIMf poLlnCO.6o\lfRHO.PARTIDO E IOfOLO~I' HO .oou 59

a glcbalização como processo faz países ricos, mas preserva massas e bol­sôes de pobreza.

Uma terceira fragilidade externa consiste no baixo desempenho de certoseixos de relações regionais, a exemplo do que ocorrera com Cardoso comoutros sacrifícios e perdas: esmoreceu a política européia que era urna dasvigas regionais do Brasil, enfraqueceu-se a parceria com os Estados Unidos eabalou-se a parceria com a Argentina, esteio do Mercosul.

As mudanças praticadas pelo governo Lula para a política exterior nãodecorrem, em suma, do regime político. Em cerra medida, devem-se ao par­lido e à sua ideologia de esquerda, que redistribui renda com senso social,mas ao mesmo tempo promove a internacionalização econômica e o envolvi­mento com as estruturas hegemôrúc.as do capitalismo.

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3Paradigmas da política exterior:

liberal-conservador, desenvolvimentista,neoliberal e logístico

LEITURAS RECOMENDADAS

SARAlVA. J~ FMvlo Somhra. (Org .). His rória das rela çórs inl<mu> '

rionais anüemporánsas , São Paulo : Sara iva, 2007 . C ERVO. AmadoLII~ Relações i nl enuuion~ is da América [Alma : velhos e novos para­d igmas. São Paulo : Saraivo. 200 7..CERVO. Amad o Luiz. Polit ic. exte ­rior e rela çõ« inte rnac ionais do Brasil: enfoque paradígrn ático. RevislaBra.<ikira de Política Internaci onal. n, 46 [2), p. 5-25 , 2003. C ER·VO, Amado Luiz; BUEN O, C lodoa ldo . l íístôría da polrti« , exterio rdo Bras il . BrJs ílla : U nH, 21Xlti. C ERVO, Ama do Luiz; RAPOPORT,Mono . [O rgs .] . História do Con. 5,,/. Rio de Janeiro: Revan, 1998 .CHANG, H a-Joon . Chlnando a escada : • •stratégta do desenvolvi­mento em pe rs pectiv a histó rica. S30 Paulo : U nesp, 2004. G U IMA­RÃEs, S3lTltH.,1 Pinhei ro. [ Õrg.]. A rgent ina : visôc s hU 'iilt,j".t' . Brasí lia;II' RI, 2000. SENA RC LF.NS, Pierre d e; ARI FFIN, Yhoan. La politiqu«inrerntlliona16. Th éories et enjetrx co nremporains . Paris: Armand Co­lin, 2006. BADI E, Benrand . i.:impu issmu:e de la puissance. E••ai sur lesnouvelles relatm ns intemationals. Paris: I'ty ard, 2004 . Bt Jl.L , HedJey;WATSO N. Adam . (O rgs.). l:Upa'ISiDM dslla . oci.etJl i ntmlOzÚ:>naú.Milano : JaCft Book, 1994. (Longa ap[esen taçã o de Bru ne llo Vigezzi.p XI.XCVlII .). LUZ , Nfcia VJda, A luta pelaindustrializaç ãono Bra·sil (1808 · 1930). São Paulo: Difel, 19 78. FREITAS, OUo de. Ge orgeCan ning e o Bras iL São Paulo: Nac ional, 1958. 2 v. ALMEIDA, Paulo

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~62 CONCWOS, T1WiSlçõ~S E....OI.".S

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São Paulo : Sar aiva, 20Uo.

3.1 Teorias da relaçõesinternacionais: quaise para qui?A5 três vertentes matriciais que alimentam o campo da teoria das relações

internacionais no século XX - realismo, liberalismo e estrutural ismo - em­brulharn-se em sua evolução no debate inrerparadigrnãtico - neo-realismo,

neoliberalismo - c acabam por inspirar correntes que se ocupam com o

mundo do globaliznçâo. Racionalistas focam particularmente a segurança glo­bal , reflerivistas ". dispe rsarn sobre variados ternas ela política internacionale construtivisras sociais ensaiam um liame entre ambos.

Quanto mais teoria da s relações internacionais alojadas no cérebro do di ­rigente, melhor sua intuição e sua decisão, confessa o chanceler Celso Amo­

rim, que foi professor da matéria na Universidade de Brasília . Sem negar talpressuposto acerco do papel das teorias, tanto para prover conhecimento

acerca das relações internacionais quanto para tomar a decisão mais acer­tada, a dispersão e a contradição entre elas são t"i .ç que deixam perplexo o·

estudante esperto ante sua consistência e utilidade,

Tomemos três exemplos de teorias oriundas da produção intelectual, de­pois convertidas em política exterior pelo grupo que se constituiu em torno

do presidente George W Bush: choque de civilizações, estabilidade hegern ô­

nica e ação preventiva d~ segurança. Ap6s o 11 de setembro de 2.001, não

convinha, com efeito, repensar o campo das relações internacionais?

O choque de civilizações sugeria a guerT:l no Afeganistão c no Iraque, a es­

tabilidade hegemônica sugeria o unilateralismo norte-americano aplicado ao

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PUAf»GMAS CAPOUnCAOOERJOP.:. UBftUJ..-COWSiR..ADOR.. DUlftVOI.WIMEIffi.S1A.. NIOUBEUJ. IlOQtmCO 63

ordenamento global em vez da ordem oriunda do debate multilateral entre

as nações, enfim, o ataque preventivo foi tomado como licença para matar,a partir de suposição, mesmo que infundada, de perigo para a própria segu­rança em algum outro país do mundo . Se , tornadas individualmente, as três

teorias exercem forte impacto sobre a política exterior dos Estados Unidos,

seu potencial de influência se multiplica quando agem de modo associadosobre o processo decisório do grupo dirigente.

Por duas I1lZÓCS, as teorias devem ser tomadas com senso crítico: porquesão eplstcmologicamente insuficientes e porque fundam decisões que veicu­lam interesses, valores, visão de mundo e capacidades de quem as concebe,sempre em benefício próprio.

'Iornar a teoria com senso crítico se Faz necessário à explicação das rela­ções internacionais e à decisão, visto qu e toda teoria som. se is etapas quandoefetivamente tomada em sua trajetória, da gênese à conseqüência: I ) visâoprópria de mundo; 2) cultura, ou seja, princípios c valores do próprio meio;3) int eresse nacional ou de bloco; 4) processo decisório , ou seja , um a pol ítica

exterior; 5) ação externa coerente; 6) resultados internos e inte rnacionais defunção desigual.

Pelos itens dois e três, percebe-se que as teorias são nacionais ou regionaise essa percepção revela a incoerência em lhe atribuir alcance explicativo uni-

- versa I na esfera mental e o perigo em adotar teorias (orno fonte de inspira­ção polftica. As teorias norte-americanas, as mais elaboradas e consistentes,tomadas de forma acrítica pelo pensamento acadêmico, ou político, induzemo apoio li ordem sistêmlca de mundo feita de interesses, valores e resultadosque favorecem a manutenção da hegemonia norte-americana, mesmo queesta esmague, pelo método com que se implementa ou pelos resultados, in­teresses e valores de outras nações. A postura crítica diante dessas teorias dematriz norte-am ericana permite, pela lógica, modificar a ordem e orientá-Iapara a equalização de elementos oriundos das diversas identidades nacionais,

regionai s, civilizatórias, econômicas e de segurança.O presente capítulo amplia, pois, o campo de análise dos anteriores com

o intuito de integrar a informação acerca da política exterior e das rela ­

ções internacionais do Brasil em conceitos gcra~que chamamos de paradig­mas . Esse procedimento faz lembrar o uso do ideal-tipo weberiano, porémtende à construção da teoria, como deixamos perceber em outros textosque já publicamos.

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64 COMCmOS. TRANSIÇÕES E PARADIGMAS

A literatura especializada amiúde considera a teoria das relações inter­nacionais uma disciplina acadêmica anglo-saxôntca, essencialmente nor ­

te-american a. Contudo, observamos que, no presente, ela expande-se emce nt ros de estudo de todo o mundo. Nossas livrarias exibem manuais que

expõem escolas de pensamento ou correntes de int erpretação oriundas degrupos localizados nos ma is diversos países. Em muitas universidades, par­ticularmente no Brasil, ainda se confere lugar privilr-giado aos autores nor­te-americanos. A influência que deriva sobre a opinião e o modo de ver otema. salutar por um lado, visto haver se desenvolvido nos Estados Unidosa reflexão mais consistente sobre as relações internacionais de sde a Segun­da Guerra Mundial, por out ro, comporta riscos pedagógicos.

A teoria das relações internacionais tem por objeto a guerra c a paz ,a produção e a di stribuição entre os povos dos recursos econômicos e.

ademais, a confecção institucional de normas que estabelecem a ordem in­ternacional. Em nosso mundo, as teorias disponíveis são colocadas ~ provado ceticismo, por não ma is prescreverem rcaçõés a certos desafios, comoa identificação clara do inimigo e do aliado, a diferenciação do interesseentre país es ricos e emergentes e a inexist ência de uma ordem capaz deenfrentar esses desafios. A visão de dentro inerente à teoria a torna, porvezes , epistemologicamenre inadeq uada para explicar as relações interna­cionais de outro paí s F, ainda, ao info rm ar o processo der isório, pode se rpoliticamente nociva . Na era da global ízação, o mundo está muito longede haver equalizado entre países e civilizações visões de mundo. valores einteresses que informam o ordenamento interdependente ,

Essas con siderações fazem pensar na con veniência para cad a país de des­t ilur t eorias alheias e de partir para construções teóricas que sejam epis­temologicamente adequadas e socialmente ú te is . A América Latim, dis­põe delas, como se observou 00 Capítulo 1. Duas versões do pensamentolatino-americano aplicado às relações internacionais estão disponíveis, a

que expõe pesquisadores voltados para a dimensão regional das relaçõesinternacionais ea que se elaborou dentro dos gabinetes dos fonnuladoresde pol íticas.

Neste capítulo, expomos, pois, conceitos. isto é, uma reflexão acerca dapolítica exterior e das relações internacionais do Brasil com o objetivo delhes conferir inte ligib ilida de orgânica e fornecer, ao mesmo tempo, crité­rios de avaliação de resultados.

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P.....'GMAS DA'O<inCA EXTEIIlOO: UB[JlAl'CONSEllVADO", D"ENVOlYlMfNT1SlA. lf'OlllfAAI ' LDGisn tQ 'õ- 65

32 Componentes doconceito paradigmáticoo paradigma, em ciências humanas e sociais, equivale a uma explanação

com p reen siva do real. O uso que dele fazem as ciências exatas e naturais

é diferente . Nessas últimas, o paradigma articula em uma teoria uma sériede le is científicas que estabelecem, em prin cípio, relações ne cessárias elnvaruive is de causa e efeito. Qu ando uma lei é rejeitada pela ex periê ncia ,LI paradigma cai . Nas ci ências humanas, o paradigma também desempe­nha a superio r funç ão de orga nizar a mat éria que' é obje to de observação,por ém não apresenta a mesma rigidez científica . Esse tipo de análise, nasciênci as humana s, restringe-se ã fun ção de dar int cl igíbilidade ao objeto,iluminá-lo por meio do co ncei to, dar compreensão orgânica ao comple­xo Inundo da vida human a. Em razão de ssa versatilidade e flex ibilidade,não deve o leitor e xigir do pa.radigma o encaixe de todas as variáveis ,dependentes, Ind epend ent es ou intervenientes, na explanação de um te made estudo.

A análise paradigmát ica '1"" ora apl icamos a nos so objeto de estudo, asrelações internacionais do Brasil, corresponde, antes de tudo, a um méto­do Temos por fim a construç ão de con ceitos pela via da observação empí­rica. A história co ns t itu i o campo de observação , o laborat õrio de experi­ênc ias sobre as quais nos inc linamos. Coletamos as experiências hi stóricas,da Independência a nossos di as, em três neveis, o diplomático, o polit ico eo das rela ções internacionais, já que nosso método pressupõe a articulaçãodessas três instâncias da base empírica de observaçã o ,

Assim co nduzi da, a análise paradigmãtica envolve, com efeito, determi­nado s pressupostos. Em primeiro plano, por trás do paradigma, verificamosa existência da idéia de nação que o povo - ou seus dirigentes - faz de simesm o e a visão que pr ojeta do mundo, bem como o modo como percebea relação entre esses do is elementos. Esse pressuposto nos leva ao con­junto de valores cultivados , ou seja, à Identidade cultural, que cond ic iona

os destgnios duradouros da política exterior. O paradigma com port a umacosmovísão, 3 imagem que determinada formulação conceitual projeta dos

outros povos, nações ou do mundo todo.Em segundo plano, o paradigma inclui a percepção de interesses. A lei­

tura qu e os dirigentes fazem dos interesses nacionais - soc iais, pol íticos,

de segurança, econôm icos, culturais '- modifica-se com a mudança doparadigma .

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~~ CONCIJJ1J5. fRAHSI~t1!. E ••J\ADIGMAS

Em terceiro plano, o paradigma envolve a elaboraçâo política. Nesse sen­-tido, condicioná tend ências de médio ou longo prazos, como também explica

suas rupturas. Ou seja , envolve o modo de rela cionar o int erno ao externo e amanipulação da infonnação para estabelecer o cálculo estratégico e orientara decisão.

A análise paradigm âtíca converge, enfim, para dois tipos de resultados . Delase espera, por um lado , o efeito cognitivo, uma vez que o paradigma organizaa matéria, sempre complexa, difusa e disparatada quando se trata do compor­tamento humano, conferindo-lhe o grau poss ível de int eligibilidade orgânicaExiste, por outro, o efeito operacional. O paradigma inclui determinado modode proceder, no caso, de fazer política exterior ou de controlar as relações in­ternacionais. A análise paradigmática há de colher as determinações internase os condicionamentos externos, os fins da política, o pesoda idéia de nação aconstruir e dacosmovisão. Tomado como referencial, como se fosse uma espé­cie de tabela de indicadores, o paradigma vigente permite avaliar o desempe­nho dos dirigentes e da sociedade organizada. O conceito paradigmático pres­supõe a longa duração, porque sobre ela se aplica naturalmente, não servindo i\

análise de conjunturas, a não ser areverso, na medida que essas conjuntur as detempo curto nele encontrem sua localização cognitiva e operacional.

Os paíse s abrigam sempre suas políticas exteriores e seu modelo de inser­ção internacional dentro de paradigmas. Com a simples finalidade de ilustrar oconceito, lembramos alguns exemplos, cujo grau de elaboração não cabe discu­tir aqui . A União Soviética esteve sob a tentação de mover-se seja em funçãoda revolução transnacional seja em função do interesse concreto nacional. 'O sEstados Unidos descobriram seu manijest desriny, como a França de De GauJ ­le, seu grand dessem. Durante a segunda metade do século xx, observamos ospara~gmas da Guerra Fria e da coexistência pacífica , O Japão, após a Segun­da Guerra Mundial, situou-se sob o guarda-chuva nuclear norte-americano econstruiu sua potência com base na cooperação econômica regional e na inter­

nacionalização de suas empresas. A China transitou da relação especial com aUnião Soviética para o confronto, a teoria dos três mundos, dos dois mundose, enfim, para a realização de interesses concretos de seu desenvolvimento. AArgentina de Juan Domingo Per6n avançou sua Terceira Posíçdo.

Quando orientações externas dessa abrangência e natureza são pesquisadas,utilizando-se o método aqui proposto, podem se converter conceitualmente emparadigmas de política exterior e relações internacionais dos respectivos patscs

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PAlAOJlll.tASDA"DUm:.. umuo.: '''EMt-CONSEllVAOOA. DESalVDlYUM:lIl1STA, NEDUIEIlAl ELDGlmco ffl

ou grupos de pa íses. Com o objetivo de elaborar conc eitos claros e de poder

compará-los entre si, selecionam os para o estudo dt' cada paradigma idênticasquestões formuladas em cada caso, como se fossem critérios de definição.

A construção de conceitos paradigmáticos resulta de quatro problemaspostos à pesquisa: a) or igem , ou seja, a multlcausal ídade interna e externaque se localiza em sua g êne se e é necessária para compreender SUa forma­ção; b) continuidade e falência, isto é, fatores que perduram ou preparam atransiç ão para novo paradigma; c) bloco mental, composto pelos parâmetrosideologia e política pr óprios do pa radigma; d) enfim, bloc o duro , compostopelos parâmetros percepção dos inte resses nacionais. relaçõe s ec onôrnícasinternacionais c impactos sobre a formação nacional; elementos estes quetambém são próprios do paradigma. A dist inção entre os dois primeiros e osdois últimos conjuntos de com ponentes é relevante para articular os elemen­tos de ob servaç ão e produzir o resultado abstrato sob a [orma de co nceitos ,cuja variedad e imbricada acerca do objeto tende à teoria.

As relações internacionais do Brasil de ram origem a quatro para digmas:o liberal-conservador, que perpassa o sécu lo XIX e se estende a 1930; o de­senvolvirnentista, entre 19)0 e 1!'l89; o normal ou neol iberal e o logístico,sendo que os três últimos coabitam, embora com preval ências diferenciadase de scompassadas, e integram o modelo brax llciro de inse rção internacionald.. I!'l!'lQ a nossos d ias.

Identificamos e descrevemos essas experi ências à luz dos pressupostosmetodológicos r ep istem ológicos que definimos anteriorm en te . Observa­mos , previamente, ademais, que apenas o segundo paradigma centre-se noEstado como agente principal das relações internacionais do Pais , ao passoque os outros três, embora mantenham o Estado como referência permanen­te, revelam a força de agentes econômicos e socia is.

3.3Oparadigma liberal-conservador doséculo XIXe da PrimeiraRepública (1810-19301

Os estudos de Adam Watson, Hedley Flulle de outros integrantes da escolainglesa de relações internacionais acerca da sociedade internacional européiado início do século XIX e do sistema internacional dela decorrente, como tam­

bém a crítica ao conceito de sociedade internacional feita por BruneUo Vige­'Z7j, coostituem adequado ponto de partida para entender o secu lar paradigmaliberal-conservador implementado pelos países da América Latina depois desuas independ ências .

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Pela primeira vez na História, um sistema internacional de escala globalestendeu-se sobre o planeta desde o centro propulsor europeu . A socieda­de internacional européia vinha sendo erguida na esfera política, desde oCongresso de Vestet:'Ilia, de 1648, homogeceízando instituições, mas foi asuperioridade econômica dos europeus, advinda da revoluçâo industrial, doprogresso técnico c da expansão comercial, que acabou por transformar seuscom po ne ntes - valores, interesses e padrões de conduta - em sistema in­ternacional universal, qu e abriga regras impl ícitas ou explícitas de comércio,fluxos financeiros, empreendimentos, diplomacia, tutela 011 dominação. Poressa razão) o sistema internacional vigente no século XlX, feito de regras deconduta padronizados, converteu-se em poderoso instrumento de expansão

. dos interesses das potências capitalistas européias. .Os europeus impuseram 11 periferia do capitalismo, J América Latina, ao

Império Otomano e ao continente asiático, em primeiro momento, à Áfricasubsaariana ao final do sé culo, a conduta diplomárica, o modo de fazer co­mércio, de organizar a produção e até mesmo de criar instituições políticase socinis. Eram os tratados bilaterais de entâo o instrumento desse orde­narncnto jurtdi o, polít ico e econômico, O Brasil finnou com as potênciascapitalistas dezenove desses tratados, entre l810 e 1828. Essa capacidadede produzir regras para o mundo era reservada às estruturas hegernônicas docapitalism o, que haviam previamente vinculado e unido países europeus denív I assemelhado de desenvolvimento. Os cepalinos da Arn érica Latina nãoperceberam essa forma de gerar poder global porque não trabalhavam com oconceito de sociedade internacional indutora de ordenamento global.

O conteúdo essencial do modelo de relações internacionais dc:finiáo peloseuropeus era a chamada política das portas abertas . A periferia não rinha op­ção quando firmavn tratados: ahria seu mercado 'lOS manufaturados europeusc tinha suas atividades de expansão das manufaturas bloqueadas, querendoou não. O liberalismo europeu continha apenas uma face, para fora. 05 paí­ses europeus somente aceitarão o liberalismo para dentro quando puderemoperar suas vantagens comparativas intangíveis, como o conhecimento, a tec­nologia e a organização empresarial A economia ricardiana, da prevalência

do livre-comércio, primeiro na periferia e depois no centro, induziu, dessemodo, a divisão internacional do trabalho, na qual 8 periferia, como a Amé­ries Latina, voltava-se para relações em que prevaleciam as vantagens com­parativas de tipo natural. Centro e periferia submeteram-se, como evidencia

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PAlU.DIGMAS DA poúnc.a OOtAlO"; U8UAl-CONSUIIIADO". D[SEHYOLVlM(NllSrA. "EOU8lRAL (LOGisnco 69

a pesquisa dos latino-americanos desde ) 950, a funções complementaresque reproduziriam simultaneamente as condições de desenvolvimento e desubdesenvolvimento.

Os negociadores brasileiros dos tratados da época da Independ ência cogita­ram fazer valer os direitos dos plantador...s e exportadores de produtos primá­

rios, açúcar e café, por exemplo , mas nem mesmo esxes foram aceitos pelosnegoc iadores europeus, cujos governos limitavam o liberali smo e davam pre­ferência aos produtos oriundos das respectivas colônias. A reserva do me rcadoagrícola europeu não é uma invenção de hoje. Os brasileiros cederam, por­tando, o mercado de manufaturados e bloquearam a modernização capitalistainterna em troca de nada . O grupo socíalmcnrc hegernônico iria beneficiar-se,

com o tempo, desse esquema de Intercâmbio, quando a diplomacia brasileira,nas décadas seguintes e a duras penas, abriu mercad os, especialmente o norte­americano, para os produtos da agroexportaçâo. Sem isso, o afã de consumo

de manufaturados-por parte dos proprietários de terra, ape sar das baixas tari­fas de importação fixada s pelos tratados, dificilmente s...ria sat isfeito.

A ideologia que os dir igentes brasileiros esposaram no século XIX era oliberalismo de matriz européia . Esse liberal ismo estendia-se 11 construçãodas inst ituições políticas do Estado monárquico e, depois, do republicano,como à organização da sociedade, ex ceção feita ao regime da escravidão.O liberalismo determinava O modo de 5" organizar a produção, de se fazerO comércio e de se portar com o exterior, nos domínios das finanças e docomércio. A ideologia liberal csr d presente, sobre tudo, 11 época da Regência(1831 ·1840) quando se moldam as instituições do Estado nacional e se travaa grande polêmica em tomo da centralizaç ão e da de sccntralízaçâo do poder.Está presente na década de 1840, ao expirarem os tratados desiguais da épo­

ca da Independência, quando se trava outro debate ac-irrado entre liberais eprotecionistas em torno da política alfandegária e de comércio exterior. A

ideologia liberal está pr esente , enfim, e prevalece durante a segunda meta­

de do século XIX e durante a Primeira República na mentalidade do gruposocial que detinha o poder econômico e configurava o político. Não foi porcerto a escassez de liberalismo que manteve o Brasil na condição de palssubdesenvolvido durante um século e meio, embora os neollberaís do fim doséculo XX e do pre scntc escondam o fato .

As manífestações políticas da ideologia liberal-conservadora foram coeren­tes, sem deixar, contudo, de exibir algumas surpresas. A face liberal explica a

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=

10 COHemos. rJV.HSIÇóES E PAAAIlICMAS

assin atura dos tratados de siguais e, depois deles, a política aduaneira, ou seja.o fato de estabelecer-se o Brasil na condiç ão pe riférica de modo permanen­te. A face conse rvadora explica o malogrado projeto de industrialização do sanos 1840, a determinação de exercer um certo cont role so bre o subsi st emaplatino de relações internacionais e a negociação firme das Fronteiras do ter­rit6rio nacional . Subserviência e soberania temperavam a política exterior eo modelo de inse rção int ernacional do País na vigência do paradigma liberal­

conse rvador, com inclinação prevalecente da primeira tendência na esferaeconômica e da segund a na esfera pol ítica e geopolítica .

O bloco duro das relações internacionais do pais, da independência a1930, incl u i, segundo a metodologia aqui aplicada, a percepção dos interes­ses nacionais, as relações econôm icas internacionais e os impact os sobre aformação nacional.

Os liberais-conservadores brasil eiro s procediam à leitura do interesse 119­

cional, evocando um conceito de soc iedade simples, composta fundarnen­talmente de do is segmentos: os grandes proprietários de terras e donos dopoder, de um lado, o resto da sociedade, de outro, fossem escravos. ex­escr avos, trabalhadores livres, imigrantes. Uma sociedade estabilizada emsua inf ância, feita de plantadores e exportadores de café, açú car e outrospequenos produtos da terra, que a nada mais aspirava, nas amargas palavrasdo senador da Monarquia. Sales Torres Homem. Aqueles dírigentes confun­diam, logicamente, o interesse nac ional com os pr óprios-intere sses. ou seja,os do grupo socioeconô mico hegern ôníco : dispor de mão-de-obra, exportaros frutos da lavoura e importar bens de consumo diversificados. A diploma­cia da agroexportação, conceito elaborado por Clodoaldo Bueno, não explica

toda a política ext erior do Brasil , mas retrata a essência da funciona1idade doEstado na área externa. Tendo sido apropriado pelas elites sociais , o Estadomanobrava o processo decisório em política exterior voltado àquela leiturarestrita do interesse nacional que faziam os dirigentes.

Compreendemos, assim, o esquema de relações econômicas int erna cionaisa que se submeteu o Brasil durante bem mais de um século: exportações pri ­márias e importações industriais, prestígio externo como convinha a oligarquiasde dominação interna e crêdito na praça de Londres para enfrentar eventuaisproblemas de balanço de pagamentos. Os impactos sobre a formação nacionalsão bem conh ecidos de nossos hist oriadores: ilusão de modernidade em ilhasurbanas de consumo ou fazendas interioranas e atraso econ ômico da nação.

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PARADlGMAS DA poLJncAOOEfnUtl U'fl;ERAL-CONSERVADOR. Df.SfHvOLVIMENTlSTA.. IftOU8m-L ElOSfmeo 71

Os analistas da Cepal elaboraram conceitos acerca do acoplamento de­pendente centro-periferia qu e alimentava simultaneamente o de senvolvi­menta e o subdesenvolvimento, como se fossem verso e rever so de idênticosmecanismos . H ouve, contudo, no Brasil, homens de Estado e me ntes escla­recida s que, desde a época da Independência, protestavam contra o modelode inserção internacional que mantinha o País à margem do progresso capi­talista . A historiadora Nícia Vilela Luz retratou a luta pela industrialização.Foi intermitente e inglória essa luta , como mostram o projeto de D. JoãoVI em 1808, a reação do Parlamento aos tratados desiguais desd~ 1827, olivrinho de Nicolau de Araújo Vergueiro sobre a fábrica de ferro de Ipanema,escrito em 1828, a irrupção do pensamento industrialista nos anos 1840, odebate entre industrialistas e liberais radicai s por ocasião da votação da LeiAduan eira , enfim, a revolta de intelectuais, tenentistas, modernistas e outrosna 'década de 1920.

3.4O paradigma desenvolvimentista entre1930 e 1989Durante os anos da depressão capital ist a e na contexto da Segunda

Guerra Mundial, a América Latina revelou extraordinário dinamismo eco­nôm ico que colo cou grandes países como o Brasil, o México e a Argentinaem direção do mundo moderno. Pressões externas e internas agiam comoelementos propulsores da transformação. No caso do Brasil, as pressõesque incidiam de fora foram a queda de importações e exportações dev ido à

crise econômica dos anos 1930 nos países de centro de comando capitalis­ta, a disputa pelo mercado e pelo sistema pr odutivo internos por parte daspotências capitalistas. a div isão do mundo em blocos e a política norte-ame­ricana de boa vizinhança de Franklin D. Roosevelr. Por dentro, assistia-seao despertar de novas forças que requeriam a modernização. A depressão,enquanto encaminhou os pa íses"capitalistas avançados para o regresso aoprotecionismo e às soluções nacionalistas, or ientou a América Latina para opro cesso de modernização.

Os impulsos internos rumo à modernização advinham especialmente dosque criticavam a dependência e o atraso histórico e das demandas de umasociedade que se navia transformado . Massas urbanas a requerer empregoe renda, burguesia nacional ávida por oportunidades de negócios, militaresà procura de meios com que prover a segurança, intel ectuais e políticos dementalidade revolucionária . Manobrar em meio à divisão do mundo em

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n CONCEmlS. TlIANS1ÇIlES f ''''DI.MAS

blocos foi urna possibilidade concreta que perceberam os novos dirigentes,conduzidos ao poder por eleições, como no México e na Argentina, ou poruma revolução, como a de 1930 no Brasil .

As condições para a gênese de novo paradigma de relações internacionaisestavam assentadas. Os dirigentes rompem com a diplomada da agroexpor­ração baseada na doutrina européia de mercado e conferem nova funcio­nalidade ao Estado, contando com o apoio do pensamento diplomático, daimprensa e da opinião pública.

A mudança paradigmática dos anos 1930-40 ocorreu como se fosse um mo­

vimento latino-americano. Traços comuns a diversos países da região fornecemos componentes teóricos do no~o modelo de inserção internacional: a) acionara diplomacia econômica nas negociações externas; b) promover a Indústriade modo a satisfazer as demandas da sociedade; c) transitar da subservi ência

à autonomia decisória com o fim de realizar ganhos recíprocos nas relaçõesinternacionais; d) implementar projeto nacional de desenvolvimento assertivotendo em vista superar desigualdades entre nações: e) cimentar o todo pelonacionalismo econômico, imitando a conduta das grandes potências.

O paradigma em construção apresenta, em suma, um perfil caracterizadopor três noções de origem: a) consciência da transição; b) de senvolvimentocomo vetor da política exterior; c) realismo de conduta. E confere nova fun ­cionalidade ao setor externo, inventando o modelo de Inserção internacionalà luz de três outras noções de fim: a) realizar interesses de uma socieda­de complexa; b} conceber o desenvolvimento como expansão da indústria;c) prover de eficiência a política exterior mediante autonomia decisória,cooperação externa, política de comércio exterior flexível e não doutrinária,subordinação da política de segurança, isto é, da guerra e da paz, aos finseconômicos e negociação simultânea com os grandes e os vizinhos. O graude pureza à gênese do paradigma, assim definido, não é o mesmo para osgrandes países latino-americanos, sendo a experiência brasileira a que delemais se aproxima.

Embora tenham sido lançados e definidos com bastante clareza durantea depressão capitalista c a Segunda Guerra Mundial, os parâmetros do pa­radigma desenvolvirnentista seriam depurados e aperfeiçoados nas décadas.seguintes, consolidando-se, assim, como modelo de inserção internacionalpara o Brasil por um período de sessenta anos . Expomos, a seguir, essa evo­lução para a maturidade.

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PAIWIlGfdA.!I DAPOlInCA 00fJII0lI: UBfJW.-COHSElIlIAlllltl. OfSfllVOlV'IilfH1lST.... HEOlJIOIAt! IOrámCO 73

o bloco mental do paradigma descnvolvirnentista compõe-se de urna va­riável ideológica e outra política. lrrompeu, por cena, na América Latina, e

com maior força no Brasil, a ideologia desenvolvirnentista, que penetrou aopinião pública, a vida política e os estudos socioeconômícos, entre os anos1950 e 1980. Os homens de Estado mais contaminados por essa ideologiaforam Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel. Entre os inte­lectuais const ru tores do desenvolvimentismo figuram latino-americanos devariadas procedências: Raúl Prebisch, Celso Furtado, Aldo Ferrer, Helio Ja­guaribe, Roberto Lavagna , Mario Rapoport, Osvaldo Sunkcl, Paulo Vizentini,Raúl Bernal -Meza .

A vertente desenvolvtrnenrisra desse pensamento latino evoluiu, desdeas formulações do grupo da Cepal, que elaborou nos anos 1950 urna teoriaoriginalmente inspirada na prática política de Vargas entre 1930 e 1945. Dosconceitos originais de Prebisch - centro-periferia, indústria, mercado inter­no, renda salarial, deterioração dos termos de troca - à teoria do desenvol­vimento de Celso Furtado, que insiste sobre o componente da desigualdadetecnológica, a vertente chega aos enfoques dependenbstas dos anos 1960e 1970 com Theotonio dos Santos, Rui Mauro Marini, Fernando Henrique.Cardoso c Enzo Faletto, que aprofundam o estudo da relação entre domi­nação e dependência, por meio da análise estrutural. Tudo será referido aoconceito de poder nas relações internacionais e à estratégia de conduzir-sepor vantagens comparativas naturais (América Latina) 011 intangíveis [paísesdesenvolvidos) .

A teoria latino-americana das relações internacionais exposta por Bernal­Me1.3 comporta, em nosso entender, como elementos ideológicos, além dodesenvolvimentismo acima conceituado, o liberalismo e o ocidentalisrno,bem como a cultura da democracia . Os regimes militares revelaram, de certomodo, urna crise de fortalecimento desses elementos.

A variável política do bloco mental que compõe o paradigma sob análisevolta-separa a superação da assimetria capitalista pela promoção do desenvol­vimento e pressupõe li autonomia decisória, sem a qual nada se alcança nessavia. Durante décadas, a ideologia desenvolvimentista fez a unanimidade noBrasil, mas não fez.o entendimento político. Dividiram-se dirigentes e intelec­tuais brasileiros, como também as correntes de opinião pública, em torno domodelo de desenvolvimento" implementar. O desenvolvimento associado àsforçasexternas do capitalismo, de estreitos VÚ1cu!OS políticos, geopolíticos e

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74 CONCElTllS. TllANs,ç6u ! ........SMAS

econômicos com a matriz do sistema, os Estados Unidos, tido por recom en­dável por Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), Castelo Branco (1964-1967) ,remando Collor de Melo (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1994 ­2002). O desenvolvimento autônomo, tocado essencialmente pelas forças danação. criador de autonomia política e de forte núcleo econôm ico, tido porrecomendável por G etúlio Vargas, João Goulart, Ernesto Geisel. Uma síntesedas du as perspectivas é levada à frente por Luiz Inácio Lula da Silva, desde2003. Essas estratégias, na verdade. não abriram guerra entre si, como ocorreuna Argentina, entre radicais e justicialistas , ao cont rário, proveram, pelo diá­logo e pela inrerpenetraç áo, um modelo misto de desenvol vimento, fechado eaberto em doses equilibradas._Racional e de fôlego no tempo longo.

Concluída a definição dos parâmetros mentais do paradigma desen­volvimentista , resta -nos examinar os parâmetros do bloco duro: leitu ­ra d o interesse nacional, relações econômicas externas e impactos sobre"formação nacional.

A leitu ra dos interesses nacionais dos desenvolvírnennstas - autoridades,profissionais e int electuais - opera por meio do conceito de sociedade com­plexa, em transforma ção, rumo ao progre sso econômico . Essa nova leituradeixa para trás o conceito de sociedade simples, composta de apenas doisestratos, que comandavaas decisões de liberais-cunservadores no passado .Desde a era Vargas, consignou-se ao Estado satisfazer necess idades de em­pr es ários, industriais, agricultores, operários, camponeses, militares e outrossegmentos. lmplernenra-se, portanto, O conceito de interesse nacional múl ­tiplo, cabendo à diplomacia, nas re lações exteriores e tendo em mente o su­perior destino da nação, equacionar a soma de interesses segmentados, cujasexigências, por vezes, colidem.

Sob o signo desenvolvirnenrísta, substitui-se o vetor da abertura do mer ­cado por outro conceito operativo destinado a balancear a funcionalidadedo Estado, solicitado externamente pelo conservadorismo liberal e inter­namente pela ruptura a produzir sobre o atraso histórico. A busca dode­senvolvimento tomou-se vetor da política exterior. A acepção do desen­volvimento, conceit o sociológico complexo, por abranger o econômico e osocial , restringiu-se, na mente dos tomadores de decisão , de modo a con­templar essencialmente duas variáveis: a Industrialização e o crescimentoeconômico. A industrialização. porque por me io dela julgava-se preencheras demandas da sociedade complexa , empurrando o conjunto em direção à

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P.unIGMAS •• POUnCA DCTIRI••: U."Al-cDIISUV••n., OU.NV.IVlMOOm.... NEOU"WILDGlmco 75

modernidade do capita lismo. O elevado ritmo de crescimen to, porque porme io d ele recuperar-se-ia o atraso histórico . A política exterior destinava-sea preencher requisitos desse desenvolvimento assim con cebido, trazendo defora tr ês insumos em apoio aos esforços internos: capital complementar à

poupança nacional, ciência e tecnologia e mercados externos, com que tran­

sitar da sub stituição de importações à substituição de exportações.O paradigma articula em seus propósitos efe itos em três fases sucessivas,

de forma não muito rígida, porém sufi cientemente diferenciadas: a fase de '

implantação de uma grande indústria de transformação em associação com oempreendimento estrangeiro, obra dos anos 1950 e 1960, a fase de implan­tação da indústria de base, consolidada nos anos 1970, a partir de ernpreen­dimentos do Estado, e a fast: de inovação tecnolõgicu em alguns setores deponta, iniciada nos anos 1970 pelos setores de atividade, tanto o públ.icoquanto o privado, e continuad a nas décadas a seguir.

Não obstante haver desencadeado permanente polêmica acerca do grau deabertura no longo prazo, a estrat égia de desenvolvimento entend eu a abertu­ra, tanto do sistema produtivo quando do mercado de consumo, corno var iá­vel decisória funcional : maior ou menor grau de abertura a empreendimentosou produtos externos eram dosados pelo impacto qu e produziriam sobre odesenvolvtrnenro em si. Assim, poderia COD\'Ír maior proteção a um setor deatividad es, a determinado s..gmento do mercado, bem como ao con junto dosistem a produtivo com o fim de induzir sua expansão pelo empreendimentonacional ou es t rangei ro . A ideologia liberal era subjacente, porém não con­taminava a política desenvol~imel1ti$ta à maneira de um fundamentalismo,

como fará sob o signo do paradigma neoliberal do fim do século.A política de comércio exterior lidou ao longo das décadas com a ques­

tão cambia l e por vezes submeteu-se tecnicamente aos déficits do balançode pagamentos. Mas inovou conceitualmente, por triunfo dos diplomatasque a cont rolavam, sobre os economistas que li concebiam, e transitou, já

na d écada de 1960, da substituição de im port ações à subsn tuição de expor­rações. Essa mudança era parte do desenvolvimento, pensava a diplomacia,porquanto um país atrasado não acede à condição de país avançado semsuperar a fase de exportações primárias e im porta ções industriais e podercompetir nos mercados globa is d e produtos manufaturados.

Os impactos do paradigma desenvclvímenttsta sobre a formação nacio­nal foram de natureza a ro mper com O modelo de dependência acoplada

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76 CONCUTIlS. TR.AI<SIÇOts f PMADIGMAS

à d icotomia centro-periferia, descrito pelo pensamento est ru turalista dematriz cepalína. Tiveram razão, portanto, os pensadores estr ut ur alistas quesugeriam m ecanismos de superação de assimetrias int ernacionais navegan­do no próprio sist ema capitalista, contra os teóricos da dependência quesugeriam saltar for a do sistema para atingir os mesmos resultados. A polí­tica industrial, coerente, contínua e subsidiada pela política de comé rcioexterior, colheu os maiores frutos do paradigma ao longo de seus sessentaanos de vigência. Praticam ente todo o des envolvimento alcançado deveu-seà industri alização acelerada que situou o país entre as oito maiores econo­mias capitalistas.

Embora em declínio na mente de dirigentes da era Lula, o desenvolvímen­tismo ainda encontra adeptos que sonham em toc ar a nação por meio de açõesdo Estado nos campos do investimento, fiscal, aduaneiro e de planejamentoestratégico. contrariando outra filosofia política inerente aos acordos de co­mércio que não toleram mais esse papel do Estado nos países emergentes.

3.5Oparadigma normal, também chamado de nsoUberal(1990-2002)

A regras que as estruturas hegernônícas do capitalismo estabeleceram noséculo XIX foram ace itas pelos dir igentes brasilei ros e explicam o atraso his­tórico do pais até 1930. Tomou-se, então, consciên cia de que deveriam serdomadas internamente, mediante autonom ia decisória em polít ica exterior

projeto nacional de desenvolvímento, caso o País contemplasse outro des­tino, que não apenas de uma economia primária agroexportadora . Ao termodo século XX, entretanto, após a fase desenvolvirnentista, as mesmas regrasfixadas pelas estruturas hegemônicas do capitalismo voltaram a ser aceitas,de modo passivo, como no s éculo anterior. Os dois anos . 1930 e 1990, ar­voram-se símbolos de ruptura paradígmãuca das relações internacionais doBrasil, em movimento contr ário,

O paradigma do Estado normal foi, por excelência, invenção da inteligên­cia pol ítica latino-americana . Irrompeu com tamanha força, coer ência e con­vergência regional entre os países, que nada se Ihc' compara em outras panesdo mundo. A5 origens não se situam apenas no exterior, como asseveramdirigentes, intelectuais e opinião conservadora: a miragem de wna globaliza­çâo benigna e as recomendações do centro do capitalismo. Uma vertente dopensamento latino-americano esteve subjacente e sobreviveu à prevalência

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PAJlAIllOMAS DA POUllCA EJf1l1l10ft USfW-i:ONSEJlVAOOIl, llfRHVIllYlMEJmSTA, 1If000lfllAl. (lo&lrnco 77

do estruturalismo cepalino, aflorando ao final do século XX e forn ecendo aoutra face da base mental do paradigma normal. I

Desde os anos 1950, com efeito , registravam-se experiências moneta­ristas de governo...[êrneras sempre, caractcrízadus por e .t rat égia alhe ia aos

pressupostos da s políticas desenvolvimenristas, De fato, os dirigentes lat ino­americanos vinham enfrentando um desafio crônico que se arrastava comose fosse um víru s do modelo: a lnstabllidade eco nômica, causada por dese­qu ilíbrios como o fiscal, do balan ço de pagamentos e a inflação . Os estrutura­listas entendiam que haveria de se buscar solução para prover a estabilidadeecon ômica com medidas de longo prazo, tais como equilíbrio entre produçãoe consumo, gastos p úblicos e receita públi ca, ao passo que os monetaristasestavam inclinados ao tratamento d.. choque .

Em 1989·90, elegeram -se pre sidentes neoliberais em todos os grandes Es­tados da Am érica Latina e os monetarístas, de formação norte-americana emsua grande maioria. alojaram-se nos post os dcclsôrios. Tratamentos de cho­que, de corte neoliberal, são aplicados pelos governos de Augusto Pinocher, noChile, Carlos SaúJ Menern, na Argentina, Alberto Fujimori, no Peru, Carl osAndré s Pérez, na Venezuela, Fernando Collor de Melo , no Brasil, c C..rlos

Salinas de Gortari, no México . Triunfa, pois , o rnonetarismo sobre o estrutura­lismo, no pensamento e na práxis . Os detentores desse chamado pensamentoúnico partem em gu erra cont ra a estratégia de indução do desenvolvimentopela via assertiva das iniciat ivas de Estado . Assim como antes se havia operadouma redução do conceito de desenvolvimento para o de expa nsão industrial ecre-scime nto econ ôm ico, operou-se agora outra redu ção da funcionahdade doEstado , de indutor do desenvolvimento para expectador do mercado. Para osrnonetaristas, consigna-se ao Estado a função de prover a estabilidade econô­mica, [ogo reduzída à estabilidade monetária, e ao mercado 8 função de provertudo o mais, sobretudo o próprio desenvolvimento.

A corrente de- pen samento rnonetarista de matriz neoliberal reforça-sequando a Cepal faz autocrítica. Ela adapta seu pen samento, cedendo às cir­cunstâncias, d itas então imperantes. e formulando a doutrina do regionalis·mo aberto, uma v..rsão ma is inclinada para o lado do neol iberal ism o do quedo estruturalismo.

Experiências neolíberars híspano-arnericanas pr ederarn a brasileira , mesmoporque o Brasil avançara mais que todos os ourros países da região pelo caminho

do desenvolvimento e nos parâmetros tradicionais, precisamente em razão de

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i78 COHCfIT", TRAH1Ic.lES [ PARADIGMAS

sua persistência, havendo implantado moderno parque industrial e criado umaagropecuária competitiva. Saltar desse paradigma histórico que tão concretos

e profícuos efeitos assegurara, para outro, não era uma decisão estratégica fácilde tomar. Mas o exemplo provocativo da vizinhança aguçou os rnentores demudança e o governo brasileiro acabou por aceitar a tendência da moda.

A5 determinaç ões externas constituem outro fator explicauvo para a gêne­se do Estado normal. Com efe ito, o endividamento lacinc-americano dos anosI Yl:lO, cujo aumento deveu-se a desequilíbrios anteriores do balanço de paga­ment...s e à elevação das taxas de juro durante os dois mandatos do presidentenorte -americano Ronald Reagan, relorçou 3 histórica condição de esrnoleirosinternacionais que ostentavam os países da região . A busca desenfreada derecursos externos abriu uma porta pela qual aqueles comandos das estrutu­ras hegem ônicas do capitalismo passariam, Um consenso estabeleceu-se, nãoapenas o denominado Consenso deWashington , resumido em dez pontos peloeconomista JOM Williamson, mas o consenso entre o pensamento norte-ame­ricano de governo, de universidades de renome, do Banco Mundial, do FundoMonetário Internacional c o pensamento latino-americano expresso por gruposde intelectuais, como a comunidade epistêmica Argentina, e pelos dirigentesregionais, cujas mentes com os primeiros se conformavam. Haveria-se de 5<,'­

guir as instruções do centro capitalista ou ficar sem empréstimos de salvação.O conjunto dessas instruções sugeria três dimensões de urna nova abertura

- daí o sucesso desse termo na Iínguagem latino-americana: dos mercados deconsumo, dos mercados de valores c do sistema produtivo e de serviços. Pararealizar essa mudança de modelo, as táticas vinham anexas ao conjunto de ins­truçôr-s: r-liminar o Estado empresário, privatizar os empreendimentos estatais,realizar superávit primário. proteger o capital e o empreendimento estrangei­ro.' e adaptar as instituições e a legislação de modo a produzir esse novo marcoregulatório. Ser normal. na feliz expressão de Domingo Csvallo, Ministro deRelaç ões EXteriores do governo de Menern, significa dar cumprimento a esseconjunto de inst ruções. Ser normal converte-se na aspiração de praticamentetodos os governos latino-americanos a partir de 1989-90: nosotros queremosser normales, Competem, aliás, entre si esses governos no intuito de exibir oafã de ser normal e seqüestrar a benevolência do centro de comando capitalis­ta, aplicando tratamentos de choque. como mudança de moeda, confisco de

poupança, congelamento de contas banal.rias, congelamento de preços, pari­dade monetária com o dólar, diminuição tempestiva das tarifas alfandegárias .

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P'RAllIGMAS DA'OmICA OODlIO.: UDUAl-CllIWJlYADO• • OUeNVolVlMeomST., NIOUBElW. ILOalrnco 79

De um ponto de vista ideológico e também político, nenhum país reveloumais coer ência e consist ência do que a Argentina na adoção do novo para­

digma. O aparecimento de uma comunidade cpist ôrnica, composta de inte­\l'(tlJais, jornalistas. diplomatas, empresários, legisladores e dirigentes esta­

beleceu vigoroso consenso intern o e causou profunda impressão nos paísesvizinhos . enfraquecendo no Brasil as resistências à mudança de paradigma. Aexperiência argentina , posta em marcha em 1989, con stítui.çportanto, maisum fator explicativo da origem do paradigma normal no Brasil .

Ap ós o efêmero governo de Fernando Collor de Melo , ortodoxo na apli­cação das medidas sugeridas pelo conjunto de instruções do centro, o pensa­mento e a prática política de Fernando Henrique Cardoso nortearam a novarase. Seus numerosos ..scritüs evidenciam o impacto das circunstâncias queo elevaram à condiç ão de teórico brasileiro do pensamento neoIíberal. Seusconceitos de mudança, implacáv..l c.stra rl'gia sem alternativa, e de CÍrcu/lS'

IJ""ias imperantes, mecanismos de caus alidade necessária, transformadosem padrâo de conduta do Estado. introduziram a era Cardoso, que se est en­deu de 199] a 2002, embora nela possamos iur luir o governo do primeiroFern..ndo, de 1990 a 1992. Denominamos, assim, era Cardoso esse longoperíodo que se estende entre 1990 e 2002 .

Entendida a origem do Estado normal, examinemos seus parâmetros, ini­.-iando pelos que compõem o bloco mental .

O pensamento neoliberal reformulou a economia política cláss ica e akeynesiana, alçando-se- ( 'OI nova doutrina econômica e política exposta por

alguns economistas, dentre os quais Milton Friedrnan . Os neoliberais suge ­riam um choqu.. de mercado para reanimar o cambaleante e pouco eficientecapitalismo da cpoca da Guerra Fria. Margaret Thatcher e Ronald Reaganderam-lhes ouvido. Desencadeava-se, desse modo, nova onda, que tomouvulto com o fim da União Soviética e o colapso do socialismo real. Penetroua América Latina pela via do pensamento monerarista e do regionalismoaberto da Cepal. Os neocepalinos propunham uma simbiose, combinandoabertura ampla da economia, requerida pela glohalizaç ão, com integração b í­

lateral ou regional, feita de preferências comerciais e de maneira a controlareventuais efeitos negativosda abertura .

Essas circunstâncias não explicam de todo o substrato ideológico do para­digma normal, a invenção latino-americana. Isso porque, em sua base , viceja,para além da ideologia, uma crença . O neoliberalísrno transformou-se na

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80 CONCOTllS, IllAHS,ÇOU r .UAOICIoIAS

América Latina em mais um fund am entaJismo t ípico do fir" do sécu lo xx.quandn aparentemente o conflito ideolôgico amainava em todo o mundo.

Misto de crença, Fé e utopia, esse fundamcntalismo pouco carregava de ciên­

cia em seu bojo . O pensamento de Cardoso c sua equ ipe - "mudam-se ostempos", "tempos de mudança", expressões estampadas em títulos de livrospor eles publi cados - está mais par a o catecismo e a igreja do que para omanual e a academia. Seus textos e SUl! prát ica polítka revelam, com efeito,a Féem fórmulas convencionais do credo neoliberal, fé, sobretudo, no impé­rio do mercado como indutor do des envolvimento,

Converter o substrato ideológico e religioso do paradigma normal em pa­drôes de compo rta mento político exigia, contudo. boa do se de racionalida­de, de que não car eciam os homens de Estado brasileiros da era Cardoso. Oelo est abeleceu -se . pois , da doutrina ~ políti ca, da ideologia à polít ica e dacrença à pol ítíca , O que para a mais elementar análise crítica é um enigm a.para os est rategistas normais é coe r ência. Adotar. por exemplo, a aberturaeconômica como estratégia, sem nenhuma estratégia de inserção ade quadano mundo da interdependência real. Sacrificar 3 autonomia decisória 9 0S co­mandos do cent,:o cap italista, simplesmente porque suas instruções erigíarno império do mercado.

O bloco duro do paradigma normal - percepção dos interesses nacionai s,relações econ ômicas internacionais. c impactos sobre a formação nacional- reserva outras surpresas ao analista.

O s d irigentes normais esterilizam, de pronto, duas idéias-chave do para­digma dcsenvclvírnentista : as idéias de interesse nacional e de projeto nacio­nal de desenvolvimento. Pedro Malan, Ministro da Fazenda da era Cardoso,declarou que um país corno o Brasil não poderia sonhar com projeto nacio ­nal. algo reservado apenas a grandes potências , No mundo da J;lobalização,entendiam aqueles dirigentes, interesses nacionais se diluem lia ordem te-

ida pelo ordenamento multilateral das relações interoa iooais e pelo cursosist êrn ico das forças do capitalismo, a chamada governarifa global. Políticaexterior torna-se con cito FOfa de moda, algo espúrio. mero ornament~ daação do Estado, visto que reflete vontade nacional na busca de interesses con­cretos. Durante a era Cardoso, trocava-se amiúde o Ministro das Relaç ões

Exteriores ou mantinha-se por vários anos quem não manifestasse vontadeforte ou pensamento próprio.

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PA.RADI8MAS OAPOunCA OTEIOOR: UB(lW. -CDNStRVADOR. DESUIV(ttYIMflffliTA. NtoulrflAll LO~rtw:o ~ B1

A~ relações econômicas mternac ionais do Brasrl promovidas pelos estra­

tegista s normais não levaram 3 termo, porém encaminharam a destruição dopatrimônio nacional construído em sessenta anos de esforç os. Os mecanismosde privatizaçâo das empresas públicas, exigida pelo centro de comando capi­talista, foram além das instruções recebidas, ao dar preferência ao capital e àsempresas estrangeiros. A abertura do mercado financeiro e dos bancos adap­tou-se, porém, àquelas instru ções , que garantiam o livre fluxo de capitais es­

peculativos. A especulação e a alienação de ativos de empresas privatizadas oude empresas privadas vendidas ao exterior abriram, naturalmente, duas novasvias de transferência de renda ao ce nt ro, que SI: somaram à tradicional via dosserviços da dívida externa. A renda do País passou a migrar para fora tamb ém

pela via dos dividendos e do movimento de capitais. Os normais não pensaramem remédios de equilíbrio par a tais me canismos, a não ser a busca desenfreadade capitais com que enfrentar o déficit das contas. Viviam da ilusão de divisas,ao mesmo tempo que dílapídavarn o patrimônio nacional.

Ironicamente, as experiências neoliberais do Brasil e de outros países vi­

zinhos, em vev. de trazer solução para o déficit das contas nacionais como se

propunha, ap,ravaram-no . Sem projeto de desenvolvimento e sem recursos, aera Cardoso, era dos normais, provocou a estagnação da economia brasileira einterrornpr-u um ciclo de sessenta anos de desenvolvimento caracterizado pe ­las mais elevadas taxas de cres cimento entre os países do mundo capitalista.

Os impactos do Estado normal sobre a formação nacional são percebidosde três maneiras, uma positiva c duas negativas. O choque da abertura des­pertou empres ários brasileiros dos setores público e privado, acomodadosque andavam ao abrigo de um protecionismo exacerbado a que havia con­duzido o paradigma anterior. O mercado interno, amplo e reservado, lhesbastava antes . Com a abertura, para fazer face à mundação de produtos es­trangeiros, foram forçados a modernizar suas plantas e métodos. A respostafoi positiva e, desse modo, o choque da 'abert ura cont rihuiu para elevar 8

produtividade sistêrnica da economia brasileira -- indústria, agricultura eserviços - e galgar mais um degrau fumo à modernização.

Esse e feito positivo, diferente do qUI: ocorreu oos países da América do Sul ,exceto no Chile, tira explicação do grau deorgaruzaçâo da sociedade brasilei­ra, r-rnpresãrios, operãrios, industriais, agricultores e comerciantes. A socieda­de organizada reagiu ao ímpeto neoliberal dos dirigentes e sobre eles exerceupressão suficiente para dosar o ritmo e as dimensões da abertura à capacidade

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Cí*C[ITOS, TRANSlçõES [ PARA0t6Ii1AS

de adaptação dos segmentos sociais, O resultado verificou-se por meio de sur­pre ndente elevação da produtividade sist êrnica da economia brasileira.

O s impactos negativos se, concretizam. por 11m lado, com o aprofimda­mente de depend ências estru turais e, por outro, com o regresso histórico .Dando razão aos estruturalistas latino-americanos que assentavam planos deação sobre objetivos de longo prazo, os normais , com seus choques de mt.>T­

cad a, fizeram TI' ssurg ir dependências que os primeiros haviam identificado ecombatido. Dependências financeira, empresarial e te cnol õgica, promovidasnovamente, elevaram a vulnerabilidade ext erna do Pais a níveis críticos: dí­vida, enfraquecimento empresarial c fechamento de centros de pesquisa einovação. Ao empurrar, adem ais, a economia de matriz nacional para o setorprimário, onde a mantiveram, os liberais-conservadores da Independência a1930, empurravam a nação, de certo modo, de volta ao século XIX .

O paradigma do Estado normal. em suma, foi o caminho aberto pela in­teligência política latino -americana nos anos 1990 . Todos os governos se dis­puser am a tr ilhá-lo a galope, mas não o fizeram no mesmo ritmo c com amesma coerência. Em tod a parte, o paradigma revelava seus três parâmetrosessencia is. subserviência na esfer a política, destruição na e~ft"ra econômica eregresso do ponto de vista estrutural e histórico.

Dentre os grandes Estados da região, 3 Argentina de Carlos Saúl Menern(1989-1999) pode ser tomada como protótipo de aplicação desses parârnc­tros, enquanto o Brasil de Cardoso manifesta hesita.....>es quanto ao ritmo e àcoer ência a adotar' diante do novo modelo de inse rçâo internacional e organi­zação interna. A coexist ncia paradigrnár íca, embora pareça paradoxal ao ana­lista, caracteriza a era Cardoso, mesmo porque o homem que a preside revelaincoerências teóri cas c hesitações operacionais como traços de sua personalida­de. Cardoso oferece, com efeito, o espetáculo da dança dos paradigmas: o de­scnvolvirnentist a que ele se cornpraz em ferir gravemente sem matar, o normalque emerge de forma prevalecente e o logístico que se ensaia como outra via.

3.6 Oparadigma logisticoComo observamos no inicio do parágrafo anterior, as experiências neoli­

berais tomaram impulso na América Latina no início dos anos 1990, quandouma onda de presidentes eleitos as adotou como modelo de governo . Navirada do milênio , outra onda de presidentes democrátícos, oriundos emgeral de meios sociais desfavorecidos e ditos de esquerda, baniu sob pressão

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PlJUlDlOMU DA,,"unCA DmlIOA: 1I8rlW·CO"S(lIV'OD~. D(U/<VDtliIMOjnm, lIfO ..aw. r \Jl4IImCll 83

da opin ião pública aquel e modelo regional. sem, contudo, perfazer depoisUITl3 unidade de práxis . Chile e Brasil, países chamados de esquerda respon­sável por meios de imprensa, guard am heran ças do neoliberalismo, comoresponsabilidade fiscal, estabilidade monetária. estímulo aos investimentosestrangeiros C abertura dos mercados. Os do is, por coincidência. haviamtemperado a experiência neolibc ral com outro paradigma de relações inter­nacionais, que cham amos de logíst ico, em dose:' CApaz de atenuar efeitos doneoliberulisrno nas esferas da vida política, econômica e social.

Estudiosos. como o professor Ha-Joon Chang, orientavam a atenção dosincautos, em univcrsid..des dos Estados Unido s, da Europa e da AméricaLatina, para uma teoria de relaç ões internacionais à base de História, cujoargumento central consistia em dcsquali/icar a lição dos países desenvolv i­dos aos pa íses em desenvolvimento: não [açam como MJ fiz, façam o que 1'11

mando. No passado, os primeiros empreenderam uma estratégia de descri ­

voLvimento que desaconsclharn ou tentam impedir que os países atrasad osadotem no presente. Em es sência, essa estratégia consistlu e'11 dosar o libe­ralismo às etapas do desenvolvimento agrícola, industrial e tecnológico e à

salvaguarda de interesses nacionai s. Para esses estudiosos, os estrategistasneoliberais latino-americanos haviam se acomodado à lição de quem sub iu echutou a escada,

A introdução do paradigma logístico durante a era Cardo so não foi além

de um ("1\5.1io. Mas o paradigma firma-se em termos oper acionais durante 3

era Lula de. modo que a ex peri ência permite conceituá-lo c, quando escas­sa, a reflexão completa o raciocmio . Antes de tudo, a atenção se volta paraexplicações que se encont ram na origem do modelo logístico de inserçãointernacional que se mescla em seu curso com os outros do is, o desenvolvi­mentista e o neoliberal . Esse esforço chega a três considerações.

Em primeiro lugar, o malogro das experiências neol íbera ls latino-ame­ricanas fazia-se prever desde o impulso inicial. Seus crít icos não eram tionumerosos quanto seus apologistas , na imprensa, nos me ios acadêmicos, nomeio político e entre os intelec tu ais, por ém nunca deixaram de fazer ouvirsua voz, Se não convenciam , ao menos.suscitavam dúvidas quanto ao acertoda nova estratégia de açãoD malogro fui confirmado, doze anos depo is, porestudos que avaliaram os resultados das experi ências. Relatórios da Cepalrevelam que 43% da população latmo-americana, cerca de 280 milhões, viveem níveis de pobreza em 2003, em demonstração de que os indicadores eco-

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84 = CONCErTOS, r..IISlçClE$r PAMOle....S

nômicos e socia is haviam-se deteriorado. Na passagem do milênio, a opiniãopública derrubava, pela via deitoral .. os governos de perfil neoliberal. Poroutro lado, durante a fase de experiências neolíberais, os políticos jogavam àop inião pública apreciações contraditórias acerca da globalização, o conceitode globaluaç ãobenigna , formulado pela comunidade epistêrnlca que asses­sorou o governo de Menem, e de globalizaçãc a.ssimélrica, uma consistenteteoria elaborada pelo eclético Fernando Henrique Cardoso, que a divulgavaem escritos, entrevistas e discursos .

Em segundo lugar, percebiam os dirigentes brasileiros que seus colegasdo centro não procediam do mesmo modo, ou seja , não aplicavam em Suagestão pública os- preceitos que passavam à periferia latino-americana. Ointrigante exemplo de comportamento político observado tanto nas decisõesinternas quanto nos foros multilaterais, onde se construía o ordenamentoeconômico global , levantava dúvidas quanto ao acerto de se aplicar o conjun­to das instruções neol iberais. Os dirigentes do centro preg avam abertura eliberalismo à oUlrance como receita para superar a cr ise da América Latina,porém se negavam a implementá-los , movidos pela defesa de seus interessesestratégicos de longo prazo. Por que não imitar aquele tipo de comporta­mento do s poderosos?

Uma terceira explicação para 8 introdução do paradigma logístico residena sobrevivência do pensamento críríc o no Brasil e em toda a América Latina.

Com efeito, esse pensamento critico, embora de reconhecimento tardio, eraexplic ito e consistente. Atualmente, em visão retrospectiva, deve-se considerarinadequado o termo pensamento único aplicado aos neol íberais. Na Argentina,o pensamento critico confrontava a comunidade epistêmíca nas universidades,na imprensa e nas livrarias e contava com analistas e intelectuais de peso comoAldo Ferrer, Mario Rapoport, Roberto Lavagna e Raúl BemaI-Meza .

No Brasil, entre outras manifestações do pensamento critico , duas alçarammais sua voz. Dentro do ltamaraty, o modelo normal de inserção internacional

im plementado pelo governo Cardoso não recolhia a unanimidade do pen.sa­mento diplomático. Alguns expoentes embaixadores do quadro, aexemplodeRubens Rlcupero, Celso Amorim, LuizAugusto SoutoMaioreSarnuel PinheiroGuimarães, lançavam dúvidas acerca do acerto das decisões na área ex ­terna. Enquanto dirigiu o Instítuto de Pesquisa de Relações Internacionaisdo lta maraty, Pinheiro Guimarães promoveu inúmeros encontros, reunin­do estudiosos e empresários, e lançou séries de livros que evidenciavam

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PAAAOIaWAS OA'DUnU mIlllDl: UIElW·CON$[~.'OOR, O(.S[NVOlYlMEN1liTA, NEOUBDW. I Ul6ImCO B5

a crtt ica ao paradigma que impregnava o processo decisório em relações

internacionais. Sua crítlca pessoal fazia-se tão contundente qu e lhe custoua demissão do cargo.

Na acad emia, po r outro lado, um grupo de estudiosos das relações int er­nacionais da Universidade d« Brasília, recentemente denominado Escola deBras/lia, por Bernal-Meza, di fundia severas interpretações em sernin ârics,salas de aula , livros e por meio da Rel'ista Brasileira de Politica Internacio ·nal. Desenvo lvemos nossos es tudos pessoai s ne sse ambiente estimu la.nte ,no qual o pen samento critico de Luiz Alberto Moniz Bandeira, José PlávioSombra Saraiva, Argemiro Procópio f ilho, Antônio Carlos Moraes Lessa eAntônio Augusto Cançado Trindade era cotejado com diferentes versõesexpostas por Alcides Cost a V3:Z, Est êvão Chaves de Rezende Martins, An­tônio Jorge Ramalho da Rocha, Carlos Roberto Pio da Costa Filho e Edu­ardo Viola. Em outras universidades, céticos ou criticas também vinham apúblico com publicaçõe s, a exemplo de Paulo G ilberto Fagundes Vizenrinie Paulo Nogueira Batista J r.

O s cé t icos Ou críticos não postu lavam o simples retomo ao paradig­ma de senvolvimentista. embora di sso fossem acusados pe los neoliberaisda equipe assessora de Cardoso que os qualificavam de saudosistas e neo·burros. Julgavam necessário, contudo, no estádio de desenvolvimento emque se havia alçado a nação, transitar do paradigma dcsenvolv irnentistaao logíst ico, sem tomar o caminho normal, mergulhando na subse rviência,destruição c regresso.

Esclar ecida a gênes e do modelo logístico de relações internacionais, t che­gado o momento de recorrer aos dois componentes do bloco mental, ideolo­gia e pol ítica, Com o objetivo de identificar e descrever seus par âmetros.

A ideologia subjacente ao paradigma do Estado logístico associa umelemento externo, o liberalismo, a outro interno, o desenvolvimentismo.Funde a doutrina clássica do capitalismo com o estruturalismo latino-ame­ricano. Admite , portanto, operar na ordem do sistema ocidental, recente­mente globalizado.

Na esfera polí tica , o paradigma loglst ico, como experiência brasi leira elatino-americana, comprova uma criatividade ainda maior. Recupera a auto­nomia decisória da pol ítica exterior sacrifi cada pelos normais e adentrapelo mundo da int e rd ependê nc ia, implementando um modelo de inserçãopés-desenvolvimentista. Seu escopo final, a superação de assimet rias entre

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86 CoHarros, TRANSIÇÓES E PllWllGMAS

as nações, ou seja, elevar o patamar nacional ao nível das nações avançadas.

Diferencia-se do paradigma descnvolvirnentista, com o qual pode conviver

e m certa dose, ao transferir iJ sociedade as responsabilidades do Estado em­

presário. Diferencia-se do normal, consignando ao Est ado não apenas a fun­

ção de prover a estabil idade econômica, mas a d e secundar a sociedade na

reali zação de seus interesses. Lim ita a prevalência absoluta do Estado que

caracterizava o primeiro e elimina do segundo a crença anticientífica no po­der ilimitado do mercado de pr over tudo o mais . Por fim , o Estado logísti co

imita o comportamento das nações avançadas, particularmente dos EstadosUnidos, tido como protótipo do modelo. A política exterior volta-se ê rea­

lização de interesses nacionais diversificados: dos agricultores, combatendo

subsídios e protecionismo, porque convém ã competitividadc do agroneg6­cio brasileiro; dos empresários , amparando a concentração empresarial e o

d esenvolvim en to tecnológico; dos operários, defendendo seu emprego e seusalário; dos consumidores, ampliando seu acesso à sociedade do bem-estar,

A percepç~o dos interesses brasileiros pelos dirigentes logísticos equivale à

percepção de interesses de uma sociedade avançada. Nesse ponto res ide suapeculiaridade, porquanto os liberais-conservadores percebiam os interesses

na cionais como se coincidissem com os de uma sociedade atrasada e inseridana divisão internacional do trabalho, os desenvolvimentistas os percebiamcomo sendo de uma sociedade em fase intermediária de transformação. Já oslogíst tcos consideram ncccssáríos, possíveis e Convenient es os remédios de

equ ilíbrio que estabelece rn a interdependência real. Desprezam o argumen­to da dependência estrutural e concebe m uma estratégia de relações inter­

nacionais, cuja ação se agrega naturalmente à das estruturas hcgernônicas docapitalismo, como se dele, enfim, o País fizesse parte por inteiro.

No campo das rel ações econômicas internacionais, o co m portame nto

logístico se depara , in icialmente" com o desafio de remover ent ulhos ope­racionais acumulados pela estratégia do liberalismo radical: atenuar a de­

pendência tecnológica e financeira, promovendo a inovação produtiva e

a saída da condição d e esm ole iro internacional. E, com isso, restringir avulnerabilidade ext ern a . •

O desafio criativo consiste em reforçar o núcleo econômico duro nacional.

de modo a alçá-lo em termos comparativos ao núcleo forte de nações avan­çadas e a abrir o caminho il sua internacionalização. Com efeito, o paradigma

desenvolvirnen tista havia nacionalizado 3. economia internacional, reunindo,

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PAIlADtGMAS DA>nunCA (J:T[lIlO.: UB[ltAI·C1lNSUlYAOO... OESEHYOU"MtHT1STA. NLOUBVlAl [LlMIImca B7

porém, ao termo de sessenta anos, as tr", cond ições para internacionalizar

certos setores de at ividade : grande mercado, disponibilidade de capital e com­peutividade empresarial. Não fosse a hecatombe normal que se abateu sobreo núcleo forte de matriz nacional, a lógica poderia haver triunfado e o Brasil

transitado do paradigma deserwolvimenrista para o logfstico , desde 1990 -.Como vimos, o reforço do núcleo duro nacional sup õe, no padrão logístico,

o rep asse de responsabilidades do Estadoempresário ~ socíodadc. Não repug­na aos dirigentes, cont udo, o empreendim..nto estata l, conquanto eleve Se U

des empenho ao nível de cornpetitividade sistêmica global. Mas o foco do pa­

radigma consiste, pre cisamente, em darapoio logisríco aos em preendírnentos,o públi co e o privado, de preferência o privado, com o fim de robustecê-lo emtermos cornparat ivox internacionais. Assim procedem os governos dos países

centrais - Estados Unidos, Europa e Japão, a título ck exem plos - prote­g"ndo empresas, t ecnologia e capitais de matriz nacional , estimulando seu for­tale cim ento interno e SWl exp ansão global, zelando pelo empr(~go e pelo bom

salário dos trabalhadores, ampliando o hem-estar do consumidor.Sob o auspício de tais dir etrizes, a expansão para fora da economia bra­

sileira , condição necessária para se atingir a interdependência real no mun­do da global ização no entender dos logísticos, opera-se de dois "modo s: pelaagregação dos empreendimentos nacionais às cadeias produtivas internscio­

nais e por invest ime ntos diretos no exterior, a começar pela vizinhança.

O comportamento de' Estado logístico, corno se percebe, descola-se da teo­ria estruturalista e se aproxima dos requisitos da teoria realista das relações in­ternacionais. Sup õe conclurd» 3 fase descnvolvímentísta, centrada no interno,e projeta a internacionalização econ ômica. Põe em marcha dois componentesde conduta advogados pelos realistas: a construção de meios de poder e suaut ili7.. ção para fszer valer vantage ns comparat ivas, não mais naturais. mas in­tangíveis , como ciência, tecnologia e capacidade empresarial.

Os impactos do paradigma logíst ico sobre a formação nacional, durantea era Cardoso, não foram desprezíveis, embora situem-se mais do lado daprospectiva do que da vida real. Criaram-se expectativas de viabilidade degrandes empreendimentos nacionais, nas ;ln 'os de mineração c siderurgia,energia, indústria aeron áu ricn, tecnologia espa cial e nuclear, ind ústria ali­

mentícia e outras. Vislumbrou-se, ademais, a possibilidade da transição do

par ad igma desenvolvirnentista ao logístico, sugerida pela racionalidade his­tório. Realizavam-se, em certa dose, expectativas de ingresso oa sociedade

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·88 • CONem çO.. , 'AIWlIGl\&AS

madura do sistema capitalista, induzidas pelo comportamento dos grandesque se procurava imitar. Sonhava-se com o nivelamento pelo alto do bern-es­rar social e do desenvolvimento econômico. Iniciava-se a internacionalização

e con ôm ica, sobretudo pela vizinhança, concebida, enfim, corno remédio aos

desequilíbrios estruturais. De modo mais concreto, assim como o paradigmanormal encaminhara a destruição do patrímõnio nacional, a convivência como logístico elevou a competitividade da economia brasileira e criou condiç õesde harrnonízaçâo de estruturas begemõnicas do capitalismo com interessesdo s países emergentes na disputa de influências acerca do ordenamento in­ternacional da era da globalização. Nesse particular, o paradigma logtstícorepõe em marcha a visão dual de mundo dos cepalinos ortodoxos, porémo faz mediante adaptação da polítlca exterior li interdepend ência global do

século XXI .Os dirigentes do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, inaugurado em

2003, contemplam estratégias de inserção internacional acionadas pelosgovernos anteriores . com maior ou menor apoio social, entretanto, aperfei­<;oam o desempenho do paradigma logístico de relações internacionais. Essegoverno acedeu ao poder pela via eleitoral, com base em campanha que con­venceu a opinião pública da necessidade de mudar o modelo de relaçõesinternacionais, que denominamos de paradigma normal, Mantém deste avaloração da estabilidade monetária acima do crescimento, juros altos, cargatributária excessiva, câmbio valorizado e carência de investimentos em infra­estrutura. Por isso ostenta ritmo lento de crescimento que impede ganhosmais visíveis na área externa. Lula é tão logístico quanto Cardoso era neoli­bera! : non /TOppO.

O governo Lula se afasta da fé na capacidade do livre mercado de pro­ver por si o desenvolvimento, Avança em várias esferas: na América do Sul,rumo à integração produtiva pela infra-estrutura, energia e investimentosbrasileiros; na esfera global, forjando coalizões que reforçam o Brasil comoator global e permitem bloquear as estruturas hcgernônicas em sua deter­

minação arcaica de reservar para si a função de estabelecer as regras do or­denamento global a seu favor; com Índia, Rússia, China e África do Sul,rumo à cooperação pará o despertar das grandes baleias adormecidas; coma Argentina, para não perder o sócio, porque não se admite perder nenhumsócio. O Pais cresce, desse modo, corno poder global , embora o ritmo fracoseja determinado pelo baixo crescimento. Grandes superávits no comércio

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PARAOIGMAS DA "OÚTIC~ OOEIUOft: UBU\AL-eONS€OVADOR. OfSEJlVOIYJMlfflUU, NEOUBIllAL E LOa!mca 89

exterior, diminuição da dívida externa que Cardoso aumentara em cem porcento e aumento dos investimentos estrangeiros no Brasil e brasileiros noexterior são outros resultados.

A inte rnac ionaliza ção econômics rep resenta um campo de grande êxitoda logística internacional de Lula, em razão do ritmo forte que ostenta e dasegurança que a reverso imprime à economia nacional . No início do segundomandato, cerca de três dezenas de empresas brasileiras haviam implantadoaproximadamente cento e vinte fábricas no exterior. A prática contínua ecrescente da internacionalízaç âo corresponde à mudança mental introduzidapelo novo paradigma, com apoio do empresariado. Estados Unidos, Argenti­na, C hina e Bolívia (antes de Evo Morales) são alguns de stinos preferenciaisda nova geração de empres ários que toma o Estado como estrategista , nãomais como motorista, nâo considera a globalízaç ão nem boa nem má , masuma oportunidade de negócios . Segundo relatório da Unctad, o Brasil ocupao sext o lugar entre os países emergentes como investidor direto no exterior,havendo suas empresas carreado para fora mais de setenta bilhões de dólaresaté fins de 2005. Ao iniciar seu segundo rnandato, L.ula governa um país quebeira os cem bilhões de dólares de investimentos externos, liderados porPetrobrás, Vale do Rio Doce e Gerdau, que se situ am entre as cinqüentamaiores empresas do mundo em investimentos diretos no exterior . Negó ­cios pequenos e grandes invest imentos caracterizam a internacionalizaçãodas empresas brasileiras, entre eles 3 compra da canadense Inca pela Vale em2007, por soma próxima aos vinte bilhões de dól ares .

Outra linha d e ação externa logístic a do governo Lula é sua opção estra­tégica pelos pa íses emergentes . Por cert o, estes não formam um bloco e sãomenos unidos do que Europa e Estados Unidos, todavia a História reserva aeles a hegemonia do século XXl, como reservara a do século XIX à Europae a do século XX aos Estado s Unidos. Com efeito, os países emergentesreúnem no inici o do século XXI mais de cinqüent a por cento da popula­ção , do comércio internacional , do consumo e das finanças do mundo. Eostentam ritmo de crescimento duas vezes superior à Europa e aos EstadosUnidos. O futuro lhes pertence, d iria o harão do Rio Branco, se vivo fosse,aconselhando o Brasil a orientar sua política exterior, suas parcerias c seusobjettvcs de modo prioritário para essa área do planeta , COm O me sm osenso realista que fundou a proveitosa parceria com os Estados Unidos noinício do século XX.

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~90 CoHCElTQS. lRA.NSlCÕE$ E PARADIGMAS

Em co nclusão, ob servamos que se estabelece, com base no estudo dasorige ns, dos componentes mentais, operacionais e mat eriais e, enfim, dos

impactos sobre " formaç.ão nacional, a distinção entre quatro paradigma s derelações inte rnac iona is do Brasil .., sua sucessão ou coabitação. Esse esforçode re fle xão cond uz à invenção de conceitos e a sua articulação em uma teoriaparadigmãtica das relações internacionais do País Os estudos de relações

int ernacionais haverão de checar a consistência dessa explanação compreen ­siva, alargando, como convém, o campo de observação empírica sobre o qual

se assenta . As relações internacionais do Brasil constituem um laborar õnode experiências ricas e variadas. Agregam correntes fortes de pen samentoe est ratégias de ação criativas. Que sejam iluminadas por conce itos e teo­rias elaborados nos centros de estudo do norte desenvolvido, não de modoa reproduzi-los no ensino e nos manuais de forma a espelhar inferioridadecultural, muito menos de maneira a operacionalizá-los na esfera dirigentede fonna a sobrepor interesses alheios pela via da subserviência polít ica. Ag1obalização requer do estudo e do comportamento político que se destile oconhecimento alh eio na química do pen samento brasileiro c latino-amcrica­no com a fim de fazer avanç ar o conhecimento des sa realidade e de imple­mentar estratégias de ação que conduzam à equalização en tre as povos deinteresses e responsabilidades nas rela ções internacionais.

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PARTE II1II II II II l ll ll ll ll ll l ll ll llll lll ll lU II lII II I II IIIIllllt ll l l l l ll lll l llll l tll ll ll lll l l l11I11I1I11lIUI IIII I III II 1Il1l1lll ttll l

oBrasil diante da globalização e da regionalização

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4o Brasil diante da ONU e daOMe. das

conferências internacionais. de outros 6rgãosmultilaterais globais e do sistema interamericano

UITURAS RECOMENDADAS

SANTOS. Norma Breda dos . A dimensão mu lti late ral do política ex­te m. bras ilei ra. R." ,;'ttl Bra.likira de Política Inlemacional, n . 45 (2) .2002 , p , 26 -45. ALMEIDA. Paulo Roberto de . O Brasil e o mulsílase­ra lLrmo ocon6," ;"",. Porto Alegre: Uvrn ia do Ad vogado , 1999. ALBU·Q UERQliE, José AUl(USto Guilhon. (Org.). Cnsscinlmto, mobmiza·çdo e polltica t'Xttrna . S~<ent. Anos de Política Externa BI"I, iI<: ira, SãoPaulo: Cultura Editores Associados, 1996. v. I. ALVES, José AugustoLíndgren, Relaç ões int"",,,cionais e temas socia is: a Década das Confe­rências. Bruma: IBR!. 200I . DUPAS. Gilberto. Hegçmonia, Estado egovnnabilida.U: pe rp lexidades e alternativas no centro e ns periferi• .São Pau lo : Senar, 2002 . W'ER, Ce lso. Comireio, desarmamerao, di .rei.", human"'. São Paulo: Paz e Terra , 1999. BRASIJ.r.MRE. A palavrado Brasil nas Nações Unidas. Brasllia: Fun ag. 1995. FONSECA., Gel­son oO Brasil no C01UeU,o de Segurança . Brasili. : Funag: 2002 . OEA.SIn18se de uma gendo: José Clemente Baena Soares. W.shingtOn, 1994.GIRAULT, Ren.' et alii , La foi Jes.gúuus. /941 ·1964. Paris: Massoo,199 3 . G ILPIN, Robert . A economia política das re la ções íntemscío­nais. Br=1ia: unS. 200 2.

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94 - OBIlASll o' Alm O. OlDB.w.<çJ.C l D. REC IDNAUUÇÃD

4.1 MultilateralismoO mu lt ilateralisrno integra há dé cadas a política externa brasileira como

uma de suas linhas prioritárias de ação. Tanto o mult llateralismc econômico,no seio do sistema Bretton Woods e de sua evolução, quanto o político, noda ONU, como ainda, em menor escala, o regional . no seio do sistema in­teramericano. O envolvimento intenso na ação multilateral global e regionalperpassa o tempo e en contra no presente três razões a seu favor : ex pecta­tivas criadas acer ca de seu alcan ce para realizar interesses do desenvolvi­mento e das relações internacionais do pais; padrão de qualidade da pol ít icamultilateral fonnulada pelos governos brasileiros; e experiência continua dadiplomacia nos órgãos multilaterais.

O estudo do multilateralismo brasile iro sugere o aprofundamento de al­gumas questões corresponde ntes aos rumos que ele tomou desde a SegundaGuerra Mundial. com o Iimde avaliar seus resultados em funçã o dos objet i­vos e da qualidade da ação externa nessa área. Com efeito, as fases do rnul­tílateralisrno brasileiro mostram que houve objetivos e resultados distintosligados As expectativas criadas a seu respeito , Quatro fases recentes nessafrente de ação externa o comprovam: em primeiro lugar, a cc nrr ibuiçâo doBrasil à construção do sistema internacional do pós-guerra. entre J944 e1949; em segundo, o esforço despendido para refonnar a ordem internacio­nal, dos anos 196Q aos 1980; em terceiro, a perspectiva de atu ar- no sistemaem vez de reforrn ã-lo, qu e se vislumbra entre 1990 e 2002; enfim , o obje tivode estabelecer a reciprocidade entre estruturas hegem ônícas e países emer­gentes, de 2003 ao presente .

Essas quatro fases da polít ica multilateral revelam que não houve, no pen­samento e na prática dos dirigentes brasileiros, apreciação uniforme nem li­nearidade de conduta acerca do alcance do multilateral e da política a seguir.Prevalece , por certo, ao longo do tempo, a avaliação positiva, ou seja, a idéiade ordenamento universal necessário e conveniente, porém, esse mod o dever o multílateralísmo foi afetado pel a percepção de que dois desvios com ­prometeram sua utilidade para o Pais. Por um lado, fi bipolaridade subme­teu o multilateral ísmoa seu jogo desde o fim dos anos 1940, com a divisãoideológica e o combate ao comunismo, sem que tal ascendência trouxessevantagens 80 desenvolvimento, como ocorrera com a divisão do mundo emblocos antagônicos no contexto da Segunda Guerra Mundial. A reaçã o dainteligência polftica brasileira a essa frustração diante dos resultados do mui-

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oBRASILOIANU DAONU E DAeMe. OAS'ONflll~CW IlmIlNA OONA1S. Df DUTllO$ OIl6Acs... 95

tila teralisrno foi a assunção da visão cepalina do mu nd o dl1 .11 , cent ro-peri­le ria, e a ado ção de estratég ia externa concebída pars produzir efe itos forado ordenamento sistêmico global inerente 11 Guerra Fria. O segundo desviofoi percebido qu and o se constatou que efeitos assimétricos de dlstri bu ição

de beneficios est avam sendo promovidos pelo ordenamento global em cons ­trução desde o fim da bipolaridade. Nesse contexto, a reação veio sob aIorrna de c rítica à chamada globalização assimétrica form ulada pelo próprioremando Henrique Cardoso e. depois, no embalo da vit ória eleitoral da opo ­

sição, por meio da nova estratégia de ação mul tilateral durante o governode Luiz Inácio Lula da Silva, com o fim de realizar a reciprocidade real nasrelações internacionais.

4.2 Contribuição doBrasil à construção dosistema multilateral dopós-guerra

Os estudos de Gerson Moura sobre a transição do primeiro governo deGetúlio Vargas para o governo de Eurico G aspar Dutra descrevem o ambien­te político criado no Brasil após a Segunda Guerra Mundial. A colaboração deguerr a e a aliança militar com os Estados Unid os, sobret udo a vitória alcan­çada pela democracia face ao totalit arismo, haviam produzido o sentimento

de que a nação dispunha de um cap ital político de grande envergadura . Essesent imento impregnou a diplomacia que não soube evitar seu superdírnen­sionàmento. Um erro de cálculo dessa natureza se venhca, por veze s, entrepot ências m édias ou pequenas, que fazem de si uma idéi a desmesurada dopróprio papel no cenário internacional e fogem, então, do realismo de con­duta . Por aquela época, três governos latino-americanos exi biam ambiçõe sdesmedidas, pondo em descompasso a capacidade de poder sobre o cenáriointernacional e a auto- imagem: a crença de que o Brasil tornara-se ind ispen­rivel aos Estados Unidos na fixaç ão dos parâmetros da nova ordem global dopós-guerra; de que a Argentina de Juan Domingo Perón e sua Tercera Posi­ción iriam consertar de pronto essa mesma ordem logo depois de definida;de que a Venezuela de Pérez Jiménez com sua presunção de .superioridadeadvinda da riqueza do petróleo iria comandar o sistema interamericano.

Alguns diplomatas brasile iros acred itavam, então, que o Brasil seria Con­sultado sobre as grandes questões internacionais e que sua palavra exerceriacapacidade de determinação sobre o traçado da nova ordem do pós-guerra.

Da mesma forma co.mo o governo de Carlos Saúl Menem supôs que as re-

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~96 OBRA11l ."'Im D' GlOtlAUlAçAo l .. RrGIO.À~A.

[ações estreitas entre Argentina e Estados Unidos. à época da globalizaçâo,

colocasse Washington em situação de ter que consultar previamente BuenosAires ante de tomar qualquer decisão acerca da América Latina. A avalia­

Ç<Ío ilusória da própria Importância, no primeiro caso, não levou em conta

a realidade caracterizada pelo rumo que tomaram a atenção e os interessesnorte-americanos em favor do reerguimento político e econômico da Europa

e da -const rução dos sistemas de aliança, com o fim de conter a expansão docomunismo, bem como em favor da hegemonia econômica que os EstadosUnidos pretendiam estabelecer sobre a área de ínílu êncía oc idental. O govcr­nu de Eurico Gaspar Dutra operava, pois, à base de convicções equivocadas. Oresultado foi curioso: evidenciou, por um lado, grande at ivismo da diplomaciabrasileira nas negociações para criação do Gatt, do FMI e do Banco Mundial,6rgãos responsáveis pelo novo ordenamento f'ccmómico, da ONU e de seuConselho de Segurança, órgãos responsáveis pelo novo ordenamento político,da Organização dos Estados Americanos (OEA) e o TI-atado lnteramericano çkAssistência Recíproca [Tiar] e da Organização do Tratado do Atlãntico Norte(Otan) , órgãos responsáveis pelo novo ordenamento geopolítico e estrat égico :

por outro. demonstrou a adesão brasileira às teses norte-americanas, como seelas co incidissem com a arquitetura do mundo desejada por um país em de­scnvolvimento qu e já perseguia objetivos próprios em sua ação externa.

As duas vertentes da ordem concebida pela inteligência norte-arncncana,3S fronteiras ideológicas entre as áreas de influência americana e sovi ética eo liberalismo ilimitado na área ocidental, não eram, por certo. parâmetros deinteresse para o Brasil, a não ser como variáveis dependentes de outros com­pon entes da ordem internacional . Pelo combate ao comunismo, os EstadosUnidos requeriam a eliminação da autonomia decisória em política exteriore o alinhamento ideológico. Pelo liberalismo ilimitado, pleiteavam o merca­do de consumo de seus produtos manufaturados. mais do que o sistema pro­dutivo para seus empreendimentos. Estavam, conseqüentemente, em jogo

tanto a possibilidade para o Brasil de operar em meio ~ divisão do mundo emblocos, abrindo oportunidades de realização de interesses próprios, quanto oprojeto de industrialização. Esses dois traços haviam caracterizado, precisa­mente, a política exterior no contexto da Segunda Guerra : extrair insumospara a industrialização do lado das democracias e das potências totalitárias,movendo-se com autonomia de escolha até o momento em que a opção porum ou outro lado não pudesse mais ser adiada.

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oBRASILDrANTE D' OHU ( •• aMe, DASCllOt'llltNCIAS IffTUI"'ÇlIlOWS, aE al/Tllos !ltlaAas". o !I7

A contribuição da diplomacia brasileira à construção da ordem interna­cional do pós-guerra revelou um lado prático, outra ideológico. As institui­ções criadas, então, atuariam em f\lnção de objetivos claros e segundo regras

coerentes a tais fins, visando, a termo, garantir, no jogo das relações inter­nacionais, estabilidade e realização de interesses presumivelmente de todas

as nações . Elas evitariam, portanto, os efeitos nocivos da anarquia sobre osistema internacionaL Mas o apoio cedido à ordem de concepção norte-ame­ricana endossava seus dois traços ideológicos: o combate ao comunismo e oliberalismo da área ocidental . Desse modo, SI' contribuiu para implantá-la noimediato pôs-guerra, frustrou as expectativas da política exterior do Brasil,que no fundo não exerceu influência especifica em sua gênese e não auferiubeneftcíos relevantes em seu curso.

O rnultilateralisrno brasileiro embarcou, portanto, em sua primeira aven­tura, no imediato p ós-guerra . Não convém considerar um erro suas intenções

- contribuir para criar instituições e definir regras da ordem internacionale garantir por meio delas o prevísibilidade dos negócios e a paz entre asnações -, mas sim o fato de não prever que regras e inst ituições daquelanatureza poderiam favorecer a uns mais que a outros, longe da reciprocidadedas relações internacionais. Se o capital político acumulado pela cooperaçãode guerra fosse acionado com realismo, estaria aconselhando 11 diplomaciabrasileira o posto permanente no Conselho de Segurança ou o ingresso naOtan . Nessas posições estaria em condições de realizar melhor os interessesnacionais do que de dentro da OEA e do Tiar, órgãos de segunda classe noquadro institucional de então,

Expectativas frustradas surgem, contudo, quando se avalia corretamenteuma linha de ação externa c se toma consciência de seus equívocos. Por essa

boa razão , desde 1947, sobretudo durante a década de 1950, tanto o libera­lismo ilimitado qu.anto o combate ao cornuni...mo frustraram as expectativasbr asileiras acerca da capacidade de o sistema internacional vir a prover osinteresses do desenvolvimento.

4.3A reforma do sistemamultilateral: osconceitos dosanos1950 ea luta das décadas seguintes

Espalhou-se pelo mundo, nos flancos das duas superpotências, URSS eEstados Unidos, a avaliação das inconveniências da ordem.erigida pelo rnul­tilateralismo do imediato pós-guerra, sob a égide da bipolaridade, da pressão

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98 Oe"'Sll ."NTf •• ClO.'UUç1.o ( D' .(QIO.... UUçAO

ideológica, do com unismo rígido na zona soviética e do liberalismo ilimitadona zona americana. A década de 1950 assistiu ao protesto político e à formu­lação de conceitos alternativos, as duas d écadas seguintes ocuparam-se com

a reforma do sistema internacional decorrente de man ifestações políticasque se repetiam no seio das instituições criadas e que refletiam, além doprotesto, visões alternativas de mundo. A diplomacia bras ileira, mais uma

vez, emprestou ao multilateral o melhor de suas forças . Não esteve isoladaem suo forte determina... o rctormista, bem ao contrário, revelou seu sensoprático, ao integrar a frente dos povos atrasados 'e mtar a própria Europa em..se u esforço de correção de rumos do sistema internacíonal.

As origens do multilateralismo reformista situam-se nos anos 1950: in­conformismo de lideranças políticas dentro do bloco soviético, do qual ocisma da Iugoslávia foi exemplo; versão européia do incon!ormismo e gênesedo Mercado Comum Europeu; enfim, protesto da periferia e organizaçâo deuma frente de povos em desenvolvimento.

Forças de confrontação à ordem vigente despertaram na periferia . A Con­ferência do Bandung, na Indonésia, reuniu, em 1955 , 29 pa íses (23 asi âticos

e 6 africanos) que manifestaram sua discordância diante do colonial.ismo, dadivisão do mundo- em zonas de influência e das vicissitudes da Guerra Fria .Essa vertente acabou dando origem ao Movimento dos Povos Não Alinhados.Em 1957, seis países europeus firmaram os tratados de Roma que criavam aComunidade Européia de Energia Atômica e o Mercado Comum Europeu.

O Mercado Comum Europeu corresponde ao primeiro conserto da or­dem e produziu efeitos Imediatos, psicológicos e financctros . porém de largoalcance, imposto à ordem econômica do Ocidente. O liberalismo ilirmtadodesejado pelos Estados Unidos abrangia comércio, empreendimentos e ca­pitais, todavia centrava-se no livre-comercio de bens de consumo, uma vezque a superioridade produtiva norte-americana e os interesses nacionais a elaatrelados sugeriam essa prioridade na concepção do liberalismo. A criação doMercado Comum Europeu equivalia a duro golpe a essa tendência hist órica,em teoria e na prática. A concorrência se deslocava do mercado de consumopara o sistema produtivo, provocando 'a expansão das empresas multinacio­na is. Se um país desejasse te r parte em mercados de consumo de outrospaíses n50 mais haveria de mirar para o livre-comércio como mecanismopropulsor, mas era induzido a neles investir. Essa transformação do capitalis­mo garantiu a continuidade do Plano Marshall por meio do deslocamento de

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oBRASIL owm DA ONU f DA OMe. DASCONfEllhclAS INrnlNACIOI'A1S, DE DtmIos 6Klos...

capitais norte-americanos para a Europa e, depois, de capitais europeus paraos Estados Unidos , sempre com o fim de produzir no outro lado o que P""" láanteriormente seguira pela via do comércio , A mesma transformação salvou,

por sua vez, o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek no Brasil, para o qualchegaram os investimentos europeus, seguidos pelos americanos, para tocara industrialização. A essa altura, a América Latina contava com o pensarnen­

to e as estratégias propostos pela Cepal, que inspiravam os projetos nacionaisde desenvolvimento 11 base da industrialização e do protedonismo do mer­cado, algo assemelhado aos desígnios dos europeus, Um novo concerto entreas nações era esperado. As duas superpotências assistiam com vivo interesse11 reação dos flancos do sistema contra os parâmetros da ordem que haviamtraçado e percebiam que a lei dos gigantes, irnpositiva e conservadora, nãoviera para triunfar sem dificuldades e retoques.

O reformismo europeu apresenta então dois aspectos: a passividade na es­fera política, ou seja, a retirada de cena inte rnacional, uma vez que a EuropaFala de uma 56 vca, porém muda, e transfere aos dois grandes a responsabi­Iidade de formular e implementar políticas exteriores. mormente na área dasegurança; o ativismo na esfera econômica, ou seja, depois de vencera fasedifícil da reconstrução do pós-guerra, voltar-se sobre si e consolidar o nú­cleo econômico duro. servindo-se da cooperação e da integração regional. Oreformismo dos povos atrasados enveredou por caminhos distintos. o.neu­tralismo face aos blocos esteve na gênese do movimento e ostentou vontadede autonomia decisória em pol ítica internacional, Por outro lado, erguia-se oTerceiro Mundo contra a ordem econômica, reivindicando a cooperação doNorte para o desenvolvimento.

Os instrumentos aos quais recorreu o Terceiro Mundo, com o fim doprovocar a reforma do sistema internacional, eram as mesmas instituiçõescriadas no imediato pós-guerra , a ONU e o Gart . No seio da ONU, em1964, reuniu-se pela primeira vez a Unctad, Conferência das Nações Uni­das para o Comércio e o Desenvolvimento, cujo objetivo era desmascararo liberalismo teórico do comércio internacional pregado pelo Catt e favo­rável aos -países ricos, como haviam demonstrado os estudos da Cepal. AUnctad tomará forma instituciona], tomando-se regular e periódica. Nomesmo ano de 1964, urna reforma do estatuto do Gau liberou os países emdesenvolvimento do princípio da reciprocidade no comércio internacional,facultando-lhes a proteção necessária 11 implantação de suas indústrias . Ao

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100 O BRASIl DIAHft DAtlDBAUZAÇÃO I DA REllJOI<AlJZAÇAO

ensejo dos debates que se travavam em Genebra acerca do desarmamento,desde os anos 1960, países em desenvolvimento como o Brasil firmaramsua posição, reivindicando o desarmamento das grandes potências e a uti­

lização dos recursos poupados em favor do desenvolvimento, ademais, s~

recusaram a firmar o Tratado de Não Proliferação Nuclear, de 1968, quecriava dificuldades de transferência ou de desenvolvimento próprio da tec­

nologia nuclear pelos países em desenvolvimento.O tema do desenvolvimento impregnou, portanto, nos anos] 960, a agen ­

da das instituições multilaterais que compunham o sistema internacional dopós-guerra e deu origem a uma campanha em prol da refonna da ordeminternacional que colocasse em seu centro a promoção do desenvolvimento.O número de países que acedia à ONU , em razâo da descolonização, cresciarapidamente e os gigantes que haviam estabelecido um ordenamento globalpor si e para si eram surpreendidos pela nova conjuntura . A ONU institu iua Década do Desenvolvimento, uma após outra . O Movimento dos Não AL­nhados contaminou-se, contudo, pela ideologia da Guerra Fria e po r isso oBrasil o deixou de lado e integrou o Grupo dos 77, voltado a questões práti ­cas da economia internacional.

O objetivo-síntese dessa frente de povos atrasados era o de substituir, me­diante a negociação multilateral, a ordem do pós-guerra pela Nova OrdemEcon ômica Internacional (Noci) . Um objetivo desmesurado à luz do realis­mo das relações internacionais, terreno em que triunfam, via de regra, osinteresses das potências que dispõem de meios de poder com que secundardecisões políticas ou diplomáticas. Com e.feito, o triunfo dos atrasados foiaparente e efêmero. I\:; conferências da ONU chegaram 8 aprovar cerca desetenta documentos que definiam com clareza, de um ponto de vista concei­tual, os parâmetros da Noei. No embalo dessa onda , a diplomacia brasileiramovimentou-se, convertendo o País em líder terceiro-mundista . O chance­ler Azeredo da Silveira expressou esse protagonismo e suas expectativas dereforma do sistema internacional ao propor 11 Assembléia Geral da ONU e aoutros foros multilaterais, nos meados dos anos 1970, um acordo geral entreo Norte e o Sul , que equacionasse os interesses e os temas em debate e for­mal izasse as regras da cooperação internacional entre ricos e pobres.

Os resultados do esforço para construção da Noei foram curiosos, segun­do avaliação da chancelaria brasileira, a qual, em conseqüência disso, fará

algumas correções de rumo em sua ação multilateral. AUm do Sistema Geral

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oBRASil DIAHTI DADHU (DA olle. o.uCOIOFlllÍNC'AS IIffiII"'ClONAlS, Ol 0Ulll1l$ó~elos._ 101

de Preferências, uma concessão de acesso privil egiado e sem reci procidadeaos m ercados do Norte d e produtos or iundos dos pa íses em dcscnvelvimen­

to , e da modificação do estatuto do G att , permitindo a esses países recorr erao protecionismo para im plantar indústrias, a nenhum outro resultado con­cre to conduziu a Noei, Corno esses ganhos eram pequenos, quando compa­rados com os con ce itos elaborados de raodo coletivo no seio da ONU emresposta às expectativ as do Sul, julgou-se que o rnultilateralisrno escondia oembuste da hipocrisia , merecedor de desconfiança, no mínimo de- cuidados,Assim, pel a prime-ira vez , emerge entre os pa íses em desenvolvimento a idéiade cooperação Sul-Sul, em contrapartida à sonegação de eq uilíbrio nas rela­ções intemacionais por parte dos países avançados. Por outro lado, a políticaexte rio r do Brasil reforçou a ação de cooperação bilateral como método deco nd uta, uma vez que o multilateralismo global, comercial c financeiro haviaconduzido a frustraçóes práticas.

A luz do tempo recente, essa segunda aventura do multilatcrali smo bra­sileiro lev a a duas conclusões. Primeiro, a lição da hipocrisia rio sist ema in­ternacional foi esquecida ao termo do s écu lo XX, ass ístindo-se ao retomo da

idéia formulada no imediato pôs-guerra , segundo a qual , em quaisque r cir­cunst âncias, o mululateralisrno produz harmonia e conciliação de int ere ssesnas relações int ernacionais. Essa idé ia tende a se arraigar na política exteriordo Brasil ao longo do tempo e explica o empenho que a diplomacia dedica aomulttlan-rallsrno. Ela comporta um a dose de idealismo, porquanto as gran­

des potências manifestam, via de regr a, propr-nsão ao unilaterali smo, com oobje t ivo de impor la loi de" g éonts, segundo o conceito de Rene Girault. Oaspecto Idealista do multt lateralismo bras ileiro ressurge, de tempos em tem­pos . Com a abertura do fim do século XX, por ex emplo, transforma-se emcrença e ultrapassa as evidências 'clent íficas ao impregnar a opinião pública eo processo de cisório. Para os int eresses brasileiros, esquecer que os gigantesagem por si e para si cri ou condiç ões favoráveis à Implantação de um a globa­lilafâo as~ímlrrica no País.

Segundo, os esforços de reforma ensinam outra lição, desta vez posit iva:• evolução do mulrilaterul isrno brasileiro para a maturidade, alcançada quan­do esse mult ílat er alismo se integra à ação das estruturas hegemónicas docapitalismo e age desde dentro, como se dele fosse parte, com o intento de

colocar em pé de igualdade países emergentes e avançados nas negociaçõesque conduzem à con strução da ordem internacional.

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102 : O BAASIL DIAH1lDAGlOlAlJZAçlo I DAIlEGIONAlWltÁO

4.4 Agir pordentro domultilateralismo com objetivos próprios: opropósito na era da globalização4.4.1 Evolução dos conceitos

O rnultilateralismo recrudesce para se tornar hcgemõníco em sua capa­

CIdade de determinação sobre a política exte rior brasileira nos anos 1980.Durante os governos de matiz neoliberal da d écada de 1990, essa evolução

introduz urna modificação de essê ncia . A diplomacia bras ileira abandona,então, o propósito de reformar o ordenamento global e revela outra atitude:atuar em seu seio, fazendo valer os interesses naciona is. Essa mudança deatitude advinha da convicção implementada pelo s homens de Estado brasi­leiro s de que o mundo da interdependência global fari a brotar de seu âmagoum ordenamento feito de regras justas, transparentes e ben éficas para todos,o disciplinar a conduta e-xterna dos governos e de outros agentes das relaçõesinternacionai s. Como Se o mundo estivesse adentrando uma nova era , umRenascim ento como o do século XVI. Essa convicção Injeta na política mul­

tilateral uma dose de idealismo. pr ópria de governo.' neoliberais, entretantoem det ermin ado momento se pe rcebe que pode ultrapassar o ideali smo eatingir o nível da fé, longe da rnc íonalídad.-.

O s cr ít icos do ncoliberalismo c da globalízação, que se mantinham aten­

tos no se io da socieda de, descon fiavam nos anos 1990 desse renascimentoe percebiam que a pol ític a exterior evolu ía perigosamente para o âmbito daf~ . Consideravam que o País tr ansita va de uma utopia a outra, da ordem deefeuos benéficos para todos, erigida no imed iato pós-guerra , à base de libe­ralismo ilimitado e de fronteiras ideológicas, para a ordem da globalíza çâo,

tamb ém eri gida à base de liberalismo ilimitado inerente à doutrina clássicaacerca do mercado. Os crfticos percebiam qu e se tratava , em amba s as fases ,de regimes internacionais ben éficos e nocivos ao mesmo tempo, cujos ardi scabia aos países emergentes identificar e dominar para realizar seus interes­ses no se io do sist ema capitalista.

Assim como havia sucedido nas fases anteriores das relações inrernacio­nais do Brasil, 3 ordem da globalízsção reservava surpresa e exigia avaliação.ü próprio Cardoso reconherr-u que o unilateralisrno norte-americano com­prometia as regras do ordenamento global . Tam bém afirm ou : cumprimos asregra s, por ém os ganhos ficaram do outro lado ! Anal istas latino-americanosda globaliaação, entre os quai s Mario Rapoport, Aldo Ferrer, Luciano Tomos­sini, Raúl Bemal-Meza, além dos brasileiros, acrescentavam outras dúvidas:

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oBlIAS1l O'ANl1 •• ONUr DA 1lMC, O'~ COfOfIRoo:...s IIfTIRNAt1IlIWS. Df 0UlII0S O""OS..•~ 103

o Estado não definhava como supunham os neolibcrais, ao contrário, fazia-se

presente no cern e da ordem da globalização como seu arquiteto, sendo asregra s do centro capitalista propostas à periferia e aos países emergentes semreciprocidade real. Por outro lado, vários pesquisadores descreviam a dete­rioração dos indicadores sociais e econômicos da América Latina na viradado milênio, em conseqüência da adoção pass iva das práticas neoliberais,

Apesar de exibir pensamento contraditório, coube a Cardoso puxar parao Brasil da era da globalização o rnultilateralisrno kantiano que correspondiaà visão de um mundo harmonioso e padronizado, cujo ordenamento brotariada negociação. Mas sua visão de mundo revelou-se uma utopia. Sem utopiapor certo não vivem os ind ivíd uos nem as soci edades, no entanto com elapodem ser levados à perdição. A opinião pública percebeu o risco a que odestino nacional submeteu-se e substituiu, no Brasil, como ocorria em quasetodos os pa íses vizinhos, os governos neollberais por governos de esquerda,quando se iniciava o século XXI. A diplomacia de Luiz Inácio Lula da Silva,a part ir de 2003, opera com outro conceito de ação multilateral, que transitada ênfase obediencU1 às regras do ordenamento globais ênfase ser pane ati va

da produção de regras, isto é, das estruturas hegern ônicas do capitalismo.Em suma, novas atitudes caracterizam a ação multilateral brasileira du­

rante o governo Lula . Uma situa-se do lado da cont inu idade : tanto em teoriaquanto na prática O multilateralismo permanece entre os valores mais emi­nentes da política exterior, na suposição de que o ordenamento global emseu conjunto produz os melhores benefícios para as relações internacionais ,Outra atitude também lança raízes no passado, porém representa inovaçãoconceitual f' op eracional: não mais confrontar ou reformar, tampouco sub­meter-se de modo passiv o; mas penetrar a ação das estruturas hegemônlcasdo capitalismo de modo a ser parte do jogo de reciprocidades internacionais,do comando e dos benefícios.

Essas novas atitudes diante do multilateralismo motivam a ação externaem du as esferas: a da construção de me ios e a da realização de fins, tidas pornecessárias para substituí r o idealismo kantiano pelo realismo expresso nabusca da reciprocidade real das relações de interdependência,

Na esfera da criação 'de meios de poder, o multtlaccralísrno lrnplcmenraO desígnio de contribuir para a configuração do mundo multipolar, feito dealguns centros de poder capazes de neutralizar o un ilateraJ.ismo norte-ameri­cano, tido por nocivo, na medida que se orienta para a realização exclusiva de

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104 OR....sn DIAIffi DA.LOlWJlAÇ,t.C r M Rí&,OfWI2AÇAo

interesses norte-americanos . Esses centros de poder fariam girar em tomo desi a vizinhança: os Estados Unidos na América do Norte, a União Européia naEuropa. a Rússia no Eurásia, China, índia e Japão no Oriente, o Brasil na áreado Atlântico Sul ocidental. Fazer emergir o mundo mulnpolar, o desígnio dapolItica exterior brasileira, esconde adernais o propósito de ferir as arcaicasestruturas hegernônicas do capitalismo que articulava a rnade Est.a.dos Unidos,Europa e Japâo no afa de reservar para si os beneficios da ordem in ternacional.Assim pensa Sarnuel Pinheiro Guimarães, o Secretário Geral do Itarnaratycom influência na formulação teórica da política exterior. De outro ângulo,especialmente no entender do pensamento polftico conservador, o propósitode contribuir para configuração do mundo rnultipolar revela desproporção en­tre ação de tamanha envergadura e o,; meios de poder de que dispõe o Brasil.Por isso O pensamento conservador prossegue aconselhando a subserviência edivide a opinião com o pensamento nacionalista da era Lula, mais ambicioso erealista, visto que recupera a vontade nacional e se conforma às ambições doPaís de exercer um grande papel nas relações internacionais. '

Como já se observou, o pe nsamento político de Fernando Henrique Car­doso estendeu-se pela fase de transição que descrevemos. O multilateralis­mo bra sileiro incorpora , por essa razão , uma feição kan tiana, de crença naharmonia universal e de ação destinada a estabelecê-Ia . Acompanha, aliás,a onda da globalização que envolve os órgãos multilaterais por inteiro. DeGatt, transformado em üMe, esperam-se regras de liberalização e de im­pulso ao comércio internacional. Do Conselho de Segurança esperam-se

regras que garantam a segurança global, disciplinando intervenções e o com­bate ao terrorismo. Conferências internacionais voltam-se para outras di­mensões do ordenamento global que se constrói , como o trato do meio am obrente, adequando-o ao chamado desenvolvimento sustent.ável, os direitoshumanos, sociais, da criança, da cidadania, das mulheres e das minorias. J>

ONU estimula a produção de regras do ordenamento global em todos o,

domínios das relações Internacionais e mesmo da organização interna da:sociedades nos anos 1990, que Lindgren Alves apropriadamente chamou dsDicada das Conjerências . Por trás dessa onda rnultílateral ísta escondia-senos anos 1990 a filos06a política segundo a qual democracia e o livre rnerca

do preparavam-se para um casamento ideal.A efervescência do multilateralismo no fim do século XX penetrou :

inteligência brasileira tradicionalmente voltada para sua valorização. Ness,

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oBRASIL DIANlt DAONU l DAIIMt. DAS c:oNRAtIlQA' IIITlRNlClDNAII. Dl DC111tllS ÓIlllllls. .. 105

contexto de globalízaç ão, a política exterior cio Brasil poderia aprofundaruma ou outra versão multilateral que manifestara anterionnente: construti­va, co mo ao tempo da implantação da ordem do pés -guerra: refonnista ouconfrontacionista , como nas décadas seguintes. Fez, contudo, uma terceiraopçã o: agir no seio da ordem. .

Ao tornar-se prioritário, o multilateralismo porá em segundo plano as re­lações bilaterais que eram anter iormente o eixo de ação por meio daqual semovia a política ext erna brasileira. O multilateralismo abala, desse modo , asrelações internacionais do Brasil, deprimindo o conceito de relações bilate­rais, posto em prática mediant e acordos bilaterais ou regionais de comérci oe parcerias estratégicas com os Estados Unidos, a Europa e a Argentina,entre outros. A globalização, seja o governo brasileiro neoliberal ou logfs­tico, embala as relações internacionai s do País, fazendo minguar o bilaterale o regional , como se dela adviessern soluções para os desafios internos dequalquer natureza . O elemento cultural a impregnar essa perspectiva das re­lações internacionais do Brasil vem identificado por Celso Amorim, Ministrode Relações Exteriores e professor de Teoria das Relações Internacionais daUnivers idad e de Brasília, como antag onismo entre bilateral e multilateral, oprimeiro ind utor de ordem egoísta, introspectiva e complicada , o segundoindutor de harmonízaçâo de interesses.

O avanço em direção ao descolamento das est ratégias anteriores e ao ali­nhamento assertivo às forças da globalizaç ão recebeu dois impulsos: o pri­meiro veio da política, pela via da prevalência do multilateralismo desdeos anos 1980, contam inado pelo neoliberalísmo dos anos 1990; o segundoimpulso veio como passo qualitativo das forças econ ômicas nacionais, o pa­radigma logfstico de relaç ões int ernacionais, ensaio dos anos 1990 que seconsolida no inicio do sécu lo XXI. A expansão da economia brasile ira tendea integrar as forças da globalização, em ritmo razoável, tanto nos domínios docomércio internacional e das finanças quanto no dominio empresarial e tec­nológico : expansão sistêmica, a exemplo dos países cap italistas avançados.Essa transição foi apoiada pel a estabilidade política t': monetária.

4.42 Os objetivos próprios

Foram intensos os esforços da diplomacia brasileira no Gatt e na OMC,desde 1995, com o fim de negociar regras para o comércio internacional, quese deparava com problemas cruciais . Os países avançados exigiam a abertura

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106 : O BRASIL DIAHTt OAGLOBAilZA>ÂD E DAREGIDNAllZAÇAO

dos mercados emergentes para seus produtos e serviços de avançada tecno­

logia bem como a garantia de investimentos para expansão de suas empresas.

Mas nâo estavam dispostos a ceder seus próprios mercados de produtos agrí­

colas e mesmo industriais à reciprocidade das trocas, eliminando subsídios e

entraves na.' fronteiras . Na medida que os pa íses emergentes - denominação

que o velho Terceiro Mundo assume em conseq üência da formação de uma

elite de pa íses ao Sul - tomavam con sciência de que as regra s tendiam a per­petuar benefícios unilaterais de estruturas hegcrn ônicas dos pa íses capitalistas

do velho centro, as negociações comerciais tornavam-se mais difíceis .Galt e OMe nasceram dc lima tradição histórica: cabia aos países centrais

estabelecer as regra s do comércio internacional entre si, sendo a periferia um

anexo irrelevante, sem direit-o de expressão . Por outro lado, a Década da s Con­

ferências linha por fim agregar à ordem econômica regulada pela OMC os pa­râmetros da dimensão social, jurídica e política. Estaria desse modo em vias de

construção a nova ordem ela global ização mediante a negociação multilateral,a dos ricos entre si substituída pela dos ricos e emergentes entre si? De fato,

as regra s do ordenamento negociado destinavam-se a produzir nova sociedadeinternacional, derivada da governança global, que muitos autores e dirigentesabraçavam com entusiasmo. Por tal razão, a diplomacia de Cardoso admitiaque o modelo tradicional de desenvolvimento brasileiro erodia-se no seio do

novo modelo econômico proposto ao mundo pelo multilateralismo.Todavia,ainda se cultivavam utopias distantes do realismo; em vez da intervenção do

Estado na economia, a prevalência do mercado. No lugar do ordenamento na­cional, a conformação de inst it uiçõe s e leis internas à governança global.

Na esfera da criação de meios, durante o. mandatos de Lula, o rnulnlate­ralismo volta-se para a formaç âo de coalizões ao Sul, mas estas se destinamtambém à realização de seus fins. Apesar de sobrevalorizar o multilatera­

Iisrno, dando continuidade a uma tradição brasile ira que vinha , como ficou

claro anteriormente, do imediato pós-guerra, a nova fase concebida e imple­

mentada pelo governo Lula assemelha-se, em seus efeitos, ao unilateralisrno

norte-americano. No in ício do século XXI , Brasil e Estados Unidos contri­

buem para O declínio do rnultilateralisrno no que concerne a seu alcance prá ­

tico para produção do ordenamento global. Isso porque agem com políticas

destinadas a realizar fins incompatíveis: no primeiro caso, estabelecer a reci­procidade real na interdependência global; no segundo, manter as vantagensunilaterais das estruturas hegern ônicas do primitivo centro capitalista,

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OBRAm DI11m DA DNU f .A DMe, DASCDNlt1ltNCIA5 IIfT[llMot"""'S, DEOUTROS~.. 107

Com efeito, movida por essa base conceitual. a diplomacia de Lula con­tribui de modo assertivo para as negociações multilaterais comerciais que sedesenrolavam em três se tores do rnultilateralisrno : na aMC, para criação daAlca e, enfim, da zona de livre-comércio entre Mercosul e União Européia .

Contudo, se nessas três dimensões não se alcança a reciprocidade real emrazão da força de comando das estruturas hegern ônicas, melhor paralisar acriação de regras a nuir do multilateralismo, calcula a diplomacia brasileira,que age de modo febril com o objetivo de aproximar os países emergentes ereuni-los em torno de idênt ico propósito ,

Durante a reunião da OMC no balneãrío mexicano de Cancun, em 2003,a diplomacia brasileira exerceu liderança suficiente para articular com outrospaíses emergentes sua grande coalizão anti-hegemônica , o G20, grupo de pa­íses integrados pelos de maior peso da América do Sul. África e Ásia . índia,África do Sul e Brasil se articulam no se io do Ibas desde 2003 . Em 2005, ins­tituiu-se formalmente a Casa, Comunidade Sul-americana de Nações, com oobjetivo de fortalecer o regionalismo na América do Sul e estancar o projetonorte-americano de livre- comércio hernisférico, estabeleceu-se a aliança es­tratégica entre Argentina, Brasil e Venezuela e a primeira Cúpula Américado Sul-Países Árabes reuniu, em Brasília, 33 delegações.

Com esses e outros esforços similares destinados a criar coalizões anti­hegern ônicas ao sul, não pretende a diplomacia brasileira parar a construçãode regras do ordenamento global. Bem ao contrário, prestigiando o multila­teralismo em crise, apenas busca'conformá-lo à filosofia política de equalizarbenefícios nas relações internacionais. Recupera o propósito de estabelecerganhos reais entre as dua s partes do mundo, aqu elas que nos anos 1950 oscepalinos designavam de centro e periferia . Desde Unam, a diplomaciabrasileira tenta influir na substâ ncia das regras, que 'devem ser definidas pelos'dois pólos , o centro e os emergentes, para realizar os interesses de ambos. aG20 nasceu com a força da representatividade do segundo pólo , em posição

de equilíbrio com o primeiro, portanto, nasceu com legitimidade ética. Nosistema mundial de comércio, o objetivo do Brasil consiste precisamente nainterlocução entre os dois pólos de poder, a partir do princípio segundo oqualo ordenamento multilateral do comércio é por todos os t ítulos superiorem qualidade ao orde namento bilateral.

Quando se adentra pelo século XXJ, a reciprocidade real da era da, gleba­lização significa a participação efetiva do Norte e do Sul no comércio mun-

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108 OBRASIL DIIUfT[O' GlO••UlAÇÃo • O' Rf.'O"UZAÇAD

dial , em condições operacionais igualitárias, tanto para produtos agrícolasquanto industriais e serviços de elevada tecnologia . Curiosamente, não são ospaíses emergentes que re ivindicam o protecionismo, com9 nas décadas quese seguiram à ordem implantada no im edi ato pós-guerra , ma s os países ricos

que o praticam, com seus subsídios agrícolas e entraves múl tiplos à entrada

em seus mercados de produtos agrícolas e industriais provenientes do Sul.

Tudo isso, distante do livre-comércio proposto pelo centro.. que não o pra ­tica , como receita aos paíse s emergentes. Em termos com parativos globais,

a transferência de posições quanto ao protecionismo e ao liberalismo quese observa entre países ricos e emergentes no in ício do século XX] revela a

exi stê ncia de um mundo que não mais se qualifica pela divis ão entre centro

e periferia. Os países emergentes exibem competitividade sist êrnica global

superior no agroneg6cio e em alguns setores da indústria em relação aos Es­

tados Unidos, à Europa e 30 Japão. pelo fato de disporem de tecnologia deponta em suas fábricas, de matérias-primas e de trabalho 3 custo mais baixo.Nessas condições, a velha pol ítica de portas abertas com que os países capita­

listas de centro estenderam sua dominação sobre 3 periferia durante o séculoXJX e a primeira metade do século XX volta-se, no in ício do século XXI,contra eles, agorB responsáveis pelo malogro das negociações multilateraisque pretendem fazer avançar a prática do livre-com ércio.

O papel de ator global na OMC exercido pelo Brasil ap6s Cancun, porcerto, ~vj denci3 a capacidade de influir sobre o estatuto do comércio inter­nacional, por meio do G20, como também demonstra essa mesma capaci­dade de influi; sobre 3 segurança internacional o G4, fe ito de Japão, Índia,Alemanha e Brasil, e o G3-lbas sobre a cooperação internacional ao Sul. Oimpulso veio de tendências anteriores a Lula, porém houve inovação de estilo

e de metas durante seu governo. Em primeiro lugar, o pr essuposto segundo oqual não sendo o Brasil uma grande potência internacional necessita de uma

grande política internacional. Assim como o mundo espelhn desproporções

de poder e de potenciais, a política exterior deve realizar interesses nacionais

de uma sociedade também caracterizada por desproporções internas, algo

que a situa ao nível dos grandes centros de poder e de potencial, aproximan­do-a de sociedades miseráveis. Em segundo lugar. a disposição de não repetiros conformismos da era Cardoso, ou seja , não dar ouvidos ao conselho dos

ricos que insinua aos países emergentes: façam o que eu mando, não façam

o que eu faço .

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oB!"SIL OlANT[ OAONU E DA DMe, DAS eONFutNCIAS INmlWAetJlfUtS, OEDIITlIOS6.üos._

Os objetivos do multilateralisrno brasileiro tomam forma concreta naaçâo empreendida durante a rodada Doha da üMC e na política de co­

mércio exterior. Em fins de 2004, o governo denominou de 710va geografia

comercial se-u propósito de estimular os Auxos entre os pa íses do Sul, não

em detrimento dos que existiam entre o Brasil e o Norte, como erradamentealardeava a imprensa de direita , mas com o fim de abrir para as exportaçõesmercados que já absorviam mais de 50% do comércio internacional e favo­

recer pelo consumo as populações mais pobres do planeta. A nova geogra­fia comercial revelou-se extraordinário mecanismo propulsor do comércio.Em 200S, as exportaçôcs se aproximavam de cento e vinte bilhões de dóla­

res e o sald o da balança de cinqüenta bilhões, consolida ndo uma tendênciade ascensão dos fluxos e dos superâvits . Nesse momento, as tarifas médiasdo Brasil situavam-se em 10,7%, bem abaixo da média dos países filiados aOMC, que era de 15, J%. Por que fazer mais concessões enquanto os paísesdo Norte não diminuíssem subsídios e entraves à entrada de produtos agrí­colas, área de negócios ern que oSul exibia produtividade superior? Por queprosseguir sem reciprocidade realizando os interesses do Norte qu e exigiamaior abertura para produtos industriais c serviços? Que praticava, aliás, O

protecionismo também na esfera do comércio de produtos industriais?Corrigir tamanho insulto às regras do comércio internacional foi eleito

novo propósito da diplomacia brasileira durante a Conferência de Cancunde 2003, no seio da rodada Doha. Esta sucedeu à rodada Uruguai que es­tabeleceu, em 1994, a OMC e, em 2001, na reunião ministerial do Catar,recebeu o mandato de liberalizar o comércio internacional . O grupo de ex­portadores agrícolas, ent re os quais Brasil, Argentina, Chile, China, índia,Paquistão, Tailândia , Indonésia, África do Sul, Egito c outros, formou, então,o G20, que introduziu o multipolar nas negociações comerciais, doravantedestinadas a realizar a reciproc idade de beneficios nas trocas. Do contrário,não avançariam. Além do choque de interesses, a dificuldade para corrigi ro ordenamento comercial advém do sistema decis ório, feito na OMC porconsenso e não por votação, wna vez que os grandes não admitiriam que os

pequenos traçassem as regras do comércio internacional segundo a praxe davotação majoritária.

C omo não eram acostumados a partilhar com os países emergentes o po­der de definir as regras do com ércio internacional e como eram aco stumados

a traçá-las em benefício próprio, sem ceder, os países ricos do Norte sur-

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110 OBRASIL DIA/m DA ClouuuçAo {DA Rml1lNAllZAçAD

prcenderarn-se com a atitude dos países do Sul e as negociaç ões da rodada

Doha, que deveriam terminar em 2006. foram travadas durante anos e adia­das. enfim. Reuni ões ministeriais sucederam-se, também reuni ões prepara­tórias entre Estados Unidos, União Européia e G 20, todavia sem resultadosat é o início de 2007.

O malogro das negociações comerciais na üMC representa , no início doséc ulo XXI, duro golpe à ordem internacional de definição multilateral, pre­

cisamente quando o paradigma do Estado ncoliberal é ferido de morte na

América Latina e o reforço do Estado nacional se observa em todo o mundocomo fenômeno que su cedeu à onda ideológica da globalização. Apesar dea União Européia manter sua política agrícola, como se algo sagrado fosse ,a prática norte-americana de concluir tratados bilaterais de livre-comérciosurge como principal elemento obstrutor das negociações multilaterais decomércio, segundo o especialista Jagdish Bhagwati. Incômodas negociaçõesna sede da üMC em Genebra se multiplicam com o fim de resol ver conten-

•ciosos criados por infração de regras já firmadas. visto que, apesar de infrato­res, aos países do Norte repugna ceder.

Aproveitando-se da crise do multilateralismo provocada pejo egoísmo dasnações, a diplomacia brasileira anuncia que também o País não aumentariasua oferta nas áreas industrial c de serviços enquanto o Norte não endossassesoluções para a questão agrícola . Essa conduta se inspira na eqüidade' a serestabelecida nas negociações multilaterais, em substituição à obediência e aoingrediente doutrinai que afetavam as nego ciações conduzidas pelos gover­nos brasileiros anteriores a 2003 .

As duras nego ciações no seio da rodada Doha envolvem também a chanta­

gem e o sentimentalismo, ricos e emergentes querendo sensibilizar cora çõese obter adesões . Mas avançam, por certo, em qualidade. quando vinculamcomércio internacional a outros fins a que o multilateralisrno deve servir,como o desenvolvimento, o meio ambiente, a pobreza. E também quandosuperam a utopia e o fundamentalismo dos que pregam nas universidades efora dela o livre-comércio como solução pura e simples para todos os pro­blemas. Para ns negociadores da üMC multipolar do século XXI. a teoriado livre-corn êrcio deve ser apreciada pelos resultad os concretos c n.ãocomoum bem em si.

Duas observações permitem, enfim, compreender melhor a pol ítica bra­

sileira de comércio exterior, seja em escala multilateral, seja em escala bila-

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oBIlASIL Dl.lNTfDAONU E DAaMe . DA~ CONItRÉNC1AS INTEllNAClON.JJS, DEOllTllOS óA6.los... ~ 111

teral ou region al. Essa política parte do pres suposto segun do o qu al o orde­namento global, a aposta na OMC, convém aos interesses nacionais mais queoutros mecan ismos , sejam eles estabelecidos no seio da integração regional,sejam na esfera de acordos bilaterais de comércio. Ap esar de as expectativasnão se realizarem em âmbito multilateral, põem-se em quarenten-aos esfor­ços para ap rofundar o livre-comércio entre blo cos a que pertence o Brasil,

como ent re Mercosul e União Européia, e uma relutância se mantém parafirmar acordos bilaterais desse tipo, particularmente com os países ricos.Com efeito, estes impóem exigênci as tã o profundas para firmá-los que mo­dificam a organização social e o sistem a legal d o país . afetam a soberania.tolhem o controle do model o de desenvolvimento e ferem interesses vitaisde segmentos da sociedade.

A política brasileira de comércio exterior segue os padrões de países si­milares da América do Sul , Argentina e Venezuela. que desejam preservarSUa vocaçã o ·ind ust ria.l , e difere da política de países menores, como Chile,Colômbia, Peru, Equador e Uruguai, que se mostram satisfeitos com suavocação de países primários e por isso perseguem o acordo de livre-comér­cio com 05 Estados Unidos, mediante o qual sua situação de dependênciaestrutural se perpetua. Essa diferença de políticas de comércio exterior en­tre os países da Am érica do Sul resulta da diferença de modelos de desen­volvim ento. Contudo, um grande país como a índia, de com promisso como sistem a multilateral de comércio como o Bras il, inclu i em sua estratégiaext c rna acordos region ais c bilaterais de comércio , enquanto a rodada Dohanão for de stravada . Essa alternativa não vem sendo contemplada no presentepela diplomacia de Lula.

Além da área comercial, a ação multilateral brasil eira à época de Lula

também imprimiu outra orientação externa na esfera política e geopolítica.Reconduzido à chancelaria , Celso Arnorim deu im pulso à idéia que lhe eracara desde a Presidência de Itamar Franco (199 2-94) , quando ocupou pelaprimeira ve:z a pasta do exterior : a reforma da ONU e a candidatura brasi­leira ao assento permanente no Conselho de Segurança. A necessidade dere forma, argumenta, resulta da inevitabilidade de adaptar o sistema ONU de194 5 às transformaçóes de ma is de meio sécu lo e torná-lo mais representati­vo, transparente e legítimo, o objetivo do assento se dá pelas me smas razões .Ademais. o C onse lho de Segurança influi em outros órgãos do sistema ONU.onde o Brasil tem interesses concretos a defender, como no Conselho Eco-

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112 - OO......l OIA/ltt OA GlOIlAUZAÇÃOE DA ~EQIQNAUZAç.lo

/

nômico e Social e em órgãos e conferências permanentes ou regulares volta­dos para desarmamento, meio ambiente, pesquisa nuclear e outros fins.

Ser parte das estruturas hegernônicas do capitalismo e atuar na con­for mação das regras por meio da negociação mult ilateral corresponde à

filosofia polít ica do multilateralismo brasileiro p ós-neoliberal . Seu objeti­

vo consiste em distribuir responsabilidades entre as nações com o fim deestabelecer a reciprocidade real na di stribuição dos benefícios da globali­zação, tanto na esfera comercial , quant o financeira, política e geopolítica .Resultados são esperados dessa ação multilateral tanto quanto a guerra e apaz, mudanças climáticas, desenvolvimento sust ent áve le combate à pobre­za . Como tais desafios não podem ser equacionados pelos Estados-nações,requerem cooperação internacional e sistema multilateral fone, porém,como ambos se apresentam, são insuficientes. Especialmente em razão dounilateralismo dos Estados Unidos, que agem com o peso de sua hegemoniana área da segurança e do meio ambiente à revelia da ONU e do Protocolode Kyctc, ratificado em 2005 por outros 161 países . Daí a necessidade dasreformas, enquanto a governança global' prosseguir refletindo a distr ibuiçãodesigual do poder e a ineficiência das instituições multilaterais , a começarpela ONU e pela OMe.

4.5 Õsistema interamericanoO multilateralismo regional, de âmbito hernisf érico, expresso pelo siste ­

ma interarnericano, detém importância secundária na política externa bra­sileira . Seus suportes institucionais, a Organizaç ão dos Estados Americanos(OEA) e o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca [Tiar}, nasce­ram da solidariedade que selou a união continental durante a Segunda Guer­ra Mundial, é bem verdade. entretanto se nutriram dos primeiros arroubosda Guerra Fria . Ambos os estatutos refletem em seus termos a canalizaçãoda solidariedade continental para o combate ao comunismo.

Na apreciação que dele teceu a diplomacia brasileira ao longo da se­gunda metade do século XX , dois foram os desvios do pan-americanismo:serviu, em primeiro lugar, ao combate ao comunismo, que não represen­tava uma bandeira de luta latino-americana, e, em segundo, à hegemoniahernisférica norte-americana, que se pautava por interesses introspectivose negligenciava os da vizinhança , Brasileiros e demais latino-americanostentaram por Vf'7.f'S trazer o sistema interamerlcano para a cooperação re-

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oBRASil DlANTI DAONU I DA"MC , DASCON_CIAS INTIRNACI"NAJl, DI DI1llIOS1l1laA01._ 111

gional sob impulso norre-arne rlcano . Contudo, esse ideãrio que se expres­sou por meio da Oper ação Pan-arnericana, concertada em 1958 entre ospresidentes do Brasil , Jus celino Kubitschek, e da Argent ina, Arturo Fron­dizi, cedeu di ante d o id e ário da Aliança par. o Progresso, concebid a emrespo sta por lohn Kennedy como ver são norte-americana do pan-am erica­nismo, posto logo a servi ço da contenção d o comunism o e da hegemoniaregion al. Um regresso .

À época dos regimes militares dos anos 1960 e 1970, a OEA apoiava inter­venções co m O fim de debelar movimentos populares tidos por subversivos.Amadurecia, na sociedade civil, a convicção de que era dominada ideologi­camente pelo combate às esquerdas organizadas e pelo apoio a emprestar àsditaduras . A diplomacia brasileira, à dif erença da argentina, mesmo duranteo regime militar, encheu-se de frustrações diante do sistema interarneri cano,que não realizava int eresses dodesenvolvirnenro, nem sequer os contempla­va. Um cert o desprezo pelos órgãos multilaterais hemisféricos tomou contado ltarnaraty, que não manifestava interesse pela Secretaria Geral da OEA,cargo ocu pad o por escolha dos membros.

A Guerra das Malvinas , opondo Argentina e Grã-Bretanha, em 1983,levou o presidente dos Estados Unidos, Ronald Rcagan, a optar pel a Otan edirigir seu apoio log ísttco à ação inglesa no Atlântico Su\. Argumentava-se,então, que o sist em a interarner icano, especialmente seu braço estratégi­co, o Tiar, for a sacr ificado . E que não servia mais a fim útil algum paraos países lat inos . Ne sse momento de crise, paradoxalmente, a diplomaciabrasileira tomou a iniciat iva de salvar um sistema hemisférico moribundo.Pela primeira vez, apresentou sua candidatura à Secretaria G eral da OEA,cargo ocupado pelo embaixador Baena Soares, durante dois exercícios, en ­tre 1984 e 1994. Por qu e salvar o multilateralismo regional, assim mesmo,é uma pergunta que ainda não obteve resposta sat isfatória. A não ser quese evoquea percepção dos dirigentes brasileiros de que o multilateralisrno,mesmo de sprovido de efeitos con cretos, convém às relações internacio­nais, seja para limi tar a ameaça de hegemonias, seja para evitar a anarquiaque paira sobre elas .

4.6 A idéia brasileira de multilateralismoUma reflexão sistemática acerca da ação multilateral brasileira sugere

quatro cons idera ções;

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114 - O BRASILDJAtm D4 GtOEAUZAÇÃO f"" RfGlONAlIZ4ÇÃO

I) A presença brasileira nos órgãos multilaterais de alcan ce global ou dedimensão regional cont a entre as maiores, se comparada à de outros países,situando-se, nas últimas décadas, próximo às cinco delegações mais nume­rosas ,do mundo . Essa presença denota, por um lado, a importância que seatribui à negociação multilateral e à sua capacidade de fixar regras de orde­namento das relações internacionais ; por outro, destina -se a reforçar o min­guado poder de que desfruta o país no cen ário internacional.

2) O ordenamento produzido entre a Segunda Guerra Mundial e o fim daGuerra Fria vem sendo avaliado de baixa utíli dade por diplomatas e interna ­cionalistas, quando referido aos interesses do desenvolvimento. O ordena­mento que corresponde à era daglobalização, a governança globa l em gesta ­ção nos órgãos multilaterais e nt re 1990 e o presente, também é consideradode baixa utilidade, se relacionado à função de estabelecer a reciprocidadereal das relações internacionais que o País espera do muitílateralismo na es­fera econômica e à legitimidade na esfera política e de segurança. A ordemideal corresponde a ordem multilateral de alcance global, não à regional emenos ainda à bilateral.

3) A atuação brasileira nos órgãos multilaterais revelou-se, ao longo dotempo, coerente com o acumulado histórico da diplomacia, citado em outrocapítulo, sobretudo no que diz respeito aos princípios de autodeterminaçãoe não-intervenção e ao vetor do desenvolvimento: As fases dessa atuação tra­zem, contudo, adaptação natural da política a seguir nos órgãos multilaterais,sob os aspecto.• conceitual e prát ico.

4) Não foi linear e sem mudança a atitude brasileira diante do multilate­ralisrno. Oscilou entre idealismo e realismo, subserviência e protagonismo.Pressupostos conceituais desse multilateralismo explicam a oscilação. Suafuncionalidade mais relevante para a vida internacional situa-se do ladoeconômico. Sob o ângulo da economia política internacional, o multilate­ralismo brasileiro achegou-se à concepção de que o mercado, curso naturale profundo, não basta como ordenador das relações internacionais, reque­rendo-se a intervenção do Estado com o fim de domar suas forças e oríen­

tá-Ias para necessidades humanas, tais como desenvolvimento, bem-estar,combate à pobreza, em suma, a eqüidade . Para exercer essas funções Dasrelações internacionais, o multilateralismo deve dispor de sólido suporteinstitucional e operar de modo a distribuir responsabilidades entre todas asnações, sem o que serão consideradas apenas as necessidades das que de-

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têm maior parcela de poder. Ne ssas condições, a ação rnult ilateral do Brasil

tanto contribuiu para criação de uma sociedade inte rnacional ma is justa

quanto frust rou expectativas. tanto regi.,trOIl esforços pua reforma da or­de quanto disposição para operar em seu seio , Não se transita de uma

fase a out ra abruptamente. porquant o arra stam-se sobre o tempo longopressupostos conceituais co nt radi tórios . Sem dirimir o problema de fun do :que fazer com o multilateralísmo?